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A representação do imaginário social do negro no Brasil através do videoclipe Eminência


parda, de Emicida

Sheila Cristina Silva Aragão Caetano1

RESUMO
O Brasil foi uma sociedade escravocrata por mais de três séculos e, em decorrência disso, junto
com desdobramentos históricos, sociais e econômicos, foi criado um imaginário social do negro
na sociedade brasileira. Esse imaginário, por muito tempo, foi omitido, mas nos últimos anos
essa questão vem sendo discutida no país. Inclusive, em 2019 o rapper Emicida lançou um
videoclipe chamado Eminência parda, o qual mostra como pessoas brancas da sociedade
brasileira enxergam os negros.
Este artigo visa problematizar essas representações da imagem do negro por meio de pesquisa
qualitativa com Stuart Hall, bell hooks e Adilson Moreira. Os dois primeiros autores traçam um
diálogo entre cultura, raça e representação, enquanto Moreira classifica e mostra o racismo
como recreativo.
Após essa análise, são evidenciados os desafios para que se possa fazer uma nova construção
do imaginário social do negro no Brasil e por que essa mudança é necessária.
Palavra-chave: representação; racismo; sociedade brasileira.

Introdução
Em 2019 o rapper Emicida lançou o videoclipe Eminência parda, em que, como o próprio
nome diz, fala sobre a ascensão do negro e do pardo na sociedade brasileira. Contudo, o foco
deste artigo não é a análise da letra, mas sim do videoclipe, que mostra, na prática, o imaginário
social dos negros por parte dos brancos no Brasil.
Ao longo dos séculos XVI e XIX, o país foi uma sociedade escravocrata, que primeiro
escravizou os povos indígenas2 e, depois, os povos africanos. Os últimos, em especial, sofreram
violências diversas, desde o trabalho forçado, severas punições, introdução forçada da cultura

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Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e
professora adjunta I na Faculdade Zumbi dos Palmares (FZP).
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Os escravizados indígenas também sofreram violências inúmeras, porém eles não são o foco deste artigo.
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europeia, até o estupro de mulheres e separação de seus familiares, dentre tantas outras questões
(FAUSTO, 2019; KARASCH, 2000). Esse período produziu uma visão inferiorizada do
africano e do negro brasileiro pela sociedade, a qual foi reforçada por meio das teorias raciais
e do ideal europeizado (SCHWARCZ, 2017; ORTIZ, 2011).
E assim, mesmo após a libertação burocrática dos escravizados negros em 13 de maio de 1888,
ainda hoje, em 2020, não houve a libertação desse grupo na prática. Ao contrário, foi criado um
abismo social, cultural e econômico em que o negro tem dificuldades de ascensão social e
econômica e em que sua cultura é diluída no meio da cultura brasileira.
Apesar de esforços como a Lei n. 1.390/1951, mais conhecida por Lei Afonso Arinos, em
referência ao nome do deputado que propôs a lei, e promulgada pelo presidente da República,
foi a primeira lei a criminalizar o racismo, observando fatos como recusa de hospedagem, venda
de mercadorias, inscrição de aluno em escola, acesso a cargo público e empregos de forma
geral.3 O artigo 150 da Constituição de 1967 e o artigo 153 da Constituição de 1969 dizem
basicamente que todos são iguais perante a lei e que o preconceito de raça será punido. E
segundo a Constituição de 1988:

O art. 3º, IV, proíbe o preconceito e qualquer outra forma de


discriminação (de onde se poderia inferir que preconceito seria espécie
do gênero discriminação); o 4º VIII, assinala a repulsa do racismo no
âmbito das relações internacionais; o art. 5º, XLI, prescreve que a lei
punirá qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e
garantias fundamentais; o mesmo art. 5º, XLII, criminaliza a prática do
racismo; o art. 7º, XXX, proíbe diferença de salários e de critério de
admissão por motivo de cor, entre outras motivações, e finalmente o
art. 227, que atribui ao estado o dever de colocar a criança a salvo de
toda forma de discriminação e repudia o preconceito contra portadores
de deficiência. (SILVA JUNIOR, 2002: 13)

Mais recentemente a Lei n. 10.639/2003, que foi substituída pela Lei n. 11.645/2008, institui
que o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena faça parte do currículo de ensino de
todas as matérias das escolas públicas e particulares. Dessa maneira, começa a propagação de
conteúdos que anteriormente eram negados ao brasileiro.

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Essa lei valeu para gênero também.
3

Contudo, vemos o encarceramento em massa da população afrodescendente que começa com a


Lei da Vadiagem4 e cresce com o racismo institucional (ALMEIDA, 2018), o qual criminaliza
mais negros do que brancos, uma vez que juízes, advogados e delegados, em sua maioria
brancos, praticam o racismo em suas funções.
Ainda, o imaginário social inferiorizado do negro no Brasil é reforçado por meio de romances,
novelas, seriados, programas de TV e filmes em que quase não se vê tantos personagens negros.
E quando há, na maioria das vezes, são representados por meio de papéis subalternizados,
criminalizados, sem vínculo familiar ou mesmo hipersexualizados.
Essa questão pode ser analisada na série de livros Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro
Lobato, nos personagens de Tia Anastácia e Tio Barnabé, ambos sem vínculos familiares,
realizando trabalhos subalternizados, velhos e gordos. Essa coleção de livros ainda se
transformou em série infantil para a televisão, exibida na TV Tupi entre 1952 e 1963 e na Rede
Globo entre 1977 e 1986 e, depois, entre 2001 e 2007.
Vemos esse cenário também no filme (1976) e na novela (1996-1997) sobre Chica da Silva,
personagem que “majoritariamente aparece como desregrado, transgressor às normas, marcado
pelas relações de raça/etnia, gênero e sexualidade” (CAETANO; SCHWARTZ, 2019: p. 175).
O mesmo ocorre na novela Da cor do pecado, exibida em 2004, que tem como personagem
principal Preta, primeira protagonista negra, que é retratada como mãe solteira e com o ofício
de feirante. O próprio nome da novela faz associação da etnia negra a algo errado, algo que
deva ser evitado de acordo com os dogmas da igreja católica: o pecado.
O seriado também global Sexo e as negas, de 2014, também pode ser analisado sob esse viés,
já que narra a história de quatro mulheres negras com trabalhos subalternos, habitantes de uma
região periférica do Rio de Janeiro, enfatizando seus casos amorosos e o esforço em alcançar
seus sonhos, mas o nome da série também deixa claro a sexualização da mulher negra.
Como pano de fundo para compreender melhor os sentidos de cultura e representação na
sociedade de maneira geral, este artigo se baseará nos estudos de Stuart Hall (2016) e de bell
hooks (2019). hooks escreve um livro em que teoriza como as representações sobre os negros

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No Código Criminal de 1830 o capítulo IV, em seus artigos 295 e 296, foi dedicado à criminalização de vadios e
mendigos. Em 1890 o Decreto n. 847 deu continuidade a esse tema e acrescentou a capoeira à vadiagem nos
artigos 399 ao 404 do capítulo XIII. Em 1940 o Decreto-lei n. 3.688, além de manter a vadiagem como crime,
acrescentou embriaguez por consumo de álcool ou qualquer substância que gere o mesmo efeito.
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norte-americanos disseminam racismo, alimentando estereótipos nocivos para o psicológico


das negras e dos negros. Discorre também sobre quão importante é que negros e negras
construam novas representações deles mesmos e alerta sobre o processo de desconstrução do
pensamento colonizado, patriarcal e a respeito da supremacia branca.
Com isso, hooks (2019) servirá de base teórico-metodológica para análise das representações
dos negros por parte dos brancos no videoclipe Eminência parda de Emicida. Moreira (2019),
tanto por tratar dos estereótipos dos negros como da conceituação do racismo recreativo,
também servirá de base teórico-metodológica.

Análise do videoclipe
O videoclipe Eminência parda mostra uma família negra de classe média-alta celebrando em
um restaurante chique o título de graduação precoce de Vitória, de 19 anos, e sua ida ao exterior
para um intercâmbio com emprego garantido. Ao longo do videoclipe a família está feliz e
sorridente, comendo adequadamente e celebrando o amor entre eles, contudo ocorrem
encontros diversos com a forma como os brancos enxergam o lugar dos membros dessa família.
Nos últimos anos, o entendimento da palavra cultura passou por alguns processos de
modificação. Hall (2016) liga cultura a características de um modo vida de um grupo, seja ele
um povo, comunidade ou grupo social, e relaciona a valores compartilhados por esses mesmos
grupos. Assim, “afirmar que dois indivíduos pertencem à mesma cultura equivale dizer que eles
interpretam o mundo de maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e
sentimentos de forma que um compreenda o outro” (HALL, 2016: 20).
Para Rancière (2017), a imagem funciona como uma representação direta de um pensamento
ou de um sentimento. Já Hall (2016: 49) conclui que “a representação é uma prática, um tipo
de ‘trabalho’, que usa objetos materiais e efeitos. O sentido depende não da qualidade material
do signo, mas de sua função simbólica”. Sobre o significado, o sentido, o autor discorre que ele
é construído por meio de conceitos e signos, assim “os atores sociais usam os sistemas
conceituais para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para
comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente, para outros” (HALL, 2016: 49).
De maneira geral, poderíamos pensar que, por sermos todos brasileiros e, assim, pertencentes
a uma mesma cultura, interpretaríamos significados da mesma maneira. Contudo, o racismo
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que estrutura nossa sociedade e os resquícios do pensamento escravocrata e da permanência


das teorias raciais – que a grosso modo categorizavam em hierarquias os indivíduos, deixando
como superiores, em quesitos estéticos, morais e cognitivos, os brancos europeus, e como
inferiorizados, os índios, os mestiços e os negros – fazem com que pessoas negras e não negras
que tenham desconstruído essas ideias pensem diferente das pessoas negras e não negras que
não as desconstruíram.
Isso se dá em função da representação ser uma prática que está atrelada ao poder. Por isso Hall
(2016), enquanto discorre sobre representação, vale-se da conceituação de Focault que diz que
a elaboração de conhecimento transpassa pelo poder e pelo corpo e que isso é válido também
para o campo da representação. O poder está ligado ao discurso, o qual “produz um lugar para
o sujeito (ou seja, leitor ou espectador, que também está ‘sujeito ao’ discurso), onde seus
significados e entendimentos específicos fazem sentido” (HALL, 2016: 100).
Desse modo, apesar de a família negra ser representada de maneira feliz, essa visão só é
realmente possível para os sujeitos que não são racistas, pois os indivíduos racistas “não serão
capazes de captar o sentido até que tenham se identificado com aquelas posições que o discurso
constrói” (HALL, 2016: 100).
No ambiente, a família, únicos clientes negros no restaurante, logo que entra recebe olhares de
repulsa por parte dos outros clientes, todos brancos, homens e mulheres adultos com idades
variadas. No desdobramento do videoclipe, enquanto a família compartilha um jantar feliz,
aparecem recortes no meio dessa realidade, que são representações mentais dos outros do
restaurante sobre a família retratada.
A primeira imagem vem do pensamento de um casal que os olha com nojo e os imagina
morando na rua, debaixo de alguma ponte, malvestidos, comendo restos de comida com as
mãos e usando drogas. Esse pensamento é a representação de alguns estereótipos que se tem de
pessoas negras no Brasil.
A priori, os estereótipos servem como uma simplificação de características que sejam
“facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas [...] a estereotipagem reduz,
essencializa, naturaliza e fixa a ‘diferença’ [...] divide o normal e aceitável do anormal e
inaceitável” (HALL, 2016: 191). Assim, para o casal mencionado, o estereótipo que eles têm
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de pessoas negras é uma redução da percepção social dos negros e, por isso, eles julgam ser
inaceitável e anormal a presença de negros naquele restaurante chique, próximo deles.
Moreira (2019) compreende que o estereótipo generaliza e vai além dessa simplificação de
como alguns indivíduos possam perceber outros. Para o autor, os estereótipos “possuem uma
dimensão claramente política, pois são meios de legitimação de arranjos sociais excludentes”
(p. 59). Nesse caso, legitimaria a não presença de pessoas negras nesse tipo de estabelecimento,
que em geral é frequentado majoritariamente por pessoas brancas. O mesmo acontece na
próxima cena, com a criminalização do homem negro.
Uma mulher sozinha à mesa chama alguém do restaurante para reclamar sobre a presença da
família no local, enquanto isso, em sua na mente, vê o pai dessa família entrando no restaurante
com uma arma na mão para assaltar o local e insinuando-se sexualmente para ela por meio de
sua arma, falando em seu ouvido.
Essa representação é construída com base no encarceramento em massa de homens negros, que
começa com o aumento da repressão à vadiagem após 13 de maio de 1888:

A repressão à vadiagem foi um recurso frequentemente utilizado pelos


poderosos para expulsar das localidades indivíduos considerados
“insubordinados” ou que não se submetiam à autoridade senhorial. Essa era
também uma tentativa de controlar e limitar a liberdade dos egressos da
escravidão de escolher onde e quando trabalhar, e de circular em busca de
alternativas de sobrevivência. (FRAGA, 2018: 356)

Moreira (2019) faz um estudo de estereótipo e estigma. Ele diz que o estigma acaba sendo uma
característica que faz com que um grupo ou uma pessoa perca escrupulosamente vantagens, e
no geral é esse o resultado dos estereótipos dos negros. Segundo ele, “estigmas são responsáveis
pela construção de identidades sociais culturalmente desprezadas porque designam pessoas
supostamente diferentes ou inferiores” (MOREIRA, 2019: 62).
A manutenção dos estereótipos dos negros na mente de pessoas brancas os convence de que
“os arranjos sociais existentes correspondem a formas naturais de organização social”
(MOREIRA, 2019: 60). Com isso, faz sentido para eles que indivíduos negros não tenham as
mesmas oportunidades nem os mesmos acessos econômico-socioculturais. Esse cenário é
agravado pela criação e disseminação dos estigmas, uma vez que literalmente limitam os
acessos a oportunidades sociais, instigando, assim, atos discriminatórios que levam à exclusão
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social e acabam por confirmar o pensamento que moveu a criação deles. Além disso, os
estigmas fazem com que os grupos subjugados percebam a si próprios da mesma maneira,
dificultando que possam tomar atitudes a respeito disso.
Fechando essa cena, após reclamar em vão, a mulher deixa o recinto. Enquanto isso, outra
mulher ameaça deixar o recinto ao mesmo tempo que seu companheiro a faz se sentar à mesa.
Na sequência, aparece um idoso encarando Vitória e um homem de meia-idade que a olha
fixamente, provocante, medindo-a de cima a baixo. Na mente deles, Vitória é hipersexualizada
e atende a seus desejos sexuais.
No período escravocrata brasileiro, existiam alguns escravizados que eram considerados de
cunho doméstico e que, por isso, ficavam dentro da casa-grande desempenhando funções no
local, dentre eles a figura da mucama:

Escrava doméstica, negra ou parda, escolhida, quase sempre pela senhora,


para serviços domésticos, especialmente nas casas-grandes do Nordeste.
Acompanhava a cadeirinha na qual a senhora saía a passeio e podia ser ama-
de-leite, cozinheira, copeira, confidente das filhas do senhor, alcoviteira ou
objeto sexual do seu dono ou de outros membros da família. Transformou-se
em símbolo erótico para uma certa tendência literária. (MOURA, 2013: 282)

A escravizada negra, na função de mucama, se transformava em objeto sexual e, com isso,


sofria abusos sexuais e era estuprada. Na condição de escravizada de ganho, os senhores de
escravos exploravam as mulheres negras para que elas se tornassem prostitutas, mesmo quando
tinham pouca idade, como foi o caso de Honorata, aos 12 anos. Havia também a possibilidade
de que os homens, além de as forçarem sexualmente, obrigarem mulheres negras a serem suas
concubinas. Em contrapartida, além de sofrerem sexualmente na mão dos senhores de escravo,
elas sofriam retaliações físicas diversas por parte do ciúme e da inveja das senhoras das casas-
grandes (SCHUMAHER, BRAZIL, 2013; MOURA, 2013).
Dessa forma, constrói-se o estereótipo hipersexualizado das mulheres negras na sociedade
brasileira, deixando o lastro na mente de homens brancos de que eles podem possuir e abusar
sexualmente delas sem compromisso legal ou mesmo amoroso. Isso é mostrado no videoclipe
por meio do homem de meia-idade e do homem idoso. hooks (2019) enfatiza que, mesmo na
contemporaneidade, a mulher negra ainda é representada por essa imagem e que também não
existe um esforço para a desconstrução desse imaginário: “representações de corpos de
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mulheres negras na cultura popular contemporânea raramente criticam ou subvertem imagens


da sexualidade da mulher negra que eram aparato cultural do racista do século XIX e que ainda
moldam as percepções de hoje” (hooks, 2019: 130).
Mais tarde, no videoclipe, uma senhora de idade balança a cabeça pela presença da família no
restaurante. A senhora imagina a mãe e o pai fazendo a limpeza do lugar após o fechamento, e
em sua mente o pai demonstra falta de “modos”, algo bem próximo do animalesco. Nesse caso,
a exclusão social aparece “amenizada” visto que, na mente da senhora, pessoas negras até
podem transitar no mesmo lugar que pessoas brancas, porém na condição subalterna, como
empregados da limpeza, e transitando quando não há clientes. Somado a essa ideia, desponta a
imagem do homem negro como algo selvagem, próximo do comportamento de animais,
denotando, assim, falta de capacidade cognitiva aos homens negros, que foi um dos conceitos
atrelados aos negros por meio das teorias raciais (SCHWARCZ, 2017; ORTIZ, 2011).
A limpeza, desempenhada muitas vezes por mulheres negras, ficou como resquício da
escravidão. Laudelina de Campos Melo, que lutou a vida inteira para que as empregadas
domésticas tivessem direitos trabalhistas, em entrevista para a pesquisadora Elisabete
Aparecida Pinto (1993, v. 2: 39), discorre a esse respeito: “Era uma vida assim... Uma vida toda
de semiescravidão e ganhando apenas cento e cinquenta cruzeiros por mês, que não chegava a
nenhum salário, pois em 1961 o salário [era de] novecentos cruzeiros, não chegava a um salário.
Não chegava a nada mesmo”.
Retomando a sequência do clipe, surge um casal ultrajado pela presença da família negra. Eles
cochicham a respeito da presença da família no recinto, dando risadas debochadas e imaginando
os filhos como escravizados com o corpo todo acorrentado a um pau de madeira, inclusive o
pescoço. Nesse momento, a esposa os observa com olhar de desdém e superioridade. Fica
evidenciado que, apesar de burocraticamente a escravização do negro ter terminado no Brasil
há 132 anos, ainda é recente e que as ideias propagadas pelas teorias raciais continuam em voga
na sociedade brasileira.
Após 13 de maio de 1888, políticas públicas do governo foram criadas para importar mão de
obra branca europeia para substituição ao trabalho escravizado. Sobre isso, Costa (2010) relata
que era o Estado que financiava integralmente as passagens dos imigrantes e arcava com metade
dos riscos envolvidos na inserção desses trabalhadores no país. Desde os últimos anos do
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período escravocrata, o Brasil já recebia volume de trabalhadores europeus, que foi escalonado
após a abolição.

Entre 1875 e 1886, entraram na província de São Paulo quatro vezes mais
imigrantes do que nos quarenta anos anteriores. Foi, no entanto, nos últimos
anos anteriores à abolição que a imigração italiana realmente ganhou impulso.
Em 1886 e 1887 mais de 100 mil imigrantes, em sua maioria italianos e
portugueses, chegaram à província de São Paulo. Entre 1888 e 1900, São
Paulo receberia 800 mil imigrantes – número superior à população escrava em
todo o país no ano de 1887. (Costa, 2010: 71)

Além da política pública de inserção de brancos no país, Costa (2010) relata que, após a
abolição, a situação do negro na sociedade brasileira seria ainda piorada.

Após a abolição as autoridades pareciam mais preocupadas em aumentar a


força policial e em exercer o controle sobre as camadas subalternas da
população. Com esse objetivo multiplicaram-se leis estaduais e regulamentos
municipais. Renovaram-se antigas restrições às festividades características da
população negra, como batuques cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se
as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores
abandonados e mendigos. Posturas municipais reiteraram medidas visando a
cercear os vadios e os desocupados, proibindo que vagassem pelas ruas da
cidade sem que tivessem uma ocupação e impedindo-os de procurar guarida
na casa de parentes e amigos. [...] Nos anos que se seguiram à abolição, os
sonhos de liberdade dos libertos converteram-se muitas vezes em pesadelo em
virtude das condições adversas que tiveram que enfrentar. Eles não tardaram
em reconhecer que a luta não chegara ao fim. Caberia a eles próprios se
organizarem para alcançar seus objetivos. A emancipação fora apenas o
primeiro passo para liberdade. Muitos após o fim da escravidão, o eco de sua
frustração ainda se podia ouvir. (COSTA, 2010: 138)

Próximo ao final do videoclipe, a mulher que ameaçou sair do restaurante, mas não o fez,
observa a família com tristeza e raiva e enxerga a todos mortos no chão do restaurante, envoltos
de uma grande poça de sangue, ao mesmo tempo que o marido nota a cena com raiva. Na
sequência, aparece um garçom pisando e quase escorregando na poça de sangue da família – o
detalhe da cena é que ele é negro e olha para o sangue e, depois, com tristeza para a família. A
última cena do videoclipe é o enquadramento de seu rosto, focando em seu olhar assustado e
perturbado.
Quando Moreira (2019) e hooks (2019) dissertam a respeito da interiorização dos conceitos,
seja do racismo, seja dos estigmas por parte dos negros, eles podem ser observados na reação
do garçom, que não é de raiva pelo sistema injusto mas que age de maneira desrespeitosa ao
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pisar no sangue da família negra e por achar algo normatizado pessoas negras morrerem
brutalmente.

Conclusão
Apesar de a letra da música versar sobre a eminência parda e mostrar como personagens centrais
os integrantes de uma família negra bem-sucedida aos olhos do sistema capitalista, feliz,
estruturada, comemorando uma conquista da filha mais nova, esta não é a visão que pessoas
brancas têm sobre as pessoas negras. Além disso, fica em evidência também que a família
retratada é uma exceção à regra, uma vez que eles são os únicos negros no local.
Mesmo denotando que pessoas negras consigam ser exceção à regra, isso não quer dizer que
serão socialmente aceitas em ambientes que antes não ocupavam socialmente. Obviamente,
como o racismo é crime e é um crime irrevogável quando comprovado – o que é difícil pelo
racismo institucional e estrutural –, as pessoas não negras muitas vezes até têm o bom senso de
se calarem, entretanto, não é possível controlar suas mentes e suas reações não convidativas
para que pessoas negras se sintam efetivamente bem frequentando esses lugares.
Felizmente, a família do videoclipe não percebeu ou ao menos não se incomodou com os
olhares e o staff do restaurante não os convidou a se retirarem, mas novamente seria um crime
se assim o fizessem. Porém, além de, por via de regra, ou melhor, pelo racismo estrutural, ser
complicado a eminência negra/parda social e economicamente, uma vez que acontece, existem
os obstáculos sociais e culturais.
Moreira (2019) justifica esses obstáculos pela existência do racismo recreativo, que acontece
por meio do humor racista para manutenção dos privilégios socioculturais brancos, ou seja, para
a manutenção da branquitude. A justificativa das piadas fica fundamentada na reprodução de
estigmas e estereótipos que desqualificam os negros e, dessa forma, exercem uma violência
simbólica aos negros.
A reprodução dos estereótipos e estigmas por meio de piadas existe como forma de defesa da
branquitude que se sente ameaçada subjetivamente pelo avanço social de pessoas negras, ou
seja, as pessoas brancas não querem ter de competir por estima e valorização social. Com isso,
o racismo recreativo opera para garantir aos brancos respeitabilidade por meio da propagação
da superioridade branca. No entanto, ele não ocorre diretamente, mas sim indiretamente por
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meio da desqualificação moral, cognitiva, cultural e estética dos negros através de piadas e
injúrias raciais. Ações essas que são possíveis em virtude da estrutura social racista brasileira.
Desse modo, para os racistas que estão à frente das instituições de justiça, na maioria das vezes,
essas injúrias raciais acabam deslegitimadas.
O racismo recreativo, além de infligir negativamente no psicológico de pessoas negras, tenta
“impedir a mobilização política por meio da raça” (MOREIRA, 2019: 149) em função de
esconder ou tentar esconder o racismo com seu caráter humorístico. Assim, muitas pessoas
brancas, que, inclusive, se dizem não ser racistas, acusam pessoas negras de “mimimi” quando
dizem que uma situação (pessoa, programa de TV etc.) foi racista e que isso é errado.
Muito provavelmente é mais difícil para pessoas brancas considerarem o racismo recreativo
como racismo efetivamente, pela “satisfação psicológica que elas obtêm ao reproduzir piadas
racistas” (MOREIRA, 2019: 154) e também porque “a hostilidade presente em expressões
humorísticas encobre uma forma de antipatia dirigida principalmente a pessoas negras, o que
está relacionado à pressuposição de que elas não são capazes de atuar de forma competente na
esfera pública” (MOREIRA, 2019: 155).
hooks (2019) disserta sobre a representação negra norte-americana no início da década de 1990,
quase trinta anos antes de Moreira, contudo discorre que muitas vezes pessoas negras assumem
os estereótipos para que possam se sentir aceitas em sociedade. E isso é um fato, já que as
pessoas negras que assumem os papéis sociais esperados por elas acabam sendo aceitas, uma
vez que ocupam os lugares mentais que pessoas brancas que ainda não desconstruíram suas
mentes estipularam ser adequados para convívio em sociedade.
O racismo, assim como o patriarcado e o colonialismo, é um sistema de poder que opera há
muitos séculos em sociedade e que, por isso, é difícil de desconstruir, mas, se houver esforço
individual ou mesmo por parte dos governos e em especial dos veículos de comunicação, pode
sim ser descontruído.
O racismo perpassa mecanismos diversos, afetando as pessoas negras psicológica, cognitiva,
moral, social, cultural e economicamente. Ele faz com que pessoas brancas não considerem a
raça branca como uma raça e se sintam superiores e assim propaguem a supremacia branca por
todos os meios possíveis para garantir sua prevalência no poder, no controle. Contudo, é
necessário entender que pessoas brancas precisam começar a abrir mão de seus privilégios para
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que assim o racismo seja amenizado. Obviamente, nem toda pessoa branca é conscientemente
racista, e algumas já estão desconstruindo suas mentes e até podem tentar afetar sua rede de
contato, mas é necessário que isso seja ampliado, que pessoas brancas aceitem ter pessoas
negras como chefes e colegas diretos de trabalho em suas atividades, que valorizem a cultura,
história, religiões e estéticas negras socialmente.
hooks (2019) alerta para que negros construam novas imagens de si próprios e que assim
possam se libertar dessas correntes do colonialismo, da supremacia branca e do patriarcado.
Aqui no Brasil, mesmo trinta anos depois do lançamento de seu livro, temos uma grande jornada
rumo a essa libertação. O fato de as redes sociais darem voz para todos (BOSCO, 2017) e
estarem cada vez mais em evidência no Brasil, em especial nesse momento da covid-19, está
propiciando reflexões por parte de brancos e negros. Nos últimos anos está sendo construído
pelas novas gerações negras um orgulho de ser negro e assim de sua negritude.
Nos últimos anos também, seja por motivo financeiro, seja pela conscientização, se observa,
nas novelas globais a presença de cada vez mais personagens negros que não são
subalternizados e também a reflexão sobre os efeitos do racismo na sociedade, por exemplo,
Amor de Mãe (2020), O outro lado do paraíso (2019), Malhação – Viva a Diferença (2017-
18). Da mesma forma, com o aumento da presença de pessoas negras como destaque nas
propagandas, contudo, o caminho da construção de uma nova imagem do negro no Brasil será
longo.
Em 2019, a Netflix lançou o seriado Irmandade em que o negro ainda é visto como
criminalizado e mesmo os personagens negros que não eram acabam se tornando, além de
mostrar o homem negro como violento. O mesmo ocorre no seriado Homens?, disponível na
Amazon Prime Video, em que o personagem negro tem sua alcunha no diminutivo enquanto o
branco não. Além disso, ele é mais associado que os outros a sua potência sexual, chegando,
inclusive, a ser objeto sexual e é o único dos amigos sem vínculo afetivo com ninguém.
Entretanto, a terceira temporada, lançada em 2020, mostra um rumo um pouco diferente para a
história.
Notamos que estamos rumando para a construção de novas representações do negro em
sociedade, por meio de discussões e reflexões de pessoas na academia, na mídia e de pessoas
comuns, mas, como mencionei anteriormente, sabemos que será um longo caminho.
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Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BOSCO, Francisco. A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo público brasileiro.
São Paulo: Todavia, 2017.

BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:


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