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A questão da periodização do desenvolvimento

psicológico em Wallon e em Vigotski: alguns aspectos de duas


teorias

Edival Sebastião Teixeira


Centro Federal de Educação Tecnológico do Paraná - CEFET/PR

Resumo

Este artigo apresenta alguns aspectos de duas teorias de desenvol-


vimento psicológico elaboradas sob a ótica do materialismo
dialético: a de Henri Wallon e a de Lev Vigotski. O trabalho argu-
menta que o fato de esses autores terem desenvolvido suas pes-
quisas apoiados na mesma matriz filosófica propicia importantes
aproximações entre eles. Entre os aspectos comuns, o artigo des-
taca: a recusa em enquadrar o desenvolvimento psicológico em
esquemas rígidos, orientados segundo uma lógica linear; a con-
cepção de que o psiquismo humano foi e continua sendo produ-
zido historicamente pelos próprios homens no interior das relações
que estabelecem entre si e com a natureza; a defesa feita por es-
sas duas teorias quanto ao caráter constitutivo, portanto positivo,
dos conflitos e alternâncias entre períodos críticos e estáveis que
caracterizam o desenvolvimento psicológico; e, principalmente, o
fato de ambos os autores ressaltarem que uma compreensão ade-
quada do desenvolvimento exige uma análise desse processo em
sua essência interna, isto é, uma análise dos condicionantes dos
sintomas externos do desenvolvimento psicológico. Especifica-
mente sobre a teoria walloniana, o artigo realça a idéia de que o
desenvolvimento é marcado pelas alternâncias entre cognição e
afeto e entre razão e emoção; em relação à concepção
vigotskiana, o texto enfatiza que o estudo do desenvolvimento
psicológico deve partir da análise da atividade da criança tal como
ela se apresenta nas condições concretas de sua vida.

Palavras-chave

Wallon  Vigotski  Desenvolvimento psicológico.

Correspondência:
Edival Sebastião Teixeira
R. Visconde de Nácar, 2000
85.501-450 - Pato Branco - PR
e-mail: edival@pb.cefetpr.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.2, p. 235-248, jul./dez. 2003 235
The issue of the periodization of psychological
development in Wallon and in Vygotsky: aspects of
two theories

Edival Sebastião Teixeira


Centro Federal de Educação Tecnológico do Paraná - CEFET/PR

Abstract

This article presents some aspects of two theories of psychological


development created from the viewpoint of the dialectical
materialism: those of Henri Wallon and of Lev Vygotsky. The work
argues that the fact that both these authors developed their
theories from the same philosophical roots inspires important
approximations between them. Among the aspects shared by these
theories the text highlights: the refusal to frame the psychological
development within rigid schemes following a linear logic; the
idea that human psyche has been and continues to be historically
produced by men themselves inside relations they establish with
each other and with nature; the defense they promote of the
constitutive, and therefore positive, nature of conflicts and
oscillation between critical and stable periods that characterize
psychological development; and, particularly, the fact that both
authors emphasize that an adequate understanding of
development requires the analysis of this process in its internal
essence, that is, an analysis of the conditionings of the external
symptoms of psychological development. Regarding the Wallonian
theory, the article draws attention to the idea that development is
characterized by the alternation between cognition and affection,
reason and emotion; as to the Vygotskyan conception, the text
emphasizes that the investigation of psychological development
must start from the analysis of a child's activities inside the
concrete conditions of his/her life.

Keywords

Wallon  Vygotsky  Psychological development.

Contact:
Edival Sebastião Teixeira
R. Visconde de Nácar, 2000
85.501-450 - Pato Branco - PR
e-mail: edival@pb.cefetpr.br

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A questão da periodização do desenvol- de fato o mais importante, são os recursos
vimento psicológico tem sido uma das mais metodológicos com que trabalha cada cientis-
investigadas na psicologia evolutiva. Tran- ta. Tais recursos propiciam interpretações dis-
Thong (1981), num trabalho que discute o tintas tanto para a gênese e a evolução, como
problema do conceito de estádios de desenvol- para a manifestação de determinado fenômeno.
vimento da criança na psicologia contemporâ- Este trabalho consiste na apresentação de
nea, considera que quatro sistemas de alguns aspectos de duas teorias de desenvolvi-
periodização parecem impor-se: os sistemas de mento psicológico elaboradas sob a ótica do
Freud, Piaget, Gesell e Wallon. Esses quatro materialismo dialético: a de Henri Wallon (1879-
sistemas têm sido base tanto para estudos so- 1962) e a Lev Semenovich Vigotski (1896-1934).
bre a criança e seus estádios de desenvolvimen- Demonstramos que a lógica subjacente a essas
to como para a elaboração de estratégias apli- teorias, por si mesma, aproxima Wallon de
cáveis no domínio da educação. Vigotski, embora haja diferenças importantes
Segundo Tran-Thong (1981), embora os entre esses dois autores. Diferenças essas, entre-
estudos sobre a periodização sejam numerosos, tanto, que não são objeto de análise neste texto.
tem havido pouca reflexão acerca do conceito e
das noções de estádio. Para o autor, os sistemas O conflito como parte
piagetiano e walloniano seriam os mais elabora- constitutiva do
dos e coerentes, justamente porque somente em desenvolvimento psicológico
Piaget e Wallon encontrar-se-iam esforços no
sentido da definição do conceito de estádio e a Quando Wallon (1975a) faz uma críti-
sua sucessão, e empenho no estudo dos proble- ca às concepções mecanicista e idealista sobre
mas da passagem de um estádio a outro e da a constituição do psiquismo, deixa claro que
continuidade e descontinuidade do desenvolvi- tanto explicações positivistas, para as quais o
mento. No entanto, em que pese essa caracterís- psiquismo é redutível a elementos a priori cujas
tica comum, esses dois sistemas apresentam leis são invariáveis e por isso previsíveis, quanto
grandes diferenças entre si e traduzem duas explicações idealistas que colocam a consciên-
concepções de estágio muito distintas, senão cia antes da matéria, subordinando a realidade
opostas. ao pensamento, não alcançam a especificidade
Os sistemas elaborados por autores so- da psicologia que se situa nos domínios do
viéticos são pouco difundidos no Ocidente, ain- biológico e do cultural. No entanto, apesar de
da que uma de suas escolas – a histórico-cultu- o psiquismo situar-se ao mesmo tempo nesses
ral – goze atualmente de grande prestígio. Entre dois domínios, não se deve imaginar que resulte
esses sistemas, Davidov (1988) destaca os de P. do acréscimo da cultura sobre um substrato
Blonski, L. Vigotski, B. Anániev, L. Bozhóvich e D. orgânico. Ao contrário, embora haja uma liga-
Elkonin. No Brasil, quase não se discute a perio- ção primária e fundamental na sua gênese, o
dização elaborada por autores dessa escola, embo- psiquismo resulta de um processo em que es-
ra outros aspectos da psicologia histórico-cultural, ses dois constituintes são complementares.
nota-damente de Vigotski, sejam muito freqüentes O psiquismo desenvolve-se num meio
em textos de psicologia educacional. que se constitui como um conjunto de circuns-
Os sinais externos de desenvolvimento tâncias às quais o organismo humano reage.
são descritos de modo muito parecido pelos Mas não se trata de simples resposta a estímu-
diversos autores que se ocupam da psicologia los ambientais, pois o meio sobre o qual o
evolutiva, como se depreende facilmente da homem reage não é somente o natural, mas é
leitura de Wallon, Piaget e Vigotski, por exem- também um meio criado por sua atividade. Isto
plo. O que diferencia as várias teorias, e isso é

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é, o meio no qual se desenvolve o psiquismo é meno foi produzido. Assim, a análise das rela-
cultural por excelência; social, dizendo-se de ções entre organismo e meio ultrapassa em
outro modo. A concepção walloniana, então, muito a linearidade suposta a partir de um
parte da idéia segundo a qual o psiquismo esquema rígido de pensamento – ação/reação
humano foi, e continua sendo, produzido his- – por duas razões: em primeiro lugar, o meio
toricamente pelos próprios homens no interior não é constante e transformações em sua na-
das relações que estabelecem entre si e com a tureza modificam o homem; em segundo lugar,
natureza. o homem modifica o meio, ajusta-o às suas
É no materialismo dialético que Wallon necessidades e, ao proceder desse modo, mo-
encontra o suporte necessário para desenvolver difica-se também.
sua psicologia. Para ele, a dialética marxista dá Entendemos que aí há aproximação de
à psicologia Wallon para com o pensamento de Marx e
Engels. Em relação à transmissão das caracte-
o seu equilíbrio e a sua significação, que subtrai rísticas da espécie pelos mecanismos da here-
à alternativa dum materialismo elementar ou ditariedade, o homem não difere essencialmen-
dum idealismo oco, dum substancialismo gros- te dos demais animais. O que verdadeiramente
seiro ou dum irracionalismo sem horizontes. É diferencia os homens dos animais, segundo
ela quem mostra a simultaneidade entre ciência esses autores, é o fato de que somente os
da natureza e ciência do homem, suprimindo homens podem produzir seus meios de vida; e
deste modo a ruptura que o espiritualismo pro- ao produzir tais meios, produzem sua própria
curava consumar no universo entre a consciên- vida material com tudo que ela abarca, inclu-
cia e as coisas. É ela que lhe permite considerar indo seu psiquismo. Em A ideologia alemã ,
numa mesma unidade o ser e seu meio, as suas Marx e Engels (1977) consideram que qualquer
perpétuas interacções recíprocas. É ela que lhe concepção materialista histórica acerca do ho-
explica os conflitos dos quais o indivíduo deve mem deve partir de um fato fundamental: a
tirar a sua conduta e clarificar a sua personali- produção dos próprios meios de subsistência é
dade. (Wallon, 1975b, p. 67) o elemento que desencadeia a construção do
homem. O homem é, portanto, um ser de na-
Coerente com esse ponto de vista, a tureza social e tudo o que tem de humano nele
psicologia walloniana aceita que o psiquismo provém da sua vida em sociedade.
tem as suas especificidades, embora não subs- As primeiras manifestações psicológi-
titua a realidade das coisas. Por isso mesmo, cas da criança originam-se do funcionamento
essa abordagem aceita toda a diversidade do dos mecanismos viscerais. Nas etapas iniciais da
real com todas as suas contradições, porque vida, a criança encontra-se em um estado de
justamente elas – as contradições – são ele- total imperícia que a impede de satisfazer por
mentos de explicação do real. Noutras palavras, si mesma suas necessidades. Contudo, ao lado
a realidade em geral e a do psiquismo em par- dessa incapacidade orgânica, possui um potente
ticular são o que são justamente por causas das recurso, que é o desencadeamento de reações
contradições. que despertam a atenção dos outros que a cer-
Na opinião de Wallon (1975b), a cam. De acordo com Wallon (1986a), a primeira
dialética marxista introduziu uma revolução no atividade eficaz da criança é a capacidade de
modo de conhecer da psicologia ao substituir desencadear nos adultos que a cercam ações
a análise da propriedade pela análise do pro- que levem à satisfação de suas necessidades e
cesso. Isto é, a análise de um dado fenômeno é por essa razão que nessa etapa da vida todas
psicológico tal como este se apresenta, pela as suas possibilidades psíquicas estejam orien-
análise do processo por meio do qual tal fenô- tadas nesse sentido.

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Ora, obviamente a criança não tem con- discorda de Freud, tal como fizera com Piaget:
dições de indicar com precisão o seu estado “Esta modelagem do Eu pelo meio, da consciên-
fisiológico. Cabe ao adulto que a cerca a inter- cia individual pelo ambiente coletivo, não está
pretação das manifestações viscerais da criança, necessariamente ligada ao duelo freudiano en-
que se expressam por variados modos. E ao tre o instinto sexual e os imperativos sociais”
interpretá-las, inevitavelmente insere numa si- (Wallon, 1986b, p.160), porque o fato primei-
tuação de natureza biológica um traço cultural. ro da formação da consciência é a própria li-
Então, embora nas fases iniciais do desenvolvi- mitação orgânica do bebê.
mento a fisiologia e a psicologia sejam simultâ- As reações descontínuas da criança
neas, as conseqüências das manifestações da muito pequena servem apenas como veículo de
criança ultrapassam a fisiologia e a ligam à so- expressão das tensões de origem orgânica ou
ciedade. Por isso mesmo, Wallon (1986a, p. 141) exteriores. Mas são os outros que interpretam
entende que é “pelas relações de sociabilidade suas reações, movimentos e necessidades. Por-
que a vida da criança necessariamente principia”. tanto, como a criança nessa condição é inca-
Tais relações ultrapassam o plano do mundo fí- paz de realizar alguma coisa por si mesma, ela
sico e, com o tempo, vão modificando o compor- é manipulada por quem a atende. E é nos
tamento humano: de visceral para socialmente movimentos desse outro que as primeiras atitu-
orientado. des do bebê tomarão forma.
Wallon (1986b) discorda de Piaget no Os gestos do bebê, antes de serem úteis
que diz respeito ao processo da tomada de por si mesmos, são úteis como geradores nos
consciência de si pelo sujeito. Na teoria piage- outros de gestos e atitudes desejáveis. Embo-
tiana, a participação do outro na formação da ra esse mecanismo possa parecer semelhante
consciência se dá muito tardiamente, uma vez ao mecanismo do condicionamento operante,
que esse percurso opera-se ao longo dos pri- difere da simples associação fisiológica porque
meiros seis ou sete anos. Para Piaget, a crian- se faz acompanhar de outro tipo de associação
ça parte do autismo, passa por um período que logo entra no plano da expressão, da com-
marcado pelo egocentrismo, para só então po- preensão, do afeto, das relações interpessoais.
der imaginar os outros como parceiros capazes Isto é, da simples associação entre uma mani-
de manter relações de reciprocidade. Ou seja, festação de desconforto seguida de uma respos-
diferentemente de Wallon, Piaget entende que ta eficaz por parte do outro, passa-se ao pla-
o sujeito deve antes tomar consciência de si do no das manifestações emotivas intencionais
que do outro. capazes de suscitar reações adequadas às ne-
Piaget e Freud também discordam quan- cessidades do bebê.
to à gênese da consciência do Eu. Para Freud, A emoção é um veículo para o afeto e,
escreve Wallon (1986b, p.160), “a consciência de acordo com a concepção walloniana, um
não é a célula individual que deve abrir-se um estado psíquico mais primitivo que a tomada de
dia sobre o corpo social; é o resultado da pres- consciência de si mesmo. O psiquismo inicial é
são exercida pelas exigências da vida em soci- um estado de indivisão entre a criança e o
edade sobre as pulsões de um instinto ilimita- mundo exterior; a união entre o Eu e o outro
do”. Parece haver, portanto, uma certa proximi- é total e indiscernível no começo: os desejos,
dade entre as idéias de Freud e de Wallon medos, necessidades, etc. se confundem no e
quanto ao ponto de partida da consciência do com o mundo. Mas no processo de tomada de
Eu, que começaria indiferenciada e fundida ao consciência o sujeito vai como que se apreen-
outro. dendo nele e sua consciência começa a tornar-
Não obstante essa proximidade, no que se o modo pelo qual o sujeito afirma-se em
diz respeito à formação da consciência, Wallon direção à autonomia.

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No processo da tomada de consciência Por meio do processo de alternância
de si alternam-se momentos de expansão e de funcional, vista nessa teoria como uma das leis
contenção, de ansiedade e de explosão de básicas do desenvolvimento,
surpresa, de choro e de alegria, de presença e
de ausência do outro, etc. (sempre interpreta- as diferentes idades em que se pode decompor a
dos pelo outro no começo). Esses jogos de evolução psíquica da criança opõem-se como
alternância tornam possível à criança ir, aos fases à orientação alternativamente centrípeta e
poucos, posicionando-se em relação ao outro. centrífuga, orientada para a edificação cada
Mas, de fato, esse outro nunca abandona ou é vez maior do próprio indivíduo ou para o esta-
expulso da consciência porque o sujeito não é belecimento das suas relações com o exterior,
uma abstração que se distingue de outras abs- para a assimilação ou para a diferenciação fun-
trações. A distinção resulta tanto daquilo que cional e adaptação subjetiva. Mas sob a orien-
faz com que o sujeito afirme sua identidade tação global dos períodos, é possível encontrar
como daquilo que o sujeito deve “expulsar” de componentes mais elementares, que compreen-
si para se afirmar; o indivíduo forma-se no dem este vaivém e reconhecem mesmo em cada
esforço do Eu em se opor à sociedade. Por um desses períodos uma ambivalência que lhe
outro lado, e em primeiro lugar, o sujeito é faz assumir, em comparação com outras, quer a
social não por contingências externas, mas função da elaboração íntima, quer o de reação
devido ao seu estado inicial de necessidades e relativa ao meio. (Wallon, [s.d.], p. 105-106)
imperícia.
A organização da sociedade, ao longo Embora se alternem, afetividade e cognição
da história, fez com que o meio social se trans- mantêm entre si uma relação de reciprocidade. Isto
formasse em instrumento de ação sobre o meio é, quando o afeto cede a dominância numa deter-
natural. Dizendo-se de outro modo, a sociedade minada fase, todas as suas conquistas são incorpo-
construiu mecanismos pelos quais as necessi- radas pela cognição que passa a operar em bases
dades e desejos da criança ou são atendidos qualitativamente diferentes. O mesmo sucede quan-
imediatamente, ou o atendimento é posterga- do ocorre a inversão; aí é o afeto que incorpora o
do, ou ainda tais necessidades e desejos têm conhecimento acumulado até então e, também,
sua “natureza alterada” de modo que a energia opera a partir de bases distintas. Ou seja, durante o
seja canalizada para outro fim alternativo. A processo de constituição do psiquismo, cognição e
psicologia de Wallon ocupa-se em entender afeto vão “construindo-se reciprocamente, num per-
como o Eu se constitui. Como é o processo de manente processo de integração e diferenciação”
constituição desse Eu, que vai de um estado (Galvão, 1999, p. 46).
indiferenciado a um estado diferenciado, por A lei de alternância funcional é uma lei
meio de um processo marcado por conflitos. geral, que diz respeito a todas as funções e
As diversas fases pelas quais passa a domínios. As alternâncias funcionais são obser-
criança em seu processo de desenvolvimento vadas não apenas no conjunto do desenvolvi-
são marcadas por mudanças bruscas, nas quais mento, mas no interior de um conjunto espe-
a energia da criança ou está concentrada em si cífico e em cada função complexa ou elemen-
mesma, ou no outro. Trata-se de um percurso tar (Tran-Thong, 1981). Por essa razão, num
em que se alternam os focos de atenção que mesmo estádio observa-se uma ambivalência
dirigem a atividade da criança nas diversas que ora o faz parecer de elaboração íntima, ora
fases de desenvolvimento psicológico pelas de reação ao meio. Assim, para se definir um
quais passa. Wallon [s. d.] dedica um capítulo estádio, é necessária a concorrência de outras
de A evolução psicológica da criança à discus- duas leis do desenvolvimento: lei da predomi-
são dessas alternâncias. nância funcional e lei da integração funcional.

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A predominância funcional diz respei- da que sujeito à transitoriedade, de integração
to ao fato de que em cada fase predomina um funcional.
tipo de atividade como recurso principal de No plano do desenvolvimento psicoló-
interação entre a criança e seu meio. Esses gico, os conflitos podem ser observados na
recursos são de ordem cognitiva ou afetiva. alternância que ocorre entre as diversas etapas.
Quando é o intelecto que predomina, a ênfase No período impulsivo emocional, em que há
da atividade da criança orienta-se para a cons- predomínio da emoção, a criança está mais
trução do real e do conhecimento do mundo voltada para si mesma. É como se o bebê não
físico (Galvão, 1999). Nos momentos em que conseguisse sentir-se como parte do mundo.
predomina o afeto, as atividades da criança Ele é o mundo.
voltam-se à construção do Eu. Com o avanço do processo de desen-
A integração funcional, que se inspira volvimento, a criança entra noutra etapa em
no desenvolvimento do sistema nervoso, é um que a energia canaliza-se para outra esfera de
processo mediante o qual o psiquismo vai sen- ação, na qual predomina o movimento. Trata-
do regido cada vez mais por estruturas corticais se da etapa sensório-motora e projetiva. Nela,
mais evoluídas. Isso significa que uma criança a criança volta-se para o mundo exterior e
de um ano, por exemplo, não é capaz de pen- começa a descobrir as qualidades das coisas e
sar sobre suas emoções, embora sinta e perceba sua sensibilidade é aguçada com a ajuda da
as manifestações neurovegetativas que as marcha e da palavra. Com a contribuição da
acompanham. A integração funcional é um linguagem, começa a identificar melhor os
princípio básico no processo de desenvolvimen- objetos que encontra e reencontra em suas
to porque, por meio dele, funções corticais mais “andanças” – o nome do objeto ajuda a crian-
recentes passam para o primeiro plano no con- ça a distingui-lo no conjunto perceptivo em
trole da atividade da criança, substituindo fun- que se encontra. Enfim, trata-se de uma etapa
ções mais antigas. Tran-Thong (1981) afirma em que a esfera cognitiva é muito mais evidente
que é essa lei da integração funcional que pre- que a emocional. A etapa do personalismo a
side a organização das funções sucessivamen- sucede.
te preponderantes. No personalismo, a esfera afetiva subje-
Convém ressaltar, todavia, que na teo- tiva reassume posição de destaque. A criança
ria walloniana integração não significa nem busca a independência e o enriquecimento do
justaposição, nem combinação e nem mesmo seu Eu, baseando suas ações na oposição siste-
uma espécie de associação entre fatores distin- mática ao outro. Para que o Eu se constitua, no
tos e contraditórios entre si. A integração indica entanto, a criança precisa negar sistematicamente
a realização de um conjunto em que elementos o outro, mas, ao mesmo tempo, incorporá-lo na
particulares perdem sua significação própria em medida em que este, de certo modo, represen-
favor de uma significação comum. Cada ocor- ta o seu devir. Então, nessa etapa, podem-se
rência da integração funcional significa a pas- observar claramente pelo menos dois conflitos:
sagem a um nível mais elevado de desenvolvi- a) o da mudança da esfera da cognição para a
mento, resultando em novas estruturas. A evo- esfera da emoção; b) a negação e a incorpora-
lução da criança é composta por uma série de ção do outro. No final desse percurso espera-se
integrações sucessivas, sendo, por isso mesmo, um fortalecimento da identidade pessoal, fato
descontínua e atravessada por crises seguidas que propicia, de certo modo, a entrada noutra
de mutações. etapa. O sucedâneo do conflito entre o sujeito
Enfim, pode-se dizer, com efeito, que o e o outro é um retorno à esfera cognitiva.
desenvolvimento psicológico é um processo Na etapa imediatamente posterior à
cuja finalidade é o alcance de um estado, ain- personalista, a categorial ou período escolar, a

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criança aprenderá a conhecer-se como uma (1986b), “as emoções criam público” ao mes-
personalidade polivalente e aprenderá a ajustar mo tempo em que criam um consentimento
suas condutas às circunstâncias particulares geral que escapa ao controle individual. Às
pela gradual e precisa redução do sincretismo vezes, elas têm efeitos instantâneos e totalitá-
da inteligência. Mas, com o passar do tempo, rios que desorientam a reflexão. Seu terreno
a afetividade reassume posição de destaque na propício são as situações em que não existem
etapa da puberdade e entrada na adolescência. relações organizadas, técnicas e conceituais
Essa última etapa é fecunda em confli- entre as pessoas.
tos. Em alguns momentos as necessidades do Mas a vida intelectual supõe a vida
Eu tendem a absorver as disponibilidades do social e a vida emocional, como primeiro terre-
sujeito. Noutros, despende-se energia em ma- no das relações interindividuais de consciência,
nifestações exteriores que por vezes tomam é condição, portanto, do surgimento da lingua-
aspecto de verdadeiros paroxismos passionais. gem. Com as emoções surge um tipo de ativi-
Alternam-se sentimentos ambivalentes: timidez dade que não é propriamente uma resposta
e arrogância; egoísmo e altruísmo; sentimentos automática do organismo, mas sim toda uma
de espanto perante si mesmo, como se o sujeito organização plástica do aparelho psicomotor.
não se conhecesse mais, com o surgimento de A palavra articulada, por exemplo, rela-
preocupações em relação a responsabilidades ciona-se com a atividade postural tônica. No
sociais, profissionais e familiares. Contudo, o entanto, a emoção não é uma linguagem. As
que parece mais desintegrador é, na verdade, emoções fazem com que o sujeito se concen-
um trunfo que o sujeito humano alcança nes- tre no interesse do momento, eliminando qual-
sa etapa. A dúvida perante si mesmo no mun- quer elemento que não possa incorporar e que
do é uma boa base para o espírito da constru- não se relacione com a situação. Por isso a
ção, da invenção e descoberta, da aventura e emoção não possui nenhuma característica de
da criação. atividade simbólica.
Enfim, longe de representar uma pato- Ora, se entre emoção e representação
logia do desenvolvimento, os conflitos na pers- existe algum grau de incompatibilidade, por-
pectiva walloniana são, na verdade, funcionais. que a emoção interfere na atividade intelectu-
Isto é, fazem parte mesmo do processo de al, e se a emoção foi um fator que orientou o
construção do Eu. surgimento da unidade de atitude e consciên-
Além do que se observa no processo cia entre os indivíduos, então o conflito entre
de desenvolvimento psicológico em sentido razão e emoção é evidente. Há pelo menos
amplo, os conflitos também são observáveis duas justificativas para essa afirmação: a) a
noutros campos mais restritos, por assim di- emoção situa-se entre o automatismo das re-
zer. Por exemplo, há conflitos evidenciados ações e a vida intelectual. Embora as emoções
pelos antagonismos entre razão e emoção, se originem da atividade tônica, elas desenvol-
embora as emoções façam parte da gênese vem sistemas de reações demonstrativas que
da cognição e desempenhem importante pa- substituem ou comprometem a execução das
pel na vida psíquica. ações externas; b) embora as emoções se ori-
Nos grupos humanos primitivos, as rea- ginem como elemento desencadeador das ati-
ções emocionais tiveram o papel essencial de tudes solidárias que levam ao intelecto (às
suscitar ações coletivas de ataque ou defesa, trocas intelectuais entre as pessoas), elas são
reforçando com isso sentimentos de coletivida- perturbadas ou suprimidas pelo controle da
de. Atualmente as reações emocionais têm um inteligência. Não obstante, as emoções conti-
efeito coercitivo de atitudes e sentimentos, de nuam sendo o fundamento necessário das
reações grupais, etc. Nos dizeres de Wallon relações interpessoais.

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O problema da periodização do O surgimento de novas formações, cha-
desenvolvimento na escola de madas por Vigotski (1996) de “neoformações”,
Vigotski deve ser o critério central para a periodização
do desenvolvimento. Para esse autor, em cada
Para Davidov (1988), nas idéias funda- degrau evolutivo existe uma atividade principal
mentais da psicologia histórico-cultural encon- que dirige todo o processo de desenvolvimen-
tra-se um enfoque original ao problema da to e caracteriza a reestruturação da personalida-
periodização do desenvolvimento. O estudo do de. Por neoformação deve-se entender “o novo
desenvolvimento psicológico deve partir da tipo de atividade da criança que caracteriza a
análise do desenvolvimento da atividade da idade dada, o novo tipo de personalidade e as
criança tal como ela se processa nas condições transformações que ocorrem pela primeira vez
concretas de sua vida. Esse autor justifica sua nesta idade” (Davidov, 1988, p. 60-70).
afirmação dizendo que o desenvolvimento da Vigotski (1996) divide em três grupos
atividade, as teorias que se ocupam do problema da
periodização do desenvolvimento psicológico.
em primeiro lugar, está internamente ligado com O primeiro grupo de teorias parte do
a formação da consciência humana; em segun- princípio de que há um paralelismo rigoroso
do lugar, contém em si um rico espectro de entre o desenvolvimento da humanidade e o
qualidades, segundo as quais se pode caracteri- desenvolvimento da criança. Trata-se da idéia
zar de forma bastante profunda cada idade e segundo a qual a ontogênese reproduziria, ain-
suas vinculações mútuas. (Davidov, 1988, p. 68)1 da que de forma breve e resumida, a filogênese.
Desse modo, os adeptos da teoria biogenética
Embora Vigotski não tenha tido tempo de tendem a periodizar a infância com base nas
elaborar um sistema completo de periodização, etapas fundamentais da história da humanida-
lançou-lhe as bases (Elkonin, 1996). Suas teses de. Outros teóricos do mesmo grupo dividem o
acerca da periodização foram desenvolvidas por desenvolvimento com base nas etapas da edu-
discípulos seus como Leontiev, Elkonin e Davidov. cação, considerando que uma periodização
Esse último considera que as idéias essenciais de deveria conter uma idade pré-escolar, uma ida-
Vigotski e seus discípulos acerca do problema de escolar e assim sucessivamente.
apresentam algumas características comuns: a) O erro dessas teorias decorre do fato
muitas das periodizações elaboradas por autores de que elas não fracionam o curso do desen-
ocidentais são inconsistentes porque tomam por volvimento da criança em seu interior. Isto é,
princípio traços externos do desenvolvimento e tomam como limite entre os diversos períodos
não a essência interna desse processo; b) a eventos externos como, por exemplo, as etapas
periodização deve levar em conta as mudanças da escolarização.
na atividade integral da criança porque sua per- O segundo grupo de teorias caracteriza-
sonalidade muda como um todo integral em sua se pela eleição de algum indício no curso de de-
estrutura interna no percurso do desenvolvimen- senvolvimento como critério para a periodização.
to; c) o exame das fontes de desenvolvimento Esses indícios devem ser suficientes para sinaliza-
deve realçar a ligação de cada um dos períodos rem o desenvolvimento geral da criança, serem
com um tipo de atividade que caracteriza o pe- acessíveis à observação e serem objetivos. Confor-
ríodo dado e; d) são as atividades integrais da me Vigotski (1996), a proposta de P. P. Blonski
criança, específicas para cada idade que, ao de-
terminar as transformações psíquicas, determinam 1. Todas as citações de Davidov, Elkonin e Vigotski foram extraídas de
materiais cujos originais foram traduzidos do russo ao espanhol. As tradu-
também a consciência da criança e suas relações ções do espanhol ao português são nossas e foram feitas apenas para os
com o meio, sua vida interna e externa. fins deste trabalho.

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em dividir os períodos da infância a partir do que não se pode periodizar a infância a partir
surgimento da dentição, é um exemplo claro desse de um critério único para todas as idades.
grupo de teorias. Em terceiro lugar, essas teorias investi-
Os eventos da dentição satisfazem as gam indícios externos do desenvolvimento e
exigências apontadas acima: relacionam-se com não a essência do processo. Nesse ponto a
as peculiaridades do organismo em crescimento, crítica vigotskiana está fundada na concepção
sobretudo com os processos da calcificação e da marxista de ciência, segundo a qual a essência
atividade das glândulas de secreção interna; são dos objetos não coincide com a manifestação
facilmente observáveis; e sua constatação não externa dos mesmos. Em acordo com a visão
oferece dúvidas. No esquema de Blonski, então, materialista dialética, a tarefa da psicologia
a infância comportaria três períodos: a) a infân- deixa de ser o estudo do sintoma, dos indícios
cia sem dentes; b) a infância dos dentes de lei- externos, para voltar-se à investigação dos
te; c) a infância da dentição permanente. condicionantes do sintoma ou dos indícios. Ou
Alguns autores desse grupo elegem ou- seja, cabe à psicologia evolutiva ocupar-se com
tros indícios, como o desenvolvimento sexual, por as leis internas do processo de desenvolvimen-
exemplo, ou ainda baseiam sua periodização em to infantil. Assim, Vigotski (1996) renuncia a
critérios psicológicos. qualquer tentativa de classificar as idades a partir
Vigotski critica essas teorias apontan- de sintomas, em favor de uma periodização
do-lhes três defeitos. Em primeiro lugar, elas baseada na essência do processo de desenvol-
são subjetivas. A despeito de se valerem de vimento psicológico.
indícios claramente objetivos como a erupção O terceiro grupo de teorias consiste
dentária ou as transformações da puberdade, a numa tentativa de superar o estudo do fenô-
análise que fazem desses eventos funda-se meno por meio da investigação das peculiari-
naquilo que mais chama a atenção em particu- dades essenciais do processo de desenvolvimen-
lar. A idade por certo é uma categoria objetiva, to. No entanto, essas teorias não lograram êxito
mas os signos que marcam a separação das porque sua escolha metodológica, sendo
idades somente podem ser colocados naqueles dualista, as impediu de considerar o desenvol-
pontos específicos que marcam o término de vimento infantil com um processo único de
uma etapa e o começo de outra. autodesenvolvimento. De acordo com Vigotski
Em segundo lugar, ao elegerem um cri- (1996), a teoria de Arnold Gesell faz parte desse
tério único para delimitar as idades, ignoram que grupo.
no curso do desenvolvimento o significado e o Gesell elaborou uma periodização basea-
valor de um sintoma se modifica. Isto é, um da na mudança do ritmo interno, que determina,
indício valioso num momento, como o por sua vez, volumes maiores de desenvolvi-
surgimento da dentição, perde sua significação mento à medida que a maturação nervosa avan-
em outros momentos mais tardios. A erupção ça. A etapização geselliana centra-se numa di-
dentária é um forte indício do desenvolvimento visão da infância em períodos isolados ou on-
da criança, mas seu significado não permanece das rítmicas de desenvolvimento. Para Gesell, a
idêntico ao longo do tempo. A troca dos den- criança possui traços e tendências constitucio-
tes ou a erupção dos molares têm significação nais, em sua maioria inatos, que determinam
muito distinta da que teve a primeira dentição. como, o que, e até certo ponto quando, ela
Enfim, essas teorias não levam em con- poderá aprender (Tran-Thong, 1981). Por meio
ta que a reorganização do processo de desen- da maturação a criança vai se apoderando
volvimento modifica a importância e o signifi- desses traços e tendências, num processo ina-
cado do próprio indício eleito quando se pas- to de crescimento. E mediante um outro pro-
sa de uma idade a outra. E é por essa razão cesso, de aculturação, a criança apodera-se da

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herança social e cultural do seu meio. prio desenvolvimento, porque somente essas mu-
Por intermédio da interação e da fusão danças podem proporcionar uma base sólida para
entre os processos de maturação e aculturação, a determinação dos principais períodos de forma-
a criança vai se constituindo. Todavia, na con- ção da personalidade da criança, chamados pelo
cepção geselliana, o processo de maturação é autor de idades.
o mais importante, de modo que a aquisição da O desenvolvimento é um processo que
cultura nunca o ultrapassa. O meio pode orien- se distingue pela unidade do material e do psi-
tar e especificar por condicionamento o desen- cológico, do social e do pessoal, à medida que
volvimento, mas não cria ou orienta as progres- a criança se desenvolve. Uma investigação
sões deste. criteriosa, pois, deveria centrar-se nas formações
Ora, essa preponderância da maturação novas, graças às quais se pode determinar o
sobre a cultura afasta irremediavelmente Gesell essencial em cada idade. Uma formação nova é
de Vigotski, para quem a cultura mediada pelo
outro não apenas está na base do processo de o novo tipo de estrutura da personalidade e de
constituição do psiquismo, como potencializa o sua atividade, as transformações psíquicas e
desenvolvimento para além de aquisições espe- sociais que se produzem pela primeira vez em
cíficas de uma dada faixa etária cronológica. O cada idade e determinam, no aspecto mais im-
desenvolvimento é, para Vigotski, um processo portante e fundamental, a consciência da crian-
autocondicionado e contínuo e não um proces- ça, sua relação com o meio, sua vida interna e
so marcado pelo dualismo entre o hereditário e externa, todo o curso de seu desenvolvimento no
o ambiental. período dado. (Vigotski, 1996, p. 257)
Vigotski, embora admita que o trabalho
de Gesell se constitua como uma importante Mas uma periodização consistente pre-
tentativa de superação das tendências bioge- cisaria, ainda, considerar a dinâmica do desen-
nética e fenomenológica, critica sua concepção volvimento infantil e a dinâmica de passagem
evolucionista, que não considera que o proces- de uma idade a outra. As transformações do
so de desenvolvimento produz mudanças qua- processo de desenvolvimento podem ocorrer de
litativas. Para Gesell, o processo de desenvolvi- maneira lenta e gradual, ou de modo crítico e
mento se dá como uma atualização de poten- violento.
ciais a priori, sendo os primeiros meses de vida Compreender teoricamente uma idade,
da criança cruciais para o desenvolvimento diz Vigotski (1996, p. 338), “significa encontrar
posterior. De acordo com Vigotski, o erro de a mudança na personalidade da criança em sua
Gesell radica na sua aceitação de que a crian- totalidade, dentro da qual todos os seus elemen-
ça cresce e se desenvolve com base no que é tos ficam esclarecidos, uns em qualidade de pre-
dado desde o princípio. Na realidade, afirma o missas, outros como momentos determinados”.
autor russo, o desenvolvimento caracteriza-se, Em algumas idades o desenvolvimento
em primeiro lugar, pelo surgimento de forma- se processa de um modo em que as mudanças
ções qualitativamente novas, com ritmo próprio na personalidade ocorrem muito lentamente,
e que precisam sempre de mediações especiais. quase imperceptíveis. Durante um lapso de tem-
Diante do exposto, que critério poderia ser po, mais ou menos longo, não se produzem
utilizado para a estruturação de uma periodização mudanças bruscas nem desvios capazes de
que supere uma fenomenologia do sintoma em reestruturar a personalidade inteira da criança.
favor de uma periodização baseada na dinâmica do As transformações que se originam na persona-
processo de desenvolvimento? Para Vigotski lidade da criança, nessas idades, são resultado
(1996), o fundamento verdadeiro da periodização de um lento e oculto processo, que somente
deve ser buscado nas mudanças internas do pró- tornam visível seu produto após um período de

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tempo relativamente longo. a determinação de seu começo e fim em rela-
Desse modo, nas idades estáveis, o ção às idades contíguas e pelo fato de esses
desenvolvimento se deve, principalmente, às períodos apresentarem, claramente, um mo-
mudanças microscópicas que ocorrem na per- mento de agudização da crise.
sonalidade e vão se acumulando até que, após A segunda peculiaridade desses perío-
um certo limite, repentinamente se manifestem dos – que é justamente a agudização da crise
como uma formação qualitativamente nova. – consiste em que muitas crianças, quando os
Analisando-se a infância pelo critério cronoló- vivenciam, tornam-se muito reativas à educa-
gico, observa-se que sua quase totalidade ção. Quando se trata de escolares, observa-se
corresponde a períodos estáveis. Mas se a aná- queda no rendimento e no interesse pelas au-
lise recair sobre o término de uma idade está- las e diminuição geral de sua capacidade de
vel e o início de outra, aí se verá que ao lon- trabalho. Nos períodos de crise, ainda, muitas
go do processo de desenvolvimento grandes crianças podem entrar em conflito mais ou
transformações são operadas na personalidade menos agudos com as pessoas de seu entorno,
da criança. bem como “sofrer dolorosas vivências e confli-
As passagens de uma idade a outra, tos íntimos” (Vigotski, 1996, p. 256). Todavia,
como por exemplo da pré-escolar para a escolar, isso tudo não se trata de regra com poucas
são marcadas por crises mais ou menos violen- exceções; muitas crianças “em crise” não apre-
tas. No entanto, essas crises são consideradas sentam dificuldades educativas, tampouco de
por alguns estudiosos como um desvio da rendimento escolar e de trabalho.
norma, uma patologia do processo. Vigotski, por Os elementos determinantes do caráter
sua vez, entende que as crises são também um tipo concreto da manifestação das crises devem ser
de desenvolvimento e seu intento de sistematizá- buscados não nas disposições internas da cri-
las, explicá-las e integrá-las no esquema geral do ança, mas nas condições materiais concretas de
desenvolvimento infantil deve ser entendido como seu contexto externo. Por isso, dadas as múl-
uma importante contribuição desse autor. tiplas conformações contextuais nas quais as
Particularmente achamos aí uma aproxi- crianças, como um todo, estão inseridas, en-
mação entre as teorias de Wallon e de Vigotski. contram-se muitas possibilidades díspares e
Para o primeiro, as crises são constituintes do multiformes de manifestação das idades críticas.
processo de desenvolvimento e manifestadas E mesmo que se considerem crianças inseridas
pela dialética entre as leis de alternância, predo- em contextos muito parecidos do ponto de
minância e integração funcionais. Para o segun- vista social e de desenvolvimento, ainda assim
do, as crises, que são mais ou menos localiza- as diferenças entre elas serão muito mais agu-
das nos momentos de viragem de uma idade a das nos períodos críticos do que nas idades
outra, são, igualmente, parte inseparável do pro- estáveis.
cesso de desenvolvimento psicológico. No entanto, não é a presença ou au-
Os períodos de crise apresentam algu- sência de condições externas específicas que
mas peculiaridades e por elas se distinguem das provocam as crises nas crianças. O surgimento
idades estáveis. Durante uma crise, num lapso dos períodos críticos faz parte da própria lógica
de tempo relativamente curto, mudanças brus- interna do processo de desenvolvimento. E tal
cas e rupturas acontecem no psiquismo da processo não consiste numa sucessão determi-
criança, de modo que sua personalidade muda nada de eventos, cuja manifestação está con-
por completo. dicionada ao ambiente.
A primeira peculiaridade dos períodos A terceira peculiaridade das idades crí-
críticos caracteriza-se pela emergência repentina ticas, e talvez a mais importante, é que elas se
e quase imperceptível das crises, o que dificulta apresentam como se tais momentos fossem

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negativos, como opinam alguns autores. Isto é, somente a faceta inversa ou velada das mudan-
nessas idades a índole criadora do desenvolvi- ças positivas da personalidade que configuram
mento cede espaço para manifestações que o sentido principal e básico de toda idade crí-
melhor se caracterizariam como destruidoras e tica” (Vigotski, 1996, p. 259).
desintegradoras dos ganhos obtidos na idade Enfim, o essencial dos períodos críticos
estável imediatamente anterior. Por isso, a cri- é o surgimento de formações novas peculiares,
ança parece mais perder terreno já conquista- que não se mantêm, todavia, como instâncias
do do que propriamente avançar. Assim, o que independentes, mas que participam do desen-
caracteriza o surgimento das etapas críticas não volvimento em estado latente.
é o surgimento de novos interesses e atividades,
tampouco de novas formas de vida interior. Considerações finais
Pelo contrário, as crianças, ao entrarem nos
períodos de crise, perdem o ímpeto com que Ao apresentar alguns aspectos das teo-
antes se entregavam às atividades que lhes rias de Wallon e Vigotski acerca do desenvolvi-
despertavam o interesse ou que ocupavam a mento psicológico, enfatizamos que esses auto-
maior parte de seu tempo e atenção. Pode ser res desenvolveram seus trabalhos sob a ótica
observado, ainda, nessas crianças, como que do materialismo dialético, fato esse que os
um vazio em suas relações externas e em sua aproxima.
vida interior. Uma importante diferença entre as psi-
Mas, em que pesem as características cologias de base materialista dialética e as
apontadas acima, Vigotski (1996) entende que demais é a recusa das primeiras em enquadrar
as etapas críticas não devem ser caracterizadas o desenvolvimento psicológico em esquemas
como essencialmente negativas. Na verdade, o rígidos, orientados por uma lógica linear. Isso
fato de o complexo percurso em direção ao é particularmente observável em Wallon e
crescimento conter em si processos de redução Vigotski, como demonstramos. No que diz res-
e de extinção é indicativo do caráter dialético peito à teoria walloniana, apresentamos dois
do processo de desenvolvimento psíquico. aspectos: o processo de desenvolvimento do
Então, se desenvolvimento significa transforma- psiquismo, realçando o jogo de alternância
ção e avanço, mesmo os momentos críticos entre cognição e afeto ao longo do tempo e as
seriam de criação, por mais contraditório que relações entre razão e emoção. Ou seja, a idéia
isso possa parecer. E no processo de desenvol- de que o conflito se apresenta como parte
vimento psicológico, o velho deve desaparecer inseparável e constitutiva do processo de cons-
inapelavelmente para dar lugar ao novo e esse tituição do psiquismo.
desaparecimento começa a ocorrer justamente Em relação a Vigotski, enfatizamos que
nas etapas críticas. Com efeito, o desenvolvi- o estudo do desenvolvimento psicológico deve
mento nunca interrompe sua obra criadora e os partir da análise do desenvolvimento da ativi-
processos involutivos, na verdade, subordinam- dade da criança, tal como ela se processa nas
se e dependem dos processos positivos de condições concretas de sua vida. Na concep-
construção da personalidade, formando com ção vigotskiana, pois, qualquer periodização
eles um todo indissolúvel. Sucede, portanto, deve levar em conta as mudanças na ativida-
que o trabalho destrutivo que se realiza nos de integral da criança, porque sua personali-
períodos críticos é parte de um processo de dade muda como um todo integral em sua es-
crescimento e, em sendo assim, trata-se de ele- trutura interna no percurso do desenvolvimen-
mento indispensável da criação do novo. Como to. Em ambos os casos tentamos evidenciar
diz o autor em questão, “o conteúdo negativo que em cada um desses autores encontramos
do desenvolvimento nos períodos críticos é tão a idéia de que o desenvolvimento psicológico

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é marcado por conflitos e pela alternância indica, “conheceu” Vigotski em 1954 (Golder,
entre períodos estáveis e críticos. 2002), depois de um encontro, em Paris, com
Finalmente, gostaríamos de mencionar Leontiev. Nessa ocasião, o psicólogo russo mos-
que esses dois autores, contemporâneos entre si, trou ao colega francês alguns dos primeiros tex-
tiveram conhecimento do trabalho um do outro. tos de Vigotski e pediu que fossem publicados.
Não obstante, porque teve uma vida curta,
Vigotski tomou contato2 apenas com as primeiras
2. No livro sobre psicologia infantil em que trabalhara entre os anos de
obras de Wallon. Este, por sua vez, ao que tudo 1932 e 1934, Vigotski cita diversas vezes trabalhos de Wallon.

Referências bibliográficas

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Recebido em 25.06.02
Aprovado em 29.09.03

Edival Sebastião Teixeira é professor de psicologia e membro do Centro de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Regional
– Cepad/Cefet-PR – Unidade de Pato Branco. Mestre em Educação pela Unesp/Marília, É doutorando em Educação na FEUSP.

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