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Percurso gerativo de sentido

Apólogo dos dois escudos


• Conhecem o apólogo do escudo de ouro e de prata? Eu lho conto. No
tempo da cavalaria andante, dois cavaleiros armados de ponto em
branco (= com cuidado, com esmero, completamente), tendo vindo de
partes opostas, encontraram-se numa encruzilhada em cujo vértice se
via erecta uma estátua da Vitória, a qual empunhava numa das mãos
uma lança, enquanto a outra segurava um escudo. Como tivessem
estacado, cada um de seu lado, exclamaram ao mesmo tempo: - Que
rico escudo de ouro! - Que rico escudo de prata! - Como de prata? Não
vê que é de ouro'? - Como de ouro? Não vê que é de prata? - O
cavaleiro é cego. - O cavaleiro é que não tem olhos. Palavra puxa
palavra, ei-los que arremetem um contra o outro, em combate singular,
até caírem gravemente feridos. Nisto passa um dervis, que depois de os
pensar com toda a caridade, inquire deles o motivo da contenda. - É
que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de ouro. - É que o cavaleiro
afirma que aquele escudo é de prata. - Pois, meus irmãos, observou o
daroês, ambos tendes razão e nenhum a tendes. Todo esse sangue se
teria poupado, se cada um de vós se tivesse dado ao incômodo de
passar um momento ao lado oposto. De ora em diante nunca mais
entreis em pendência sem haverdes considerado todas as faces da
questão. (In: LAGES, A. - Florilégio reacional. São Paulo, LES, 1957, 2-
tomo, p. 29-30).
“A semântica e a sintaxe do nível fundamental representam a instância
inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais abstratos
da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso.” (FIORIN,
1994. p.20)

NÍVEL PROFUNDO OU
FUNDAMENTAL
Semântica do nível fundamental
• abriga as categorias semânticas que estão na
base da construção de um texto;
– Fundamentam-se pela diferença/oposição:
• /parcialidade/ versus /totalidade/
– Termos contrários mantem relação de
contrariedade, pois estão em relação de
pressuposição recíproca;
– Operação de negação: criação de contraditórios,
que também são contrários entre si:
• /não parcialidade/; /não totalidade/
• Qualificação semântica: /euforia/ versus
/disforia/
– Estão inscritas no texto. Não são dadas pelo leitor.
Sintaxe do nível fundamental
• Operações de negação e afirmação:
– afirmação de a, negação de a, afirmação de b;
– afirmação de b, negação de b, afirmação de a.

• Afirmação da /parcialidade/: cada um dos pontos de


vista dos cavaleiros;
• Negação da /parcialidade/: daroês diz que os dois tem
razão e nenhum tem;
• Afirmação da /totalidade/: daroês mostra as duas faces
do escudo.

NÍVEL NARRATIVO
• Narratividade: transformação situada entre
dois estados sucessivos e diferentes: estado
inicial, transformação e estado final.
– Narrativa mínima 1:
• Estado inicial: não saber dos cavaleiros;
• Estado final: saber adquirido a partir de um ponto de
vista único.
– Narrativa mínima 2:
• Estado inicial: saber não global;
• Estado final: saber global.
Sintaxe do nível narrativo
• enunciados de estado: são os que estabelecem uma
relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um
sujeito e um objeto (no enunciado "Aurélia é rica", há
uma relação de conjunção, indicada pelo verbo ser,
entre um sujeito "Aurélia" e um objeto "riqueza"; em
"Seixas não é rico", há uma relação de disjunção,
revelada pela negação e pelo verbo ser, entre um
sujeito "Seixas" e um objeto "riqueza");
• enunciados de fazer: são os que mostram as
transformações, os que correspondem à passagem de
um enunciado de estado a outro (no enunciado "Seixas
ficou rico", há uma transformação de um estado inicial
"não rico" num estado final "rico").
• Consequência: dois tipos de narrativas
mínimas:
– de privação:
• Estado inicial conjunto e estado final disjunto;
– de liquidação de uma privação:
• Estado inicial disjunto e estado final conjunto.
• Sequência canônica da narrativa:
– Manipulação: “sujeito [manipulador] age sobre outro
[manipulado] para levá-lo a querer e/ou dever fazer
alguma coisa”.
• tentação: proposta de recompensa – “Se você comer, ganha
uma coca cola”;
• Intimidação: ameaças – “Se você não comer, não vai ver
televisão”;
• Sedução: manifestação de juízo positivo sobre competência
do manipulado – “Pus essa comida no seu prato, porque
você é grande e é capaz de comer tudo”;
• Provocação: manifestação de juízo negativo sobre
competência do manipulado – “Pus essa comida no seu
prato, mas eu sei que, como você é pequeno, não consegue
comer o que está aí”;
• Pedido; ordem; etc.
– Competência: “o sujeito que vai realizar a
transformação central da narrativa é dotado de
um saber e/ou poder fazer”
• João Romão (O Cortiço): dinheiro poupado para poder
construir as casinhas.
• Contos de fada: objetos mágicos.
– Performance: “fase em que se dá a transformação
(mudança de um estado a outro) central da
narrativa”
• Passar do estado da disjunção para o da conjunção.
– Encontrar o pote de ouro no fim do arco íris;
– Libertar a princesa do dragão.
– Sanção: constatação de que a performance se
realizou e, por conseguinte, o reconhecimento do
sujeito que operou a transformação.
Eventualmente, nessa fase, distribuem-se prêmios
e castigos.
• Gata Borralheira: a humildade e a resignação são
premiadas e a arrogância e o orgulho, castigados.
• Justine, de Sade: “a cada ação executada segundo os
ditames da moral cristã corresponde um castigo e não
uma recompensa”
• Nem sempre a sequência canônica aparece bem
arranjada:
– Fases podem ficar ocultas e devem ser recuperadas
por meio de relações de pressuposição
• “Os caçadores da arca perdida”: não mostra como o herói
obtêm o saber para informar onde está a arca;
– Muitas narrativas não se realizam completamente
• Tentação de Cristo no deserto: para na manipulação;
– Há narrativas que se detêm preferencialmente numa
fase específica
• Jornal sensacionalista: detem-se na performance: como foi o
crime, quem realizou o crime, quem era a vítima, etc.
• O assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie:
performance ocupa poucas páginas; atenção maior na
sanção: descoberta do criminoso;
– Não há apenas uma sequência canônica, mas um
conjunto delas.
Semântica do nível narrativo
• Ocupa-se dos valores inscritos nos objetos.
– Objetos modais: são o querer, o dever, o saber e o
poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição
é necessária para realizar a performance principal;
• Espada mágica dada por uma fada ao príncipe: objeto
modal /poder-vencer/;
– Objetos de valor: com os quais se entra em
conjunção ou disjunção na performance principal.
• Ovos de ouro da galinha: objeto de valor /riqueza/.

• Objeto concreto pode ser: objeto modal, objeto valor
ou concretizar objetos valor distintos:
– objeto valor: Tio Patinhas entesoura dinheiro:
manifestação do objeto-valor /riqueza/, pois busca
conjunção na performance (objetivo último do sujeito);
– objeto modal: X guarda dinheiro para comprar casa:
concretização do /poder comprar/, pois dinheiro é
manifestação de objeto modal (necessário parase obter
outro objeto;
– Concretização de objetos valor distintos: Casa: pode ser
concretização do valor /abrigo/; /conforto/; status, etc.
“No nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo são revestidas
de termos que lhe dão concretude.” (p.29)
“O nível discursivo produz as variações de conteúdos narrativos
invariantes.” (p.29)

NÍVEL DISCURSIVO
• X quer entrar em conjunção com o amor de Y, mas
há obstáculos que impedem a consumação desse
amor
Eu te gosto, você me gosta Depois fui pirata mouro,
desde tempos imemoriais. flagelo da Tripolitânia.
Eu era grego, você troiana, Toquei fogo na fragata
troiana, mas não Helena. onde você se escondia
Saí do cavalo de pau da fúria de meu bergantim.
para matar seu irmão. Mas quando ia te pegar
Matei, brigamos, morremos. e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.
Virei soldado romano, Depois (tempos mais amenos)
perseguidor de cristãos. fui cortesão de Versailles,
Na porta da catacumba espirituoso e devasso.
encontrei-te novamente. Você cismou de ser freira...
Mas quando vi você nua Pulei muro de convento
caída na areia do circo mas complicações políticas
e o leão que vinha vindo, nos levaram à guilhotina.
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
• X realiza parcialmente o amor com Y, mas não ficam
juntos
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.

• X entra em conjunção com Y

Mas depois de mil peripécias,


eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

• (ANDRADE, Carlos Drummond de. Balada do amor atrás


das idades. Reunião. Rio de Janeiro, José Olympio,
1969, p. 22.)
Nível da manifestação
Manifestação = plano de conteúdo
+
plano de expressão

• Texto: manifestação do conteúdo (discurso) por


uma expressão.
• Discurso: unidade do plano de conteúdo.
• Mesmo conteúdo pode manifestar-se por
expressões diferentes: verbal, pictórico, etc.
– Filme “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos
Os retirantes – Cândido Portinari
Capítulo I – Mudança

NA PLANÍCIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham


caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam
repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam
uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú
de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao
cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os
juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou
acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que
ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.
O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria
responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da
criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do
rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado.
Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória
estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto.
Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se
encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve
pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória, pôs o filho
no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá
Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio grande.
Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra,
corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se
retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde
haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida.
Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia
as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se
equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a
procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinhá Vitória,
queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos
antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um
grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude
ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo
e inútil. Não podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam
todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia
arremedando a cachorra.
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e
os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras
muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu
desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que
não viam sombra. Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O
menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a
uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas
pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e
também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os
moradores tinham fugido.
Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou
forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a
tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de
turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde
avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado,
ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família. Mas chegando aos juazeiros,
encontrou os meninos adormecidos e não quis acordá-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das
cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo
para a fogueira.
Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou
um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo.
Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o
braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol. Enxugaram as
lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem
se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente. Entrava
dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas
pelas vermelhidões do poente.
Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas
desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço
cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem
ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá.
Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho.
Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava
proveito do beijo.
Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o
céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança,
esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.
Sinhá Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um
espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a
parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos
animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no
chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas,
três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros - e uma
alegria doida enchia o coração de Fabiano. Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma
coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a
barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?
Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia
chover.
Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a
bolandeira. Não sabia porquê, mas era. Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua estava
cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral,
ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os
meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitória vestiria saias de ramagens
vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.
Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um
juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não
derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma
palpitação nova. Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos e folhas secas.
Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida
acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas
cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos
depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.
Eram todos felizes. Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá
Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória
provocaria a inveja das outras caboclas.
A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que
enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.
A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o
vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a
espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água o baú de
folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima
das brasas.
Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam a
cara triste de Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na
terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam
pelos arredores. A catinga ficaria verde.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como
não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com
paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.

In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Mimeo. p.3-7.


• https://www.youtube.com/watch?v=m5fsDcF
OdwQ Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
Santos – 1963

• https://www.youtube.com/watch?v=Mthmmd
JgQXY Morte e Vida Severina (TV Globo,
1981), poema de João Cabral de Melo Neto
(1954/55)
UM EXEMPLO
• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=EFAAFD76DF10F55B0
536EFAAFD76DF10F55B0536&&FORM=VRDGAR

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=B6B83F00E8D87295E
82CB6B83F00E8D87295E82C&rvsmid=882B2623616E0060EC1D882B2623616E0060EC1D&FORM=VDQVAP

• https://www.bing.com/videos/search?q=pedra+leticia+historia+de+uma+gata&&view=detail&mid=7D5020F4E043
63225ED17D5020F4E04363225ED1&&FORM=VRDGAR

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=C5385594200B910E7
66BC5385594200B910E766B&&FORM=VRDGAR

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=882B2623616E0060E
C1D882B2623616E0060EC1D&&FORM=VRDGAR

• https://www.youtube.com/watch?v=u07Td4VPWgA

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=B4CF9B8AA26BE7F71
7EDB4CF9B8AA26BE7F717ED&&FORM=VRDGAR

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=08A19C13706C0EDC8
2C408A19C13706C0EDC82C4&&FORM=VRDGAR

• https://www.bing.com/videos/search?q=hist%c3%b3ria+de+uma+gata&&view=detail&mid=CC74E107A79D22A86
AEBCC74E107A79D22A86AEB&&FORM=VRDGAR
História de uma gata
(Luiz Henriquez, Sérgio Bardotti e Chico
Buarque)

Me alimentaram Senhor, senhora, senhorio.


me acariciaram Felino, não reconhecerás.
me aliciaram De manhã eu voltei pra casa
me acostumaram. fui barrada na portaria,
O meu mundo era o apartamento. sem filé e sem almofada
Detefon, almofada e trato por causa da cantoria.
todo dia filé-mignon Mas agora o meu dia-a-dia
ou mesmo um bom filé... de gato é no meio da gataria
me diziam, todo momento: pela rua virando lata
Fique em casa, não tome vento. eu sou mais eu, mais gata
Mas é duro ficar na sua numa louca serenata
quando à luz da lua que de noite sai cantando assim:
tantos gatos pela rua Nós, gatos, já nascemos pobres
toda a noite vão cantando assim: porém, já nascemos livres.
Nós, gatos, já nascemos pobres Senhor, senhora ou senhorio.
porém, já nascemos livres. Felino, não reconhecerás.
www.youtube.com.br www.youtube.com.br
Nível fundamental
• AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO DE CONTEÚDOS
• liberdade vs. dominação (exploração, opressão)

• “me aliciaram/me acostumaram”;


• “Fique em casa, não tome vento”;
• “Mas é duro ficar na sua”
• “já nascemos livres”;
• “Senhor, senhora, senhorio”;
• etc.
• liberdade eufórica (positiva);
• dominação disfórica (negativa).

• dominação------não-dominação------liberdade
(disforia)---------(não-disforia)---------(euforia)

“Fique em casa, “mas é duro “eu sou mais eu,


não tome vento.” ficar na sua” mais gata”

• Conclusão: conteúdo mínimo fundamental é a negação da


dominação ou da exploração, sentida como negativa, e a
afirmação da liberdade eufórica.
Nível narrativo
• TRANSFORMAÇÃO, PELA AÇÃO DO SUJEITO,
DOS ESTADOS DOS ELEMENTOS
• Sujeito (gata) manipulada por outro sujeito
(dono).
• Tentação: boa casa, proteção, carinho, comida
para que “fique em casa”, “não se misture
com os gatos de rua”, “seja fiel”.
• Sujeito gata quer cumprir e cumpre o acordo.
• Reconhecimento de boa gata e
recompensado
• “filé-mignon, detefon e bons tratos”
• MAS...
• Gatos de ruas aparecem com seus valores de
liberdade
• Tentação: quebra de contrato anterior:
conseguem fazer a gata ir para a rua.
• Esforço da gata em esconder o rompimento e
volta para casa:
• procura não parecer uma “gata de rua”, tenta
parecer fiel, embora tivesse praticado a
infidelidade.
• Gata desmascarada pelo dono, perdendo o
reconhecimento de bom gato e as recompensas.
• Gata assume os valores de liberdade.

• Conclusão: A narrativa sofreu desdobramento


polêmico. Opõem-se valores e a gata sincretiza os
papéis de sujeito de fazeres contrários.
Nível discursivo
• RELAÇÕES QUE SE INSTAURAM ENTRE A
INSTÂNCIA DA ENUNCIAÇÃO, RESPONSÁVEL
PELA PRODUÇÃO E PELA COMUNICAÇÃO DO
DISCURSO, E O TEXTO-ENUNCIADO

• Narrador é projetado em um “eu”:


• “Me alimentaram”; “eu voltei pra casa”; “eu
voltei”; “fui barrada”; “eu sou mais eu”.
• Sujeito da primeira manipulação é
indeterminado, criando efeito de
generalização:
• “me alimentaram “me diziam”, “fui barrada”

• Ilusão de realidade: delega-se a palavra aos


manipuladores (dono e gatos de rua).
• Temas e figuras: oposições desenvolvem-se sob a forma de
temas e, em muitos textos, concretizam-se por meio de
figuras.

• “A figura é o termo que remete a algo do mundo natural:


árvore, vagalume, sol, correr, brincar, vermelho, quente,
etc. Assim, a figura é todo conteúdo de qualquer língua
natural ou de qualquer sistema de representação que tem
um correspondente perceptível no mundo natural.” (p.65)

• “Tema é um investimento semântico, de natureza


puramente conceptual, que não remete ao mundo natural.
Temas são categorias que organizam, categorizam,
ordenam os elementos do mundo natural: elegância,
vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso, etc.” (p.65)
• Leituras temáticas:
• tema da domesticidade ou da dominação e
exploração do animal doméstico pelo homem;
• tema da sexualidade da mulher-objeto ou de
exploração da mulher comprada para o
prazer;
• tema da passagem da adolescência à idade
adulta ou da opressão da família sobre a
criança e o jovem (“Fique em casa, não tome
vento”);
• tema socioeconômico da marginalização da
boemia.
Leitura figurativa
traço dominação vs. liberdade

Espacial Fechado Aberto

Espacial Interno Externo

Temporal Dia Noite

Tátil Macio Duro, áspero

Tátil Quente Frio (vento)

Olfativo Cheiroso Malcheiroso (lixo)

Gustativo Gostoso Ruim (azedo)

Auditivo Silencioso Ruidoso

Visual Claro Penumbra (luz da lua)


• Traços podem organizar diferentes figuras nas
diferentes leituras temáticas:
• traço olfativo:
• detefon, na leitura do animal doméstico;
• perfumes e cosméticos, na da mulher-objeto;
• como cuidados e limpeza (talcos, pomadas) na
do adolescente.
AGORA É COM VOCÊS
• https://www.youtube.com/watch?v=4iJBYkId6
Bo&index=1&list=PLaj-
0ciqGRPpdfKj95XM2o5KiQw8gU6Qd

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