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PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Antonielle Cantarelli Martins

Resumo: Este artigo foi escrito com o intuito de despertar reflexões sobre o seguinte
questionamento: Existe uma Psicologia Surda? O texto inicia fazendo uma reflexão geral
sobre o campo da Psicologia, enquanto ciência, e algumas relações históricas entre
Estudos Surdos, Educação de Surdos e Psicologia. A partir do psicólogo Harlan Lane são
feitas várias análises sobre concepções arraigadas na psicologia com relação aos surdos,
suas dificuldades e educação. É apresentado, também, uma análise dos aspectos
relacionados à avaliação psicológica de pessoas surdas e na prática diária dos
instrumentos utilizados para isso na vida cotidiana de escolas de surdos. Para finalizar é
feita uma reflexão sobre a necessidade de participação das comunidades surda e ouvinte
na construção de uma possível abordagem nova para o campo de uma psicologia surda
ou de surdos.
Palavras-chave: Psicologia Surda. Psicologia de Surdos. Psicologia da educação de
surdos. Avaliação.

(1)
O texto que lerão a seguir é fruto de um questionamento que não
necessariamente vai ser completamente respondido através deste artigo, mas que deve
seguir como ponto norteador para estudantes interessados na área da Psicologia e
educação de surdos: Existe uma Psicologia Surda?
(2)
A Psicologia, enquanto ciência, é um campo de dispersão por ter diversos focos
que variam gerando diversas vertentes de estudo. Cada vertente ou escola desenvolve
seus critérios tomando por base concepções de método científico mais apropriado para
estudar o seu objeto de pesquisa. Os fenômenos psicológicos são diversos e complexos
na sua maioria, atravessados tanto por questões individuais quanto histórico-culturais.
Tais fatores fazem com que boa parte desses fenômenos não possam ser acessados e
estudados sob um mesmo nível de observação, e, por consequência, não seja viável que
esses objetos de investigação sejam submetidos aos mesmos padrões de descrições,

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medições, controle e interpretação ao serem examinados. Há de se ter sensibilidade,
rigor científico e amplitude na aplicação dos métodos de investigação, comumente
fazendo uso de abordagens quantitativas e qualitativas ao mesmo tempo.
(3)
Como ampla área que é, a psicologia tem uma série de temas relevantes para
pesquisas psicológicas, bem como diversas interfaces com áreas como pedagogia,
medicina, educação, linguística, sociologia e assim por diante. Talvez, por isso, tenhamos
tanta confusão entre estudos de abordagem sociológica com estudos da psicologia,
cientificamente falando. Este fato é comprovado, particularmente frequente, no campo
entre Estudos Surdos e Psicologia no Brasil (BISOL; SIMIONI; SPERB, 2008).
(4)
Já é bem documentado que nos primórdios da construção da psicologia,
enquanto ciência que tem como objeto de estudo o comportamento humano e processos
mentais, a falta de audição das pessoas surdas era tida como a causa de comportamentos
anormais.
(5)
A psicologia, amparada em pressupostos clínicos provindos da medicina e
concepções filosóficas restritivas, construiu parâmetros científicos para definição de
comportamentos e processos mentais que colocavam as pessoas surdas em categorias
de anormalidade. Baseada nessas premissas, a abordagem psicológica direcionada a
pessoas surdas visava apenas a reabilitação e intervenção, aliada aos pressupostos
clínicos. Dessa forma, até pelo menos a década de 60, juntamente com a medicina,
filosofia e linguística, a psicologia, não levava em conta as possibilidades de existência
no mundo por meio das línguas de sinais, identidade surda e construção cultural dos
coletivos surdos, coadunando assim com os processos de marginalização das pessoas
surdas.
(6)
No entanto, é justo frisar aqui o pionerismo de Wilhem Wundt, considerado o
pai da psicologia experimental e quem levou a psicologia a ser reconhecida como ciência
no ano de 1879. Wundt criou o primeiro Laboratório de Psicologia, embasado em
referenciais das ciências naturais, tornando a psicologia independente da filosofia,
enquanto área do conhecimento. Em relação às línguas de sinais e os povos surdos,
Wundt, na obra intitulada Psicologia dos Povos (WUNDT, 1863), demonstrou uma
posição muito mais avançada que o próprio Saussure, considerado o pai da linguística.

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Wundt ponderou a existência de uma cultura surda e da língua de sinais, mesmo sem
compreender o grau de complexidade, enquanto Saussure tomava as línguas de sinais
como mimica e pantomima.
(7)
Tempos depois, analisando as publicações da área da psicologia, no artigo
seminal do psicólogo Harlan Lane (1998), intitulado “Is there a psychology of the deaf”
(Existe uma psicologia dos surdos?), o autor coloca a hipótese de que os traços da
“psicologia dos surdos” não refletem as características dos surdos em si, mas a postura
paternalista dos ouvintes especialistas que os descrevem. Para sustentar a hipótese, Lane
(1998) discute evidências de atribuições universais paternalistas e o etnocentrismo, bem
como uma reivindicação de carga civilizadora que falha em mascarar os interesses
econômicos dos paternalistas. Com uma revisão da literatura da época sobre “psicologia
dos surdos”, Lane listou uma série de características atribuídas a pessoas surdas, como
agressividade, impulsividade, imaturidade, instabilidade e assim por diante. O autor
aponta erros na administração de testes, escores de linguagem, conteúdos, normas e
amostragem. Dessa forma, Lane afirma que a educação e a abordagem psicológica
destinada às crianças e adultos surdos estava fundada em um conjunto de estereótipos
paternalistas. Ou, em uma hipótese alternativa, essas atribuições são, em geral,
verdadeiras para pessoas surdas; são resultados confiáveis e válidos das administrações
de teste; que capturam as maneiras pelas quais os surdos, como um grupo, diferem dos
ouvintes mais do que os indivíduos em qualquer um dos grupos diferem entre si.
Somente neste caso poderia-se afirmar que existia de fato uma "psicologia dos surdos".
(LANE, 1988)
(8)
Vejamos outro questionamento importante: Surdos precisam de terapia pelo
fato de serem surdos? As pesquisas apontam que surdos e deficientes auditivos tem até
quatro vezes mais incidência de depressão (VAN ELDIK et al., 2004). Dessa forma, 26%
dos jovens surdos e deficientes auditivos cumprem critérios clínicos para depressão
(FELLINGER et al., 2009). Crianças que não conseguem se comunicar no berço familiar
tem quatro vezes mais chances de ter problemas de saúde mental do que aquelas que
se comunicam bem em casa. Apenas 25% dos pais ouvintes de crianças surdas que se

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comunicam por língua de sinais se sentem competentes na língua. (DREYZEHNER;
GOLDBERG, 2019).
(9)
De fato, a Comunidade Surda está mais propensa a ter transtornos mentais,
como ansiedade e depressão (BONESS, 2016). No entanto, não é pela ausência de
audição em si, ou da condição surda, mas por uma série de atravessamentos. Essa
propensão está associada: 1) a barreiras comunicativas; 2) a relação com mundo ouvinte,
3) a discriminação, 4) maior incidência de abusos, 5) inadequação do sistema de saúde.
Surdos não são biologicamente mais propensos a transtornos mentais. As dificuldades
são causadas por barreiras sociais.
(10)
Passados mais de três décadas da contundente crítica de Lane (1988) à
psicologia, diversos estudos das mais variadas vertentes psicológicas relacionados às
pessoas surdas, por meio de várias perspectivas levando em conta o aspecto bilíngue e
bicultural das pessoas surdas, estão em desenvolvimento ou já foram publicados na área
da Psicologia. Felizmente, temos atualmente uma série de estudos da psicologia que
levam em conta a abordagem antropológica/cultural das comunidades surdas.
(11)
Na Inglaterra podemos citar os estudos de Mary Griggs. A alta incidência de
transtornos mentais em surdos apontada na literatura fez com que muitos profissionais
se perguntassem se a surdez naturalmente conduzia os indivíduos ao estado de doenças
que afetam a mente. Embora isto não aconteça, sabe-se que o constante desafio de viver
entre dois mundos diferentes, o do ouvinte e o da surdez, sobrecarrega, sobremaneira,
a saúde mental dos surdos (GRIGGS, 1998). Nesse contexto, Griggs desenvolveu uma
pesquisa de quatro anos no Centro de Estudos Surdos, na Universidade de Bristol, para
descrever algumas das percepções que surdos usuários de línguas de sinais tinham sobre
saúde mental. A pesquisadora considerou ser importante entender as percepções da
comunidade surda, tanto das dificuldades e ausência de saúde, como as que
determinavam uma vida saudável. A pesquisa se utilizou de coletas quantitativas e
estudos qualitativos. Teve a participação de surdos e ouvintes. Dentre muitos resultados
relevantes, o esforço investigativo culminou com a elaboração do conceito de Bem-Estar
Surdo (Wellness) no contexto da surdez, cunhado pela autora, baseado em uma
perspectiva cultural do ser surdo.

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(12)
Na Dinamarca, temos os estudos de Chapman e Dammeyer (2019) sobre a
influência da identidade surda para o bem-estar psicológico de pessoas surdas. O estudo,
com uma amostra significativa de 742 adultos Surdos e DA’s (Deficientes Auditivos),
demonstrou que indivíduos Surdos com identidade bicultural possuem mais bem-estar
psicológico (CHAPMAN; DAMMEYER, 2019).
(13)
No Brasil, salientamos a importância do Laboratório de Neuropsicolinguística
Cognitiva Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – Lance-
IPUSP, coincidentemente alocado em um departamento de Psicologia Experimental que
desenvolve registros e estudos lexicográficos da Libras desde 1998. A última publicação
lexicográfica do Lance- IPUSP, o Dic-Libras: Dicionário da Língua de Sinais do Brasil: A
Libras em suas Mãos (CAPOVILLA; RAPHAEL; TEMOTEO; MARTINS, 2017), conta com
três volumes e 14.500 sinais em entradas lexicais individuais, trazendo os verbetes
correspondentes ao sinal em Português e Inglês, a definição do significado do sinal e
dos verbetes, ilustrações e a descrição detalhada da forma do sinal. Os produtos
lexicográficos do Lance-IPUSP propõe o paradigma das neurociências cognitivas para
dicionarização da Libras. Além das publicações lexicográficas de relevância, o Lance-
IPUSP dispões de testes específicos para avaliação de vocabulário de crianças surdas.
Mais informações podem ser encontradas em https://www.ip.usp.br/site/laboratorio-de-
neuropsicolinguistica-cognitiva-experimental-lance/.
(14)
Bisol, Simioni e Sperb (2008) analisaram as contribuições da psicologia
brasileira para o estudo da surdez. Por meio de uma revisão em periódicos nacionais,
um total de 34 artigos foram selecionados e analisados segundo o conceito de surdez
na temática central e no tipo de publicação. Segundo os resultados da pesquisa, as
publicações entre 1995 e 2005, indicam que: (a) o conceito socioantropológico de
surdez prevalece entre os pesquisadores brasileiros; (b) as temáticas de maior interesse
são a linguagem e a língua, o desenvolvimento cognitivo e relações familiares; (c) foram
encontrados 15 artigos de revisão de literatura, 16 de relatos de pesquisa empírica e 3
de relato de experiência.
(15)
Podemos perceber que existe uma tendência de reformulação das Ciências
Psicológicas, que de alguma forma abarcaram as concepções antropológicas do povo

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surdo na construção de conhecimentos. A psicologia pode ter um papel de
desconstrução na lógica binária dos defensores dos métodos orais e dos defensores da
língua de sinais, já que a psicologia enquanto profissão tem repercussões na área da
saúde.
(16)
Além da incorporação dos pressupostos antropológicos pela área da
psicologia, precisamos com urgência que profissionais da área da saúde, embasados nos
achados atuais, indiquem para familiares de surdos uma abordagem bilíngue para o
desenvolvimento pleno das crianças surdas. Mesmo que a família decida por implante
coclear ou por aparelhos auditivos, deve ser aconselhada pelos médicos, pediatras,
otorrinolaringologistas e demais profissionais da área da saúde a possibilitarem seus
filhos a aquisição de Língua de Sinais na mais tenra idade. É frequente a área médica
utilizar como argumento que a língua de sinais atrapalha o desenvolvimento da
oralidade. No entanto, já é sabido que uma língua não atrapalha o desenvolvimento de
outra, pelo contrário, crianças bilíngues possuem diversas vantagens cognitivas,
emocionais e sociais.
(17)
Apesar dos avanços da área da psicologia em seus estudos e abordagens em
relação as pessoas surdas, nos falta ainda uma perspectiva surda na construção do
conhecimento psicológico. Segundo Martins (2018) temos cerca de 15 surdos formados
em Psicologia no país. No entanto, apenas 3 trabalham na área. Assim como temos a
construção de uma Pedagogia Surda, precisamos de uma construção da psicologia, tanto
enquanto ciência como profissão, com uma perspectiva surda, para que se possa afirmar
a existência de uma Psicologia Surda.
(18)
Não temos o levantamento quantitativo de psicólogos no país que atendam
pessoas surdas em Libras, mas certamente não suprem as demandas de atendimento
psicológico bilíngue no país. É urgente, portanto, que a disciplina de Libras seja
obrigatória nos cursos de Psicologia e demais cursos da área da saúde. Sabemos que
uma disciplina de Libras, com carga horária reduzida e muitos alunos em sala de aula,
está longe de ser o ideal e não desenvolvem fluência em Libras, mas pode ser o ponto
de partida para despertar o interesse de estudantes de psicologia para trabalhar com a
população surda e desenvolver pesquisas na área.

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(19)
O interesse da psicologia pela surdez, ou surdalidade (LADD, 1998) como um
termo culturalmente mais apropriado, está muito relacionada com o desenvolvimento na
área da educação de surdos. A aprendizagem é tema de pesquisa da psicologia com
muitas interfaces, especialmente com a educação e a neuropsicologia e ainda mais
recentemente com a neuropsicopedagogia. A psicologia nesse sentido desenvolve
teorias de aprendizagem bem como métodos de avaliação. Aprendizagem é um processo
humano muito estudado, que afeta diretamente as crianças surdas e existem várias
correntes teóricas. Podemos citar a Epistemologia Genética de Piaget, Construtivismo de
Bruner e a Teoria Socio-Cultural de Vygotsky.
(20)
O desenvolvimento humano compreende dois processos complementares:
maturação e aprendizagem. A maturação é basicamente biológica e compreende o
desenvolvimento das estruturas corporais, neurológicas e orgânicas, bem como padrões
de comportamento que resultam da atuação de alguns mecanismos internos. A
aprendizagem se configura na consequência da estimulação ambiental no indivíduo, que
ao atingir a maturidade acarreta mudanças no comportamento em função da experiência.
Dessa forma, a experiência cultural e de identidade devem ser levadas sempre em conta
(RUSSO, 2015)
(21)
Atualmente, os paradigmas das neurociências, de forma transdisciplinar, estão
em expansão com bases teóricas nas neurociências, educação e interfaces da Psicologia
e Pedagogia. Temos, por exemplo, a neuropsicopedagogia. Os estudos proporcionam
elucidações para compreensão da complexidade do funcionamento cerebral nas
articulações entre cérebro e comportamento, que possibilita compreender os processos
de ensino-aprendizagem de crianças surdas. De forma nenhuma o avanço das
neurociências na área da educação exclui os aspectos identitários, culturais e linguísticos
das comunidades surdas, mas podem e devem beber dessas novas descobertas e
aproximações dos estudos gerais da psicologia.
(22)
Outra questão sempre discutida e por vezes criticada na psicologia é a
avaliação, tida como instrumento que marca os surdos como incapazes, deficientes,
deficitários e assim por diante. No entanto, de que forma podemos descobrir se um surdo
tem autismo, por exemplo? Ou se uma pessoa surda tem depressão ou ansiedade?

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Somente por meio das percepções subjetivas dos psicólogos? Como saber se um surdo
tem problemas específicos de linguagem ou um atraso na aquisição da língua? Um atraso
na aquisição de linguagem, por conta da privação, pode ser minorado com estimulação
intensa para aquisição da língua de sinais. Já transtornos específicos de linguagem
demandam estratégias direcionadas.
(23)
Assim que chega na escola, seja ela inclusiva ou bilíngue específica para surdo,
esse aluno deve ser avaliado. O primeiro passo é uma anamnese com os pais ou
responsáveis pelo aluno. Dessa forma, o psicólogo pode compreender como foi a
gestação, o desenvolvimento cognitivo, emocional e social dessa criança nos primeiros
anos de vida. Em seguida, o psicólogo deve avaliar o aluno, especialmente em questões
linguísticas. Esse aluno sabe língua de sinais? Teve oportunidade de conviver com outras
crianças surdas? Esse aluno tem algum resquício auditivo? Utiliza aparelho? É
implantado?
(24)
A psicologia da educação está especialmente interessada na avaliação de
estudantes com dificuldades de aprendizagem, transtornos, síndromes ou altas
habilidades que prejudicam o desempenho escolar. Para essa avaliação são necessários
diversos instrumentos. Sabemos que estudantes surdos podem ser acometidos por todas
as outras dificuldades que também acometem os ouvintes. Dessa forma, a população de
surdos deve ter direito a instrumentos de avaliação com critérios específicos.
(25)
As pesquisas para a construção de testes psicométricos são extremamente
criteriosas, baseadas em abordagens quantitativas, com normas, análises fatoriais e
estudos de validade. Os testes são métodos estruturados aplicados com instruções
específicas e normas derivadas de uma população representativa. Os resultados são
descritos a partir de média e desvio-padrão, que permitem a utilização de cálculos para
comparação. Embora a construção e avaliação seja quantitativa, a análise deve ser
interpretada de forma qualitativa, em conjunto com outros profissionais envolvidos, como
neurologistas e professores, bem como baseada em anamneses e observações do
Psicólogo. (PASQUALI, 1999; RUSSO, 2015).
(26)
Atualmente, temos uma série de instrumentos padronizados de avaliação
psicológica para a mensurar a aprendizagem dos alunos nas áreas de leitura e escrita,

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aritmética, atenção, funções executivas, coordenação motora e para avaliar o processo
de alfabetização. No entanto, observamos uma escassez de testes psicométricos ou
projetivos com parâmetros específicos para população de surdos. Sabemos que apenas
a tradução dos testes para língua de sinais não é suficiente para dar validade e
confiabilidade quando aplicados nos estudantes surdos.
(27)
Os profissionais de psicologia na escola regular com surdos incluídos ou em
escolas bilíngues específicas para surdos carecem de instrumentos de avaliação
construídos especificamente para surdos, ou devidamente adaptados para essa
população. Existem lacunas importantes, especialmente relacionadas à carência de
instrumentos para avaliar o desenvolvimento linguístico da população escolar surda.
(28)
A proficiência em Língua de Sinais dos surdos que chegam na escola é
frequentemente baixa e extremamente heterogênea. Portanto, é urgente que as escolas
tenham um método de testagem do nível da língua de sinais, assim como os
planejamentos devem ser feitos para o ensino.
(29)
Por conta da heterogeneidade que os surdos apresentam em relação a
aquisição de linguagem, se faz necessário entender como a experiência inicial influencia
o desenvolvimento linguístico das crianças surdas.
(30)
Problemas de desenvolvimento de linguagem podem indicar a existência de
distúrbios específicos, tais como disfasia e dislexia, ou risco de apresentar esses
distúrbios. Quando tais problemas são detectados precocemente, procedimentos
terapêuticos específicos podem ser empregados para prevenir a ocorrência dos
distúrbios ou reduzir a gravidade dos sintomas. A eficácia da detecção precoce pode ser
aumentada pelo uso de instrumentos padronizados para avaliar diferentes componentes
do desenvolvimento da linguagem, tais como vocabulários receptivo e expressivo
(CAPOVILLA, et al. 2006).
(31)
No Brasil não contamos com instrumentos de avaliação de vocabulário
expressivo na Libras que possibilitem tanto detectar o nível inicial de desenvolvimento
da linguagem das crianças surdas que ingressam na escola, quanto detectar
precocemente distúrbios de linguagem.

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(32)
Contamos com raros estudos que avaliam o desenvolvimento do vocabulário
expressivo e receptivo em Libras, bem como da competência de leitura e escrita dos
alunos surdos. Apenas um pequeno número de avaliações existe em nível internacional.
Isso acontece devido a várias razões, tais como o tamanho relativamente pequeno da
população sinalizadora e sua natureza heterogênea, acessibilidade limitada aos surdos
sinalizadores nativos e o pouco tempo de pesquisa de língua de sinais, especialmente
fora dos EUA.
(33)
Embora com uma história de mais de duzentos e cinquenta anos, a educação
de surdos ainda não tem uma tradição de pesquisa sobre o trabalho dos docentes surdos
e de ouvintes sobre uma perspectiva psicológica produtiva para a educação de surdos.
Atualmente, as experiências que se auto descrevem como abordagens bilíngues nos
meios educativos para surdos, com seus avanços e limitações, apontam para a
necessidade de investigação das funções linguística, cultural e psicológico-pedagógica
dos profissionais surdos que atuam nestas instituições. (MARSCHARK; SPENCER, 2009;
COOPER, 2012).
(34)
Dentre a literatura apresenta sobre a importância do modelo surdo
(GONÇALVES, 2010; REIS, 2006) nos mais diversos recantos do globo, tais profissionais
ainda não estão satisfatoriamente integrados, autônomos e amplamente aproveitados na
maior parte dos espaços educacionais para surdos, que buscam desenvolver uma
abordagem bilíngue de ensino autenticamente cultural e com base na experiência
psicológica-social surda. O conceito da interculturalidade (GONÇALVES; LADD;
VELASQUES, 2010; GONZALES, 2017) parece oferecer um parâmetro interessante para
complementar e até questionar o que se tinha como abordagem bilíngue na educação.
(35)
Historicamente, a educação de surdos tem sido conduzida somente por
profissionais de ensino ouvintes e estes escolhem o que e como ensinar às populações
surdas (LADD; GONÇALVES, 2012).
(36)
A pesquisadora Maribel Gonzales concluiu sua pesquisa de doutorado sobre
as concepções e práticas docentes de educadores surdos chilenos (GONZALES, 2017) e
desenvolve um estudo complementar neste momento no Chile. Internacionalmente, a
pesquisa sobre o papel dos educadores surdos em instituições educacionais e práticas

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pedagógicas que estão atualmente em desenvolvimento têm ganhado espaço nos
centros de pesquisa e universidades (DE CLERCK, 2010; COOPER, 2012). As
investigações têm sido realizadas em países do norte da Europa, Estados Unidos e Brasil
(GONZALES, 2017). Esse desenvolvimento nos permite pensar que é possível vislumbrar
o estabelecimento e disseminação de práticas de ensino culturais e estudos de psicologia
que, reconhecidamente, interpretem as visões de mundo surdas e contribuam para sua
educação. A longo prazo, que se pense também para ouvintes em um contexto
educacional verdadeiramente bilíngue e intercultural.
(37)
Os estudos de Santini (2001) sobre o trabalho dos assistentes surdos de
ensino no Reino Unido estão entre as primeiras aproximações neste campo realizadas
por uma pessoa surda na Europa. Uma de suas principais conclusões foi a de que mais
pesquisas precisavam ser feitas para explorar os resultados e os efeitos de ter pessoas
surdas ensinando seus pares. Seu estudo apontou os benefícios de se ter professores
surdos na educação para ajudar as crianças surdas emocional e linguisticamente, bem
como em termos de formação de identidade. Salientou, também, que ter uma pessoa
surda como parte da experiência educacional de um aluno surdo aumenta as chances de
ele ser bem-sucedido no sistema educacional.
(38)
Estas proposições delineadas nesses estudos são reconhecidas em nível
acadêmico, mas ainda não ao nível do sistema de ensino. A própria difusão e
consolidação da língua de sinais como língua mediática do ensino de surdos ainda
apresenta atrasos de implementação inconcebíveis nos vários cantos do mundo, dos mais
desenvolvidos aos menos. Estudos nórdicos, mais especificamente feitos na Finlândia,
região do globo em que se conseguiu atingir os melhores níveis de provimento
linguístico para surdos no mundo, apontam ainda para problemas persistentes de
escassez da situação linguístico-comunicacional nos ambientes de educação formal de
surdos (BRENTARI, 2007).
(39)
As línguas de sinais já figuram como um instrumento eficiente para melhorar a
educação das populações surdas em diversos países do globo. Precisa-se fazer disto
uma prática universal e irrestrita nos vários ambientes e instituições no mundo onde se
encontrem alunos surdos. Para tanto, busca-se, agora, ampliar o provimento desse

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serviço com mais professores, surdos e ouvintes, habilitados e com mais capacitação
linguística, psicológica, didática e cultural, em ambas línguas, para atuarem na educação
de surdos.
(40)
No momento atual, sentimos que a educação de surdos deve atuar em espaços
estreitos da área da psicologia e cognição humana conduzidos por pedagogias mediadas
pelas línguas de sinais e aspectos culturais das comunidades e pessoas surdas estudadas
na literatura. Nesse sentido, não é significativo se temos ou não uma psicologia surda,
mas se temos esforços de ambas comunidades ouvinte e surda e de profissionais de suas
respectivas comunidades para colaborarem na construção deste campo juntos.
(41)
Dentre várias aplicações, dessas e outras descobertas relevantes sobre
aspectos de uma psicologia surda e aproximações estratégicas pedagógicas e cognitvas
para os surdos, com o uso das línguas de sinais e de práticas culturais surdas, está o
fato de que elas podem, também, auxiliar na formação de profissionais ouvintes para
atuarem na educação de surdos no futuro, além da legitimação das práticas linguístico-
culturais e interculturais surdas que já constroem aprendizagem nos seus meios. Assim,
também, como o engajamento de profissionais surdos em pesquisas diretamente
relacionadas com uma psicologia de surdos para surdos.
(42)
Pesquisas em estudos surdos que associam psicologia, cultura e educação
estão somente no seu início. Urge que façamos mais pesquisas com as comunidades
surdas e com surdos, e que tenhamos mais pesquisas de surdos que trabalham em
educação e psicologia em vários e diferentes contextos culturais, a fim de aumentar a
nossa compreensão das epistemologias genuinamente surdas em psicologia, educação
e das práticas pedagógicas realizadas por estes indivíduos. Essas devem ser
reconhecidas, valorizadas e apoiadas para que as línguas de sinais e as culturas surdas
sejam preservadas. No que tange à integração cultural e profissional das pessoas surdas
nos mundos surdo e ouvinte, tais pesquisas no campo da psicologia podem ser muito
informativas e orientadoras. Em geral, esses estudos são vitais para a qualidade de vida
da comunidade surda e para o sucesso de seus membros nos vários ambientes
educacionais e sociais que compartilham com outros surdos ou ouvintes. Além disso, a
riqueza linguístico-cultural, descoberta através destas pesquisas entre a psicologia e a

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pedagogia, tem uma contribuição que ultrapassa os espaços da educação de surdos,
mostrando que a psicologia e pedagogia cultural surda tem muito, também, a ensinar a
nós, ouvintes e as nossas tentativas de melhorar as nossas próprias práticas educativas
com nossos pares.

REFERÊNCIAS

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