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A biogovernamentalidade da educação e a constituição de

subjetividades docilizadas e normatizadas


ROGÉRIO LUÍS DA ROCHA SEIXAS*

Resumo
O objetivo deste texto é realizar uma análise crítica da relação entre educação e
o poder, segundo a perspectiva de Michel Foucault a partir do que
denominamos como sendo a prática de uma Biogovernamentalidade
Neoliberal, que na condição de uma arte de governar e através da gestão
biogovernamental escolar, constitui sujeitos dóceis politicamente, úteis para
exploração econômica de suas potências, mais individualistas e facilmente
governados, como no caso do homo oeconomicus. Esta situação é totalmente
oposta ao ideal educacional de formar indivíduos autônomos e críticos, prontos 20
para o exercício de uma cidadania política ativa.
Palavras-chave: Biopolítica; Disciplina; Governo; Poder.
Abstract
The aim of this text is to realize a critical analysis of the relation between
education and the power exercise, according to Michel Foucault`s reflections
starting with the notion of Neoliberal Biogovernamentality, while a govern art
and through the biogovernamental scholastic management, constitute
politically pliant subjects, useful to the exploration of their economical
potencies, more individualists and easily governed, likes the homo
oeconomicus exemplars. This situation is totally opposed to the education
ideals of to form autonomous and critical subjects, prepared to exercise an
active political citizenship.
Key words: Biopolitics; Discipline; Government, Power.

*
ROGÉRIO LUÍS DA ROCHA SEIXAS é Doutor em Filosofia pela UFRJ e Professor de
Ética e Filosofia da UBM(RJ).
Introdução a questão da educação envolve a prática
Embora a assim denominada caixa de de políticas, relacionada com algum tipo
ferramentas foucaultina, não tenha sido de racionalidade que as legitima. Uma
originalmente utilizada para tratar da característica essencial da política da
Educação, mesmo se configurando sem educação em nossa atualidade é a sua
dúvida como um tema problematizado predisposição incansável para tentar
por Foucault, a partir de outros e em ajustar os limites e horizontes dos
relação com outras questões, é projetos nacionais de educação. Em
incontestável sua aplicabilidade pelos países da dimensão do Brasil, torna-se
uma dificuldade convergir uma política 21
filósofos e pensadores da educação.
Todavia, não se pode deixar de ressaltar educacional nacional com as diferenças
que problematizar a Educação regionais. Não podemos esquecer que a
normalmente leva, sob a perspectiva produção de “políticas públicas”, onde
foucaultiana a uma eventual está inclusa a educacional, ocorre em
transversalidade com outros campos uma atmosfera globalizada, tanto
como a Filosofia, a Política, a Ética e a cultural quanto economicamente.
História. Esta propriedade de Temos um ambiente de complexidade
transversalidade e a percepção de uma política, econômica e social, aonde o
atitude filosófica, enquanto o exercício assim propalado “neoliberalismo”
do diagnóstico da nossa atualidade, isto tornou-se hegemônico, mas não por este
é, traçar uma ontologia do momento motivo inquestionável. Quando se
presente, o diferenciando do que foi no aborda uma análise da política neste
passado. Isto nos leva a formulação das contexto, esta assume uma dimensão
seguintes questões: o que nós somos político-social, levando em conta a
atualmente? A partir deste exercício relação e o papel de todos os agentes
surgem questões importantes como: o envolvidos no exercício de uma política
que estamos fazendo de nós? Com esta educacional. Nossa proposta não é
percepção de diagnóstico dos problemas original, mas que necessita sempre ser
da atualidade, podemos formular a tratada como essencial. Devemos
seguinte questão: O que vem a ser interpretar o que aqui se denomina de
política educacional? Este binômio que política educacional, como a expressão
une termos tão diferentes parece de um tipo de racionalidade política que
inadequado em sua utilização. Contudo,
elabora políticas públicas como essência construção de subjetividades dos
da máquina de Estado moderno. discentes que são apresentados como os
principais alvos de políticas
A racionalidade de governar se educacionais, com o objetivo de
caracteriza como uma “arte de governar melhorar suas condições de autônomos
as vidas” que se estrutura em aparatos e críticos para exercício de suas
burocráticos e de infraestrutura, cidadanias no meio social. Constatamos
constituído por diferentes especialistas ao contrário, subjetividades
que se apresentam como: conhecedores, normatizadas e docilizadas, essenciais
executores e administradores em como do ponto de vista econômico, enquanto
produzir uma política de governar ou de capital humano a ser investido e
gerir o que se governa. Há uma conexão explorado.
entre racionalidade política, produção
de uma política pública e a arte de
administrar esta política para governar
Escola e disciplinarização dos corpos
os outros, formando condutas,
sujeitando os indivíduos e não os Destaque-se que mais propriamente, o
reprimindo, para que possam ser úteis diagnóstico foucaultiano se direciona de
para sistemas de mercado. Por oferecer modo mais intenso com relação à
um horizonte interessante para análise Escola, enquanto instituição
crítica aos estudos de política caracterizada pela disciplinarização da
educacional, busquei apoio em noções conduta dos corpos. Trata-se de um
trabalhadas por Michel Foucault como exercício de poder que apresenta como
Disciplinarização, Biopolítica, objetivo os corpos em seus detalhes e na
Governamentalidade e outras, eficácia de seus movimentos. Em Vigiar 22
permitindo abrir um importante espaço e Punir, o autor analisa como a
crítico à política educacional e sua pedagogia educacional ocidental se
aplicação para tornar a razão política inscreve na reorganização do poder
operacional e concreta. As noções de moderno. Sublinha-se desta forma, o
Biopolítica e Governamentalidade são exercício de disciplinarização da
essenciais, pelo motivo de se educação, no espaço delimitado da
concentrarem em um ponto político Escola, assemelhando-se às prisões,
essencial: como governar a vida da concedendo assim ao tema do corpo ou
população de indivíduos, de forma dos corpos disciplinados uma vital
eficiente, segundo a racionalidade de importância. A Escola como estrutura
uma arte de governar no seio do voltada para educar, surge como
Mercado Econômico, marcado pelo instituição própria de disciplinarização
Neoliberalismo? Leia-se aqui que se dos corpos. Como indica o pensador é a
trata de uma Biogovernamentalidade partir principalmente dos séculos XV e
como intervenção e legitimação de um XVI, que o Ocidente volta sua
grupo de práticas, técnicas e saberes, preocupação para o processo educativo.
implantando e gerenciando certos Qual objetivo principal? A formação
modos de subjetividade, segundo esta das crianças, segundo um modelo de
perspectiva política e econômica educação burguesa que se populariza.
neoliberal. Exatamente esta construção Interessante como este processo de
de subjetividades que estão longe do disciplinarização, inscrito na prática
ideal iluminista educacional de pedagógica, exercida principalmente em
formação de autonomia, que focaremos locais fisicamente organizados para
a discussão em nosso texto. A disciplinar o tempo e o espaço que
denominamos de Escolas ou Liceus, sujeitos individualizados e
assemelhando-se assim como destacado identificados, de acordo com uma
anteriormente, à lógica disciplinar das subjetividade que literalmente os
prisões, é diagnosticado pelo pensador tornam assujeitados às identidades que
como um exercício de poder sobre a lhes são constituídas. Os efeitos das
formação das personalidades dos práticas das técnicas disciplinares levam
indivíduos, que surge não apenas em à sujeição, ao tornarem o indivíduo, um
“correlação ao nascimento de uma sujeito preso a uma identidade atribuída
ideologia, mas também a um regime do como própria à sua constituição. Sendo
tipo liberal” (FOUCAULT, 2005a, assim, a Escola enquanto ainda descrita
p.119). Pode-se afirmar deste modo que como o agente principal para formação
a disciplinarização inserida na educação de indivíduos prontos para o exercício
nasce exatamente pela necessidade de de cidadania e a partir do processo
tornar os corpos dos indivíduos, não educativo, possam adquirir maior
formas a serem controladas e capacidade de se tornarem mais
reprimidas, mas ao contrário, enquanto autônomos, se de algum modo não são
percebidos como corpos – máquinas, reprimidos, passam a ser condicionados
seriam preparados e moldados para se ou talvez sujeitados a constituírem-se
tornarem economicamente úteis. essencialmente como corpos de
Ressalte-se: não reprimidos, mas dóceis produção e consumo. Aparentemente a
e úteis. Quando descrevemos nas linhas leitura foucaultiana, desmascara o
iniciais deste parágrafo, as discurso humanista e iluminista
características do poder disciplinar, o referindo-se à educação como forma
termo eficácia quer significar como dos indivíduos ganharem maior
disciplinar os corpos para deles extrair a autonomia. Assevere-se que neste 23
maior força vital possível. Não é contexto pode parecer uma crítica
escravidão, mera domesticação ou negativa, mas quando indica o poder
vassalagem. Esquadrinha-se o seu disciplinar inserido na educação e sua
tempo e espaço. Um tipo de genealogia relação com a visão do liberalismo da
do indivíduo moderno em face de uma época, Foucault realiza algo que até os
complexa malha de práticas que se nossos dias atuais, sofre duras críticas,
efetivam mediante estratégias de poder com relação à leitura do poder: este
ilustra “os métodos que permitem o pode ser positivador. Empregando o
controle minucioso das operações dos termo utilizado por Foucault de uma
corpos, que sofrem o sujeitamento anatomia política do corpo, a
constante de suas forças e lhes impõem disciplinarização aumenta a força
uma relação de docilidade-utilidade” econômica do corpo e, ao mesmo
(FOUCAULT, 2005a, p.119). tempo, reduz sua força política. Como
Compreender como tornaram-se afirma Foucault: “Ela fabrica assim
sujeitos a partir de um complexo e corpos submissos e exercitados. Corpos
intricado processo de objetivação que se dóceis” (FOUCAULT, 2005a, p.119). A
desenvolve no seio de redes de poderes sutileza das estratégias deste poder
que os enquadram, dividem, passa desde a vigilância até o controle
1
classificam. As disciplinas produzem do espaço e do tempo dos corpos. Algo
comum até hoje em nossa estrutura de
Escola. Educar se evidencia como
1
Das prisões, as práticas da disciplina se
instauram nos quartéis, hospitais, fábricas e determinam a arquitetura do encarceramento e
escolas, locais onde existem os muros que da vigilância.
estratégia de disciplinarização, não com partir da formação dos indivíduos em
o intuito de reprimir ou dominar, mas uma sala de aula quanto de uma rede de
extrair de corpos politicamente dóceis, o produção ou mesmo nas regras as que
maior potencial possível de produção são submetidas os presos quanto ao seu
econômica dos corpos individuais. Não tempo e espaço. Em todos estes casos
existe aqui uma crítica ao educar para o temos os indivíduos que devem
mercado de trabalho ou uma exaltação aprender a cumprir a norma. Caso não
de exploração por parte de uns em consigam se enquadrar nesta normação,
detrimento de outros. Foucault também são individualizados e
demonstra que a Escola surge a partir de castigados. Afinal, são sempre
uma lógica de exercício de poder sobre qualificados e medidos. Os
a conduta dos corpos, não para reprimi- instrumentos de avaliação na estrutura
los, mas para aumentar sua escolar, sempre seguiram muito bem
potencialização produtiva. Precisa ficar esta norma. Recompensa e castigo são
bem claro que a “disciplina aumenta as características importantes em qualquer
forças do corpo em termos econômicos norma de avaliação. No caso específico
de utilidade e as diminui em termos da Escola, os mais incapazes são
políticos de obediência” (FOUCAULT, reprovados. Considerados inaptos para
2005a, p.119-120). Entende-se que o aprendizado. Necessitam de punição,
nesta “anatomia política”, técnicas de para se tornarem passíveis de serem
assujeitamento são aplicadas para um esquadrinhados. Os mais aptos são
aproveitamento econômico dos corpos, recompensados pelos seus esforços e
inibindo ao mesmo tempo algum tipo de qualificados como aptos ou qualificados
“resistência” a este assujeitamento. como educados pelo conhecimento. De
Produzem-se subjetividades qualquer modo, tenta-se qualificar 24
normalizadas a partir de técnicas de cientificamente os nossos alunos. Por
poder disciplinar. Segundo Candiotto, este motivo a necessidade de expansão
Foucault aparentemente faz uma de saberes técnicos acerca de índices,
associação das técnicas disciplinares notas, atitudes e comportamentos. É
com as práticas cristãs de normalização estabelecido um conhecimento positivo
do comportamento e docilização da sobre os discentes. Desenvolveu-se com
alma (observáveis nos seminários e o poder disciplinar e no caso mais
exatamente também nas escolas) específico, no papel da disciplinarização
compondo com a anatomo-política educacional aplicada na escola, uma
institucional de cunho secular, “o engenharia de condutas comum ao
canteiro histórico moderno da sociedade corpo social, mas que se concentra em
disciplinar” (CANDIOTTO, 2012, uma ortopedia da individualidade.
p.17).
Gera-se ao mesmo tempo e de modo até
A biopolitica e educação da população
paradoxal, um tipo de uniformidade que
nivela todos os indivíduos e ao mesmo Em a Vontade de Saber, Foucault passa
tempo a constituição de a analisar, no último capítulo, o que
individualidades que devem aprender a denominará por biopoder, que deve ser
cumprir a norma. Esta, ao nivelar as entendido como um poder que se aplica
pessoas, também às individualiza, à vida dos indivíduos, isto é, aos corpos,
porque há a cobrança de um esforço naquilo que eles têm em comum: a vida,
pessoal, assimilando-as ao sistema. o pertencimento a uma espécie. Há um
Esta uniformidade se reflete tanto a deslocamento da noção de poder sobre a
vida exercida pela lei do soberano que uma série de intervenções e controles
antes dispunha da vida dos seus súditos, reguladores: uma biopolítica da
podendo tirar-lhes a vida quando se população” (FOUCAULT, 2005b,
sentia ameaçado ou suas leis p.131). Então, a biopolítica, pode ser
desobedecidas. Passa-se a exercer não entendida como uma tecnologia de
mais um direito de morte, mas sim o de exercício de poder sobre o corpo-
gerir a vida e, para garanti-la, se a deixa população, com o objetivo de
morrer. Como explica Foucault: “Agora racionalizar a melhor gestão das suas
é sobre a vida e ao longo de todo o seu necessidades vitais – que se
desenrolar que o poder estabelece seus transformam segundo a
pontos de fixação; a morte é o limite, o problematização referente à gestão da
momento que lhe escapa; ele se torna o vida coletiva, alvos de ação de uma
ponto mais secreto da existência” prática de governo. Exerce-se um poder
(FOUCAULT, 2005b, p.130). sobre a vida, exemplificado nestas duas
Conforma-se uma biopolítica porque os tecnologias de poder, visando
novos objetos de saber, que criam “a racionalizar sua gestão – uma anátomo-
serviço” do novo poder, se destinam ao política do corpo individual e um
controle da própria espécie; e acarreta conjunto de intervenções e controles
na emergência de novo agente político reguladores, expressando-se como uma
identificado como população2. Um biopolítica da população. Se com a
conceito inédito que se constrói para dar disciplina, estabelece-se uma
conta de uma dimensão coletiva de normalização mais individual, com o
seres viventes; que até então não biopoder, instaura-se uma prática
representava qualquer importância normalizadora de modo totalizante
política no campo dos saberes. E, para sobre a vida da população. Obviamente 25
compreender e conhecer melhor esse se desenvolve uma pedagogia voltada
corpo é preciso não apenas descrevê-lo para gestão desta população da melhor
e quantificá-lo – por exemplo: em forma possível também no ambiente
termos de nascimento e de mortes, de escolar. A prática educacional se adapta
fecundidade, de morbidade, de ao que Foucault em O Nascimento da
longevidade, de migração, de Biopolitica identifica como sendo o
criminalidade, etc. – mas também jogar surgimento de um ethos neoliberal que
com tais descrições e quantidades; opera em praticamente todos os
combinando-as, comparando-as e, aspectos da vida individual e total. As
sempre que possível, prevendo seu práticas comuns à Escola
futuro por meio do passado. Esta disciplinarizada, não desapareceram,
situação original desemboca na mas passaram por transformações e
produção de múltiplos e recentes ainda se fazem presentes na estrutura de
saberes, como a Estatística, a Escola atual que passa a tomar o corpo
Demografia e a Medicina Sanitária. discente e também docente, como uma
Mais especificamente, tais saberes e forma de capital humano passível de
processos são “assumidos mediante toda intervenções operacionalizadas a partir
das novas táticas do que podemos
2
identificar como o governamento3
A população representa a necessidade de se
pensar nao apenas técnicas de individualização
3
como nas praticas disciplinares, mas tambem Termo utilizado e sugerido por Alfredo Veiga-
totalizantes para gerir este conjunto de Neto, inspirado do termo derivado do francês
individuos e lhes destinar assim, uma economia (gouvernement) para diferenciar o ato-poder
específica de poderes. enquanto condução de condutas da noção
biopolítico de gestão segundo uma Interessante como o autor observa que
perspectiva neoliberal, embasada no esta educação natural deveria seguir
autoempreendedorismo comum ao uma regra: “essa educação deve
mercado econômico. A educação obedecer a certo número de regras que
escolarizada deve ser organizada precisamente, devem garantir a
visando exatamente o objetivo de sobrevivência das crianças, de um lado,
produção do “capital humano” dotado e sua educação e desenvolvimento
de um belo corpo para que dele sejam normalizado, do outro” (FOUCAULT,
exploradas as suas potencialidades 2011, p.222). Normalização que se
vitais para produção e consumo, configura como propriedade essencial
desenvolvendo uma gestão própria para do exercício do biopoder e constituição
governar estes corpos como uma da biopolítica. Ainda neste curso,
população. Produzindo sujeitos que Foucault ressalta que ao final do século
possam ser investidos de habilidades XVIII, vai ocorrer um fato novo.
informacionais e cognitivas para o Através da educação da corporeidade
empreendorismo do Mercado e ao das crianças por parte dos pais. Da
mesmo tempo, que se tornem facilmente educação da vida dos filhos por parte da
normalizados e governados, para educação cuidada pelos pais, pede-se
melhor geri-los. Partindo deste ponto, aos pais que “não apenas eduquem as
Foucault vai se questionar se de fato é crianças para que elas possam ser úteis
possível “repor o Estado moderno numa ao Estado, mas pede-se que cedam
tecnologia geral de poder, que teria efetivamente seus filhos ao Estado, que
possibilitado suas mutações, seu confiem a este se não a educação de
desenvolvimento, seu funcionamento” base, pelo menos a instrução, pelo
(FOUCAULT, 2005b, p.162). Esta menos a formação técnica, a um ensino 26
conformação precisa e só pode ser que será direta ou indiretamente
compreendida levando-se em conta sua controlado pelo Estado” (FOUCAULT,
governamentalização4. Em seu curso Os 2011, p.223). Tem-se a constituição de
Anormais, Foucault destaca uma noção uma educação estatal, visando à
de “governamento da educação dos formação de corpos úteis para o lucro e
corpos das crianças”, principalmente a produção capitalista.
quanto à questão da sexualidade, a
partir de uma alteração importante no
educar natural das crianças, que era Biogovernamentalidade neoliberal e a
exercido pelos próprios pais, que são gestão do corpo escolar
“educadores naturais dos filhos”
(FOUCAULT, 2011, p.222). Faz-se necessário esclarecer que embora
um tipo de configuração mais inédita de
Estado não possa ser ignorado, o seu
comum de governo, enquanto instituição mito como uma força onipotente e
administrativa, social e política. Aplicaremos onipresente não é mais aceito. Não por
esta expressão em várias passagens de nosso
tarbalho.
acaso, desfazer a figura do grande
4
A governamentalidade moderna ou a monstro capaz de controlar tudo e
governamentalização da sociedade coloca de todos, foi um grande esforço
modo inédito a vida da população como empreendido pelo autor e por esta
problema político. Uma gestão biopolitica razão, este «mito» deve ser deixado de
global da vida dos individuos. Esta gestao
implica um conjunto de tecnologias
lado. O que é importante? Os
governamentais que dizem respeito tambem ao mecanismos das táticas e estratégias de
governo da educação . tecnologias de poder difusas para
governar os indivíduos em diferentes prática do governo. O biopoder está
domínios, identificando-se o Estado ligado ao capitalismo: neste caso, trata-
como uma parte desta mecânica e não o se de compreender como o aumento e o
seu todo. Como observa Michel confisco das riquezas supõem o
Senellart, esta “entrada” do Estado na desenvolvimento de poderes que
análise dos micropoderes por Foucault capturam as forças vitais para fazer com
responde a uma objeção que lhe é muito que participem do processo de criação
frequentemente direcionada. O Estado, de riquezas. Dito de outro modo se trata
tanto atualmente, quanto, sem dúvida, de uma nova racionalidade política, qual
ao longo de sua história, jamais teve seja, o Estado Biogovernamentalizado5,
esta unidade, esta individualidade, esta cujo poder se exerce de forma sutil,
funcionalidade rigorosa, e, eu até diria, diluída por todas as relações sociais, a
esta importância; ao final das contas, o partir do investimento na vida como
“Estado talvez não seja senão uma alvo de práticas políticas de gestão. O
realidade composta, uma abstração que movimenta a razão governamental é
mitificada, cuja importância é bastante essa diluição do poder, o que não
reduzido do que se crê” (FOUCAULT, significa governar menos. Pelo
M. 2008, p. 519). Precisa ficar claro que contrário, a Biogovernamentalidade
a análise do que se denominará como a supõe o máximo governo pela mínima
governamentalidade não ofusca a aplicação de poder, mas de forma
compreensão do exercício de poder racionalizada e até autolimitada. A
múltiplo e relacional, não se reduzindo gestão biopolítica se inscreve na história
às instituições ou a uma racionalidade do liberalismo político. Como afirma
política como abrangente. Ao trabalhar Foucault: “Para a sociedade capitalista,
com a concepção de é o biopolítico que importava. Isto é, a 27
governamentalidade, se contornam as condição biológica, o somático, o
leituras weberianas e marxistas, que corporal. Assim, o corpo transforma-se
interpretam o Estado como o promotor em uma realidade biopolítica; a
da reprodução legítima do capitalismo medicina é uma estratégia biopolítica”
ou como detentor legítimo dos meios de (FOUCAULT, 2001, p.210).
violência. Também se recusa o temor Interessante como Lazzarato destaca
liberal de uma crescente e intensa que a partir da percepção de uma noção
estatização social, assim como também de “capital humano” no governamento
se recusa a oposição bastante percebida, biopolítico, para agir sobre este capital é
pela tradição liberal, entre sociedade necessário “mobilizar uma
civil e Estado. O que deve continuar multiplicidade de dispositivos, solicitar,
valendo como ponto principal de incitar, investir a ‘vida’ (LAZZARATO,
indagação, são as racionalidades 2008, p.50). A prática educacional
específicas intrínsecas às práticas torna-se um dispositivo essencial para o
concretas nas relações de poder. O processo de Biogovernamentalização
primado das práticas sobre as neoliberal do Estado Moderno que
instituições permanece muito
importante, porém a análise crítica
5
sobre o poder moderno do Estado Trabalhamos esta noção como uma referência
direta sobre a conexão de uma biopolítica sobre
permite transpor e encontrar o a vida dos corpos, e como se pode governá-los
micropolítico com o macropolítico, segundo critérios desta biopolítica, inserída na
dispensando atenção principalmente às racionalidade neoliberal. Apontamos assim,
tecnologias específicas e especiais para uma forma de governamentalidade que
denominamos como biogovernamentalidade.
assume a condução das condutas através A Escola: formação de sujeitos
de tecnologias de individualização autônomos e críticos?
(disciplinarização) e de totalização
(biopolitica) para governamento dos Ao mesmo tempo em que se privilegia a
sujeitos. Pois, como destaca Foucault: formação moral dos discentes na escola,
“nunca se governa um Estado, nunca se encapsulada na aprendizagem de regras
governa um território, nunca se governa de convivência, nota-se que a palavra
uma estrutura política. Quem é "aprendizagem" não é contemplada. A
governado são sempre pessoas, são escola não é definida como um lugar
homens, são indivíduos ou para se aprender e ensinar. Um lugar de
coletividades” (FOUCAULT, 2001, p. aprender a comportar-se (regras de
211). A Biogovernamentalidade convivência, socialização). Contudo, o
estabelece uma forma de normatização discurso dominante sempre ressalta a
que se incluiu nas técnicas do biopoder necessidade de se incentivar a função da
para exercer esquadrinhamentos e escola de produzir sujeitos autônomos e
intervenções, buscando garantir a críticos. Foucaultianamente a escola
governamentalidade sobre os indivíduos moderna não pode mais ser entendida
isoladamente e o estabelecimento de um como um meio para desenvolver a
processo de biogovernamentalização liberdade, racionalidade e igualdade
estatal através de um conjunto de humanas, embora o discurso político
instituições que se utilizam de técnicas educacional sempre destaque o
de governamento sob uma totalidade. universal. A concepção idealista da
Passam a gerir a vida do corpo social ou escola como formadora de indivíduos
da população com o objetivo de garantir conscientes, além de educadora de
as relações de produção, para a mentes iluminadas intelectualmente e 28
utilização econômica dos corpos; a moralmente perde seu sentido, partindo-
força de trabalho. Ora, o discurso que se de uma perspectiva foucaultiana. A
envolve as práticas de poder sobre o crítica para o momento da escola deve
corpo discente passa pela necessidade estar voltada para a imposição de novas
de preparar os indivíduos para o práticas de políticas de educação, e
mercado de trabalho, para serem desvendar quais as relações estão sendo
cidadãos e para serem úteis a sociedade. estabelecidas entre a escola e os novos
Deste modo, o poder que atua sobre o dispositivos na formação de
corpo discente de uma escola visa subjetividades. Aparentemente os
formar indivíduos produtivos. Uma discursos técnicos e pedagógicos
Biogovernamentalidade na gestão de inspirados em concepções idealistas e
corpos produtivos, assujeitados6 e iluministas, ressaltam a formação de
dóceis. cidadãos autônomos e críticos. Mas, na
realidade produzem sujeitos
massificados para serem gerenciados
num estado governamentalizado. Veiga-
Neto observa que a sujeição de corpos e
mentes, o disciplinamento, a
desigualdade, entre outros aspectos,
6
O termo derivado do francês compõem as condições de possibilidade
“assujetissement”, usado por Foucault, do funcionamento da escola moderna e
apresenta o sentido de condição dos indivíduos
se encontrarem sujeitos a alguém ou a algo,
da formação de novas subjetividades
denotando o neologismo em português (VEIGA-NETO, 2003, p.55).
“assujeitamento”. Acrescento ainda, a estruturação
maquinal presente no modo de ser da suas realidades na sociedade e se
escola atual, administrada por uma assujeitem de algum modo. Os
razão de estado também transformada discursos pedagógicos de sujeitos
em uma máquina, obedecendo a padrões autônomos em sua capacidade de
econômicos e técnicos para operar. A escolher e agir, atuando como agentes
escola torna-se alvo de projetos e críticos de seu momento limitam-se aos
investimentos para gerenciar o modo de discursos de retórica pedagógica. Por
auxiliar no trabalho de “ensinar do sua vez, o aparato do estado, com seu
docente” e na melhoria da corpo de experts, como uma máquina,
“aprendizagem” do discente. Trabalha- não finda a formulação de políticas para
se com uma racionalidade relativa à a educação, visando melhorar a
produção e lucro. O Estado apresenta aprendizagem dos alunos. A
em sua razão de governar a preocupação passa sempre pela
responsabilidade de novas necessidades necessidade de examinar, medir e
e maiores competências. Podemos então matematizar o aproveitamento ou não
nos questionar: que tipos de sujeitos dos alunos. Tem-se a impressão de um
estão sendo produzidos ou em outras tipo de “agenciamento da deseducação”
palavras, que tipos de sujeitos à e a produção de sujeitos dóceis e úteis
escolarização moderna, também para serem governados com mais
influenciada pela razão facilidade. Sem dúvida que existe uma
biogovernamental, inspirada pela preocupação em “educar melhor
corrente econômica neoliberal, quer profissionalmente” os indivíduos. Os
realmente produzir? Se nos remetemos discursos por parte do Estado e do
a escolas de ensino público, mercado concordam diretamente neste
principalmente, tem-se a sensação de sentido de educação profissional ou 29
estarmos diante de enormes fábricas de técnica. Demonstra-se o modo de
deseducação, onde se visa ensinar o disciplinamento mais sutil: qualificar
“básico” para os discentes. Este básico sujeitos produtivos e que possam gerar
se limita a permitir que se adaptem as lucro.

Neste sentido o processo pedagógico mais do que como uma personalidade


escolar atua na construção de novas jurídica e política autônoma. Sendo
identidades dos sujeitos, não assim, significa que o indivíduo vai “se
exclusivamente como “homens- tornar mais governamentalizado
máquina”, adestrados para obedecer, (biogovernamentalizado), podendo-se
produzir e consumir. Este novo tipo de ter mais controle sobre ele na medida,
sujeito que passa a ser compreendido só na medida, em que se constitui como
como o homo oeconomicus – isto é, homo oeconomicus.” (FOUCAULT,
como agente econômico que responde 2010, p. 317) O homo oeconomicus,
aos estímulos do mercado de trocas assujeita-se como o investidor de si
mesmo – obedece somente ao seu educação, voltadas para o ideal do ethos
interesse e cujo interesse do que identificamos como uma
espontaneamente irá convergir com o biogovernamentalidade neoliberal.
interesse dos outros. Interessante como Objetivo? Desvendar quais são os tipos
apresenta uma dupla condição de ser: de relações se estabelecem entre a
enquanto, por um lado, é o sujeito escola e os novos dispositivos na
egoísta, importando-se apenas com o formação de subjetividades, a partir do
seu interesse, o perseguindo como uma exercício de estratégias por parte desta
vontade infimamente subjetiva; por biogovenamentalidade. Pode-se
outro lado, cada um é dependente de um identificar que aparentemente os
todo que é incontrolável e intotalizante discursos técnicos e pedagógicos
– do mesmo modo, o interesse de um inspirados em concepções idealistas e
indivíduo vai se relacionar a toda uma iluministas, ressaltam a formação de
série de efeitos que vai fazer tudo o que cidadãos autônomos e críticos. Mas, na
lhe é proveitoso e, também, será realidade produzem sujeitos docilizados
proveitoso aos outros. Sendo assim, é o e normatizados, para serem gerenciados
egoísmo e o interesse do homo num Estado biogovernamentalizado
oeconomicus as motivações para a neoliberal. Ressalta-se que não se
produção da riqueza coletiva. Temos privilegia especificamente um tipo de
uma subjetividade que reflete o ideologia partidária em detrimento de
individualismo e a apatia moderna, outra, mas sim um tipo de racionalidade
encontrando-se inserido no mercado de arte de governar, marcada pelo ethos
econômico como um competidor, como neoliberal biogovernamentalizado.
um jogador. Para ele é somente seu
interesse o que importa e, para este Veiga-Neto observa que a sujeição de 30
modelo de organização social, também corpos e mentes, o disciplinamento, a
é somente isto o que importa. No desigualdade, entre outros aspectos,
âmbito da formação educacional, compõem as condições de possibilidade
emprega-se maior valor e importância do funcionamento da escola moderna e
na constituição de subjetividades que da formação de novas subjetividades
possam exercer autonomamente, o (VEIGA-NETO, 2003, p.55).
exercício de competir no mercado de Acrescento ainda, a estruturação
trabalho. Este tipo de formação de maquinal presente no modo de ser da
“cidadania” parece ser de fato, a escola atual, administrada por uma
estratégia principal da razão de estado também transformada
biogovernamentalidade neoliberal. em uma máquina, obedecendo a padrões
econômicos e técnicos para operar. A
escola torna-se alvo de projetos e
investimentos para gerenciar o modo de
Considerações finais
auxiliar no trabalho de “ensinar do
A concepção idealista da escola como docente” e na melhoria da
formadora de indivíduos conscientes, “aprendizagem” do discente. Trabalha-
além de educadora de mentes se com uma racionalidade relativa à
iluminadas intelectualmente e produção e lucro. O Estado apresenta
moralmente perde seu sentido, partindo- em sua razão de governar a
se de uma perspectiva foucaultiana. A responsabilidade de novas necessidades
crítica para o momento da escola deve e maiores competências. Podemos então
estar voltada para a imposição das assim nos questionar: que tipos de sujeitos
denominadas práticas de políticas de estão sendo produzidos ou em outras
palavras, que tipos de sujeitos à se assemelham muito a prática
escolarização moderna, também empresarial, só nos trazendo a dúvida
influenciada pela razão muitas vezes em se saber o que
biogovernamental, inspirada pelo ethos pretendem realmente administrar: uma
neoliberal, quer realmente construir? escolarização que permita a formação
de subjetividades mais autônomas e
Sem dúvida que existe uma capazes de crítica ou sujeitos
preocupação em “educar melhor assujeitados apenas a serem úteis para
profissionalmente” os indivíduos. Os governamentalidade.
discursos por parte do Estado e do
mercado concordam diretamente neste De acordo com a perspectiva
sentido de educação profissional ou foucaultiana, se faz necessário
técnica. Demonstra-se o modo de ultrapassar definitivamente os ideais
disciplinamento mais sutil: qualificar iluministas e retirar a questão da
sujeitos produtivos e que possam gerar educação fora da dicotomia sucesso-
lucro. Claro que não se faz aqui insucesso (VEIGA-NETO, 2003, p.
qualquer tipo de demonização ou 214). O desafio é o de ultrapassar esta
desqualificação da educação técnica. condição, criando formas de resistência
Contudo, a Escola se torna um espaço contra a “biopolítica de
de práticas de governo que produzem governamentalidade”, nos referindo
sujeitos docilizados e nada autônomos, aqui diretamente à prática educacional.
desprovidos de capacidade crítica do A utilização da “caixa de ferramentas
seu momento e apenas assujeitados na foucaultiana” para esta
liberdade de se investirem a si mesmos problematização, só terá sentido se
como investimento e gestores de seu tomar a conotação de viés ético e 31
potencial produtivo, como se identifica político. Pensar e agir segundo uma
no homo oeconomicus. Fica-se com a agonística entre poder e práticas de
sensação de que projetos educacionais liberdade. Talvez possamos empregar
são elaborados pelo governo com o uma ética de permanente resistência que
único intuito de promover os indivíduos como afirma o próprio Foucault:
para o mercado de trabalho, e talvez “permite que possamos determinar que
também para proporcionar a seja perigoso e se tudo é perigoso,
“satisfação” do indivíduo em obter seu sempre há algo a ser feito. Tal posição
diploma. Os docentes por sua vez, não conduz a uma apatia, mas para um
também sofrem com este processo de hiper e pessimista ativismo”
tecnização da arte de governo, inspirado (FOUCAULT, 1984, p.343).
pela lógica da estrutura de mercado, se
constituindo como os sujeitos que
Referências
precisa salvar os “ideais iluministas de
educação” e ao mesmo tempo, preparar CANDIOTTO, C. As religiões e o cristianismo
na investigação de Foucault: elementos de
os alunos para o “mundo do mercado”. contexto. In. FOUCAULT e o cristianismo.
São culpabilizados pelo “fracasso do Candiotto, C. & De Souza, P. (Orgs.). Belo
aproveitamento de aprendizagem dos Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
discentes” e também devem realizar a FOUCAULT, Michel. On the genealogy of
função de “disciplinadores”. Assim ethics: An overview of work in progress. In:
como os discentes estão dentro do Paul Rabinow (ed.) The Foucault Reader. New
espaço escolar que se tornou laboratório York: Pantheon, 1984.
de práticas políticas que a aparte do __________. Dits et Écrits, Vol. II. Paris:
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