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Alguns Aspectos de Duas Teorias: A Questão Da Periodização Do Desenvolvimento Psicológico em Wallon e em Vigotski
Alguns Aspectos de Duas Teorias: A Questão Da Periodização Do Desenvolvimento Psicológico em Wallon e em Vigotski
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Edival Sebastião Teixeira
R. Visconde de Nácar, 2000
85.501-450 - Pato Branco - PR
e-mail: edival@pb.cefetpr.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.2, p. 235-248, jul./dez. 2003 235
The issue of the periodization of psychological
development in Wallon and in Vygotsky: aspects of
two theories
Abstract
Keywords
Contact:
Edival Sebastião Teixeira
R. Visconde de Nácar, 2000
85.501-450 - Pato Branco - PR
e-mail: edival@pb.cefetpr.br
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A questão da periodização do desenvol- de fato o mais importante, são os recursos
vimento psicológico tem sido uma das mais metodológicos com que trabalha cada cientis-
investigadas na psicologia evolutiva. Tran- ta. Tais recursos propiciam interpretações dis-
Thong (1981), num trabalho que discute o tintas tanto para a gênese e a evolução, como
problema do conceito de estádios de desenvol- para a manifestação de determinado fenômeno.
vimento da criança na psicologia contemporâ- Este trabalho consiste na apresentação de
nea, considera que quatro sistemas de alguns aspectos de duas teorias de desenvolvi-
periodização parecem impor-se: os sistemas de mento psicológico elaboradas sob a ótica do
Freud, Piaget, Gesell e Wallon. Esses quatro materialismo dialético: a de Henri Wallon (1879-
sistemas têm sido base tanto para estudos so- 1962) e a Lev Semenovich Vigotski (1896-1934).
bre a criança e seus estádios de desenvolvimen- Demonstramos que a lógica subjacente a essas
to como para a elaboração de estratégias apli- teorias, por si mesma, aproxima Wallon de
cáveis no domínio da educação. Vigotski, embora haja diferenças importantes
Segundo Tran-Thong (1981), embora os entre esses dois autores. Diferenças essas, entre-
estudos sobre a periodização sejam numerosos, tanto, que não são objeto de análise neste texto.
tem havido pouca reflexão acerca do conceito e
das noções de estádio. Para o autor, os sistemas O conflito como parte
piagetiano e walloniano seriam os mais elabora- constitutiva do
dos e coerentes, justamente porque somente em desenvolvimento psicológico
Piaget e Wallon encontrar-se-iam esforços no
sentido da definição do conceito de estádio e a Quando Wallon (1975a) faz uma críti-
sua sucessão, e empenho no estudo dos proble- ca às concepções mecanicista e idealista sobre
mas da passagem de um estádio a outro e da a constituição do psiquismo, deixa claro que
continuidade e descontinuidade do desenvolvi- tanto explicações positivistas, para as quais o
mento. No entanto, em que pese essa caracterís- psiquismo é redutível a elementos a priori cujas
tica comum, esses dois sistemas apresentam leis são invariáveis e por isso previsíveis, quanto
grandes diferenças entre si e traduzem duas explicações idealistas que colocam a consciên-
concepções de estágio muito distintas, senão cia antes da matéria, subordinando a realidade
opostas. ao pensamento, não alcançam a especificidade
Os sistemas elaborados por autores so- da psicologia que se situa nos domínios do
viéticos são pouco difundidos no Ocidente, ain- biológico e do cultural. No entanto, apesar de
da que uma de suas escolas – a histórico-cultu- o psiquismo situar-se ao mesmo tempo nesses
ral – goze atualmente de grande prestígio. Entre dois domínios, não se deve imaginar que resulte
esses sistemas, Davidov (1988) destaca os de P. do acréscimo da cultura sobre um substrato
Blonski, L. Vigotski, B. Anániev, L. Bozhóvich e D. orgânico. Ao contrário, embora haja uma liga-
Elkonin. No Brasil, quase não se discute a perio- ção primária e fundamental na sua gênese, o
dização elaborada por autores dessa escola, embo- psiquismo resulta de um processo em que es-
ra outros aspectos da psicologia histórico-cultural, ses dois constituintes são complementares.
nota-damente de Vigotski, sejam muito freqüentes O psiquismo desenvolve-se num meio
em textos de psicologia educacional. que se constitui como um conjunto de circuns-
Os sinais externos de desenvolvimento tâncias às quais o organismo humano reage.
são descritos de modo muito parecido pelos Mas não se trata de simples resposta a estímu-
diversos autores que se ocupam da psicologia los ambientais, pois o meio sobre o qual o
evolutiva, como se depreende facilmente da homem reage não é somente o natural, mas é
leitura de Wallon, Piaget e Vigotski, por exem- também um meio criado por sua atividade. Isto
plo. O que diferencia as várias teorias, e isso é
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é, o meio no qual se desenvolve o psiquismo é meno foi produzido. Assim, a análise das rela-
cultural por excelência; social, dizendo-se de ções entre organismo e meio ultrapassa em
outro modo. A concepção walloniana, então, muito a linearidade suposta a partir de um
parte da idéia segundo a qual o psiquismo esquema rígido de pensamento – ação/reação
humano foi, e continua sendo, produzido his- – por duas razões: em primeiro lugar, o meio
toricamente pelos próprios homens no interior não é constante e transformações em sua na-
das relações que estabelecem entre si e com a tureza modificam o homem; em segundo lugar,
natureza. o homem modifica o meio, ajusta-o às suas
É no materialismo dialético que Wallon necessidades e, ao proceder desse modo, mo-
encontra o suporte necessário para desenvolver difica-se também.
sua psicologia. Para ele, a dialética marxista dá Entendemos que aí há aproximação de
à psicologia Wallon para com o pensamento de Marx e
Engels. Em relação à transmissão das caracte-
o seu equilíbrio e a sua significação, que subtrai rísticas da espécie pelos mecanismos da here-
à alternativa dum materialismo elementar ou ditariedade, o homem não difere essencialmen-
dum idealismo oco, dum substancialismo gros- te dos demais animais. O que verdadeiramente
seiro ou dum irracionalismo sem horizontes. É diferencia os homens dos animais, segundo
ela quem mostra a simultaneidade entre ciência esses autores, é o fato de que somente os
da natureza e ciência do homem, suprimindo homens podem produzir seus meios de vida; e
deste modo a ruptura que o espiritualismo pro- ao produzir tais meios, produzem sua própria
curava consumar no universo entre a consciên- vida material com tudo que ela abarca, inclu-
cia e as coisas. É ela que lhe permite considerar indo seu psiquismo. Em A ideologia alemã ,
numa mesma unidade o ser e seu meio, as suas Marx e Engels (1977) consideram que qualquer
perpétuas interacções recíprocas. É ela que lhe concepção materialista histórica acerca do ho-
explica os conflitos dos quais o indivíduo deve mem deve partir de um fato fundamental: a
tirar a sua conduta e clarificar a sua personali- produção dos próprios meios de subsistência é
dade. (Wallon, 1975b, p. 67) o elemento que desencadeia a construção do
homem. O homem é, portanto, um ser de na-
Coerente com esse ponto de vista, a tureza social e tudo o que tem de humano nele
psicologia walloniana aceita que o psiquismo provém da sua vida em sociedade.
tem as suas especificidades, embora não subs- As primeiras manifestações psicológi-
titua a realidade das coisas. Por isso mesmo, cas da criança originam-se do funcionamento
essa abordagem aceita toda a diversidade do dos mecanismos viscerais. Nas etapas iniciais da
real com todas as suas contradições, porque vida, a criança encontra-se em um estado de
justamente elas – as contradições – são ele- total imperícia que a impede de satisfazer por
mentos de explicação do real. Noutras palavras, si mesma suas necessidades. Contudo, ao lado
a realidade em geral e a do psiquismo em par- dessa incapacidade orgânica, possui um potente
ticular são o que são justamente por causas das recurso, que é o desencadeamento de reações
contradições. que despertam a atenção dos outros que a cer-
Na opinião de Wallon (1975b), a cam. De acordo com Wallon (1986a), a primeira
dialética marxista introduziu uma revolução no atividade eficaz da criança é a capacidade de
modo de conhecer da psicologia ao substituir desencadear nos adultos que a cercam ações
a análise da propriedade pela análise do pro- que levem à satisfação de suas necessidades e
cesso. Isto é, a análise de um dado fenômeno é por essa razão que nessa etapa da vida todas
psicológico tal como este se apresenta, pela as suas possibilidades psíquicas estejam orien-
análise do processo por meio do qual tal fenô- tadas nesse sentido.
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No processo da tomada de consciência Por meio do processo de alternância
de si alternam-se momentos de expansão e de funcional, vista nessa teoria como uma das leis
contenção, de ansiedade e de explosão de básicas do desenvolvimento,
surpresa, de choro e de alegria, de presença e
de ausência do outro, etc. (sempre interpreta- as diferentes idades em que se pode decompor a
dos pelo outro no começo). Esses jogos de evolução psíquica da criança opõem-se como
alternância tornam possível à criança ir, aos fases à orientação alternativamente centrípeta e
poucos, posicionando-se em relação ao outro. centrífuga, orientada para a edificação cada
Mas, de fato, esse outro nunca abandona ou é vez maior do próprio indivíduo ou para o esta-
expulso da consciência porque o sujeito não é belecimento das suas relações com o exterior,
uma abstração que se distingue de outras abs- para a assimilação ou para a diferenciação fun-
trações. A distinção resulta tanto daquilo que cional e adaptação subjetiva. Mas sob a orien-
faz com que o sujeito afirme sua identidade tação global dos períodos, é possível encontrar
como daquilo que o sujeito deve “expulsar” de componentes mais elementares, que compreen-
si para se afirmar; o indivíduo forma-se no dem este vaivém e reconhecem mesmo em cada
esforço do Eu em se opor à sociedade. Por um desses períodos uma ambivalência que lhe
outro lado, e em primeiro lugar, o sujeito é faz assumir, em comparação com outras, quer a
social não por contingências externas, mas função da elaboração íntima, quer o de reação
devido ao seu estado inicial de necessidades e relativa ao meio. (Wallon, [s.d.], p. 105-106)
imperícia.
A organização da sociedade, ao longo Embora se alternem, afetividade e cognição
da história, fez com que o meio social se trans- mantêm entre si uma relação de reciprocidade. Isto
formasse em instrumento de ação sobre o meio é, quando o afeto cede a dominância numa deter-
natural. Dizendo-se de outro modo, a sociedade minada fase, todas as suas conquistas são incorpo-
construiu mecanismos pelos quais as necessi- radas pela cognição que passa a operar em bases
dades e desejos da criança ou são atendidos qualitativamente diferentes. O mesmo sucede quan-
imediatamente, ou o atendimento é posterga- do ocorre a inversão; aí é o afeto que incorpora o
do, ou ainda tais necessidades e desejos têm conhecimento acumulado até então e, também,
sua “natureza alterada” de modo que a energia opera a partir de bases distintas. Ou seja, durante o
seja canalizada para outro fim alternativo. A processo de constituição do psiquismo, cognição e
psicologia de Wallon ocupa-se em entender afeto vão “construindo-se reciprocamente, num per-
como o Eu se constitui. Como é o processo de manente processo de integração e diferenciação”
constituição desse Eu, que vai de um estado (Galvão, 1999, p. 46).
indiferenciado a um estado diferenciado, por A lei de alternância funcional é uma lei
meio de um processo marcado por conflitos. geral, que diz respeito a todas as funções e
As diversas fases pelas quais passa a domínios. As alternâncias funcionais são obser-
criança em seu processo de desenvolvimento vadas não apenas no conjunto do desenvolvi-
são marcadas por mudanças bruscas, nas quais mento, mas no interior de um conjunto espe-
a energia da criança ou está concentrada em si cífico e em cada função complexa ou elemen-
mesma, ou no outro. Trata-se de um percurso tar (Tran-Thong, 1981). Por essa razão, num
em que se alternam os focos de atenção que mesmo estádio observa-se uma ambivalência
dirigem a atividade da criança nas diversas que ora o faz parecer de elaboração íntima, ora
fases de desenvolvimento psicológico pelas de reação ao meio. Assim, para se definir um
quais passa. Wallon [s. d.] dedica um capítulo estádio, é necessária a concorrência de outras
de A evolução psicológica da criança à discus- duas leis do desenvolvimento: lei da predomi-
são dessas alternâncias. nância funcional e lei da integração funcional.
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criança aprenderá a conhecer-se como uma (1986b), “as emoções criam público” ao mes-
personalidade polivalente e aprenderá a ajustar mo tempo em que criam um consentimento
suas condutas às circunstâncias particulares geral que escapa ao controle individual. Às
pela gradual e precisa redução do sincretismo vezes, elas têm efeitos instantâneos e totalitá-
da inteligência. Mas, com o passar do tempo, rios que desorientam a reflexão. Seu terreno
a afetividade reassume posição de destaque na propício são as situações em que não existem
etapa da puberdade e entrada na adolescência. relações organizadas, técnicas e conceituais
Essa última etapa é fecunda em confli- entre as pessoas.
tos. Em alguns momentos as necessidades do Mas a vida intelectual supõe a vida
Eu tendem a absorver as disponibilidades do social e a vida emocional, como primeiro terre-
sujeito. Noutros, despende-se energia em ma- no das relações interindividuais de consciência,
nifestações exteriores que por vezes tomam é condição, portanto, do surgimento da lingua-
aspecto de verdadeiros paroxismos passionais. gem. Com as emoções surge um tipo de ativi-
Alternam-se sentimentos ambivalentes: timidez dade que não é propriamente uma resposta
e arrogância; egoísmo e altruísmo; sentimentos automática do organismo, mas sim toda uma
de espanto perante si mesmo, como se o sujeito organização plástica do aparelho psicomotor.
não se conhecesse mais, com o surgimento de A palavra articulada, por exemplo, rela-
preocupações em relação a responsabilidades ciona-se com a atividade postural tônica. No
sociais, profissionais e familiares. Contudo, o entanto, a emoção não é uma linguagem. As
que parece mais desintegrador é, na verdade, emoções fazem com que o sujeito se concen-
um trunfo que o sujeito humano alcança nes- tre no interesse do momento, eliminando qual-
sa etapa. A dúvida perante si mesmo no mun- quer elemento que não possa incorporar e que
do é uma boa base para o espírito da constru- não se relacione com a situação. Por isso a
ção, da invenção e descoberta, da aventura e emoção não possui nenhuma característica de
da criação. atividade simbólica.
Enfim, longe de representar uma pato- Ora, se entre emoção e representação
logia do desenvolvimento, os conflitos na pers- existe algum grau de incompatibilidade, por-
pectiva walloniana são, na verdade, funcionais. que a emoção interfere na atividade intelectu-
Isto é, fazem parte mesmo do processo de al, e se a emoção foi um fator que orientou o
construção do Eu. surgimento da unidade de atitude e consciên-
Além do que se observa no processo cia entre os indivíduos, então o conflito entre
de desenvolvimento psicológico em sentido razão e emoção é evidente. Há pelo menos
amplo, os conflitos também são observáveis duas justificativas para essa afirmação: a) a
noutros campos mais restritos, por assim di- emoção situa-se entre o automatismo das re-
zer. Por exemplo, há conflitos evidenciados ações e a vida intelectual. Embora as emoções
pelos antagonismos entre razão e emoção, se originem da atividade tônica, elas desenvol-
embora as emoções façam parte da gênese vem sistemas de reações demonstrativas que
da cognição e desempenhem importante pa- substituem ou comprometem a execução das
pel na vida psíquica. ações externas; b) embora as emoções se ori-
Nos grupos humanos primitivos, as rea- ginem como elemento desencadeador das ati-
ções emocionais tiveram o papel essencial de tudes solidárias que levam ao intelecto (às
suscitar ações coletivas de ataque ou defesa, trocas intelectuais entre as pessoas), elas são
reforçando com isso sentimentos de coletivida- perturbadas ou suprimidas pelo controle da
de. Atualmente as reações emocionais têm um inteligência. Não obstante, as emoções conti-
efeito coercitivo de atitudes e sentimentos, de nuam sendo o fundamento necessário das
reações grupais, etc. Nos dizeres de Wallon relações interpessoais.
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em dividir os períodos da infância a partir do que não se pode periodizar a infância a partir
surgimento da dentição, é um exemplo claro desse de um critério único para todas as idades.
grupo de teorias. Em terceiro lugar, essas teorias investi-
Os eventos da dentição satisfazem as gam indícios externos do desenvolvimento e
exigências apontadas acima: relacionam-se com não a essência do processo. Nesse ponto a
as peculiaridades do organismo em crescimento, crítica vigotskiana está fundada na concepção
sobretudo com os processos da calcificação e da marxista de ciência, segundo a qual a essência
atividade das glândulas de secreção interna; são dos objetos não coincide com a manifestação
facilmente observáveis; e sua constatação não externa dos mesmos. Em acordo com a visão
oferece dúvidas. No esquema de Blonski, então, materialista dialética, a tarefa da psicologia
a infância comportaria três períodos: a) a infân- deixa de ser o estudo do sintoma, dos indícios
cia sem dentes; b) a infância dos dentes de lei- externos, para voltar-se à investigação dos
te; c) a infância da dentição permanente. condicionantes do sintoma ou dos indícios. Ou
Alguns autores desse grupo elegem ou- seja, cabe à psicologia evolutiva ocupar-se com
tros indícios, como o desenvolvimento sexual, por as leis internas do processo de desenvolvimen-
exemplo, ou ainda baseiam sua periodização em to infantil. Assim, Vigotski (1996) renuncia a
critérios psicológicos. qualquer tentativa de classificar as idades a partir
Vigotski critica essas teorias apontan- de sintomas, em favor de uma periodização
do-lhes três defeitos. Em primeiro lugar, elas baseada na essência do processo de desenvol-
são subjetivas. A despeito de se valerem de vimento psicológico.
indícios claramente objetivos como a erupção O terceiro grupo de teorias consiste
dentária ou as transformações da puberdade, a numa tentativa de superar o estudo do fenô-
análise que fazem desses eventos funda-se meno por meio da investigação das peculiari-
naquilo que mais chama a atenção em particu- dades essenciais do processo de desenvolvimen-
lar. A idade por certo é uma categoria objetiva, to. No entanto, essas teorias não lograram êxito
mas os signos que marcam a separação das porque sua escolha metodológica, sendo
idades somente podem ser colocados naqueles dualista, as impediu de considerar o desenvol-
pontos específicos que marcam o término de vimento infantil com um processo único de
uma etapa e o começo de outra. autodesenvolvimento. De acordo com Vigotski
Em segundo lugar, ao elegerem um cri- (1996), a teoria de Arnold Gesell faz parte desse
tério único para delimitar as idades, ignoram que grupo.
no curso do desenvolvimento o significado e o Gesell elaborou uma periodização basea-
valor de um sintoma se modifica. Isto é, um da na mudança do ritmo interno, que determina,
indício valioso num momento, como o por sua vez, volumes maiores de desenvolvi-
surgimento da dentição, perde sua significação mento à medida que a maturação nervosa avan-
em outros momentos mais tardios. A erupção ça. A etapização geselliana centra-se numa di-
dentária é um forte indício do desenvolvimento visão da infância em períodos isolados ou on-
da criança, mas seu significado não permanece das rítmicas de desenvolvimento. Para Gesell, a
idêntico ao longo do tempo. A troca dos den- criança possui traços e tendências constitucio-
tes ou a erupção dos molares têm significação nais, em sua maioria inatos, que determinam
muito distinta da que teve a primeira dentição. como, o que, e até certo ponto quando, ela
Enfim, essas teorias não levam em con- poderá aprender (Tran-Thong, 1981). Por meio
ta que a reorganização do processo de desen- da maturação a criança vai se apoderando
volvimento modifica a importância e o signifi- desses traços e tendências, num processo ina-
cado do próprio indício eleito quando se pas- to de crescimento. E mediante um outro pro-
sa de uma idade a outra. E é por essa razão cesso, de aculturação, a criança apodera-se da
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tempo relativamente longo. a determinação de seu começo e fim em rela-
Desse modo, nas idades estáveis, o ção às idades contíguas e pelo fato de esses
desenvolvimento se deve, principalmente, às períodos apresentarem, claramente, um mo-
mudanças microscópicas que ocorrem na per- mento de agudização da crise.
sonalidade e vão se acumulando até que, após A segunda peculiaridade desses perío-
um certo limite, repentinamente se manifestem dos – que é justamente a agudização da crise
como uma formação qualitativamente nova. – consiste em que muitas crianças, quando os
Analisando-se a infância pelo critério cronoló- vivenciam, tornam-se muito reativas à educa-
gico, observa-se que sua quase totalidade ção. Quando se trata de escolares, observa-se
corresponde a períodos estáveis. Mas se a aná- queda no rendimento e no interesse pelas au-
lise recair sobre o término de uma idade está- las e diminuição geral de sua capacidade de
vel e o início de outra, aí se verá que ao lon- trabalho. Nos períodos de crise, ainda, muitas
go do processo de desenvolvimento grandes crianças podem entrar em conflito mais ou
transformações são operadas na personalidade menos agudos com as pessoas de seu entorno,
da criança. bem como “sofrer dolorosas vivências e confli-
As passagens de uma idade a outra, tos íntimos” (Vigotski, 1996, p. 256). Todavia,
como por exemplo da pré-escolar para a escolar, isso tudo não se trata de regra com poucas
são marcadas por crises mais ou menos violen- exceções; muitas crianças “em crise” não apre-
tas. No entanto, essas crises são consideradas sentam dificuldades educativas, tampouco de
por alguns estudiosos como um desvio da rendimento escolar e de trabalho.
norma, uma patologia do processo. Vigotski, por Os elementos determinantes do caráter
sua vez, entende que as crises são também um tipo concreto da manifestação das crises devem ser
de desenvolvimento e seu intento de sistematizá- buscados não nas disposições internas da cri-
las, explicá-las e integrá-las no esquema geral do ança, mas nas condições materiais concretas de
desenvolvimento infantil deve ser entendido como seu contexto externo. Por isso, dadas as múl-
uma importante contribuição desse autor. tiplas conformações contextuais nas quais as
Particularmente achamos aí uma aproxi- crianças, como um todo, estão inseridas, en-
mação entre as teorias de Wallon e de Vigotski. contram-se muitas possibilidades díspares e
Para o primeiro, as crises são constituintes do multiformes de manifestação das idades críticas.
processo de desenvolvimento e manifestadas E mesmo que se considerem crianças inseridas
pela dialética entre as leis de alternância, predo- em contextos muito parecidos do ponto de
minância e integração funcionais. Para o segun- vista social e de desenvolvimento, ainda assim
do, as crises, que são mais ou menos localiza- as diferenças entre elas serão muito mais agu-
das nos momentos de viragem de uma idade a das nos períodos críticos do que nas idades
outra, são, igualmente, parte inseparável do pro- estáveis.
cesso de desenvolvimento psicológico. No entanto, não é a presença ou au-
Os períodos de crise apresentam algu- sência de condições externas específicas que
mas peculiaridades e por elas se distinguem das provocam as crises nas crianças. O surgimento
idades estáveis. Durante uma crise, num lapso dos períodos críticos faz parte da própria lógica
de tempo relativamente curto, mudanças brus- interna do processo de desenvolvimento. E tal
cas e rupturas acontecem no psiquismo da processo não consiste numa sucessão determi-
criança, de modo que sua personalidade muda nada de eventos, cuja manifestação está con-
por completo. dicionada ao ambiente.
A primeira peculiaridade dos períodos A terceira peculiaridade das idades crí-
críticos caracteriza-se pela emergência repentina ticas, e talvez a mais importante, é que elas se
e quase imperceptível das crises, o que dificulta apresentam como se tais momentos fossem
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é marcado por conflitos e pela alternância indica, “conheceu” Vigotski em 1954 (Golder,
entre períodos estáveis e críticos. 2002), depois de um encontro, em Paris, com
Finalmente, gostaríamos de mencionar Leontiev. Nessa ocasião, o psicólogo russo mos-
que esses dois autores, contemporâneos entre si, trou ao colega francês alguns dos primeiros tex-
tiveram conhecimento do trabalho um do outro. tos de Vigotski e pediu que fossem publicados.
Não obstante, porque teve uma vida curta,
Vigotski tomou contato2 apenas com as primeiras
2. No livro sobre psicologia infantil em que trabalhara entre os anos de
obras de Wallon. Este, por sua vez, ao que tudo 1932 e 1934, Vigotski cita diversas vezes trabalhos de Wallon.
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Recebido em 25.06.02
Aprovado em 29.09.03
Edival Sebastião Teixeira é professor de psicologia e membro do Centro de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Regional
– Cepad/Cefet-PR – Unidade de Pato Branco. Mestre em Educação pela Unesp/Marília, É doutorando em Educação na FEUSP.