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RESUMO
O Brasil foi uma sociedade escravocrata por mais de três séculos e, em decorrência disso, junto
com desdobramentos históricos, sociais e econômicos, foi criado um imaginário social do negro
na sociedade brasileira. Esse imaginário, por muito tempo, foi omitido, mas nos últimos anos
essa questão vem sendo discutida no país. Inclusive, em 2019 o rapper Emicida lançou um
videoclipe chamado Eminência parda, o qual mostra como pessoas brancas da sociedade
brasileira enxergam os negros.
Este artigo visa problematizar essas representações da imagem do negro por meio de pesquisa
qualitativa com Stuart Hall, bell hooks e Adilson Moreira. Os dois primeiros autores traçam um
diálogo entre cultura, raça e representação, enquanto Moreira classifica e mostra o racismo
como recreativo.
Após essa análise, são evidenciados os desafios para que se possa fazer uma nova construção
do imaginário social do negro no Brasil e por que essa mudança é necessária.
Palavra-chave: representação; racismo; sociedade brasileira.
Introdução
Em 2019 o rapper Emicida lançou o videoclipe Eminência parda, em que, como o próprio
nome diz, fala sobre a ascensão do negro e do pardo na sociedade brasileira. Contudo, o foco
deste artigo não é a análise da letra, mas sim do videoclipe, que mostra, na prática, o imaginário
social dos negros por parte dos brancos no Brasil.
Ao longo dos séculos XVI e XIX, o país foi uma sociedade escravocrata, que primeiro
escravizou os povos indígenas2 e, depois, os povos africanos. Os últimos, em especial, sofreram
violências diversas, desde o trabalho forçado, severas punições, introdução forçada da cultura
1
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e
professora adjunta I na Faculdade Zumbi dos Palmares (FZP).
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Os escravizados indígenas também sofreram violências inúmeras, porém eles não são o foco deste artigo.
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europeia, até o estupro de mulheres e separação de seus familiares, dentre tantas outras questões
(FAUSTO, 2019; KARASCH, 2000). Esse período produziu uma visão inferiorizada do
africano e do negro brasileiro pela sociedade, a qual foi reforçada por meio das teorias raciais
e do ideal europeizado (SCHWARCZ, 2017; ORTIZ, 2011).
E assim, mesmo após a libertação burocrática dos escravizados negros em 13 de maio de 1888,
ainda hoje, em 2020, não houve a libertação desse grupo na prática. Ao contrário, foi criado um
abismo social, cultural e econômico em que o negro tem dificuldades de ascensão social e
econômica e em que sua cultura é diluída no meio da cultura brasileira.
Apesar de esforços como a Lei n. 1.390/1951, mais conhecida por Lei Afonso Arinos, em
referência ao nome do deputado que propôs a lei, e promulgada pelo presidente da República,
foi a primeira lei a criminalizar o racismo, observando fatos como recusa de hospedagem, venda
de mercadorias, inscrição de aluno em escola, acesso a cargo público e empregos de forma
geral.3 O artigo 150 da Constituição de 1967 e o artigo 153 da Constituição de 1969 dizem
basicamente que todos são iguais perante a lei e que o preconceito de raça será punido. E
segundo a Constituição de 1988:
Mais recentemente a Lei n. 10.639/2003, que foi substituída pela Lei n. 11.645/2008, institui
que o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena faça parte do currículo de ensino de
todas as matérias das escolas públicas e particulares. Dessa maneira, começa a propagação de
conteúdos que anteriormente eram negados ao brasileiro.
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Essa lei valeu para gênero também.
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No Código Criminal de 1830 o capítulo IV, em seus artigos 295 e 296, foi dedicado à criminalização de vadios e
mendigos. Em 1890 o Decreto n. 847 deu continuidade a esse tema e acrescentou a capoeira à vadiagem nos
artigos 399 ao 404 do capítulo XIII. Em 1940 o Decreto-lei n. 3.688, além de manter a vadiagem como crime,
acrescentou embriaguez por consumo de álcool ou qualquer substância que gere o mesmo efeito.
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Análise do videoclipe
O videoclipe Eminência parda mostra uma família negra de classe média-alta celebrando em
um restaurante chique o título de graduação precoce de Vitória, de 19 anos, e sua ida ao exterior
para um intercâmbio com emprego garantido. Ao longo do videoclipe a família está feliz e
sorridente, comendo adequadamente e celebrando o amor entre eles, contudo ocorrem
encontros diversos com a forma como os brancos enxergam o lugar dos membros dessa família.
Nos últimos anos, o entendimento da palavra cultura passou por alguns processos de
modificação. Hall (2016) liga cultura a características de um modo vida de um grupo, seja ele
um povo, comunidade ou grupo social, e relaciona a valores compartilhados por esses mesmos
grupos. Assim, “afirmar que dois indivíduos pertencem à mesma cultura equivale dizer que eles
interpretam o mundo de maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e
sentimentos de forma que um compreenda o outro” (HALL, 2016: 20).
Para Rancière (2017), a imagem funciona como uma representação direta de um pensamento
ou de um sentimento. Já Hall (2016: 49) conclui que “a representação é uma prática, um tipo
de ‘trabalho’, que usa objetos materiais e efeitos. O sentido depende não da qualidade material
do signo, mas de sua função simbólica”. Sobre o significado, o sentido, o autor discorre que ele
é construído por meio de conceitos e signos, assim “os atores sociais usam os sistemas
conceituais para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para
comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente, para outros” (HALL, 2016: 49).
De maneira geral, poderíamos pensar que, por sermos todos brasileiros e, assim, pertencentes
a uma mesma cultura, interpretaríamos significados da mesma maneira. Contudo, o racismo
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de pessoas negras é uma redução da percepção social dos negros e, por isso, eles julgam ser
inaceitável e anormal a presença de negros naquele restaurante chique, próximo deles.
Moreira (2019) compreende que o estereótipo generaliza e vai além dessa simplificação de
como alguns indivíduos possam perceber outros. Para o autor, os estereótipos “possuem uma
dimensão claramente política, pois são meios de legitimação de arranjos sociais excludentes”
(p. 59). Nesse caso, legitimaria a não presença de pessoas negras nesse tipo de estabelecimento,
que em geral é frequentado majoritariamente por pessoas brancas. O mesmo acontece na
próxima cena, com a criminalização do homem negro.
Uma mulher sozinha à mesa chama alguém do restaurante para reclamar sobre a presença da
família no local, enquanto isso, em sua na mente, vê o pai dessa família entrando no restaurante
com uma arma na mão para assaltar o local e insinuando-se sexualmente para ela por meio de
sua arma, falando em seu ouvido.
Essa representação é construída com base no encarceramento em massa de homens negros, que
começa com o aumento da repressão à vadiagem após 13 de maio de 1888:
Moreira (2019) faz um estudo de estereótipo e estigma. Ele diz que o estigma acaba sendo uma
característica que faz com que um grupo ou uma pessoa perca escrupulosamente vantagens, e
no geral é esse o resultado dos estereótipos dos negros. Segundo ele, “estigmas são responsáveis
pela construção de identidades sociais culturalmente desprezadas porque designam pessoas
supostamente diferentes ou inferiores” (MOREIRA, 2019: 62).
A manutenção dos estereótipos dos negros na mente de pessoas brancas os convence de que
“os arranjos sociais existentes correspondem a formas naturais de organização social”
(MOREIRA, 2019: 60). Com isso, faz sentido para eles que indivíduos negros não tenham as
mesmas oportunidades nem os mesmos acessos econômico-socioculturais. Esse cenário é
agravado pela criação e disseminação dos estigmas, uma vez que literalmente limitam os
acessos a oportunidades sociais, instigando, assim, atos discriminatórios que levam à exclusão
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social e acabam por confirmar o pensamento que moveu a criação deles. Além disso, os
estigmas fazem com que os grupos subjugados percebam a si próprios da mesma maneira,
dificultando que possam tomar atitudes a respeito disso.
Fechando essa cena, após reclamar em vão, a mulher deixa o recinto. Enquanto isso, outra
mulher ameaça deixar o recinto ao mesmo tempo que seu companheiro a faz se sentar à mesa.
Na sequência, aparece um idoso encarando Vitória e um homem de meia-idade que a olha
fixamente, provocante, medindo-a de cima a baixo. Na mente deles, Vitória é hipersexualizada
e atende a seus desejos sexuais.
No período escravocrata brasileiro, existiam alguns escravizados que eram considerados de
cunho doméstico e que, por isso, ficavam dentro da casa-grande desempenhando funções no
local, dentre eles a figura da mucama:
período escravocrata, o Brasil já recebia volume de trabalhadores europeus, que foi escalonado
após a abolição.
Entre 1875 e 1886, entraram na província de São Paulo quatro vezes mais
imigrantes do que nos quarenta anos anteriores. Foi, no entanto, nos últimos
anos anteriores à abolição que a imigração italiana realmente ganhou impulso.
Em 1886 e 1887 mais de 100 mil imigrantes, em sua maioria italianos e
portugueses, chegaram à província de São Paulo. Entre 1888 e 1900, São
Paulo receberia 800 mil imigrantes – número superior à população escrava em
todo o país no ano de 1887. (Costa, 2010: 71)
Além da política pública de inserção de brancos no país, Costa (2010) relata que, após a
abolição, a situação do negro na sociedade brasileira seria ainda piorada.
Próximo ao final do videoclipe, a mulher que ameaçou sair do restaurante, mas não o fez,
observa a família com tristeza e raiva e enxerga a todos mortos no chão do restaurante, envoltos
de uma grande poça de sangue, ao mesmo tempo que o marido nota a cena com raiva. Na
sequência, aparece um garçom pisando e quase escorregando na poça de sangue da família – o
detalhe da cena é que ele é negro e olha para o sangue e, depois, com tristeza para a família. A
última cena do videoclipe é o enquadramento de seu rosto, focando em seu olhar assustado e
perturbado.
Quando Moreira (2019) e hooks (2019) dissertam a respeito da interiorização dos conceitos,
seja do racismo, seja dos estigmas por parte dos negros, eles podem ser observados na reação
do garçom, que não é de raiva pelo sistema injusto mas que age de maneira desrespeitosa ao
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pisar no sangue da família negra e por achar algo normatizado pessoas negras morrerem
brutalmente.
Conclusão
Apesar de a letra da música versar sobre a eminência parda e mostrar como personagens centrais
os integrantes de uma família negra bem-sucedida aos olhos do sistema capitalista, feliz,
estruturada, comemorando uma conquista da filha mais nova, esta não é a visão que pessoas
brancas têm sobre as pessoas negras. Além disso, fica em evidência também que a família
retratada é uma exceção à regra, uma vez que eles são os únicos negros no local.
Mesmo denotando que pessoas negras consigam ser exceção à regra, isso não quer dizer que
serão socialmente aceitas em ambientes que antes não ocupavam socialmente. Obviamente,
como o racismo é crime e é um crime irrevogável quando comprovado – o que é difícil pelo
racismo institucional e estrutural –, as pessoas não negras muitas vezes até têm o bom senso de
se calarem, entretanto, não é possível controlar suas mentes e suas reações não convidativas
para que pessoas negras se sintam efetivamente bem frequentando esses lugares.
Felizmente, a família do videoclipe não percebeu ou ao menos não se incomodou com os
olhares e o staff do restaurante não os convidou a se retirarem, mas novamente seria um crime
se assim o fizessem. Porém, além de, por via de regra, ou melhor, pelo racismo estrutural, ser
complicado a eminência negra/parda social e economicamente, uma vez que acontece, existem
os obstáculos sociais e culturais.
Moreira (2019) justifica esses obstáculos pela existência do racismo recreativo, que acontece
por meio do humor racista para manutenção dos privilégios socioculturais brancos, ou seja, para
a manutenção da branquitude. A justificativa das piadas fica fundamentada na reprodução de
estigmas e estereótipos que desqualificam os negros e, dessa forma, exercem uma violência
simbólica aos negros.
A reprodução dos estereótipos e estigmas por meio de piadas existe como forma de defesa da
branquitude que se sente ameaçada subjetivamente pelo avanço social de pessoas negras, ou
seja, as pessoas brancas não querem ter de competir por estima e valorização social. Com isso,
o racismo recreativo opera para garantir aos brancos respeitabilidade por meio da propagação
da superioridade branca. No entanto, ele não ocorre diretamente, mas sim indiretamente por
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meio da desqualificação moral, cognitiva, cultural e estética dos negros através de piadas e
injúrias raciais. Ações essas que são possíveis em virtude da estrutura social racista brasileira.
Desse modo, para os racistas que estão à frente das instituições de justiça, na maioria das vezes,
essas injúrias raciais acabam deslegitimadas.
O racismo recreativo, além de infligir negativamente no psicológico de pessoas negras, tenta
“impedir a mobilização política por meio da raça” (MOREIRA, 2019: 149) em função de
esconder ou tentar esconder o racismo com seu caráter humorístico. Assim, muitas pessoas
brancas, que, inclusive, se dizem não ser racistas, acusam pessoas negras de “mimimi” quando
dizem que uma situação (pessoa, programa de TV etc.) foi racista e que isso é errado.
Muito provavelmente é mais difícil para pessoas brancas considerarem o racismo recreativo
como racismo efetivamente, pela “satisfação psicológica que elas obtêm ao reproduzir piadas
racistas” (MOREIRA, 2019: 154) e também porque “a hostilidade presente em expressões
humorísticas encobre uma forma de antipatia dirigida principalmente a pessoas negras, o que
está relacionado à pressuposição de que elas não são capazes de atuar de forma competente na
esfera pública” (MOREIRA, 2019: 155).
hooks (2019) disserta sobre a representação negra norte-americana no início da década de 1990,
quase trinta anos antes de Moreira, contudo discorre que muitas vezes pessoas negras assumem
os estereótipos para que possam se sentir aceitas em sociedade. E isso é um fato, já que as
pessoas negras que assumem os papéis sociais esperados por elas acabam sendo aceitas, uma
vez que ocupam os lugares mentais que pessoas brancas que ainda não desconstruíram suas
mentes estipularam ser adequados para convívio em sociedade.
O racismo, assim como o patriarcado e o colonialismo, é um sistema de poder que opera há
muitos séculos em sociedade e que, por isso, é difícil de desconstruir, mas, se houver esforço
individual ou mesmo por parte dos governos e em especial dos veículos de comunicação, pode
sim ser descontruído.
O racismo perpassa mecanismos diversos, afetando as pessoas negras psicológica, cognitiva,
moral, social, cultural e economicamente. Ele faz com que pessoas brancas não considerem a
raça branca como uma raça e se sintam superiores e assim propaguem a supremacia branca por
todos os meios possíveis para garantir sua prevalência no poder, no controle. Contudo, é
necessário entender que pessoas brancas precisam começar a abrir mão de seus privilégios para
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que assim o racismo seja amenizado. Obviamente, nem toda pessoa branca é conscientemente
racista, e algumas já estão desconstruindo suas mentes e até podem tentar afetar sua rede de
contato, mas é necessário que isso seja ampliado, que pessoas brancas aceitem ter pessoas
negras como chefes e colegas diretos de trabalho em suas atividades, que valorizem a cultura,
história, religiões e estéticas negras socialmente.
hooks (2019) alerta para que negros construam novas imagens de si próprios e que assim
possam se libertar dessas correntes do colonialismo, da supremacia branca e do patriarcado.
Aqui no Brasil, mesmo trinta anos depois do lançamento de seu livro, temos uma grande jornada
rumo a essa libertação. O fato de as redes sociais darem voz para todos (BOSCO, 2017) e
estarem cada vez mais em evidência no Brasil, em especial nesse momento da covid-19, está
propiciando reflexões por parte de brancos e negros. Nos últimos anos está sendo construído
pelas novas gerações negras um orgulho de ser negro e assim de sua negritude.
Nos últimos anos também, seja por motivo financeiro, seja pela conscientização, se observa,
nas novelas globais a presença de cada vez mais personagens negros que não são
subalternizados e também a reflexão sobre os efeitos do racismo na sociedade, por exemplo,
Amor de Mãe (2020), O outro lado do paraíso (2019), Malhação – Viva a Diferença (2017-
18). Da mesma forma, com o aumento da presença de pessoas negras como destaque nas
propagandas, contudo, o caminho da construção de uma nova imagem do negro no Brasil será
longo.
Em 2019, a Netflix lançou o seriado Irmandade em que o negro ainda é visto como
criminalizado e mesmo os personagens negros que não eram acabam se tornando, além de
mostrar o homem negro como violento. O mesmo ocorre no seriado Homens?, disponível na
Amazon Prime Video, em que o personagem negro tem sua alcunha no diminutivo enquanto o
branco não. Além disso, ele é mais associado que os outros a sua potência sexual, chegando,
inclusive, a ser objeto sexual e é o único dos amigos sem vínculo afetivo com ninguém.
Entretanto, a terceira temporada, lançada em 2020, mostra um rumo um pouco diferente para a
história.
Notamos que estamos rumando para a construção de novas representações do negro em
sociedade, por meio de discussões e reflexões de pessoas na academia, na mídia e de pessoas
comuns, mas, como mencionei anteriormente, sabemos que será um longo caminho.
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