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Naquelas noites em que as paredes tremiam, o quadro de Jesus descia para descansar
entre os restos de bolacha, um copo e uma moringa, que moravam encostados à parede
lateral. Melhor que espatifar-se no chão com a tremedeira das paredes recheadas de
espíritos inquietos.
Lá fora, no alto céu, a luz da lua cheia vigiava a terra iluminando os caminhos obscuros,
como querendo ajudar aos homens. No pátio, se refletia no espelho de água de chuva
que se juntara na bacia, estrategicamente colocada abaixo do gotejar das telhas. Pensou
no banho de gato e tirou a camisa. Pegou a toalha, o saco plástico com os objetos de
higiene, ajeitou o caco de espelho entre os pregos e viu os olhos castanhos, ‘inda com
brilho de esperança reminiscente da adolescência perdida quem sabe quando. Olhos que
riam para a planta que se mostrava verde, pendente do muro, sorvendo o restinho da luz
misteriosa do entardecer. Luz que logo fugiria amedrontada com vibração sonora dos
tambores que preencheriam cada poro do espaço.
De repente um silêncio e logo uma voz gritando de dentro para fora, que havia muito
que fazer antes que os lábios colados e as pálpebras fechadas sobre aqueles olhos
castanhos que o miravam lá dentro do caco de espelho, pedintes, que nem olhos de
cachorro sem dono estivessem mortos em mais um corpo crivado de balas, prestes a ser
devolvido para integrar o pó da terra.
Sua alma invisível veria o corpo ser enterrado, afastando-se sem a companhia de um
livro ou coberta para abrigar-se do frio. Pra que? Olhos fechados não poderiam ler.
Corpo morto era insensível como a terra que o cobria. A alma continuaria nos espaços
da eternidade.
Naquele bairro, um ponto na periferia da cidade, todos pareciam conhecer-se e saber das
virtudes e defeitos, reparando nos sonhos e anseios uns dos outros, escondendo desejos
inconfessáveis, fingindo religiosidade e vida virtuosa. Era quase uma regra escamotear
as verdadeiras intenções, falar o contrário do que ficava guardado nos mais profundos
recantos d’alma.
Era hipocrisia mesmo! Pensar dum jeito e agir diferente. Mentes humanas complicadas,
desconfiadas, temerosas, esperando a iniciativa dos outros, ou qualquer tragédia
daquelas descritas nos jornais que pingavam sangue se espremidos.
O que será que impede a gente de usufruir cada dia da vida com sinceridade e prazer?
Como varrer da memória velhos ensinamentos e fronteiras e preconceitos que entortam
a mente como o cachimbo entorta a boca?
Molhou o pincel de barba na bacia, passou no sabonete e depois no rosto, fazendo
espuma cheirosa. Pegou o aparelho com gilete e começou a raspar os fios ralos e
esparsos. O mundo parecia enjeitar as pessoas que desejavam cultivar as fortes teias da
humanidade civilizada, ajudando-se em respeito mútuo, como semelhantes, como
ensinavam os mais velhos. Por fora, cada quem se esforçando pra parecer virtuoso que
nem santo. Por dentro confusão e insegurança, sofrimentos remoídos, pequenas
contrariedades, ciúmes e inveja que viravam dor e doença física ou mental.
Gente tentando a cada instante mudar o mundo e mudar os outros, sem perceber que um
caminho possível e suficiente seria juntar a solidariedade e respeito ao próximo,
trocando a competitividade rotineira, a luta encarniçada pela sobrevivência, por
cooperação fraterna com os viventes do mesmo barco, dependentes das leis do mesmo
universo.
Mudar aos poucos o ambiente em que se destaca e ganha aplausos o mais forte, como
numa briga de galos ou num ringue de boxe, porque as virtudes do espírito são
incompatíveis com a competitividade encarniçada, que enaltece vencedores e descarta
os vencidos como limões podres depois de espremidos.
O rosto que emoldurava os olhos por onde entravam as emoções; o nariz que sentia os
cheiros, a boca modulava os gestos de aproximação para o beijo e recepção da saliva
doce e quente, num ato amoroso que os toques completavam. O pendurado entre as
pernas era a chave do prazer. Pensava se poderia casar-se algum dia, mas o medo tecia
um bordado estranho, fazendo-o resistir ao chamado natural para o convívio
responsável. Admirava e temia as pessoas que tinham o privilégio de viver a vida.
Vestiu-se, verificou na carteira o documento que mostrava um nome que não era seu
nome, o retrato e data de nascimento há vinte e cinco anos, mas era como se estivesse
nascendo quando acordava para um novo dia para saber mais das verdades infernais, do
purgatório da vida, na esperança de chegar ao paraíso por “mares nunca d’antes
navegados”. As coisas verdadeiras que realmente eram eternas e importantes
revelavam-se a conta gotas. Apagou a luz, fechou a porta e tomou o corredor lateral,
imprimindo a cada passo o ritmo de marcha, como um soldado. A lua mostrava o
caminho.