Você está na página 1de 15

© 2011 Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE)

Coleção Diá-Logos
Editor: Paulo César Carbonari
Co-Editor: João Alberto W ohlfart

Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE)


M antido pelo Instituto da Sagrada Família

Diretor Geral: José André da Costa


Diretor Pedagógico: Paulo César Carbonari Esta pesqu isa é d edicada
Vice-Diretor Pedagógico: Valdevir Both
Diretor Administrativo: lltomar Siviero
Vice-Diretor Administrativo: Moacir Fiiipin

Edição: Editora IFIBE


Revisão de Texto: luri Andréas Reblin e Kathlen Luana de Oliveira
a m eu p ai
Capa e Projeto Gráfico: Diego Ecker Cícero F razão de Oliveira
Diagramação e Revisão Técnica: Rafael Hoffmann
Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier
qu e enfrentou a vida
Rua Senador Pinheiro, 350 - Rodrigues com coragem, com m alícia e teim osia
99070-220 - Passo Fundo - RS
Fone: (54) 3045-3277
que sonhou na vida
E-mail: editora@ifibe.edu.br | Site: www.ifibe.edu.br/editora
um autêntico brasileiro, vindo do Nordeste,
A publicação deste livro recebeu o apoio do PROEX da CAPES, buscou um m undo m elhor
entidade governamental brasileira de incentivo à pesquisa científica alm ejou ser v ereador
voltada à formação de recursos humanos.

que construiu um a vida


C IP - C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o
com m uito suor, m uito trabalho
p ou co salário, p ou co Direito
048p O liv e ira , K a th le n L u a n a d e
P o r u m a p o lític a d a c o n v iv ê n c ia : te o lo g ia , d ireito s
h u m a n o s, H a n n ah A re n d t / K a th le n L u a n a d e O liv eira . -
P a sso F u n d o : E d ito ra IF IB E , 2 0 1 1 .
que tinha orgulho d a vida
25 6 p . ; 30 cm . - (C o le ç ã o D iá -L o g o s ; 14) d a fam ília, do cabelo e do lar
IS B N : 9 7 8 -8 5 -9 9 1 8 4 -8 0 -6

I. T e o lo g ia . 2. D ire ito s h u m a n o s. 3. A re n d t, H a n n a h . I.
que sofreu na vida
T ítu lo . com tantas injustiças e com solidão
C D U : 2:1

que fe z sofrer nessa vida


com suas ausências e seus silêncios
C ata lo g a ç ã o : B ib lio te c á ria L id ia n e C o rrê a S o u z a - C R B 10/1721

que deixou p a r a outras vidas


2011
Proibida reprodução total ou parcial nos termos da lei. honestidade, sim plicidade
Instituto Superior de Filosofia Berthier - Editora IFIBE e o am or p elas coisas boas e belas d a vida.
Assim, apesar do saber teológico estar entre o racionalismo, objetivo será descrever alguns aspectos dessa relação, em meio
o pragmatismo, o naturalismo e o historicismo, há na própria a transformações e rupturas, visando os direitos humanos e a
teologia algo irredutível, afinal, suas verdades e esperanças não convivência. Por isso, haverá um duplo movimento: do político
se findam com o fim eminente das coisas terrenas. Nesse sentido, para o teológico e, depois, do teológico para o político. Especi­
é desafiador a percepção de Arendt de que foi perdida a capaci­ ficamente, serão descritas algumas percepções políticas acerca
dade de maravilhar-se com o que é dado, consumida pela dú­ da tradição teológica em Hannah Arendt, as quais serão enfa­
vida corrosiva de emitir qualquer juízo sobre a realidade, sobre tizadas, ocupando aqui maior espaço, devido ao objetivo da
as experiências, resultando num permanente medo da ilusão, pesquisa. Tendo em vista o que foi desenvolvido no primeiro
do engano. Por isso, a teologia, não se afirmando como ciência, tópico desse capítulo, serão traçadas algumas percepções teo­
reconhece algo irredutível, não plenamente exaurível, mas nem lógicas acerca da política a partir de Jürgen Moltmann.
por isso vazio de significado. George Bataille, ironicamente, A palavra teologia não surgiu no cristianismo. Poetas da
asseverou que “a única forma de definir o mundo é reduzi-lo Grécia antiga foram chamados de teólogos. Utilizando o mito,
a nossas medidas e então, com um riso, descobrir que ele está as narrativas de Homero e Hesíodo falavam de deuses; era uma
além de nossas medições” (BATAILLE, 1991, p. 99). E, como teologia mítica. Platão e Aristóteles traduziram a teologia míti­
ca para o logos filosófico; era uma teologia filosófica. Além da
na expressão “saber transfigurado pelo amor”, o acento não re­
poética e filosófica, havia a teologia política, pois lidava com os
cai no saber, o riso surge, frente ao mistério, o maravilhar-se. E
deuses da religião estatal. Posteriormente, sob Constantino, os
a fé transparece como a “coragem de amar com base no amor
deuses políticos foram cristianizados, e o Deus cristão se tor­
crido, a liberdade para amar com base na libertadora promessa
nou a cabeça da religião política do Império Romano. Apenas
de amor” (EBELING, 1988, p. 213).
no século II, o discurso cristão se apropriou da palavra teologia.
“Tanto a teologia cristã quanto a filosofia grega tratavam do logos
theou, exceto que o cristianismo tinha a vantagem de conhecer o
1.3. Teologia e política - estabelecendo congruências logos na carne, tornando humana e historicamente concreta sua
compreensão de verdade universal” (BRAATEN, 1995, p. 32).
Teologia e política não poderiam ser vistas de uma ma­
neira plenamente separada. De certa forma, há permanentes
cruzamentos, relações intrínsecas e uma tácita disputa entre 1.3.1.Percepções políticas
o mundo “espiritual” e o âmbito secular, temporal, que enseja acerca da teologia a partir de Hannah Arendt
pensar essas duas tradições em lados opostos. Porém, mesmo
pensadas em oposição, tem-se identificado a política religiosa Arendt também identifica, desde o surgimento da pala­
e a religiosidade da política. Refutadas ou afirmadas, caberia vra teologia em Platão, vínculos muito próximos entre política
compreender a relação teologia-política não com o intuito de e religião e filosofia. Os vínculos arendtianos se concentram
subordinar uma à outra, nem com intenções de criar um hi­ em aspectos que integram a constituição e as rupturas da vida
bridismo, mas de evidenciar pensamentos herdados, neces­ política e as transformações do modo de pensar. Mesmo não
sárias separações, perniciosas conjugações e valiosas coope­ tendo preocupações teológicas, Arendt não ignora a presença
rações. Claro que aqui não se poderá dedicar tal empenho. O da religião (seja o cristianismo, seja o judaísmo) no espaço

46 47
público e reflete o seu processo de “privatização”. O que é mais ram a capacidade de pensar. As consequências, que não se restrin­
visível na obra arendtiana é sua percepção acerca das transfor­ gem ao religioso, afetaram-no profundamente. Com a primazia
mações do mundo; as rupturas, as perdas. E, nessa dimensão, da razão, com a modernidade, Arendt questiona a autenticidade
a teologia está inserida nessas rupturas. da fé religiosa. Para ela, “a crença religiosa moderna distingue-se
Os vínculos com Agostinho, sua leitura de Kierkegaard, da fé pura por ser a crença em saber’ [...] o crente moderno que
suas incursões bíblicas, suas discussões com tantos filósofos não agüenta a tensão entre dúvida e crença perderá de imediato
que pensaram sobre Deus são alicerces sobre os quais Arendt a integridade e a profundidade de sua crença” (ARENDT, 2002,
enxerga criticamente a teologia, sem as usuais animosidades p. 57). Antes de continuar com a questão da fé, é importante en­
e os excessos céticos, porém mantendo-se como pensadora tender outras rupturas e os diálogos que Arendt estabelece com a
política, de modo algum fazendo apologia à teologia. Aqui, teologia. Apesar de suas pretensões serem político-filosóficas, as
numa tentativa de sistematização, para uma delimitação, se­ reflexões arendtianas são extremamente valiosas para a teologia
rão ressaltadas algumas reflexões arendtianas, nas quais se en­ e são pautadas pela preocupação com o mundo.
contram diálogos com a teologia. Diálogos que podem ser co­ A palavra teologia, para Arendt, provém de Platão, para o
locados em dois blocos temáticos: primeiro, a teologia como qual o emprego da palavra teologia era político. As referências ao
parte integrante do conhecimento, “tesouro” armazenado pela Deus de Platão são políticas, não existindo um Deus vivo ou o
humanidade; segundo, a teologia e as rupturas da modernida­ deus dos filósofos: Deus era “[...] ‘a medida das medidas’, isto é,
de, as quais incidem não apenas sobre a religião, mas também o padrão pelo qual se podem fundar cidades e decretar regras de
sobre a política. Assim, serão descritas, de forma panorâmica, comportamento para a multidão. Além disso, teologia nos ensina
o pensamento de Arendt conforme os quadros a seguir: como impor de modo absoluto tais padrões, mesmo nos casos em
que a justiça humana pareça estar embaraçada [...]” (ARENDT,
A) Transform ações dos modos de pensamento 2007b, p. 175, grifo nosso). Assim, para Platão, a teologia era parte
Teologia como parte integrante do B) Definição de teologia em paralelo com Platão constituinte da ciência política: “[...] especificamente aquela parte
conhecimento armazenado pela
humanidade 1 C ) A contribuição de Jesus à política: bondade e perdão que ensinava aos poucos como governar sobre muitos” (AREN­
— D ) A influência d e A gostinho
DT, 2007b, p. 175). Diferente de Platão, Arendt define que a com­
preensão de teologia tornou-se “[...] a interpretação da palavra de
Deus cujo sacrossanto é a Bíblia” (ARENDT, 2007b, p. 175).
E) Relação e rupturas: autoridade - tradição - religião
Jesus, abordado por Arendt, logicamente, não é o Cristo
F ) R eligião e ideologia
Teologia e rupturas da modernidade
das confissões cristãs. Traçando paralelos com Francisco de
G ) Secularidade e a perda da doutrina do infem o
Assis e Sócrates, Jesus também recebe destaque em Arendt.
H ) A perda da fé e a dúvida cartesiana
Logo, os ensinamentos de Jesus não dizem respeito apenas ao
contexto religioso, mas neles são encontradas autênticas expe­
As transformações dos modos de pensamento incidem
riências políticas (ARENDT, 2007a, p. 250). Em Jesus, é encon­
nos questionamentos modernos acerca da metafísica. Conforme trado “[...] seu amor pela ação, por fazer o bem - de reali­
o tópico anterior, as mortes “modernas” de Deus, da metafísica, zar ‘milagres’, e de tornar possíveis novos começos ao perdoar
da filosofia modificaram os modos de pensar, mas não extingui-

48 49
transgressões [...]” (KOHN, 2004, p. 22). Semelhante ao amor pois na atividade de pensar o eu está presente.2 Logo, bondade
de Sócrates ao conhecimento, à sabedoria, a bondade em Jesus em Jesus não é uma questão de comportamento, mas de ação. E a
“[...] não é certamente a docilidade, mas antes uma força trans- ação, diferente do comportamento, tem finalidade em si mesma.
bordante, talvez não de caráter, mas de sua própria natureza” Jesus, para Arendt, foi “o descobridor do perdão na esfe­
(ARENDT, 2004, p. 201). Bondade, nesse sentido, é ação que se ra dos negócios humanos [...]” (ARENDT, 2007a, p. 250, grifo
direciona ao bem do outro, é o “[...] desprendimento de si (sel- nosso). Perdão consiste no oposto de vingança, cuja caracte­
flessness), a tentativa deliberada de extinção do eu para o bem rística é de re-ação a uma ofensa, a transgressão. “Perdão é a
de Deus ou para o bem de meu próximo é na verdade a pró­ única reação que não re-age apenas, mas age de novo e ines­
pria quintessência de toda a ética cristã que mereça esse nome” peradamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou
(ARENDT, 2004, p. 182). Arendt identifica a radicalização em e cujas conseqüências liberta tanto o que perdoa quanto o que
Jesus de todos os preceitos hebraicos: Ama a teu próximo como a é perdoado” (ARENDT, 2007a, p. 253). Jesus insiste no perdão,
ti mesmo atribui ao eu “[...] o padrão fundamental do que devo não apenas como perdão de Deus, mas como perdão entre as
e do que não devo fazer” (ARENDT, 2004, p. 181). Contra essa pessoas (Mt 18.35; Mc 11. 25). “Deus perdoa nossas dívidas as­
sim como perdoamos os nossos devedores”. O perdão de Jesus
regra, Jesus advoga pelo amor aos inimigos (Mt 5.44; Pv 25.21).
causa escândalo (Lc 7.49), pois ele tem o poder de perdoar até
O critério de conduta não é uma relação pessoal - interna, entre
os pecadores. Também Jesus apela ao perdão, pois as pesso­
mim e mim. “O objetivo não é sofrer o mal, mas algo completa­ as não sabem o que fazem (Lc 23.34). Para Arendt, nenhuma
mente diferente, a saber, fazer o bem aos outros, e o único crité­ ação pode ser desfeita. Por isso, o perdão é fundamental na
rio é realmente o outro” (ARENDT, 2004, p. 182). política. Além de romper com o automatismo da ação-reação
A bondade de Jesus baseia-se em sua convicção de que ne­ (vingança) e possibilitar um novo começo, o perdão se dirige à
nhum ser humano pode ser bom. Como na pergunta de Jesus: pessoa e acontece entre as pessoas. Frente à despersonalização
“Por que me chamas de bom? Ninguém é bom, exceto um único, moderna da vida pública e social, a importância do perdão não
que é nosso Pai que está no céu” (Mt 19. 17), Arendt conclui poderia ser esquecida. Assim como na ação e no discurso, no
que, “[...] assim como nenhum processo de pensamento é se­ perdão “[...] dependemos uns dos outros, aos quais aparecemos
quer concebido sem esse dois-em-um, essa divisão em que o numa forma distinta que nós mesmos somos incapazes de perce­
eu se realiza e se articula, pelo contrário nenhum ato de bonda­ ber. Encerrados em nós mesmos, jamais seríamos capazes de nos
de é possível se, ao praticá-lo, estamos cientes do que fazemos” perdoar [...] pois careceríamos do conhecimento da pessoa em
(ARENDT, 2004, p. 182). Baseando-se em Mt 6.2, Arendt expres­ consideração à qual se pode perdoar” (ARENDT, 2007a, p. 253).
sa que a bondade, em Jesus, é uma ausência de si,1um não ser Para Arendt, se Jesus é visto como fundador do cristia­
nismo, é Paulo o fundador da filosofia cristã. Na Carta aos
visto por si mesmo. Por isso, a ação de bondade é vista como
Romanos, Arendt constata que o ser humano nunca consegue
uma ação solitária, inclusive mais solitária que o pensamento,
agir conforme a lei, “faço aquilo que não deveria”. Mesmo que

1 C o m o d e m o n stro u o prof. Dr. A driano C orreia, caberia perguntar, refletir so ­ 2 “Tão forte é esse elem ento de real solidão em to d a tentativa positiva de praticar o
bre a relação d a “ausência de si” com a ação. N ão seria essa característica - a u ­ bem e não se contentar em evitar o m al que até Kant, que sob outros aspectos foi
sência de si - o que d efiniria a teologia com o apolítica? C om o ser sujeito da tão cuidadoso em elim inar D eus e todos os preceitos religiosos de sua filosofia
ação e ser b ondade? U m a ação solitária seria possível visto que a ação acontece m oral, invoca D eus p ara que preste testem u n h o d a existência d a boa vontade,
en tre as pessoas? inexplorável e não detectável em caso contrário” (ARENDT, 2004, p. 183).

50 51
exista, na introdução da Lei, um pressuposto de vontade, ou da vida na Terra” (ARENDT, 2007a, p. 329).’ Para Arendt, a
seja, depois de todo o “Deverás” existe um “Eu quero”, o que vida como bem supremo decorrente de uma sociedade cristã
“[...] devemos aprender sobre a vontade é um eu quero-mas- sobreviveu à secularização. A vida na Terra era apenas um pri­
-não-posso’” (ARENDT, 2004, p. 184). Arendt coloca que a von­ meiro passo para a imortalidade, logo, ela deveria ser vivida.
tade, aquilo que dá impulsos ao ato, foi, assim, descoberta em sua No entanto, mesmo insistindo na sacrossantidade da vida, o
impotência “[...] na experiência de que mesmo conhecendo e não cristianismo não desenvolveu teorias positivas do trabalho, e,
consentindo com os meus desejos, ainda estou numa posição também, uma vida dedicada à contemplação era melhor que
em que devo dizer: eu não posso” (ARENDT, 2004, p. 184). A dedicar-se à ação.
vontade também foi desenvolvida intensamente no pensamento
agostiniano. Diferente de Paulo, para o qual o corpo desobedecia O único fato de que podemos estar seguros é que a coincidência da
à vontade, para Agostinho, a vontade desobedecia a si mesma. inversão de posições entre a ação e a contemplação com a inversão
As influências agostinianas perpassam o pensamento entre a vida e o mundo veio a ser o ponto de partida para todo o
de Arendt. Mesmo não abordando o pecado e afastando-se de desenvolvimento moderno. Foi só quando perdeu o seu ponto de
referência na vita contemplativa que a vita activa pôde tornar-se
uma análise puramente metafísica, Arendt reflete sobre o amor,
vida ativa no sentido mais amplo do termo; e foi somente porque
sobre a natalidade e sobre o mal, a partir de suas pertinências esta vida ativa se manteve ligada à vida como único ponto de
político-filosóficas. Em traços gerais, convém apenas m en­ referência que a vida em si, o laborioso metabolismo do homem
cionar percepções rizomáticas a partir de Agostinho. Arendt com a natureza, pôde tornar-se ativa e exibir toda a sua fertilidade
compreende o mundo tal com descrito por Agostinho: “[...] (ARENDT, 2007a, p. 333).
não apenas a esta criação de Deus, o céu e a terra, [...] mas
também todos os habitantes do mundo são chamados ‘m un­ A teologia, assim, enfatizava a vida, visando à imortali­
do’ [...]. Todos aqueles que amam o mundo são chamados de dade, um desprezo pelas coisas terrenas. Por isso, para Arendt,
mundo” (ARENDT, 1998, p. 79). Também, para Arendt, a ati­ o “[...] pensamento religioso, é sem dúvida uma terrível iro­
vidade de pensar não poderia ser guiada pelo mal, mas pelo nia que as ‘boas novas’ das Escrituras, ‘A vida eterna’, tives­
amor. “[...] uma vez que o mal destrói o que existe, ela [Arendt] sem por fim resultado não em um aumento da alegria, mas
passou a acreditar que quem se envolve na atividade de pensar antes no medo sobre a terra, que tivessem não tornado mais
é condicionado contra o mal” (KOHN, 2004, p. 25). Claro que fácil, mas sim mais difícil ao ser humano morrer” (ARENDT,
o pensar não resolve o problema da ação, pois “em relação à 2007b, p. 177). Porém, mesmo sendo a morte vista a partir
espontaneidade da ação, a liberdade da vontade é um abismo” do medo, esse será um elemento, entre tantos outros, perdido
(KOHN, 2004, p. 25). pela tradição religiosa na modernidade.
Para Arendt, o cristianismo se consolidou distante da Autoridade, tradição e religião foram perdas decisivas
vida política, mesmo tendo assumido responsabilidades polí­ para a vida política. Essas três áreas, para Arendt, possuem
ticas na era medieval. A teologia cristã enalteceu a vida, mas a interconexões. E, mesmo nos pontos não diretamente rela­
vida individual e a vida contemplativa. Com o cristianismo e o cionados, a crise da autoridade e a crise da tradição incidem
credo da inviolabilidade da vida, foram niveladas “[...] as anti­
gas distinções e expressões da vita activa; tendia a ver o labor, 3 C om preende-se labor (processo biológico, m etabolism o), a fabricação (work ou
o trabalho e a ação como originalmente sujeitos às vicissitudes fabrication que produ z o m u n d o artificial) e a ação (atividade entre as pessoas,
não m ediada).

52 53
diretamente sobre a religião. Descrita em Entre o Passado e Refletindo a partir de Aristóteles e Platão, Arendt delineia
o Futuro, a perda da autoridade, além da vida política, tam ­ as origens da compreensão de autoridade.4 Identifica que, di­
bém atingiu âmbitos pré-políticos como as relações na edu­ ferente da estrutura dos gregos, a República tem um caráter sa­
cação e na família. A perda da autoridade se identifica com a grado na fundação, é um acontecimento único, decisivo. “Não
perda da permanência e da segurança do mundo. “Sua perda os gregos, e sim os romanos estavam realmente enraizados no
é equivalente à perda do fundamento do mundo, que, com solo, e a palavra pátria deriva seu pleno significado da história
efeito, começou desde então a mudar, a se modificar e trans­ romana” (ARENDT, 2007b, p. 162). Religião e política eram
formar com rapidez sempre crescente, [...] todas as coisas, a idênticas, a cidade era a morada dos deuses e, na sua funda­
qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer ção, havia um poder coercitivo religioso. Na Grécia era dife­
coisa” (ARENDT, 2007b, p. 132). De forma sintética, signifi­ rente, pois seus deuses até podiam habitar nas cidades, mas
cou que “[...] as pessoas não querem mais exigir ou confiar a possuíam um lar próprio: o Olimpo. Outra diferença é que
ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, para os gregos “[...] a piedade dependia da presença religio­
pois sempre que a autoridade legítima existiu, ela esteve asso­ sa imediatamente revelada dos deuses”. Para os romanos, “a
ciada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo” religião significava, literalmente, re-ligare: ser ligado ao passa­
(ARENDT, 2007b, p. 240). do, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por
A perda da tradição, que não é repetição do passado, é conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações,
a perda do “[...] fio que nos guiou com segurança através dos de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade”.5O pas­
vastos domínios do passado; esse fio, porém, foi também a ca­ sado era preservado, a tradição era o legado transmitido entre
deia que aguilhou cada sucessiva geração a um aspecto prede­ gerações, no testemunho daqueles que estavam presentes na
terminado do passado” (ARENDT, 2007b, p. 130). De um lado, sagrada fundação.
o passado pode ser visto como novidade inesperada, por outro, A Igreja cristã assumiu essa estrutura política romana,
por não estar mais ancorado, há o risco do esquecimento, “[...] tornando Cristo a pedra angular, a sua sagrada fundação, as­
nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profun­ sumindo para si a compreensão de religião. A tradição, o tes­
didade da existência humana. Pois memória e profundidade temunho dos apóstolos seria passado de geração a geração, ga­
são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada rantindo a coerção inerente à autoridade. Arendt aponta que,
pelo ser humano a não ser pela recordação” (ARENDT, 2007b, apesar do credo cristão, das muitas discussões no Novo Testa-
p. 130). Tradição é como um testamento, onde o mais precioso
bem - memória, valores - é dado aos herdeiros que reconhe­ 4 “Foi nesse contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram original­
cem a importância do testamento e evitam que o bem seja es­ m ente. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, ‘au m en tar’, e aquilo que
a autoridade ou os de posse dela constantem ente aum entam é a fundação. [...] A
quecido, transmitindo-o a gerações futuras. Assim, o mundo autoridade dos vivos era sem pre derivativa, dependendo com o coloca Plínio [...]
nunca começa do zero a cada nova geração, mas cada geração da autoridade dos fundadores que não m ais se contavam entre os vivos. “ [...] a
contribui com suas próprias experiências que são somadas a característica m ais proem inente dos que detêm autoridade é não possuir poder.
C um potestas inpopulo auctoritas in senatu sit, ‘enquanto o p o d er reside no povo,
memórias e deixadas à continuidade dessa memória. Arendt
a autoridade repousa n o Senado”’ (ARENDT, 2007b, p. 163-164).
usa a metáfora de um fio “que liga as gerações entre si, pois 5 “A força coercitiva dessa autoridade está intim am ente ligada à força religiosa co­
todas reconhecem e tomam para si um mesmo legado comum, ercitiva do auspices, que ao contrário d o oráculo grego não sugere o curso obje­
tivo dos eventos futuros, m as revela m eram en te a aprovação o u desaprovação
uma história em comum” (FRANCISCO, 2007, p. 35). divina das decisões feitas pelos hom ens” (ARENDT, 2007b, p. 163; 165).

54 55
mento e dos primeiros escritos possuírem um caráter anti-ins­ Posteriormente, na Idade Média, a esfera privada ascen­
titucional e tendências antipolíticas, houve a vitória do espírito deu, entre outros aspectos, na “tensão medieval entre a treva
romano. Essa herança romana “[...] capacitava a Igreja a ofere­ da vida diária e o grandioso esplendor de tudo o que era sa­
cer aos homens, na situação de membros da Igreja, o sentido grado, com a concomitante elevação do secular para o religio­
de cidadania que nem Roma nem a municipalidade podiam so [...]” (ARENDT, 2007a, p. 43). O período medieval ocasio­
mais proporcionar a eles” (ARENDT, 2007b, p. 168). Assim, nou “[...] a absorção de todas as atividades para a esfera do lar
estabeleceu-se o vínculo entre tradição - autoridade - religião: (onde a importância dessas atividades era apenas privada) e,
consequentemente, a própria existência de uma esfera públi­
Não obstante, como a politização das idéias por Platão transformou
ca” (ARENDT, 2007a, p. 43). O bem comum apenas indicava
a Filosofia ocidental e determinou o conceito filosófico de razão, as­
sim também a politização da Igreja alterou a religião cristã. A base que “[...] os indivíduos privados têm interesses materiais e es­
da Igreja como uma comunidade de crentes e uma instituição pú­ pirituais em comum, e só podem conservar sua privatividade
blica não era mais agora a fé cristã na ressurreição (embora a fé per­ e cuidar de seus negócios quando um deles se encarrega de ze­
manecesse como seu conteúdo) ou a obediência hebraica aos man­ lar por esses interesses comuns” (ARENDT, 2007a, p. 44). Essa
damentos de Deus, mas sim o testemunho da vida, do nascimento,
característica cristã medieval reconhecia a vida pública como
morte e ressurreição de Cristo como um acontecimento histórico
registrado. Como testemunhas desse evento, os apóstolos puderam extensão da vida privada, como partilhar o pão e o vinho.
tornar-se ‘pais fundadores’ da Igreja, dos quais esta deveria derivar Como a trindade romana - autoridade - tradição - re­
sua própria autoridade na medida em que legasse seu testemunho ligião havia se consolidado, se um desses elementos “[...] fos­
através da tradição de geração a geração. Apenas ao acontecer isso, se posto em dúvida ou eliminado, os dois restantes não teriam
somos tentados a afirmá-lo, a fé cristã tornou-se uma ‘religião’, não
mais segurança” (ARENDT, 2007b, p. 171). Por isso, Arendt as­
apenas no sentido pós-cristão como também no sentido antigo;
apenas então, de qualquer forma, poderia um mundo inteiro - e severa que Lutero e Hobbes se equivocaram. Lutero pressupôs
não um mero grupo de crentes, não importa o quão grande pudesse que “[...] seu desafio à autoridade temporal da Igreja e seu apelo
ter sido - tornar-se cristão (ARENDT, 2007b, p. 168). ao livre julgamento individual preservariam intactas a tradição
e a religião” (ARENDT, 2007b, p. 171). Da mesma forma, também
Consolidando-se enquanto instituição pública, a Igreja se evidenciou equivocada a pressuposição de “[...] Hobbes e dos
repetiu a permanência do espírito romano, e a esfera política teóricos políticos do século XVIII [de] pensar que seria possível
perdeu sua autoridade. Na era cristã, prevaleceram os princí­ permanecer com uma tradição íntegra da civilização do Ociden­
pios políticos de Platão que se juntaram com a estrutura da te sem religião e sem autoridade” (ARENDT, 2007b, p. 171). A
sagrada fundação romana. Assim, “a revelação divina podia Reforma ocasionou, então, a ruptura dessa trindade romana.
agora ser interpretada politicamente como se os padrões para Mesmo que não tenha abolido a igreja que se edifica na auto­
a conduta humana e os princípios de comunidade política [...]
ridade das testemunhas do acontecimento fundante do cris­
tivessem sido, por fim, diretam ente revelados” (ARENDT,
tianismo, com a Reforma surgiram “igrejas” no lugar da única
2007b, p. 170). E, citando Voegelin, Arendt afirma que “[...]
Igreja. Logo, ao se questionar a autoridade, a tradição e a re­
era como se a primitiva ‘orientação de Platão para a medida
ligião, as três se comprometem mutuamente. Por fim, Arendt
invisível fosse agora confirmada pela revelação da medida em
entende que houve rupturas da crença na fundação sagrada, e
si (ARENDT, 2007b, p. 170). Assim, foram estabelecidas re­
esta cedeu o lugar à crença no progresso.
gras de conduta, a partir dos padrões gerais e transcendentes.

56 57
Desde então, porém, o colapso de qualquer das três - religião - au­ preensão é refletida na interpretação que soe fazer de certas
toridade - tradição inevitavelmente tem levado ao colapso das ou­ passagens bíblicas como “Daí, pois, a César o que é de César, e
tras duas. Sem a sanção da crença religiosa, nem a autoridade, nem
a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21) ou das exortações de estar
a tradição estão a salvo. Sem o apoio das ferramentas tradicionais
da compreensão e do juízo, a religião e a autoridade estão fadadas no mundo, mas não ser deste mundo (Jo 17). Em síntese, o dis­
a vacilar. E é um equivoco da tendência autoritária no pensamento tanciamento outrora da Igreja em relação ao mundo torna-se
político acreditar que a autoridade possa sobreviver ao declínio da do mundo em relação à Igreja.
religião institucional e à quebra da continuidade da tradição. Todas Com a denúncia de que religião era ideologia, religiões
as três foram condenadas quando, com o início da era moderna, seculares ou ideologias políticas surgiram. Essas ideologias in­
a velha crença no caráter sagrado da fundação num passado lon­
duziram a um retorno da religião à esfera política. Tal “retorno”,
gínquo deu lugar a nova crença no progresso e no futuro com um
progresso infindável cujas ilimitadas possibilidades podiam não para Arendt, é perceptível na Segunda Guerra, onde a “luta en­
apenas ser jamais vinculadas a qualquer fundação passada, mas tre o mundo livre e o mundo totalitário foi uma forte tendência
também interrompidas e frustradas em sua ilimitada potencialida­ a interpretar o conflito em termos religiosos” (ARENDT, 2002,
de por qualquer nova fundação (ARENDT, 2008a, p. 98). p. 55). E, de fato, em conflitos decisivos há uma forte tendên­
cia de se recorrer a justificativas religiosas para apoiar causas
Arendt identifica as transformações da religião na m o­ próprias. Por isso, Arendt chama a atenção para o fato da reli­
dernidade, e, enquanto transformações relativas à religião, elas gião estar presente nos assuntos públicos-políticos, porém, tal
não deixam de incidir sobre toda a organização humana. Além relação é ignorada e, aos olhos das ciências, passa despercebi­
do colapso da autoridade, da tradição, da religião, Arendt re­ da. Organizações assumiram a função ou possuíam traços da
flete sobre o processo de secularização e suas consequências religião, claro, com um conceito restrito de religião, possuindo
para a esfera política. O termo secularização está vinculado a um caráter comum: a negação do Deus transcendental, po­
momentos históricos específicos no âmbito jurídico e politico- dendo transformar-se em ideologias políticas. “O comunismo,
cultural. Arendt afirma que “[...] secularidade significa apenas dizem-nos é uma nova ‘religião secular’ contra a qual o mun­
que credos e instituições religiosas não possuem uma autoridade do livre defende seu próprio ‘sistema religioso’ transcendente”
pública impositiva, e que, inversamente, a vida política não tem (ARENDT, 2002, p. 55). Porém, Arendt indica que a origem
sanção religiosa” (ARENDT, 2002, p. 59). O significado abran­ da ideologia já começou anteriormente com o ateísmo. O ter­
geu a emancipação do mundo da tutela religiosa, uma separação mo religião política é discutido por Arendt, especialmente di­
entre a vida e os preceitos cristãos rumo à modernização e à ra­ ferenciando as intenções do comunismo, do ateísmo.
cionalização; separação que ganha expressão nas palavras de We­
ber: Entzauberung der Welt - “o desencantamento do mundo”. A interpretação de novas ideologias políticas ou seculares seguiu-
A compreensão de liberdade advinda da secularidade é -se, paradoxalmente - mas talvez não por acaso -, à famosa de­
distinta da liberdade religiosa consolidada até então. Na ver­ núncia marxista de que religiões são meras ideologias. Mas a ver­
dade, a distinção entre mundo e Igreja, presente no próprio dadeira origem é ainda mais antiga. Não foi o comunismo, mas o
ateísmo o primeiro ismo a ser condenado ou louvado como nova
cristianismo, expressava a inferioridade do mundo e o distan­
religião. Pois o ateísmo era algo mais do que a pretensão deveras
ciamento político. A liberdade religiosa carregava a tradição estúpida de ser capaz de provar que Deus não existe; foi tomado
de “[...] estar e permanecer fora do domínio da sociedade se­ como expressivo de uma verdadeira rebelião do homem moderno
cular como um todo* (ARENDT, 2002, p. 59-60). Essa com­ contra o próprio Deus (ARENDT, 2002, p. 55).

58 59
Arendt não reduz religião à ideologia, apesar de que ide­ Recentemente entretanto o termo ‘religião política ou secular’ foi
adotado por duas linhas bastante distintas de pensamento e abor­
ologia pode estar presente nas religiões. Trazendo uma distin­
dagem. Há em primeiro lugar uma abordagem histórica, para a
ção do pensamento teológico e do ideológico, Arendt afirma qual religião secular é, em nível bem literal, uma religião que nasce
que “a teologia trata o ser humano como um ser racional que da secularidade espiritual de nosso mundo atual, sendo o comu­
faz perguntas e cuja razão carece de reconciliação, mesmo nismo apenas a versão mais radical de uma ‘heresia imanentista’. E
quando há em torno dele a expectativa de que acredite no que há em segundo lugar a abordagem das ciências sociais, que tratam
está além da razão” (ARENDT, 2002, p. 58). A ideologia, por a ideologia e a religião como uma coisa só, por acreditarem que o
comunismo (ou o nacionalismo ou o imperialismo) cumpre, para
outro lado, a exemplo do comunismo “[...] em sua forma tota­
seus adeptos, a mesma função que nossas congregações religiosas
litária politicamente eficaz - trata o ser humano como se fos­ cumprem em uma sociedade livre (ARENDT, 2002, p. 58).
se uma pedra que cai, dotado de consciência e, portanto, ca­
paz de observar enquanto está caindo, as leis de gravidade de Embora a liberdade proveniente da secularidade se exal­
Newton” (ARENDT, 2002, p. 58). Assim, não seria apropriado tasse contra a religião, não significa que os motivos dessa per­
denominar as ideologias políticas de religiões seculares, pois seguição eram religiosos. Poder-se-ia dizer que, para ser pos­
muitas ideologias surgem sem pertencer a mesma tradição de sível o nascimento de novas ideologias, é necessário destronar
secularidade. Além disso, Arendt questiona se é possível haver a ideologia vigente, a qual, até o processo de secularização,
religiões seculares “[...] no sentido de que o comunismo é uma era a religião. Contudo, ao destronar uma ideologia vigente,
‘religião sem Deus’, então não só vivemos num mundo secular muitas outras ideologias se seguiram. Da própria modernida­
que baniu a religião dos assuntos públicos, mas num mundo de, surgiram sistemas de extermínio, de privação da liberdade,
que chegou a eliminar Deus da religião - algo que, para Marx como o Estado totalitário e o ditatorial. Por isso, a asserção dos
e Engels, ainda era impossível” (ARENDT, 2008b, p. 399). intelectuais e das ciências sociais de que ideologia e religião
Contudo, o termo religião secular é utilizado, e Arendt identi­ eram equivalentes funcionalmente evidenciou-se equivocada,
fica a diferença entre uma utilização de abordagem histórica e pois a ideologia não é algo restrito à religião e não é a única
outra através das ciências sociais:6 característica da função político-social da religião (ARENDT,
2002, p. 58). Porém, combater as ideologias com uma paixão
religiosa não é uma alternativa viável, pois o risco é transfor­
6 A rendt tam bém faz a crítica ao advento das ciências sociais, que, no início, colo­
mar religião de fato em ideologia. Além disso, o que Arendt
cava o p ensam ento com o um a realidade transcendente em si. “[...] a sociologia alerta é que não é apenas a religião que passou a ser definida
argum entava que a existência hum ana transcendia a realidade pelo pensam ento por sua função. A ideologia do mundo totalitário radicaliza a
apenas q uando não p odia m ais se orientar dentro dela (o pensam ento com o fuga
de u m a realidade não mais aceitável para a consciência: o pensam ento com o falsa funcionalização dos seres humanos.
consciência)”. A rendt coloca um paralelo com a teologia negativa: “ [...] se co n ­
siderarm os que, a p a rtir dos registros do m u n d o real, a teologia negativa pôde É inegável que essa funcionalização dessubstancializadora de nossas
inferir apenas a existência de Deus, um a existência que, p o r sua própria natureza,
categorias não é um fenômeno isolado que ocorre em alguma torre
está além dos lim ites da experiência dos seres hum anos. D a m esm a m aneira, a
liberdade h um ana e, com ela, a liberdade de pensam ento com o tal se to rn am um de marfim do pensamento acadêmico. Está intimamente ligada à
fenôm eno m ítico nos lim ites do cam po da com preensão hum ana. Dessa forma, crescente funcionalização de nossa sociedade, ou melhor, ao fato
o p ensam ento h u m an o transcende o próprio m un d o hum ano, e a u m grau ainda de que o ser humano moderno tem se tornado, cada vez mais, uma
m aior do que a sociologia inicialm ente supusera” (ARENDT, 2008b, p. 68).

60 61
simples função da sociedade. O mundo totalitário e suas ideologias Diferente da Antiguidade, quando o cristianismo estava
não refletem o aspecto radical do secularismo ou do ateísmo; alheio às preocupações seculares, na Idade Média, o cristianis­
refletem o aspecto radical da funcionalização dos seres humanos. mo adotou a ideia de Inferno e “[...] a Igreja Cristã foi ficando
Seus métodos de dominação se baseiam no postulado de que os
cada vez mais consciente de suas responsabilidades políticas,
seres humanos podem ser inteiramente condicionados, porque são
apenas funções de forças superiores, históricas ou naturais. O risco ao mesmo tempo que também crescia sua disposição em assu­
é que todos nós podemos estar em vias de nos tornar membros da­ mi-las [...]” (ARENDT, 2002, p. 69). O medo do castigo, mesmo
quilo que Marx chamava, ainda com entusiasmo, de gesellschaftliche até depois da morte, sustentava a autoridade eclesiástica e re­
Menschheit (humanidade socializada) (ARENDT, 2008b, p. 399). gia o comportamento da coletividade. Arendt retrata o quanto
o Estado totalitário inverteu a lógica da consciência acerca do
Apesar da existência de religiões seculares ou políticas e mandamento “não matarás”, tornando o inferno realidade pre­
da funcionalização da religião, a secularidade representou uma sente nos campos de concentração. Todavia, não se pode espe­
perda significativa à religião. Na Idade Moderna, foi elimina­ rar que a doutrina do Inferno retorne. Arendt constata apenas
da “[...] da vida pública, juntamente com a religião, o único que esse elemento político de coerção e persuasão não coíbe as
elemento político na religião tradicional; o medo do Inferno” ações violentas e não garante mais a autoridade eclesiástica.
(ARENDT, 2002, p. 70, grifo nosso). Isso não significa que o
Inferno tenha desaparecido, mas Arendt alerta que o medo [...] por mais religioso que nosso mundo possa voltar a ficar, por
mais fé autêntica que ainda exista nele, ou por mais profundas
decorrente da doutrina do Inferno não exerce mais uma fun­ que sejam as raízes de valores morais em nosso sistema religioso,
ção política. A ideia de Inferno não tem origem cristã, mas sua o medo do Inferno não conta mais entre os motivos que impedi­
função política sempre esteve presente. Inclusive em Platão, riam ou estimulariam as ações da maioria (ARENDT, 2002, p. 70).
“doutrina do Inferno é claramente um instrumento político A história moderna mostrou várias vezes que as alianças entre
inventado com finalidades políticas” (ARENDT, 2002, p. 69). ‘trono e altar’ só podem levar ao mútuo descrédito. Mas enquanto
no passado o principal risco consistia em utilizar a religião como
Em outras palavras, para lidar com o povo, era necessário evi­
mero pretexto, dando assim um superior ar de hipocrisia tanto à
tar que a verdade fosse conhecida, pois não se pode persuadir ação política quanto à fé religiosa, o perigo hoje é infinitamente
para a verdade. No entanto, se as pessoas possuíssem uma opi­ maior. Diante de uma ideologia em pleno desenvolvimento, nosso
nião, achando que esta fosse verdade, elas se comportariam maior risco é enfrentá-lo com uma ideologia de nossa própria in­
como se esperava. “A opinião apropriada para levar a verdade venção. Se tentarmos imprimir novamente uma ‘paixão religiosa
na vida público-política ou usar a religião como instrumento de
dos poucos à multidão é a crença no Inferno; persuadir os ci­ discriminação política, o resultado poderá ser a transformação e
dadãos de sua existência fará com que se comportem como se distorção da religião em ideologia, e nossa luta contra o totali­
soubessem a verdade” (ARENDT, 2002, p. 69). tarismo será corrompida por um fanatismo de todo estranho à
própria essência da liberdade (ARENDT, 2008b, p. 404).
A característica política que se destaca em nosso mundo secular
parece ser a de que mais e mais pessoas estão perdendo a crença A perda da certeza da fé foi outro elemento que Arendt co­
na recompensa e no castigo após a morte, ao passo que o fun­ locou como decisivo na era moderna. Essa perda foi consequên­
cionamento de consciências individuais ou da capacidade das cia da dúvida cartesiana, na qual “[...] a realidade do mundo e da
multidões de perceber a verdade invisível permanece tão pouco
vida humana é posta em dúvida; se já não podemos confiar nos
confiável como sempre (ARENDT, 2002, p. 70).
sentidos, nem no senso comum, nem na razão, então é possível

62 63
que tudo o que julgamos ser realidade não passe de um sonho” Arendt adverte que, de modo algum, a moderna perda da
(ARENDT, 2007a, p. 289). Além disso, o medo de Descartes, fé possui origem religiosa, e ela não deve ser vista como con­
a maior dúvida, de que um ser maligno comandasse a reali­ sequência da Reforma ou da Contra-Reforma. Logo, a perda
dade, levaria o ser humano ao engano. A dúvida cartesiana, da fé também possui implicações políticas. A perda da fé, o
exposta por Arendt, “[...] não duvidava simplesmente de que a eclipse da transcendência e a perda da crença na vida após
compreensão humana fosse acessível a toda a verdade ou que a morte não significaram que o ser humano fosse lançado de
a visão humana fosse capaz de tudo ver; para ela a inteligibi­ volta ao mundo. “Ao contrário, a história demonstra que os
lidade à compreensão humana não constitui demonstração de seres humanos modernos não foram arremessados de volta a
verdade, tal como a visibilidade não constitui prova de realidade” este mundo, mas para dentro de si mesmos” (ARENDT, 2007a,
(ARENDT, 2007a, p. 288). Assim, há sempre a dúvida do que p. 266). Nesse sentido, é perceptível na filosofia moderna “[...]
é verdade e a única certeza que resta é a própria dúvida. Para uma preocupação exclusiva com o ego, em oposição à alma ou
Arendt, Kierkegaard transportou a dúvida cartesiana à religião. à pessoa ou ao ser humano em geral, uma tentativa de reduzir
Logo, não haveria mais a certeza da fé, a certeza da salvação; e, todas as experiências, com o mundo e com os outros seres
consequentemente, houve mudanças radicais nos padrões morais. humanos, a experiências entre o homem e si mesmo”.7Assim,
as rupturas que surgiram como reivindicação de autonomia,
[...] a questão da certeza, iria ser crucial para todo o desenvolvimen­ tornado o ser humano ‘a medida das medidas’, resultaram na
to da moralidade moderna. O que se perdeu na era moderna não
foi, naturalmente, a capacidade de conhecer-se a verdade ou a rea­
alienação em relação ao mundo.
lidade ou a fé, nem a concomitante e inevitável aceitação do depoi­ A reflexão arendtiana aponta para inúmeras perdas que
mento dos sentidos e da razão, mas a certeza que havia antes nesse modificaram o mundo. E, ao tratar dos direitos humanos, ne­
depoimento. Na religião, não foi a crença na salvação ou numa vida nhum conceito sobre o que é ser humano foi capaz de proteger
eterna que se perdeu imediatamente, mas a certitudo salutis - e isto e de garantir direitos. Mesmo que a autoridade religiosa fosse
aconteceu em todos os países protestantes nos quais a queda da
estável, isso não significaria que ela fosse capaz de propiciar
Igreja Católica abolira a última instituição ligada à tradição e que,
onde quer que a sua autoridade permanecesse inconteste, interpu­ essas garantias de direitos. Arendt não acredita nem na fór­
nha-se entre o impacto da modernidade e a multidão de fiéis. Tal mula americana (na qual o ser humano é criado à imagem
como a conseqüência imediata desta perda da certeza da salvação de Deus), nem na fórmula francesa (na qual o ser humano
foi um redobrado zelo em praticar boas ações durante a vida, como é representante da humanidade, trazendo exigências da lei
se esta fosse apenas um longo período de provação, também a per­ natural) como sustentações de dignidade ou soluções contra
da da certeza da verdade levou a um novo zelo, inteiramente sem
as violações dos direitos humanos (ARENDT, 2007d, p. 333).
precedentes, no tocante à veracidade - como se o homem só pudes­
se dar-se ao luxo de mentir enquanto estava seguro da existência O que pode impedir que a humanidade decida acabar com
imutável da verdade e da realidade objetiva, que certamente so­ partes de si mesma ou consigo mesma? Arendt, enxergando
breviveriam e derrotariam as suas mentiras. A mudança radical de essa preocupação, remete novamente a Platão. “Aqui, nos pro­
padrões morais que ocorreu no primeiro século da era moderna foi blemas da realidade concreta, confrontamo-nos com uma das
inspirada pelas necessidades e ideais do seu mais importante grupo
mais antigas perplexidades da filosofia política, que pôde per­
de homens, os novos cientistas; e as virtudes cardeais modernas - o
sucesso, a industriosídade, e a veracidade - são ao mesmo tempo as
7 “O que distingue a era m o d ern a é a alienação em relação ao m u n d o e não, com o
maiores virtudes para a ciência moderna (ARENDT, 2007a, p. 289). pensava M arx, a alienação em relação ao ego” (ARENDT, 2007a, p. 266).

64 65
manecer despercebida somente enquanto uma teologia cris­ 1.3.2.Percepções teológicas
tã estável fornecia estrutura de todos os problemas políticos e acerca da política a partir de Jürgen M oltmann
filosóficos [...]” (ARENDT, 2007d, p. 332), ao que a percepção
política de Platão indica que: “[...] ‘não o homem, mas um deus, Para Moltmann, a relação entre teologia e política, ou a
deve ser a medida de todas as coisas’” (ARENDT, 2007d, p. 332). “nova” Teologia Política decorre da seguinte pergunta: “De que
Esse breve panorama arendtiano sobre religião e teologia maneira é possível crer-se em Deus e continuar a ser humano
e sobre as rupturas e as perdas tão decisivas e sem precedentes depois de Auschwitz? [...] Onde está Deus?” (MOLTMANN,
propicia uma reflexão preciosa acerca do mundo e da situa­ 1978, p. 53). Por ser testemunha dos horrores da guerra,8Molt­
ção da teologia. Arendt percebe a crise de sentido, a crise de mann considerou que a existência da teologia e das igrejas foi
autoridade e tradição, o surgimento de ideologias, a perda da um fracasso, pois como explicar o silêncio dos cristãos; explicar
certeza da fé, da salvação, a perda da doutrina do inferno. Tais como foi possível Auschwitz? “A privatização burguesa da reli­
gião teria secularizado a política de modo tão profundo? Foi o
transformações não são relativas apenas à religião. Por mais va­
anti-semitismo inconsciente/consciente que fez os cristãos se
liosas que foram as conquistas de liberdade e a emancipação
calarem quando os judeus eram apanhados’? Foi a doutrina
humana, estas não foram capazes de consolidar o ser huma­
dos dois reinos mal interpretada que ajudou as igrejas a não se
no como um valor inalienável. Cada vez mais, a perplexida­
intrometerem’?” (MOLTMANN, 2004, p. 103). Nesse sentido,
de da violência, as segregações, a funcionalização da vida, a
surge a denominada “nova” Teologia Política (1965/1968) vol­
descartabilidade do ser humano parecem mais reais do que tada para um falar de Deus com a face voltada ao mundo, um
uma convivência que de fato preze pela liberdade e pela plu­ falar de Deus nesta época.
ralidade. Claro, para Arendt, a religião não seria mais uma O adjetivo “nova” foi utilizado na Teologia Política para
solução para essa crise, porém também o ateísmo não é uma estabelecer distinções tanto da antiga teologia política, prin­
substituição viável. cipalmente a de Cari Schmitt, e também da teologia política
clássica do cristianismo. A teologia política de Cari Schmitt
Não creio que o ateísmo seja um substitutivo para a religião ou
que possa preencher a função desta, assim como não creio que a
8 M oltm ann, aos 17 anos, convocado para o exército alemão, sobreviveu a um a ex­
violência possa se tornar um substitutivo para a autoridade. Mas,
plosão, a qual ele vê não apenas com o dádiva, m as com o incum bência. Preso em
se seguirmos as recomendações dos conservadores [...] estou ab­ N orthon-C am p, M oltm ann identifica fundam entos que possibilitaram u m a nova
solutamente convencida de que não acharemos difícil produzir esperança: a Bíblia, o encontro com pessoas, a vivência e o perdão, enfim , concre-
esses substitutivos e de que utilizaremos a violência pretendendo tam ente a m isericórdia de Deus. A teologia de M oltm ann destaca-se p o r tom ar
a esperança como princípio teológico. Ao visitar o que resta do cam po de c o n ­
ter restabelecido a autoridade, ou de que nossa redescoberta da
centração de M aidanek, escreve: “A cada passo tornava-se fisicam ente mais difícil
utilidade da religião produzirá uma religião substitutiva - como se prosseguir e olhar para m ilhares de sapatos de crianças, pedaços de roupas velhas,
nossa civilização já não estivesse suficientemente atravancada com tufos de cabelo e dentes de ouro. N aquele instante eu teria preferido que a terra m e
sorte de pseudocoisas e de absurdo (ARENDT, 2007b, p. 141). engolisse, tal a vergonha que senti, se eu não acreditasse que ‘D eus está com eles’ e
que ‘ressuscitarão’. Mais tarde encontrei nos livros dos visitantes inscrições com o
esta, ‘jam ais perm itirem os que isto se repita. Lutarem os para que jam ais estes h o r­
rores voltem a acontecer’. Repito o que escreveram , em bora em nada ajude aos que
foram assassinados. Repito tam b ém o que então escrevi. N ada disso, entretanto é
suficiente” (M OLTM ANN, 1978, p. 53).

66 67
se consistia em “[...] sua preferência anti-revolucionária, anti- cantamento do mundo”, resta o culto ao eu-metafísico, pois a
liberal e antidemocrática por meio de ditaduras políticas. [...] força interna pode realizar tudo. “[...] essa teologia está amea­
Ele fundamentou teologicamente a necessidade da ditadura çada de se tornar ideologia religiosa da subjetividade român­
política com uma doutrina secularizada do pecado original: tica, uma religião no campo da individualidade desonerada
‘diante do mal radical, só existe (como meio) a ditad u ra” das preocupações sociais” (MOLTMANN, 2005, p. 394). No
(MOLTMANN, 2004, p. 104). Já a teologia política clássica culto à solidariedade humana, as pessoas podem buscar uma
referia-se ao inicio e às consequências da era Constantinia- coletividade, mas projetam um ideal de comunidade que as
na, no qual a teologia “[...] estava a serviço do poder estatal aliena da realidade. Nesse caso, “[...] a igreja é apenas uma
e funcionava como ideologia do Estado, como sua legitima­ realidade não-mundana, descrita pelas categorias de comu­
ção teológica” (GIBELLINI, 2002, p. 308). nhão’” (MOLTMANN, 2005, p. 399). Esse ideal de comunhão
Ao contrário disso, a nova Teologia Política, articulada é planejado racionalmente e não possui força revolucionária.
com Johann B. Metz, Dorothee Sólle e Jürgen Moltmann, pos­ “Simplesmente, se oferece a compensação dialética e a des­
suía duas tarefas. Em primeiro lugar, ela possuía uma tarefa carga psíquica, de modo que o ser humano, pelo intercâmbio
crítica, cujo intuito era discutir e desconstruir a religião pri­ da vida privada e pública, da comunidade e sociedade, possa
vatizada, a religião burguesa que, no período pós-iluminista e hoje suportar sua existência pública” (MOLTMANN, 2005, p.
pós-marxista, tornou a teologia assunto apolítico, enfatizando 399). E, por fim, o culto à instituição representa a necessidade
categorias do íntimo, da existência. Teologia e religião se tornam de segurança do ser humano, pois, frente à realidade, ele se
restritas ao ethos, assumindo a característica de cultus privatus. vê ameaçado por suas limitações e sua finitude. Logo, regras
Moltmann identifica espaços que parecem responder a utili­ rígidas dão a sensação de durabilidade e de certeza. “Assim,
dade da religião, delimitada dentro das necessidades humanas: a teologia cristã está em condições de, por meio de um neo-
o culto à subjetividade, o culto à solidariedade humana e o dogmatismo, afirmar verdades que não podem ser provadas
culto à instituição.9 nem refutadas pela realidade experimentável. [...] Discussões
No culto à subjetividade, o indivíduo busca a salvação teológicas são deixadas de lado como ‘brigas confessionais’ e
por si mesmo, a fé refere-se apenas à ética, na relação do ser afastadas da vida pública” (MOLTMANN, 2005, p. 402).
humano consigo mesmo, restringindo a teologia ao campo das Em segundo lugar, a Teologia Política possuía uma tarefa
decisões pessoais. O deus transcendental se foi com o “desen- construtiva, cuja ênfase era falar de Deus com a face voltada ao
mundo, com a face voltada para o que aconteceu em Auschwitz.
9 M o ltm an n ressalta que n en h u m desses lugares e funções destinados à religião Por isso, era necessário desenvolver uma nova relação entre teo­
m o d ern a é coerente com a proposta do Evangelho. Essas posições não se fu n d a­ ria e práxis para tornar a teologia um saber crítico frente aos de­
m entam em um m ovim ento social, nem na preocupação com o próxim o, nem no
caráter profético com o com prom isso de transform ação social. A pesar de ainda safios do mundo, rompendo as limitações do cultus privatus.
a teologia ser im portante - pois nela há segurança sobre o fim da vida, o fim da E, principalmente, em Moltmann, a teologia foi construída a
existência - é fundam ental superar o cativeiro da inoperância social. M oltm ann
não propõe um ativismo, m as afirm a que “a evidência’ teológica da fé cristã está
partir das “[...] promessas escatológicas da tradição bíblica -
sem pre em relação com as evidências’ sociais. Som ente quando essa correlação é liberdade, paz, justiça, reconciliação - não constituem um ho­
elevada pela crítica até a consciência, desfaz a sim biose, e, portanto, pode ser ex­ rizonte vazio de expectativa religiosa, mas têm uma dimensão
presso o que é p ró p rio do cristianism o e da fé cristã, no conflito com as evidências
sociais” (M OLTM ANN, 2005, p. 403). pública, que é preciso fazer valer na sua função crítica e li­

68 69
bertadora diante do processo histórico-social [...]” (GIBELLINI, pois a religião não justifica as estruturas de dominação. Logo,
2002, p. 302). Desse modo, Auschwitz significava as condições a proposta da Teologia da Libertação inicia com a pobreza,
hermenêuticas de uma teologia que reflete a esperança e o sofri­ com o sofrimento das pessoas na América Latina." A Teolo­
mento. “Qualquer teologia, depois de Auschwitz teria sido im­ gia política, a Teologia da Libertação e a Teologia feminista
possível se o próprio Schema de Israel e a Oração Dominical não trouxeram à reflexão de que “[...] a história bíblica de Deus
tivessem sido rezadas ali, se o próprio Deus não estivesse ali, so­ é uma espécie de anti-história, contraposta à marcha triunfal
frendo com os mártires e com os assassinados” (MOLTMANN, dos dominadores deste mundo, porque ela é dirigida ‘prefe­
1978, p. 53). Logo, são novas perspectivas de uma teologia que rencialmente [...] às vítimas da história da violência humana”
se constrói a favor da justiça e da dignidade do mundo. (MOLTMANN, 2004, p. 116).12
O termo “político” na teologia também é questionado e
Um Deus absoluto teria nos deixado indiferentes. O Deus da ação não recebeu tanto empenho por definições. Moltmann expli­
e do sucesso nos teria ajudado a esquecer os mortos, os quais não
ca esse fato, relacionando-o à supervalorização da política no
podemos esquecer. Deus, enquanto Nada, teria transformado o
mundo inteiro num campo de concentração. [...] Sem revolução século XX. “Em virtude das revoluções na América Latina, da
no conceito de Deus não há teologia revolucionária. [...] Deus guerra do Vietnã e do armamentismo atômico da Europa, o polí­
não morreu. A morte está em Deus. Ele sofre por nós. Conosco tico tornou-se tema amplamente predominante” (MOLTMANN,
(MOLTMANN, 1978, p. 53; 64). 2004, p. 105). Contudo, a política perdeu espaço, e a economia,
mediante uma comercialização das coisas, assumiu seu lugar.
Por conseguinte, a teologia deve, a partir da esperança prome­ A economia invadiu não só o espaço público, mas também o
tida a toda a criatura, pela ressurreição de Cristo, chegar a uma
privado. “Desse modo, ‘o político’ torna-se um subsistema lo­
nova reflexão sobre a história dos seres humanos e das coisas. A
'escatologia cristã não pode renunciar à reflexão sobre o mundo,
calmente restrito dos impérios econômicos globalizantes. A
à história da realidade inteira, isto é, ao intellectus fid e i et spei
11 Teologia da L ibertação diferencia-se a p a rtir d a relação práx is-teo ria, é u m a
(entendimento dado pela fé e pela esperança). Uma ação cria­ teologia que optou preferencialm ente pelo pobre, o outro n a sociedade, contra a
dora a partir da fé é impossível sem um novo pensamento e uma opressão, justificando a possibilidade de u m a religião de libertação e de com o
nova projeção a partir da esperança (MOLTMANN, 2005, p. 53). ser cristão num processo revolucionário de m udança essencial das estruturas. A
Teologia da L ibertação busca as diferentes dim ensões d a pobreza: etnia, gênero,
cultura. Assim, os pobres precisam ter a consciência de si próprios, assum indo
No mesmo período, na América Latina, surgiu a Teologia seu destino. Ao ouvir a voz do outro se dá a revelação de Deus; o pobre é o lugar
da Libertação (1968/1972)10que desenvolveu um fazer teológi­ da epifania de D eus (DUSSEL, 1982, p. 240-253). Aqui caberia a discussão que
A rendt coloca sobre a questão social, se a política corre o risco de ser restrita ao
co próprio, na qual o ponto de partida é a práxis, e as media­ econôm ico e às preocupações com a sobrevivência. Por isso, A rendt busca um a
ções epistemológicas são as ciências sociais. Teologia da Liber­ autenticidade da política. Ao analisar a vita activa, diferencia labor (processo
tação é uma crítica radical da religião como “ópio do povo”, biológico, m etabolism o), a fabricação (work ou fabrication) e a ação. E, com o a
Teologia da Libertação tem com o m ediação epistemológica as ciências sociais, a
sua definição de práxis não traz a profundidade política da ação em H annah Arendt
10 N ão será possível, neste livro, refletir - com o dem anda o contexto - profu n d a­ (Cf. ARENDT, 2007a, p. 15-30; 47-59 e WESTHELLE, 1981).
m ente sobre Brasil e Am érica Latina. Não significa que esses contextos não sejam 12 C laro que o term o “vítim a” m ereceria u m a discussão m ais profunda, p ara não
de m en o r im portância. A intenção é apresentar H annah Arendt, e seu contexto correr o risco de dualism os ou m aniqueísm os. Porém , as assim etrias hum anas, as
de reflexão está d istante da A m érica Latina. C o n tudo, subjaz um a preocupação estruturas hum anas que exploram ou tras pessoas são questionadas pela Teologia
latente com esses contextos, que m erecem u m a pesquisa específica e dialógica da Libertação e pela Teologia fem inista. É o com prom isso a p artir de Cristo que
com a que aqui se está fazendo. orienta a denúncia, a suspeita daquilo que prom ove o sofrim ento e a segregação.

70 71
política não controla nem as corporações econômicas nem os A contribuição moltmanniana indica pontos cruciais para
mercados financeiros, mas encontra-se no perigo de ser con­ colocar a teologia enquanto saber à disposição da construção
trolada por estes” (MOLTMANN, 2004, p. 105). Logo, frente dos direitos humanos. A teologia patética, enquanto sofri­
ao reducionismo da política, Moltmann afirma que “a polí­ mento, paixão e esperança, remete a um resgate da escatologia
tica continua sendo importante, mas ela sozinha não é mais cristã. E, como um saber patético, transfigurado pelo amor,
o mundo’ para o qual a teologia tem de voltar a ‘sua face”’ a teologia pode contribuir criticamente acerca das relações
(MOLTMANN, 2004, p. 105). Afinal, a Teologia Política se humanas. Não se trata de impor verdades ou modelos éticos.
denominava política, pois compreendia que esta qualificação Antes, teologia é, em primeiro lugar, um saber que deve trazer
designaria a sua relação com o mundo. à memória os mortos, os assassinados, não se esquecendo dos
Teologia Política e Teologia da Libertação são im por­ sofrimentos, não deixando de ouvi-los. Em segundo, a teolo­
tantes à medida que colocaram a teologia em discussão com a gia deveria plantar a esperança de que diferentes relações são
política e fundamentaram-se a partir da práxis (mesmo que de possíveis; relações de convivência não pautadas pela violência e
forma distinta). Logo, as relações humanas ganham destaque pela dominação, mas a partir de uma ação, práxis que é trans­
na reflexão teológica. E, influenciada pela Escola de Frankfurt, figurada pelo amor.
ao se repensar teoria-práxis, a política pode ser vista como o Tendo como base de análise esse capítulo, o saber teoló­
espaço de interação humana. Em uma práxis comunicativa, “o gico se insere na discussão considerando os direitos humanos
lugar de entrada para a teologia é a dimensão transcendente a partir de suas implicações políticas. As relações humanas, a
presente na intercomunicação humana, simbolizada na irre­ convivência precisam ser pautadas pela igualdade, por garan­
dutível relação do ser humano com a experiência de morte” tias de direitos, por uma nova compreensão de poder, pela au­
(WESTHELLE, 1981, p. 10). E a política, vista da perspectiva sência da violência, pela preservação da pluralidade e da indi­
de ação comunicativa, tem fomentado análises que não redu­ vidualidade humana. Logo, o saber teológico e a compreensão
zem a teologia à ideologia, mas que comprometem a teologia arendtiana podem estabelecer um diálogo que vise à edificação
com a realidade. O saber teológico busca, nesse sentido, rom ­ dos direitos humanos; afinal, em ambos prevalece a responsa­
per a apatia em relação ao mundo e romper com a situação bilidade pelo mundo. Isso será abordado a seguir.
de cultus privatus. Rejeitando o conceito de práxis marxista
(definida a partir da produção dos meios de subsistência), a
escatologia cristã ganha novas perspectivas e pode contribuir
para o pensar sobre a vida humana e as suas relações.

Somente na relação inter-humana a morte pode receber algum


sentido, o qual por sua vez jamais é esgotável; é transcendente,
portanto. Essa base subjetivista que evoca o conceito do amor
cristão para prestar contas do mistério de que a morte (especial­
mente de um inocente, ou de seis milhões de judeus [...]) rompe
com toda possibilidade de encontrar um sentido imanente para a
vida humana (WESTHELLE, 1981, p. 10-11).

72 73

Você também pode gostar