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Um agente da CIA é resgatado enlouquecido.

Para saber o
que aconteceu com ele, Brigitte Montfort vai para
Cingapura atrás do navio "Vento da Malásia"

© 1969 – Lou Carrigan


Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 380902 – 380918
PARTE 1
FLAGRANTE

O homem esteve apenas dois minutos oculto entre as


samambaias, perto do tanque onde coaxava uma infinidade
de rãs. O dia estava muito claro, podendo-se ver
nitidamente as belas carpas coloridas, vagando a meia
profundidade, indiferentes ao intruso. Mas as rãs
silenciaram, escondendo-se entre as ervas aquáticas, ao
primeiro movimento que ele fez.
Diante deles surgiram dois vultos alongados,
caminhando silenciosamente, como se andassem sobre
almofadas. Dois corpos ondulantes, rajados de preto e ocre.
Começaram a afastar-se lentamente.
Quando o campo lhe pareceu livre, o homem se
endireitou. Olhou para trás, e depois, para o alambrado da
bonita e enorme quinta. Tornou a olhar para trás,
desconfiado, observando especialmente as palmeiras muito
altas e a cúpula branca e pequena que encimava a casa.
Sabia que daquele mirante podia ser localizado e crivado de
balas.
Ou talvez estivesse agindo instintivamente, porque sua
expressão era a de quem não tinha idéia de coisa alguma.
Parecia aterrorizado, com os olhos muito abertos e a
fisionomia contraída. Uma baba lhe escorria do canto da
boca. Movia os olhos para todos os lados mas sem dúvida
não se fixava em qualquer detalhe.
Preocupava-se exclusivamente pelo alambrado,
especialmente pelo trecho do qual se haviam afastado os
dois enormes tigres de Bengala. Seria difícil escalar o
alambrado altíssimo, de malhas quadradas, antes que as
duas feras atacassem. Mas o homem branco, cerrando
fortemente os maxilares, correu para lá.
Chegou quando os tigres viraram a cabeça e, rugindo,
atacaram. Normalmente, os felinos de tal espécie dão saltos
de quatro metros e podem, de uma patada, abater um búfalo.
Suas garras, afiadíssimas, chegam a ter dez centímetros de
comprimento.
Porém a patada do tigre que chegou primeiro não atingiu
o fugitivo. O homem branco, barbado, macilento e com as
roupas em farrapos, já havia chegado ao cimo do alambrado
com uma velocidade que só o terror pode proporcionar.
Saltou do outro lado, lívido. Tão debilitado que, ao tocar o
solo, caiu de encontro ao alambrado. O segundo tigre deu
uma patada no momento exato em que seu corpo já se
afastava, projetado pela elasticidade da malha de arame. O
fugitivo se levantou e correu.
Ouviu-se um grito, seguido de uma frase em tamil, o
dialeto mais falado na Malásia, que o homem branco
entendeu perfeitamente:
— O americano está fugindo.
De fato, o americano se afastava cada vez mais do
alambrado, que vibrava com as patadas furiosas dos
gigantescos tigres de Bengala.
Um malaio apareceu diante dele. Estava de bicicleta e se
assustou tanto ao vê-lo que quase caiu. Largou a bicicleta
no chão e sacou de um kris, espécie de punhal de lâmina
ondulada, cintilante..
Da cúpula branca surgiu uma voz de comando para o
malaio que empunhava o kris sem saber o que fazer. Suas
convicções lhe diziam que a vida do branco era sagrada,
mas o fato de estar fugindo criava confusão no seu cérebro.
Matar, seria ferir princípios; não matar, seria dar fuga a um
estranho, talvez um inimigo do seu povo.
O americano avançava para ele como um furacão, de
cabeça baixa, mais parecendo um touro bravio. Espumava e
gritava coisas num idioma desconhecido do malaio,
agitando os braços com as mãos em forma de garras.
Chocaram-se e caíram. Quando o malaio se dispôs a usar
o kris, já era tarde. O americano cravou os dedos em seu
pescoço, emitindo um rugido tão assustador e animalesco
quanto o dos tigres.
Estrangulamento instantâneo.
Da cúpula branca, continuavam partindo ordens em
tamil e, embaixo, os tigres se lançavam contra o alambrado
no vão intento de rompê-lo para alcançar o fugitivo.
O americano largou o pescoço do malaio e se levantou,
com os olhos congestionados.
— Vou matá-lo! — gritou. — Matarei imediatamente
esse homem de Manila! Vou despedaçá-lo!
Vários malaios saíam da casa, de um telheiro, da
garagem e da estufa hortícola, visivelmente dispostos a
detê-lo a qualquer preço.
Diante da entrada da quinta, sob uma frondosa teca,
estava um automóvel preto de linhas sóbrias, um Humber.
O americano correu para ele, empunhando o kris e olhando
para a casa, cujos jardins se enchiam de malaios correndo.
Um dos asiáticos havia transposto o portão, empunhando
uma pistola. Ordenava ao branco que escolhesse entre se
entregar e morrer.
Evidentemente, o fugitivo não estava disposto a se
entregar. Golpeou um dos pneus dianteiros do Humher com
o kris, esvaziando-o. Depois, voltou-se para o malaio, que
se aproximava de pistola erguida, pronto para disparar. Deu
uma risada e gritou:
— Você não me pegará! Vou caçar aquele miserável!
O malaio apontou cuidadosamente, mas antes que
disparasse recebeu a lâmina ondulada em pleno peito.
Estacou em seco, caiu de joelhos e, antes de tombar de
bruços, ficou olhando com incredulidade para o cabo do
kris que se projetava de seu peito.
As ordens em tamil continuavam chegando, cada vez
mais excitadas, e todos os malaios da quinta corriam
desabalados para a saída. Enquanto isso, o americano,
depois de olhar alucinadamente ao redor, correu para a
bicicleta, levantou-a, montou e partiu veloz, quase se
erguendo a cada forte pedalada.
Em poucos segundos desapareceu pelo caminho de barro
vermelho que ligava a bela quinta à cidade de Cingapura.
Enquanto isso, os malaios rodeavam o carro, gesticulando,
gritando, furiosos ao constatarem o estrago. A uma ordem,
dois deles começaram a trocar o pneu.
Em menos de dois minutos o Humber saía atrás do
fugitivo.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Brincando de adivinhar
Á caça de borbo1etas na China
Um louco perigoso no hospital da CIA

Brigitte Montfort estava bem no centro do luxuoso living


de seu magnífico apartamento da Quinta Avenida, em Nova
Iorque. Sentada no tapete, pernas cruzadas à oriental, tinha
os olhos vendados e as mãos nos joelhos.
— Vamos, Brigitte, adivinhe o que tenho nas mãos —
disse Frank Minello.
O silêncio era absoluto entre os vinte e tantos
convidados da mais sexy espiã internacional, todos eles seus
colegas de jornalismo, que, uma vez ao mês, compareciam
para jantar e viver momentos agradáveis. Doze vezes por
ano esqueciam, ali, as atribulações profissionais, deliciando-
se com o melhor champanha francês — de Dominico Pierre
Perignon, naturalmente. A diversão era sempre contínua,
fluida, fácil, aparentemente interminável.
Como naquele momento, em que ela demonstrava os
poderes especiais de sua mente. Cada um segurava um
objeto e Brigitte, sem hesitar, adivinhava qual fosse, criando
uma atmosfera de admiração e grande interesse.
Frank Minello, muito astuto, recorrera a um objeto que,
possivelmente, Brigitte não adivinharia. Pelo menos, ela
parecia encontrar dificuldade.
— Não consegue, bem? — exclamou Minello,
triunfante. — Nesse caso.
— Um momento... Um momento, por favor — pediu a
superespiã. — Você tem de ficar quieto e calado, erguer o
objeto e pensar exclusivamente nele.
— De acordo — acedeu Minello.
Durante dez segundos todos ficaram em suspense,
olhando os róseos lábios da bela adivinhadora. Mas embora
tivesse acertado sempre até aquele momento, a impressão
era de que Frank Minello iria derrotá-la.
— Um pé de sapato — disse ela, de repente. — Um
sapato de mulher. O pé direito dos sapatos cor de areia de
Margaret.
Houve um murmúrio de espanto. Os vinte e tantos
amiguinhos da colunista do “Morning News” ficaram
boquiabertos.
— Você viu! — protestou Minello, inconformado. —
Você viu o sapato, Brigitte!
— Quer dizer que adivinhei, não é?
— Adivinhou coisa nenhuma! — teimou Minello,
irritado. — Sem dúvida Margaret está de combinação com
você! Não é possível adivinhar desse jeito! Um sapato de
mulher... Cor de areia... O pé direito...
— Pssit! — exigiu Brigitte, subitamente. — Alguém se
aproxima. Vem perturbar nossa festinha!
— Deixe de tolice, Brigitte! — disse Minello.
— Revele o truque e...
— Uma chamada para miss Montfort...
— De quem, Peggy? — perguntou Brigitte, sem se
mover, ainda com os olhos vendados.
A voz de Peggy, da porta do living, sobressaltou todos
os presentes; menos, naturalmente, a espiã internacional.
— De...
— Vamos, Brigitte! Adivinhe! — propôs alguém,
maldosamente. — Adivinhe quem lhe está chamando!
— Não ouvi a campainha do telefone — disse Mike
Grogan, que estava jogado numa poltrona, com uma garrafa
de champanha na mão direita e um havano legitimo na
esquerda, gozando a vida, totalmente esquecido de sua
úlcera.
— É verdade — confirmou Margaret, a dona do sapato
da adivinhação. — Eu também não ouvi a campainha.
— Deve ser mais um truque, de combinação com Peggy
— riu-se Axel, comentarista político do “Morning News”
— Se o telefone não chamou, é porque... um momento!
Alguém ouviu a campainha da porta?
— Não! — Foi a resposta em coro.
— Tem gato na tuba... — brincou Miky Grogan. —
Revele o truque, Brigitte, que podemos fazer sucesso em
outras reuniões. Não seja egoísta!
— Peço apenas alguns segundos de silêncio —
murmurou ela. — Por favor, Peggy: pense firmemente na
pessoa que me chama.
— Está bem, miss Montfort.
A criadinha de Brigitte ficou muito séria, olhando-a
fixamente. Após alguns segundos, a espiã tirou a venda dos
olhos e levantou-se, provocando decepção entre os
convidados.
— Que houve? — indagou um deles.
— Acabou o espetáculo? — perguntou outro,
contrariado.
— Sem dúvida alguma foi chamada telepaticamente por
um espírito errante — sugeriu uma jovem loura
simpaticíssima, com uma boquinha úmida e carnuda em
forma de beijo.
— Fui chamado por um espírito das trevas — disse
Brigitte. — Voltarei em menos de um minuto. Por favor,
divirtam-se à vontade.
Houve protestos, risos, exclamações ininteligíveis por
obra e graça de várias dúzias de “Perignon”, estouros de
rolhas de champanha, tilintar de copos e Betty, a jovenzinha
assaz beijável, pôs um disco no “HF” estereofônico,
começando a rebolar antes mesmo que a música se fizesse
ouvir.
— Que é isso?! — assustou-se, quando tal aconteceu.
— “Canção da Primavera”, de Mendelssohn! — riu-se
um rapaz com a cara, as sardas e a risadinha de Richard
Widmark. — Você errou a mão, Betty!
A gargalhada foi geral. E todos riram mais ainda quando
a linda lourinha tentou dançar ao som da melodia
mendelssohniana...
Enquanto isso, Brigitte percorria o longo corredor até
seu quarto, seguida de Peggy.
— É tio Charlie, não?
— É... ele me... mesmo! Mas como soube... Por
telepatia...?
— Não seja tola, menina... Se você me avisa que me
procuram e eu não ouço a campainha da porta ou a do
telefone, é porque me chamam pelo rádio, só podendo ser o
tio Charlie. Espero que ninguém mais tenha feito essa
dedução... Frankie deve ter desconfiado, mas isso não
importa. Que disse o tio Charlie?
— Apenas que lhe queria falar com urgência
urgentíssima.
— Isso é mau — suspirou Brigitte. — Já é tempo de
mandar esse importuno caçar borboletas na China... Estou
cansada e não pretendo aceitar incumbências antes de um
mês. De que está rindo, mulher?
— Não estou rindo, miss Montfort — sobressaltou-se
Peggy.
— Muito bem: não estava rindo; mas estava sorrindo,
De quê?
— Bem... Sempre me diz que vai descansar e logo... me
manda arrumar a maletinha...
— Desta vez será diferente. Necessito repouso e duvido
muito que o tio Charlie tenha razões bastantes para me
demover da idéia. Você verá. Vou despachar esse velhote
em dois segundos.
Sentou-se num dos almofadões, devidamente colocados
por Peggy diante do armário em cujo fundo estava
escondido o rádio pelo qual “Baby” comunicava com o
setor nova-iorquino da CIA; melhor dito, diretamente com o
gabinete de seu chefe, Charles Alan Pitzer. Pôs os fones nos
ouvidos e disse, calmamente:
— Por que não vai para as profundas do Inferno, tio
Charlie?
Peggy arregalou os olhos. Esperava descobrir a resposta
de Pitzer pela reação no rosto de Brigitte, mas a espiã tinha,
normalmente, a faculdade de se conservar absolutamente
impassível quando lhe convinha. Porém, para surpresa sua,
após ter ficado muito tempo à escuta, ela viu sua patroa
empalidecer.
— Estarei pronta em dois minutos, tio Charlie — disse
esta, por fim.
Cortou a comunicação, guardou o rádio ao esconderijo e
voltou-se para Peggy, ainda bem pálida.
— Que... que aconteceu, miss Montfort? — indagou
esta, tremendo dos pés à cabeça.
— Emergência total, Peggy. Prepare a maletinha para tal
circunstância — respondeu Brigitte, olhando para o
diminuto relógio-pulseira.
— Dentro de três minutos alguém virá me buscar.
— Vai partir?
— Acha que mandaria arrumar a maletinha para meter-
me na cama?...
— Bem, desculpe... Para onde?
— De viagem.
— E que digo aos convidados? Farão perguntas...
— Diga-lhes que saí voando numa vassoura, como
qualquer feiticeira, rumo... digamos... à Singapura. Acharão
muita graça. A maletinha, Peggy. Não esqueça coisa
alguma.
— Eu nunca esqueço seus “arrebiques”, miss Montfort.
— Engraçadinha...
Exatamente dois minutos mais tarde, Brigitte Montfort
estava olhando pelo “olho mágico” de seu apartamento,
inteiramente desinteressada da algazarra de seus colegas de
imprensa no salão de estar. Trocara o belíssimo vestido de
soirée azul por uma saia e uma blusa, bem como os sapatos
de saltos altíssimos por confortáveis mocassins marrons.
Daí a pouco o elevador parava, surgindo um homem louro
de cabelos lisos, alto, espadaúdo, com os olhos cinza fixos
no número do apartamento de Brigitte. Estendeu o braço
para tocar a campainha, mas não teve tempo: a espiã abriu a
porta e ficou olhando para ele em silêncio. O atlético
indivíduo não se alterou, limitando-se a observá-la de cima
a. baixo, vendo a maleta vermelha com flores azuis. Sem
dizer uma palavra, apanhou a maleta e se afastou para um
lado, indicando o elevador.
Evidentemente, não havia tempo a perder.
***
Mister Cavanagh apareceu nas sombras do heliporto da
Central da CIA, com o seu inconfundível andar claudicante.
Deu a mão a Brigitte, ajudando-a a saltar. O homem da CIA
que fora busca-la em Nova Iorque para a base do
treinamento periódico de Langley, em vôo rápido, também
saltou do helicóptero, segurando novamente a maletinha e
caminhando em silêncio para o feio prédio. no qual a CIA
tem o seu centro de coordenação mundial.
— Lamento apressá-la tanto... — murmurou Cavanagh.
— Compreendo que deve estar cansada e que...
— Quero vê-lo — disse secamente Brigitte. — Quanto
ao meu cansaço, Mr. Cavanagh, bem sabe que ele só existe
quando não há trabalho.
Cavanagh sorriu.
— Isso eu sabia.
— Quero ver o meu colega imediatamente.
— Também o sabia. Venha, Brigitte.
***
Cavanagh fechou a porta do quarto branco e apoiou-se a
ela, de costas. Tudo era branco: teto, paredes, roupas, mesa,
cadeiras e até o chão! Luz tênue, tranqüilizante.
Brigitte se aproximou do leito, junto ao qual estavam
uma enfermeira e um médico. No leito, nu da cintura para
cima, um homem de uns trinta e cinco anos, robusto,
ligeiramente prognata, lábios delgados, nariz aquilino. Testa
muito ampla. Tinha os braços e as pernas algemados às
barras da cama, como um crucificado; tensos os músculos
do pescoço taurino. Mas parecia nem sequer respirar, olhos
fixos num ponto inexistente. Mostrava-se alheio a tudo e a
todos. Um filete de baba descia-lhe lentamente pelo canto
da boca, aumentando seu aspecto de louco.
— Por que está algemado? — perguntou Brigitte.
— É perigoso — disse o médico.
— É um companheiro — retrucou a espiã, em tom seco.
— Soltem-no imediatamente.
— Seria uma imprudência... — insistiu o médico.
— Eu disse que devem soltá-lo imediatamente!
O médico olhou para Cavanagh, que deu de ombros e
assentiu com a cabeça. O homem algemado ficou livre em
poucos segundos. Não se mexeu. Nem sequer sua expressão
de idiota se modificou. Continuou com os olhos
desmedidamente abertos, o olhar fixo num ponto
indefinível.
Brigitte inclinou-se sobre ele e passou-lhe a mão pela
face, com ternura, enquanto o olhava sorrindo.
— Johnny, sou eu: “Baby”. Vamos conversar um pouco.
Quero saber...
O homem deu um berro assustador, como o de uma fera,
desferindo verdadeira patada de direita que passou raspando
o rosto de Brigitte, ao mesmo tempo que se erguia na cama.
A enfermeira soltou um gritinho histérico e recuou alguns
passos, seguida do médico, enquanto Cavanagh, também
recuando, sacava da pistola e apontava-a para o agente
louco, chamando:
— Warren! Phillip!
A porta se abriu e dois brutamontes da Central
Inteligence Agency surgiram empunhando pistolas, atentos
às reações do colega enlouquecido, que já se havia lançado
contra Brigitte, envolvendo-a pela cintura com os dois
braços. A espiã teve a sensação de estar sendo partida ao
meio, enquanto a boca do homem espumava, lançando baba
em seu rosto, de mistura com palavras ameaçadoras, que
soavam como rugidos:
— Vou matar você! Tenho de matá-lo! Tenho que
destruí-lo! Vou...!
— Gire o corpo, Brigitte! — gritou Cavanagh, pálido. —
Gire o corpo, depressa!
Ergueu a pistola, disposto a atirar.
— Não dispare! — gritou Brigitte. — Não atire contra
ele!
Apoiou as duas mãos no queixo do louco, empurrando
sua cabeça fortemente para trás. Isto é, pensou estar
exercendo pressão suficiente, mas o esforço que despendia
se assemelhava ao de uma formiga querendo mover um
elefante. Além de não conseguir seu intento, sentiu um
estalido nas costelas e um zumbido na cabeça. Desesperada,
golpeou com as duas mãos, em cutelo, o dorso do colega
enfurecido. Um golpe doloroso e nevrálgico, que
normalmente traumatiza a vítima, porém, no caso, foi o
mesmo que golpear uma coluna de pedra. E o homem
apertou ainda mais! Sem dúvida teria dividido Brigitte em
duas, se Warren e Phillip não tivessem agido com rudeza,
desferindo coronhadas na cabeça do alucinado, que tombou
de joelhos, com um rugido, largando Brigitte. Ela caiu de
costas, quase desfalecida.
Como num pesadelo, viu Warren e Phillip erguerem o
louco, segurando-o firmemente pelos braços, e logo serem
projetados um de encontro ao outro por animalesco
solavanco dele. Os dois homens gigantes se separaram
aturdidos, deixando cair as armas. Warren tinha uma brecha
na altura da sobrancelha direita. Cavanagh ergueu a pistola
decidido a atirar, mas, ao mesmo tempo que Brigitte
protestava aos gritos para impedir essa medida extrema, o
louco despedia uma patada contra o ombro do chefão da
CIA, projetando-o de encontro à parede, desarmado.
Depois, o louco se encaminhou para a porta, ignorando
por completo o médico, aterrorizado, e a enfermeira, a
ponto de perder os sentidos, mas deparou com Brigitte, que,
recuperada, já estava no umbral, estendendo-lhe a mão
amistosamente.
— Quieto... Quieto, Johnny... Você está entre amigos.
Somos seus amigos... Você está em Langley, na Central da
CIA, Johnny. Por favor, volte para a cama. Você está
doente, Johnny. Sou “Baby”. Não ouviu falar em mim?
“Baby”... Sou “Baby”, Johnny. Não lhe diz nada este nome?
Evidentemente, o nome nada significava para aquele
Johnny, pois desferiu violentíssimo soco de direita que, se
atingisse Brigitte, teria produzido efeito de verdadeira
marretada. Porém desta vez ela estava prevenida e saltou
para um lado, agarrou a mão de Johnny ainda em
movimento, aproveitando seu próprio impulso para fazê-lo
girar e projetar-se de cara contra a moldura da porta.
Maravilhoso lance de judô! O louco deu um grito de fera,
girou o pulso e agarrou a mão de Brigitte, que ainda o
prendia, varejando-a longe — por mera aplicação de uma
força bestial, sem nenhum judô...
Brigitte só não se estatelou de bruços no corredor porque
soube cair sobre as mãos e as pontas dos pés — como
qualquer judoca.
Cavanagh, Warren e Phillip já haviam recuperado suas
automáticas, dispostos a correr atrás do demente, que saíra
como um furacão pelo corredor, rugindo e babando.
— Quietos! — advertiu Brigitte. — Quietos, todos! A
luta é minha! Eu o agarrarei.
De um salto, chegou junto à maleta vermelha com flores
azuis, recolheu-a do chão e saiu veloz pelo corredor,
enquanto lhe rebuscava o interior com uma das mãos. Três
homens em mangas de camisa, com coldres axilares bem
visíveis, tinham saído da sala de controle da enfermaria e já
empunhavam as automáticas, olhando com vacilação para o
gigante que se aproximava deles.
— Afastem-se! — gritou Brigitte. — Voltem s para os
seus postos!
Cavanagh, Warren e Phillip saíram atrás dela, pistola em
punho. Warren estava com o lado direito do rosto
ensangüentado, parecendo enxergar com dificuldade.
Brigitte retirou da maleta um vidrinho de perfume e
desatarraxou a base, munindo-se, assim, de uma pequena
ampola. Deixou a maleta no chão e continuou correndo
atrás do louco pelo longo corredor. Quando estava a uns
cinco metros dele, tirou um dos mocassins e arremessou-o
com certeira pontaria contra suas costas.
O fugitivo estacou, virou-se, cerrou os punhos e apertou
os olhos ao deparar com a mesma mulher que o importunara
poucos antes. De repente, recebeu a pequena ampola de
vidro no meio do peito. Caiu de joelhos e, logo a seguir, de
bruços. Era uma ampola de gás fulminante...
Meio minuto depois estava de novo no leito, pés e mãos
algemados. A enfermeira atendia a Warren, decidindo que
ele teria de ir à seção de cirurgia para receber dois pontos.
— Sinto muito, Johnny — disse Brigitte. — A culpa foi
inteiramente minha.
— Não importa — resmungou Warren. — Tudo já está
bem. Mas não torne a soltá-lo... — advertiu.
— Esteja descansado.
Warren, Phillip, o médico e a enfermeira saíram do
quarto, deixando “Baby” e Cavanagh a sós. Este enxugou o
suor da testa e oferece cigarros a Brigitte, olhando
desconfiado para louco, que estava totalmente narcotizado.
— Chama-se Dick Hinman — murmurou. — Foi achado
nesse estado em Cingapura. Pare ter enlouquecido.
Brigitte acendeu o cigarro e sentou-se ao lado da cama,
olhando para o espião americano.
— Tio Charlie já me contou algo, mas será melhor o
senhor me dar todos os detalhes, mister Cavanagh — disse,
sempre olhando para Hinman preocupadíssima.

CAPÍTULO SEGUNDO
Um determinado lugar ao norte de Bornéu
Johnny I, Johnny II, Johnny III e Johnny IV
A “Baby” ninguém fica devendo nada...

Cavanagh acabou de acender o seu cigarro, assentindo


com a cabeça.
— Na verdade — disse — não sabemos muito sobre o
que aconteceu com Dick Hinman. Há quatro dias ele surgiu
em Cingapura, montado numa bicicleta, pedalando como se
pretendesse destruí-la. Atravessou a cidade até o posto,
segundo parece, e, ali, foi alcançado por um automóvel
preto...
— Que automóvel? Tem o número da licença? —
indagou Brigitte.
— Não — sorriu tristemente Cavanagh. — Ninguém se
lembrou desse detalhe. Mas voltemos a Dick Hinman... Ele
chegou ao porto de bicicleta, encaminhando-se diretamente
para um dos navios atracados...
— Também não sabe qual era o navio?...
— Sabemos. É o “Vento da Malásia”, um cargueiro de
ótimo aspecto utilizado no transporte de copra e outros
produtos nativos. Mas eu me pergunto se o fato de ele se
encaminhar para esse navio pode ter alguma significação.
Talvez tenha sido mera casualidade. Em seu estado mental,
qualquer atitude sua não deve ser levada, muito em conta.
— Claro. “Vento da Malásia”, hem? Bonito nome para
um cargueiro. Quem é o dono?
— Ainda não sabemos. Um de nossos homens em
Cingapura está incumbido de descobrir, bem como de várias
outras investigações sobre o assunto.
— Acho que terei de ir a Cingapura.
Cavanagh expressou certa hesitação.
— Não sei. Você mesma terá de decidir, segundo sua
intuição. Há três pontos interessantes no sudoeste asiático,
de modo que só você mesma poderá escolher. Como eu ia
dizendo, Dick Hinman chegou diante do “Vento da
Malásia”, saltou da bicicleta e correu para o barco. Logo a
seguir chegou um automóvel preto. Diversos malaios
desceram e correram atrás de Hinman, que os viu e se atirou
ao mar. Produziu-se imediatamente grande confusão no
cais. Surgiram malaios, chineses, indianos... Você não
desconhece a heterogeneidade da população de Cingapura.
Também surgiram dois brancos, oficiais de cargueiros
atracados perto do “Vento da Malásia”. A princípio, todos
ficaram na beira do cais, à espera que o homem voltasse à
tona d’água. Como demorasse a flutuar, meia dúzia de
estivadores malaios mergulharam, trazendo-o de volta.
— O nosso companheiro não sabe nadar? — perguntou
Brigitte, incrédula.
— Todo agente sabe nadar muito bem. Algo deve ter
acontecido; talvez uma comoção, segundo o parecer médico
que recebemos. A verdade é que Hinman foi tirado da água
sem sentidos. Vários policiais acorreram ao local, e ao que
parece, alguém sugeriu que os homens do automóvel preto
deviam ter algo a ver com Hinman. Quando os policiais
olharam para o lugar indicado pelos curiosos, o carro preto
já havia desaparecido. Então, Dick Hinman foi levado para
um hospital e a Polícia se incumbiu de enviar urna
mensagem a Saigon, informando da presença de Richard
Hinman, bem como do estado em que se encontrava.
— A Saigon?! Por quê?
— Dick Hinman portava uma plaquinha de identificação
como soldado da Infantaria de Marinha dos Estados Unidos.
Pensaram que fosse um desertor do Vietnam e avisaram a
uma das bases. Vinte e quatro horas depois, Dick Hinman
era trasladado para Saigon e internado numa das
enfermarias militares.
— Realizava algum trabalho que exigia a falsa
personalidade de fuzileiro naval? — interessou-se Brigitte.
— Não. Na verdade, ele era um dos residentes de Sahah,
ou, se prefere dizer assim, de Bornéu do Norte. Não tinha
absolutamente nada que fazer em Cingapura.
— Confesso que não compreendo, mister Cavanagh.
— Nem eu.
Brigitte pestanejou, desconcertada.
— Mas... deve haver alguma explicação, não é?
— Ficaríamos satisfeitíssimos se você encontrasse essa
explicação, “Baby”. Tenha isto em mente: Richard Hinman,
junto com mais três homens da CIA, estava postado em
Sabah, ao Norte da ilha de Bornéu, porque há certa
inquietação política ali e queremos estar atualizados. Os
quatro desapareceram de Sabab.
— Os quatro?
— Os quatro. Eu já lhe mostrarei as fotografias dos
outros três, para o caso de encontrar-se com algum deles.
— Encontrar-me? Onde?
— Você é que é “Baby”, não eu... — sorriu Cavanagh.
— Só lhe posso dizer que os nossos quatro homens de
Sabah desapareceram e que, semana e meia depois, um
deles, Dick Hinman, apareceu a quase mil milhas de
distância, em Cingapura, perseguido, espancado, com as
roupas em tiras, fugindo de algo que não conseguimos
adivinhar. E transformado num louco ou em pouco menos
que isso.
— Então, seria conveniente ir a Cingapura.
— É possível. Mas há um detalhe: em seu delírio, Dick
afirma insistentemente que tem de ir a Manila para matar
um homem.
— Quem?
— Não sabemos. Não menciona nomes, mas está
firmemente decidido a matar uma pessoa.
Talvez seja o causador do desaparecimento dos quatro e
da alucinação de Hinman...
— Sim. É possível.
— E parece que essa pessoa deve estar em Manila...
— Bem... Eu já lhe disse que as condições mentais de
Dick Hinman não permitem levar-se muito em conta as suas
afirmativas. Talvez o que ele diz não tenha o menor sentido.
— Talvez.
— Nesse caso, temos três cartas nas mãos: Sabah,
Manila e Cingapura. Qualquer dessas três cartas pode ser
decisiva para o que está acontecendo e pode ser assim
resumido: desaparecimento de quatro agentes da CIA em
Sabah, com o reaparecimento de apenas um deles em
Cingapura, em lamentável estado físico, acima de tudo meio
louco, a mil milhas de seu posto.
— Sou eu quem tem que decidir sobre o meu lugar de
destino?
— Sinceramente, Brigitte, confiamos mais em sua
intuição do que em nossas deduções.
— Terei que pensar, pois não convém tomar decisões
apressadas.
— Sem dúvida. Ah, tenho quatro homens à espera de
conhecê-la pessoalmente. Serão divididos em duplas, indo
dois para um lugar, dois para outro e você para aquele que
pretenda visitar: Manila, Sabah ou Cingapura.
— Entendo. Poderei manter-me em contato com ele
quando estivermos cm nossos respectivos destinos?
— Se não vir inconveniente nisso. Teremos residentes
naturais do país nos três pontos, encarregados de possantes
emissoras capazes de enlaçar os diversos pontos da CIA no
Sudoeste Asiático. São bons elementos.
— Não ocorreu nada ao nativo de Sabah, quando
desapareceram os quatro agentes?
— Nada aconteceu ao nosso “rádio” de Sabah.
Felizmente, parece que não conseguiram localizá-lo. Foi ele
quem nos comunicou o desaparecimento dos quatro
homens, três dias depois da ocorrência.
— Por que somente três dias depois?
— Bem... Você deve saber que às vezes um espião fica
alguns dias sem possibilidade alguma de enviar mensagens
ou estabelecer contatos. Por isso, o nosso “rádio” esperou
três dias e chamou.
— Não enviamos substitutos para os nossos agentes de
lá?
— Esperamos até que nos chegou a noticia da
recuperação de Hinman. Enviaremos dois, ou você mesma
irá para lá. Outros dois irão para Manila.
— Não desapareceu ninguém na capital filipina?
— Tudo está bem ali. Pelo menos, aparentemente...
— Entendo. Eu gostaria de conhecer os meus quatro
colegas de missão agora mesmo, se não houver
inconveniente.
Cavanagh acionou um radinho de bolso, dizendo
simplesmente: “Venham ao quarto de Hinman.”
Apenas dois minutos depois os quatro homens surgiram.
Ficaram olhando para “Baby”, após ligeira olhadela
sombria para o companheiro, que continuava adormecido.
— Esta é “Baby” — apresentou Cavanagh — e eles são.
— Já os conheço... — interrompeu-o Brigitte, sorridente,
estendendo a mão para os colegas. — São Johnny I, Johnny
II, Johnny III e Johnny IV. Prontos para o pior?
— Cem por cento! — responderam os Johnnies, em
coro, apertando efusivamente a mão de “Baby”.
Compreendiam perfeitamente sua atitude ao interromper
mister Cavanagh: não queria saber seus verdadeiros nomes.
Para ela, todo agente da CIA que lutasse ao seu lado era
simplesmente Johnny. Por muito que a torturassem e
submetessem ao soro da verdade, caso fosse prisioneira, só
os poderia delatar dizendo que se chamam Johnny I, Johnny
II, Johnny III e Johnny IV. Para grande desgosto do
inimigo, é claro. E grande satisfação dos Johnnies...
— Vamos para a Sala de Instruções — disse Cavanagh.
— Partirão para a Ásia o mais breve possível.
Todos assentiram com a cabeça. “Baby” se aproximou
do leito e ficou contemplando Dick Hinman alguns
segundos.
— Poderá recuperar-se? — perguntou.
— Há possibilidades... — murmurou Cavanagh. — De
qualquer modo, será um processo lento. Não só lhe devem
ter lavado o cérebro por processos brutais como também
afetado seu equilíbrio mental. Há possibilidades... com
tempo paciência.
Talvez os outros três estejam em idênticas condições
num ponto qualquer da Ásia — murmurou Johnny II.
— Temos de encontrá-los — declarou Johnny incisivo.
— E também o autor da monstruosidade — acrescentou
Johnny III, revoltado.
— Não será fácil — opinou Johnny li, pensativo.
— Não... — concordou Brigitte. — Não será fácil.
— Vamos — convidou Cavanagh, abrindo a porta.
Os cinco homens se encaminharam para a saída do
quarto e Brigitte ficou ao lado de Hinman, acariciando-lhe
suavemente o rosto. Quando se voltou para os cinco, tinha
os olhos os e o rosto crispado. Sua voz não lhes soou doce
como de costume quando ela disse:
— Nós os encontraremos. Todos. E o responsável
pagará caro. Ninguém fica devendo a “Baby”...
***
Às cinco da madrugada tudo estava decidido na Sala de
Instruções da CIA. Brigitte já conhecia por foto os três
outros desaparecidos e havia tomado sua decisão. Ninguém
objetou quando ela fez a distribuição: Johnny I e Johnny II
iriam para Sabah; Johnny III e Johnny IV, par Manila.
— Eu irei para Cingapura — disse ela, finalmente.
Sua prodigiosa intuição por certo não lhe iria falhar
neste caso.

CAPÍTULO TERCEIRO
Liberalidade com dinheiro da CIA
Lances dramáticos de um baile perigoso
Era zuna vez um chinês....

Trinta e seis horas depois a espiã internacional vencia


sem dificuldade as formalidades aduaneiras no Aeroporto
de Cingapura. Ela já sabia muito bem que Cingapura quer
dizer “Cidade do Leão” e que ali se falam todos os idiomas
do mundo, de preferência o tamil, o malaio autêntico, o
chinês e o inglês.
Seu passaporte não correspondia à americana Brigitte
Montfort, mas à francesa Monique Lafrance — nome por
ela já utilizado em diversas ocasiões.
Às cinco e dez da tarde, mademoiselle Lafrance tomava
um táxi no estacionamento do aeroporto, dando o endereço
do luxuosíssimo “Singapore Bay Rotel”, na exótica, alegre
e ensolarada Seaside Road. Nesse hotel houve pequeno
imprevisto, pois Monique Lafrance não tivera o cuidado de
reservar acomodações, mas duas notas de cem dólares
americanos criaram espaço de sobra, como por encanto, e
antes das dezoito horas “Baby” ocupava luxuosa suíte,
tendo à sua disposição duchas, televisão, ar condicionado,
serviço telefônico, um carro alugado e tudo quanto pudesse
desejar urna pessoa capaz de pagar preços exorbitantes.
Nunca é demais lembrar que Brigitte sempre foi muito
liberal, principalmente em se tratando de dinheiro da CIA.
Dedicou-se, com sua habitual rapidez, a dispor as coisas
nos armários e nos lugares mais convenientes, procurando,
simultaneamente, microfones e demais engenhocas
perigosas de espionagem internacional. Nada. Às dezoito e
trinta já havia terminado a operação.
Tomou um banho tépido logo seguido de uma ducha
gélida, sentindo-se de excelente humor e em perfeitas
condições físicas. Um vestido de noite, azul-escuro, foi
escolhido para a entrevista que ela pretendia realizar.
Sapatos de meio salto, gelo, e um bonito xale espanhol de
igual cor completaram a toalete, devidamente reforçada
pela pistolinha de coronha de madrepérola presa à coxa
direita por tiras de esparadrapo cor da pele. Não faltou a
maletinha vermelha com flores azuis.
Às dezenove e quinze, saía do “Singapore Bay Hotel” e
chamava o condutor de um trishaw, que se apressou a
pedalar até junto dela.
(O rickshaw é o clássico carro de mão, puxado por um
coolie a pé. O trishaw é um triciclo a pedal, que cumpre as
funções do rickshaw, porém com muito mais comodidade e
menor esforço para o coolie, que vai sentado num selim,
pedalando como numa bicicleta.)
Com um sorriso simpaticíssimo, o coolie, mestiço de
chinês e malaio, assentiu velozmente à pergunta feita em
inglês, e, enquanto a bela passageira se acomodava no
assento com capota, pedalou cheio de brios. Seaside Road a
baixo, driblando com maestria todos os tipos de veículo e os
pedestres, tão imprudentes aqui quanto em qualquer parte
do mundo. Por entre palmeiras, cercada de rostos brancos,
amarelos, trigueiros, azeitonados e de matizes
intermediários, a espiã que solucionava os conflitos
máximos da CIA foi submetida a verdadeiras glissages.
Indubitavelmente, todos, naquele cadinho asiático, pareciam
adeptos do princípio de que, tudo o que tem rodas, foi feito
para andar a grande velocidade...
O céu tinha algumas nuvens que começavam a
apresentar o tom vermelho do rápido ocaso malaio. Várias
sirenas de barcos silvavam no porto.
O trishaw abandonou quase bruscamente as avenidas
largas, penetrando em ruelas de difícil trânsito. Por fim,
com uma freada espetacular para o veículo de tão pequeno
porte, o triciclo parou diante de uma casa em cuja fachada
havia dois globos de vidro com luz azul no interior e
caracteres malaios por fora. Entre as duas esferas,
imediatamente sobre o portal, estava escrito:
SAKTJ’S SILAT.
O coolie começou a falar com a mesma rapidez com que
havia pedalado e Brigitte, sem entender coisa alguma,
respondeu no mais universal dentre todos os idiomas: em
dólares. E com tanta riqueza “vocabular”, que o pobre
asiático ainda fazia reverências quando ela já havia
empurrado a porta e entrado na casa.
Encontrou-se num vestíbulo grande, adornado com
plantas e flores. Cenas de dança gravadas nas paredes de
madeira, tudo em cores variadas, porém as mais gritantes.
Ao longe, música suave e vozes cantando em tamil. Não
entendendo nada de nada, decidiu continuar avançando.
Havia uma porta muito bonita, de papel espesso pintado em
cores vivas. Abriu-a e quase caiu nos braços de algo fora do
comum: um gigante de pele cobreada, cabeça enorme e
olhos minúsculos, que a contemplava entre irritado e
assustado, O susto parecia mais evidente.
— Duga! — disse, estendendo a mão descomunal diante
de Brigitte. — Doga!
“Baby” afastou amavelmente aquela verdadeira caçamba
de guindaste e começou a falar em inglês, mas logo
percebeu que não seria entendida. Apelou para a linguagem
quase mímica, dizendo, enquanto pousava a mão direita
sobre o coração:
— Cheke Sakti.
Claro: só podia significar pessoa amiga de Cheke Sakti.
Até aquela montanha de estupidez conseguiu entender, pois
assentiu com a cabeça e se encaminhou para uma escada de
madeira que dava para uma espécie de torre parecida com
um pagode em miniatura.
Enquanto os degraus rangiam sob o peso do gigante,
Brigitte, logo atrás dele, observava um grande salão de
soalho reluzente e paredes brancas adornadas com mais
figurações de baile, mera reprodução do que estava
acontecendo diante de seus olhos: nada menos de quarenta
pessoas se movimentavam descalças, com roupas de um
colorido ofuscante, formoso, cheio de vida. Havia meninos
de uns oito anos, jovens na flor da idade, homens maduros e
anciãos. Três personagens eram brancos; os demais,
chineses, malaios e mestiços dessas duas raças, além de dois
indianos, muito trigueiros. A um canto do salão, um malaio
atlético, de cabeça raspada, cantarolava algo em seu idioma.
A esquerda, outro malaio tocava uma espécie de violino
com braço extralongo; à direita, outro homem da Malásia
tamborilava suavemente em bongôs, também muito
alongados. Contagiante!
O malaio de cabeça raspada ergueu ligeiramente a voz e
o som do instrumento monocórdio se tornou mais agudo.
Então, a metade dos bailarinos se adiantou para os seu
pares, num bailado veloz que parecia agressivo. A maioria
dos oponentes caiu ao chão, de costas, sem que houvesse
toques de mãos ou pés. Sorrisos, reverências, manifestações
de aprovação.
— Mulher! — disse o gigante, em malaio.
Brigitte se virou para ele. Sem perceber, havia parado no
meio da escada, embevecida com a graça e a originalidade
do estranho bailado malaio. O gigante sorria.
— Cheke Sakti está? — perguntou a espiã.
O brutamontes assentiu com a cabeça. Notando o
interesse da. visitante pelo belo espetáculo, apontou para o
salão com sumo respeito e disse em mal inglês, para grande
surpresa de Brigitte:
— Silat dancing. Silat Jighting. Malay.
Queda dizer “a dança-combate malaia da silat”.
— Muito obrigada pela informação. Agora, leve-me a
Sakti.
A cabeça disforme moveu-se de novo afirmativamente.
Subiram a escada, o gigante abriu uma porta e Brigitte se
encontrou em amplo corredor suavemente iluminado em
azul. Ao fundo, uma porta com painel de papel pintado,
mostrando dois homens tomando parte na dança-combate da
silat.
— Cheke espera mulher — disse o mastodonte.
Brigitte agradeceu com um sorriso, adiantou-se pelo
corredor e empurrou a porta de papel pintado, entrando num
cômodo retangular decorado e mobiliado com a máxima
sobriedade. Algumas esteiras, uma mesa, quatro cadeiras
lisas, pequena estante de livros e uma lanterna de palha no
teto. Tudo de colorido suave, pacífico, delicado.
Um homem estava de pé junto à janela. Bem alto,
ombros largos e bela cabeça com cabelos que, de tão
negros, chegavam a ser azulados. Vestia apenas um sarong
de cores vivas, deixando nu o tórax bronzeado. Tanto podia
ser um nobre, pela postura fidalga, como um gladiador, pela
musculatura fora do normal. Parecia um deus mitológico.
— Tenha a bondade de entrar — disse com voz grave,
veludosa. — Eu sou Cheke Sakti, proprietário e professor
desta escola de silat. Quer sentar-se?
“Que homem fascinante! Valha-me Deus...” pensou
Brigitte, aceitando o convite para sentar-se. Cheke Sakti
sentou-se perto dela. Com gestos que refletiam o descaso
oriental pela noção de tempo, inclinou-se, recolheu um
binóculo do chão e ficou observando alguns segundos pela
janela. Franziu a testa, depôs o binóculo no chão e olhou
para Brigitte.
— Que deseja tomar? Um chá ou um scotch?
— Obrigada. Meu nome é Monique Lafrance.
— Recebi a mensagem. Sei que é “Baby” —
interrompeu-a Cheke, delicadamente.
— De fato. Se conseguiu alguma informação...
— Chegou em mau momento, porque estou sendo
vigiado. Devo ter cometido algum equívoco durante as
investigações como parte dos preparativos para lhe prestar
assistência em Cingapura.
— Quem o está vigiando?
— Um chinês. Naturalmente, do serviço secreto chinês...
Terão algo a ver com o caso?
— Deve saber melhor do que eu, mister Sakti.
— Sim. E verdade. Segundo as minhas averiguações, os
chineses não estão envolvidos. Por certo não tive sorte,
provocando a desconfiança de algum chinês. Aqui, em
Cingapura, estamos sempre alerta, não deixando escapar
nenhum detalhe. Quer ver o chinês?
— Por que não?
Cheke Sakti se afastou, entregando o binóculo a Brigitte,
que facilmente localizou o chinês do outro lado da rua, todo
vestido de branco, à ocidental, aparentando grande
naturalidade, como se simplesmente esperasse alguém. Mas
para um espião profissional não restava a menor dúvida
quanto a que estivesse vigiando algo.
Brigitte devolveu o binóculo a Sakti e acendeu um
cigarro.
— Conhece esse homem? — indagou.
— Não. Nem ele a mim. De qualquer modo, será bom
que fique atenta. Aqui há de tudo: chineses, russos, ingleses,
franceses, australianos, japoneses, americanos etc. Quero
dizer que todos são espiões...
— Entendo.
— Não obstante, há uma espécie de trégua em
Cingapura, no momento. Tudo é simples vigilância,
controle, suspeitas e coisas parecidas. Deve querer saber
algo sobre o americano que foi recolhido há seis dias no
porto, supostamente um fuzileiro desertor.
— De fato. Bem sabe que não era um desertor.
— Imaginei que fosse da CIA. Não entrou em contato
comigo e nem com qualquer dos americanos residentes, em
missão de espionagem na cidade.
— Nós também não nos envolveremos com esses
americanos. Sem dúvida já foram identificados e estão sob
vigilância, como o senhor — apontou para a janela.
— Tem razão — sorriu Sakti, exibindo dentes alvos,
perfeitos. — A verdade é que isso nunca me aconteceu.
Acho muito acertada sua idéia não recorrermos aos
americanos residentes em Cingapura. Quanto ao assunto
que a trouxe a esta cidade, posso dizer que o cargueiro
“Vento da Malásia” pertence a uma sociedade chamada
“Stabo Latex Ltd.”, com sede aqui mesmo.
— Que mais?
— Pouca coisa. Consegui localizar um dos sócios, um
inglês chamado Stanford Waverly. Tem quarenta anos, é
louro, muito agradável e elegante, endinheirado. E homem
simpático.
— Sabe onde mora?
— Claro.
— Quais sãos os outros sócios?
— Não sei. Dispus de seis dias para investigar, mas nem
tudo é fácil aqui como no Ocidente. Quando se quer agir
com discrição, o trabalho se torna mais difícil. Ainda
assim... — apontou para a janela.
Tornou a olhar com o binóculo.
— O chinês continua vigiando? — interessou-se
Brigitte.
— Continua. Deve tê-la visto entrar, sendo bem
provável que esteja tirando conclusões muito acertadas... O
seu tipo se presta para sugerir que seja uma espiã francesa
ou americana e aquele chinês bem pode, por isso, imaginar-
me ligado à CIA ou ao Deuxiême Bureau. Como está o
americano chamado Hinman?
— Mal. Quase louco. Não me agradam tais métodos em
espionagem.
— Compreendo. Nem tudo, no Oriente, são máximas
budistas, “Baby”. De qualquer forma, os espiões devem
saber perfeitamente que, quando caem prisioneiros, podem
ser submetidos a tudo. É o que deve ter acontecido a
Richard ou “Dick” Hinman em algum lugar. Não me
pergunte onde, porque não saberei responder. Quanto a
mister Waverly, posso informar que é apaixonado pelas
brigas de galo. Freqüenta as rinhas de Cingapura duas ou
três vezes por semana. As apostas são assustadoras.
— Tirou alguma conclusão sobre o “Vento da Malásia”?
— Nenhuma. É um belo cargueiro, grande e bem
cuidado. Navega há muitos anos por estes mares. Mister
Waverly também circula há muitos anos por Cingapura. É
desses ingleses que resistem em abandonar sua colônia...
embora esta se tenha tomado independente. Por mais que eu
tenha investigado, não encontrei coisa alguma relacionando
mister Waverly com a CIA e nem sequer com o MI-6
inglês.
— Acha que o meu colega Hinman corria para o “Vento
da Malásia” por mera casualidade?
— Não chego a tanto, mas não tenho opinião formada,
“Baby”. Como pretende agir para estabelecer contatos?
— Saberei cuidar desse detalhe — respondeu a espiã,
sorridente.
— Nesse caso, Waverly ficará inteiramente aos seus
cuidados. Será capaz de se atrever?..
— Farei o possível — tomou a sorrir Brigitte.
— Ótimo. Com a guerra no Vietnam, Cingapura se
tornou um pouco... agitada, digamos assim. Estamos muito
perto do círculo de espionagem relacionado com o campo
de batalha. É claro que aqui não se resolve nada, mas os
serviços de espionagem devem justificar sua existência.
Conseguiu hospedar-se confortavelmente?
— Quanto a isso, estou satisfeitíssima. Obrigada pelo
interesse. Parece-me um tanto... inquieto. É seu feitio, ou...?
— Não gosto de ser vigiado por um chinês. Daí até levar
uma punhalada a distância é diminuta.
— Não devia preocupar-se tanto. Que tal se me
convidasse para tomar algo? Sakê, por exemplo.
Cheke Sakti olhou-a quase divertido.
— Gosta do vinho de arroz? — surpreendeu-se.
— Gosto de tudo.
— Isso é bom. Mas não creio que seja o momento
adequado para tomar sakê. A meu ver, devia sair pela porta
dos fundos e...
— Nada disso, Sakti — interrompeu-o Brigitte. — Tais
recursos são bons para espiões medíocres. Gosto de entrar e
sair pela porta da frente. Conhece algum bar... típico,
agradável?
— Sem dúvida. Está convidada para o sakê. Lá
terminaremos a nossa conversa. Espero poder mostrar-me
menos preocupado... Queira perdoar-me um instante.
Afastou-se e regressou pouco depois impecavelmente
vestido à ocidental; mais exatamente, segundo o moderno
figurino italiano, todo de cinza-chumbo. Tomou Brigitte
pelo braço, com muita naturalidade, atravessando o corredor
e começando a descer a escada.
Lá embaixo estava o brutamontes malaio, atento à
dança-combate.
— Simpático o seu amigo gigantesco — disse “Baby”.
— Chegou a esforçar-se para falar em inglês comigo,
querendo agradar-me.
— Wila? — riu Sakti. — É um sonso. Fala inglês como
um britânico, mas procura fazer-se de tolo para
impressionar.
— Pois conseguiu iludir-me por completo. É artista.
— E um grande apreciador da silat. Conhece essa dança
“Baby”? É muito característica da Malásia. Na verdade, um
sistema de defesa pessoal como o judô, por exemplo.
— Talvez mais como a capoeira, dos brasileiros — disse
ela — porque já observei que também é uma dança-
combate, acompanhada de música.
— Boa comparação — admitiu Sakti. — Contudo, a
silat se diferencia da capoeira num detalhe muito
importante, pois nesta, para derrubar o inimigo, é preciso
entrar em contato com ele, geralmente empregando as
pernas, enquanto que na silat, um bom praticante pode
derrubar o adversário sem sequer tocá-lo.
— Na capoeira há golpes mortais... — lembrou Brigitte.
— Eu sei. Estudei cuidadosamente essa verdadeira arte
belicosa brasileira e cheguei a pensar em introduzi-la na
Malásia, mas desisti da idéia ao esbarrar com a dificuldade
de transmitir a mensagem contida nos gestos. A capoeira,
como a silat, é mais sentida do que aprendida, só
encontrando espontaneidade no povo que lhe deu
surgimento.
Brigitte estava impressionada com o estalão cultural do
colega malaio.
— A silat também só tem expressão quando executada
por malaios — prosseguiu ele, parado no descanso da
escada. — É praticada em toda a costa do país, com
variações, mas basicamente inalterada. Há especialistas
capazes de derrubar um adversário sem tocá-lo, como eu já
disse, provocando um descontrole mental que desliga
momentaneamente o comando cerebral dos membros, por
meio de gestos desconexos seguidos de ademanes
ameaçadores inesperados, em meio a um bailado
vertiginoso que afeta seu equilíbrio emocional, O tom, o
timbre, a altura e o motivo da música de fundo contribuem
para produzir o descontrole do sistema neuromuscular do
adversário. Veja — apontou para o grande salão.
Brigitte viu de novo quase a metade dos bailarinos cair
de costas, quando praticada a “agressão” sem contato físico.
Simplesmente a música aumentara de intensidade e o grupo
atacante havia acelerado tanto seus movimentos diante dos
contrários, que estes parecerem atordoados, desconcertados,
a ponto de desequilibrar-se. Novos sorrisos, reverências,
expressões de aprovação. Exceto para os que não
conseguiram derrubar seus oponentes, que receberam uma
lição especial do professor. Os músicos continuaram
tocando, enquanto aquele, com suas roupas vistosas, se
defrontava ao mesmo tempo com dois discípulos que não
tinham sido derrubados. Durante alguns segundos bailou
entre eles, como se os estivesse imitando. De repente, seus
movimentos adquiriram uma rapidez que surpreendeu
Brigitte, uma aceleração que não permitia o
acompanhamento visual. E algo aconteceu aos dois
discípulos, pois caíram sem ser tocados, um deles de costas
e o outro de joelhos. Risadas e olhares de admiração para o
professor, que ergueu a mão pedindo silêncio.
— É algo maquiavélico — exclamou Brigitte. — No
entanto...
— Não se convenceu — concluiu Sakti.
— Visto de certa distância, parece mistificação.
Sakti deu um sorriso enigmático, apontando para a saída
e puxando-a delicadamente pelo braço. Continuaram
descendo a escada.
— Convidei mademoiselle Lafrance para um sakê —
disse a Wila, que o contemplava como a um ser
extraterreno. — Se aquele chinês entrar em nossa casa,
mate-o. — Depois, voltando-se para Brigitte: — Nós, os
orientais, não damos grande importância à vida.
Justificava sua decisão extrema. Porém o chinês que
estava na rua não entrou na Saicti’s Silat quando o casal se
afastou no carro de Sakti, passando a segui-lo numa
pequena motocicleta de fabricação japonesa.
Os dois entraram num bar e restaurante chamado
“Malaysian Party”, perto do porto, no sobrado de uma
construção antiga, onde só havia janelas, escolhendo uma
mesa junto a uma delas. Cheke Sakti explicou que os baixos
do enorme quiosque eram exclusivamente ocupados pelo
depósito de mantimentos e pela cozinha do estabelecimento.
— Além disso...
— Conheço coisa parecida — interrompeu-o Brigitte,
olhando distraidamente para a baía, atulhada de
embarcações de todos os tipos. — Quando estive no Rio de
Janeiro — fica no Brasil, como deve saber — há algum
tempo, um amiguinho que arranjei na Praia de Copacabana,
o Rafa, levou-me para comer deliciosa peixada em elegante
casa do gênero, no histórico Caix du Pharoux. Chama-se
“Albamar”, se não me falha a memória.
— Ah!... — fez Sakti, decepcionado por não ter
apresentado uma novidade. — Aí está o nosso “amigo”...
Brigitte pareceu não ouvir essa observação. Colocou a
maletinha em cima da mesa, retirando um maço de cigarros
e uma piteira de marfim cravejada de brilhantes.
— Bela piteira — comentou Sakti. — Na verdade, uma
obra de arte.
— De fato, uma jóia autêntica... — sorriu a espiã,
divertida.
Olhou para o chinês vestido de branco que estava junto à
caixa, pedindo para falar ao telefone. Ele fez a chamada e
falou durante alguns segundos. Depois, virou-se e olhou
para o casal com uma naturalidade que fez Brigitte sorrir,
encaminhando-se para uma mesa. Nesse momento, o
garçom servia sakê, enquanto Cheke Sakti parecia muito
preocupado.
— Deu um telefonema — advertiu. Dentro de alguns
minutos outro chinês virá juntar-se a ele para que nos
possam vigiar quando nos separarmos. Não estou
gostando...
— Fique quieto — aconselhou “Baby”. — Está batendo
uma microfoto. Não se vire para ele!
— Que disse?
— O nosso “amiguinho” chinês fotografou-nos com seu
isqueiro. Isto é, com a máquina fotográfica que está dentro
dele. Acha que o sakê tem a temperatura apropriada?
— Escute, “Baby”: não estamos brincando de...
— O melhor saké que tomei foi em Hong-Kong —
interrompeu-o Brigitte. — Já esteve lá, Sakti?
— Já, várias vezes. Mas o chinês...
— Esqueça-o. Diga-me: qual a rinha predileta de
Stanford Waverly?
— Tem preferência por um lugar chamado “Game-cock
Imperial Hill”. É um pitoresco ponto de reunião para gente
de toda classe com posição para fazer apostas astronômicas.
— Waverly é casado?
— Não.
— Aventuras amorosas?
— Nada.
— Ótimo. Dentro de alguns minutos sairemos daqui.
Você irá localizar os sócios de
Stanford Waverly. Quero saber exatamente quem são, o
que fazem e como vivem. Tudo. Entendeu?
— Sim, claro.
— Eu estou no “Singapore Bay”, com o nome de
Monique Lafrance. Suíte 121. Contudo, a partir deste
momento, o contato entre nós fica interrompido, a menos
que tenha algo verdadeiramente interessante para me dizer
ou eu o chame em sua... casa de baile. Certo?
— Certo.
Brigitte tomou um gole de sakê tépido, prendeu a piteira
de marfim entre os dentes e estremeceu ligeiramente, como
se tivesse dado um soluço. Sorrindo, colocou um cigarro na
piteira, sem acendê-lo, acabou de tomar o sakê e segurou
delicadamente o braço do malaio.
— Vamos? — disse.
— Mas... e o chinês?
— Cuide de sua incumbência com o máximo zelo, Sakti.
Vamos separar-nos logo ao sair daqui. Você cuidará do seu
trabalho e eu do meu. Eis tudo.
Levantou-se. Sakti deixou precipitadamente algumas
notas sobre a mesa e foi atrás dela. Esteve a ponto de soltar
uma exclamação ao vê-la aproximar-se da mesa ocupada
pelo chinês, que estava reclinado, com a cabeça caída sobre
os braços. Podia estar dormitando, ou recorrendo a um
estratagema...
Cheke Sakti estremeceu ao ver Monique Lafrance parar
junto ao chinês e apanhar tranqüilamente o isqueiro dele.
Com uma serenidade digna da agente “Baby”, usou-a para
acender seu cigano, soltando uma baforada. Malaios,
chineses, indianos e alguns brancos admiravam seus
encantos. Os ventiladores do teto sopravam uma brisa fresca
que fez a fumaça tornar a descer, envolvendo-a.
Mademoiselle Lafrance reuniu-se a Sakti na escada.
Desceram em silêncio. Já na rua, ela indicou o carro do
malaio e os dois se encaminharam para a simpática
limousine MG verde-garrafa.
— Tome — disse ela, entregando-lhe algo que tinha na
mão. — É um pequeno souvenir do nosso colega de
espionagem...
— Mas... é o isqueiro do chinês!
— Exato. Eu não gostaria que uma foto minha chegasse
a Pequim. Tenho meus motivos. Destrua a película e faça
bom uso da engenhoca cm nosso serviço.
— Mas... e o chinês?
— Esqueça-o. Seu colega o encontrará morto. Não me
agradou liquidá-lo, porém seria pior se a nossa foto
começasse a circular por Cingapura e, logo a seguir, pela
China. Tive que matá-lo.
— Ma... matá-lo? Como?
Brigitte jogou o cigarro no chão, apagando-o com o pé.
— Disparei um dardo envenenado contra ele — sorriu
friamente. — Como você disse, Sakti, esta piteirinha é uma
obra de arte... Até à vista. Não se esqueça das minhas
instruções. Oh, que distração: você me disse que bateu uma
foto de Waverly; posso vê-la?
Cheke Sakti tirou uma carteira do bolso, em cujo fundo
duplo estava a fotografia, que mostrou a Brigitte.
— Está vendo? — disse ela. — Não é bom que nos tirem
fotografias. Au revoir, mon ami. Espero que as brigas de
galo sejam divertidas...

CAPITULO QUARTO
“Java”, o Terrível versus “Kritna”, o Flagelo da Malásia
Cem dólares que mudam de mão
Mas quem está aos cuidados de quem?

Os dois galos estavam frente a frente, separados apenas


por uma faixa traçada no solo e retidos por seus respectivos
treinadores malaios. Dois galos enormes, de plumagem
policrômica. Acocorados, os treinadores aproximavam e
afastavam os combatentes, irritando-os um contra o outro,
preparando-os para a grande luta. As aves pareciam feras,
com esporões grandes e pontiagudos.
Ao redor dos galos e dos treinadores malaios, que
estavam vestidos de branco e com chapéu de palha cônicos,
cinco círculos concêntricos de espectadores que se
acotovelavam, gesticulavam exacerbadamente, trocavam
impressões, gritavam e, naturalmente, faziam previsões
discordantes. Quase todos eram malaios, chineses e
indianos. Os poucos brancos estava igualmente excitados,
ávidos de presenciar o embate, que seria mortal: os galos
ficariam na rinha até que um morresse!
A “Game-cock Imperial Hill”, nome que se poderia
traduzir por “Colina Imperial de Brigas de Galo”, era
separada do resto da paisagem apenas por delgada cerca de
bambu e toda a sua área, coberta de grama verdejante, seria
teatro da luta. A um dos lados, assentos para os
espectadores mais ricos, protegidos por uma cobertura de
bambus e palmas. Dois chineses gordos, refestelados em
poltronas de vime, abanavam-se lentamente como se nada
daquilo os importasse.
Stanford Waverly era um dos brancos que estavam
sentados sob a cobertura, na primeira fila, abanando-se
também com alvo pay-pay e com um chapéu igualmente
branco. Estava em mangas de camisa, sem gravata, com o
rosto bronzeado cheio de gotículas de suor e os olhos azuis
fitos num dos galos.
— Quinhentos! — gritou, de repente. — Quinhentos em
“Java”!
Repetiu a aposta em malaio e em chinês. Um dos
chineses gordos moveu seu pay-pay na direção do inglês,
com indolência: estava aceita a aposta.
Um branco agitou os dois braços e gritou que também
aceitava. Falou em inglês, mas com um perceptível sotaque
alemão, e, logo a seguir, as apostas choveram num confuso
bombardeio de vozes em vários idiomas, que durou até um
malaio em sarong de cores vistosas surgir com longa vara
de bambu. O silêncio foi absoluto.
O malaio colocou a vara de bambu entre os galos, olhou
um dos treinadores de cada vez e, de repente, ergueu a vara.
Os treinadores soltaram seus combatentes e saíram correndo
de perto das feras emplumadas.
Os galos se lançaram à luta, bicando-se com uma
agressividade que os deixou momentaneamente atônitos.
Arrepiaram-se, abriram muito as golas bem cuidadas,
limpas, perfeitas. Um deles, o mais escuro, desferiu um
golpe repentino com o pé e o esporão arrancou do
adversário algumas penas que giraram no ar como
pinceladas multicores. Houve uma gritaria entre os
espectadores, destacando-se os nomes dos combatentes:
“Java e “Kritna”. O terrível golpe devia ter sido desferido
por “Java”, porquanto Stanford Waverly também começou
a gritar. O chinês que aceitara a sua aposta permaneceu
impassível. Segundos, depois, quando parecia que “Kritna”
se acovardara, o valoroso combatente derrubou “Java” com
violenta bicada, aplicando imediatamente uma esporada que
lhe arrancou um pedaço da crista.
A gritaria foi então ensurdecedora, como um terrível
rugido contínuo.
Stanford Waverly sentiu uma pancadinha no ombro e
ouviu atrás de si uma voz feminina:
— Queira perdoar; qual dos dois é “Java”?
— O mais escuro — respondeu secamente Waverly, sem
se virar.
A luta estava de fato interessante. “Java” reagira
valorosamente, encurralando “Kritna” de encontro a cerca
de caniços da rinha, dando-lhe bicadas e esporadas que o
iam deixando depenado e ensangüentado.
— Posso fazer uma aposta? — tornou a soar a voz
feminina.
— Alguém terá de aceitá-la — respondeu Waverly, de
mau humor.
“Kritna” conseguira livrar-se do encurralamento, mas,
para decepção de seus torcedores, corria diante de “Java”,
fugindo vergonhosamente! Um murmúrio de desencanto
marcou esse lance do combate, mas verdadeiro alarido
estrugiu logo a seguir quando “Kritna”, voltando-se, deu
uma esporada que rasgou o peito de “Java”.
— Quer aceitar uma aposta minha? Cem dólares
americanos em “Kritna”.
— Aceito! — gritou Waverly, impaciente.
— Acha que se matarão?
— Deixe-me ver a luta em paz, sim?
Sua exclamação foi abafada pelas dos demais
espectadores, que estavam gozando de uma luta
sensacional: “Java” devolvera o golpe com uma fúria
inaudita e com tal acerto que seu esporão vazara o olho
direito de “Kritna”. Aplicou logo outra esporada que
arrancou penas do peito do adversário, produzindo um
chuveiro dourado, cintilante.
“Kritna” caiu e “Java” saltou sobre ele, de asas abertas,
batendo com força, entre penas que voavam para todos os
lados. Ergueu a perna direita e desferiu o golpe mortal com
o esporão. A cabeça de “Kritna” quase foi separada do
pescoço e o galo deu um salto, sacudindo as asas com
movimentos espasmódicos. Saltou várias vezes com a
cabeça pendente, espirrando sangue ao seu redor e,
estremecendo fortemente, caiu de lado, ficando imóvel.
Um grito de triunfo se misturou aos murmúrios de
decepção dos perdedores. As notas começaram a mudar de
mãos e dois malaios saltaram para o palco da luta. Enquanto
um recolhia o cadáver de “Kritna”, o outro se esforçava
para pegar “Java”, ainda enfurecido. Três ou quatro malaios
se dedicaram a recolher as penas, limpando o terreno para a
próxima luta, menos sensacional.
— Cho-Min! — riu-se Waverly, olhando para o chinês
gordo. — Onde estão os meus quinhentos dólares?
O gordo continuou inalterável, exibindo cinco notas de
cem dólares. Risonho, Waverly se aproximou dele e
recebeu o dinheiro delicadamente. Alguns malaios e o
branco de sotaque alemão se aproximaram do inglês para
pagar também suas apostas, embora alegando que “Java”
apenas tivera sorte. Mas, sorte ou não, as apostas eram
religiosamente pagas, porque as brigas de galo são coisa
muito séria, com freqüência resultando em morte para os
maus apostadores...
Muita gente já desfilava rumo à saída, desinteressada da
luta seguinte, tecendo comentários sobre o embate principal
da tarde. Waverly contava o que ganhara, sorrindo e,
subitamente, franziu a testa e olhou para o lugar onde
estivera sentado; mais exatamente, para a fileira de trás.
Não, não havia mulher alguma ali! Fugira ao pagamento
da aposta... Cem dólares americanos!
— Espertinha! — resmungou, guardando o dinheiro no
bolso. — Teve a sorte de eu não me virar para ver a sua cara
de malandra...
Saiu dando adeus a vários conhecidos e se misturando
com o povo. Na esplanada viam-se rickshawv, trishaw,
bicicletas, motocicletas e quatro ou cinco automóveis.
Waverly se dirigiu para o seu carro, um gracioso Hanna
esporte japonês, vermelho-brilhante. Abriu a porta,
saudando com a mão dois malaios sorridentes, agitando
para ele algumas notas de dólar, em sinal de triunfo...
— Mister, seu dinheiro.
Waverly voltou-se agilmente, reconhecendo aquela voz
de mulher. Abriu a boca para fazer um comentário um tanto
sarcástico, mas ficou com ela aberta, mudo de espanto e
admiração. Tinha diante de si a mais formosa e elegante
criatura que já vira. Estava com um vestido azul pervanche,
preso aos ombros apenas por duas alcinhas muito finas e
transparentes. Os ombros perfeitos, dourados pelo sol,
provocantes. Daí para baixo a mulher era tudo que se podia
desejar. Mais do que tudo, Waverly se convenceu de que
jamais vira e jamais tomaria a ver olhos tão lindos, de um
azul profundo, cintilante...
— Não quer o dinheiro? — sorriu a jovem.
— Afinal, eu perdi cem dólares americanos, não é
verdade?
— Sim... sim... sim... Então, é a pessoa que... que...?
— Que o aborreceu tanto durante a luta — sorriu
novamente ela.
— Oh, não! Em absoluto! Não me aborreceu!
— Sejamos realistas. Eu lhe peço que me perdoe. É que
eu nunca tinha visto uma. briga de galos e... bem, torno a
pedir-lhe que me perdoe. Aqui está o seu dinheiro. Boa-
tarde.
Stanford Waverly ficou estupefato, com as notas na
mão, vendo afastar-se aquela criatura de existência
possivelmente irreal. Estava tão abobalhado, que demorou a
perceber que ela parecia procurar algo, muito desorientada,
desconcertada.
De repente, como se despertasse de um sonho, lançou-se
no seu encalço.
— Miss... Mis... Eu lhe peço que desculpe a
indelicadeza. Na verdade...
— Sei perfeitamente que estava interessadíssimo na luta.
Não precisa se desculpar.
— Bem, se eu a tivesse visto naquele momento, sem
dúvida teria sido mais amável. Quero dizer... Oh, não posso
aceitar o seu dinheiro!
— Como? — surpreendeu-se a jovem, franzindo a testa.
— Pensa que eu seria capaz de não pagar a aposta?
— Não, não é isso! Claro que... Bem... Está procurando
alguma coisa?
— Um táxi, um rickshaw... qualquer veículo que me
leve ao centro da cidade. Vim de táxi, mas cometi a
imprudência de dispensá-lo. Devia ter mandado que me
esperasse...
— Há um táxi às suas ordens — disse Waverly,
triunfante.
— Deveras? Onde?
— Ali — Waverly apontou para o seu carro.
— Oh! Mas não é um táxi! Parece...
— Transformou-se imediatamente num táxi, para servi-
la — brincou ele, já meio recomposto. — Meu nome é
Stanford Waverly. Permita-me reparar minha descortesia
levando-a no meu carrinho para onde quiser.
— Muito amável. Eu seria uma tola se não aceitasse —
sorriu a jovem estendendo-lhe a mão. — Sou Monique
Lafrance. E muito obrigada, mister Waverly.
— Eu é que lhe devo agradecer o privilégio de conduzi-
la no meu “japonesinho”... Noto que não é de Cingapura.
Americana?
— Francesa. Estive algum tempo nos Estados Unidos,
onde aprendi a falar razoavelmente o inglês.
— Maravilhosamente, seria o acenado. Vamos para o
carro?
Monique Lafrance analisou rapidamente o galante
britânico. Quarenta anos, louro, olhos claros, simpático,
parecendo homem de boa linhagem. E Waverly precisaria
ser um rematado idiota para não compreender de imediato
que impressionara a bela jovem. Abriu a porta do carro para
ela entrar e se pôs rapidamente ao volante.
— Estou no “Singapore Bay” — disse Monique — mas
se ficar fora de mão para o senhor...
— Está aos meus cuidados — atalhou ele, galante. —
Sozinha em Cingapura?
Mademoiselle Lafrance pestanejou, antes de responder.
— De fato, mister Waverly, estou só.
— Magnífico!
— Não acho: detesto a solidão.
— Melhor ainda, mademoiselle: talvez me permita
destruir esta solidão. Conhece a cidade?
— Cheguei ontem e ainda não tive tempo para nada. Na
verdade, a primeira coisa que fiz foi vir à briga de galos. No
hotel me disseram que era algo muito interessante e eu quis
ver.
— Mas, mademoiselle Lafrance. Cingapura não é apenas
um lugar de brigas de galos! Vejamos... são cinco e meia.
Caso aprove, daremos uma volta de reconhecimento pela
cidade, visitando depois os pontos de maior interesse.
— Sou uma turista muito curiosa: gosto de ver tudo.
Mas não quero importuná-lo. Sem dúvida estarão à sua
espera para o jantar e eu não...
— Ninguém me espera para o jantar. Isto é...
— Está vendo? — sorriu a francesinha, aparentemente
decepcionada.
— Eu ia dizer que talvez mademoiselle me quisesse
esperar para jantarmos juntos.
— Eu?
— Na realidade, suplico-lhe que aceite meu convite.
— É muito amável, mister Waverly.
— Então... Aceita?
— Bem, a verdade é que estou um pouco desorientada
em Cingapura e não saberia como...
— Conte com um guia perfeito — sorriu o britânico. —
Vivo há muitos anos aqui e conheço a cidade muitíssimo
bem.
— Posso considerar-me uma mulher de sorte... Há
algum restaurante onde sirvam pratos exóticos?
Stanford Waverly ficou pensativo durante alguns
segundos, depois disse:
— Há certa semelhança entre as cozinhas chinesa e
malaia. Em Cingapura predominam os pratos chineses. Se
confiar em mim, eu lhe proporcionarei um jantar
memorável.
A dulcíssima mademoiselle Monique Lafrance olhou
para o inglês, surpreendida.
— Mas, mister Waverly! Como não confiar? Eu sei
reconhecer um autentico cavalheiro...
— Então, tudo resolvido. Fica por minha conta.
O conversível Hanna partiu das imediações da “Game-
cock Imperial Hill” para o centro da cidade.
Àquela altura, cabia muito bem uma pergunta: quem
estava aos cuidados de quem?...
CAPÍTULO QUINTO
Há felicidade para todos no mundo
Os deliciosos ninhos de salangana
Nem sempre se deve dizer “Yam seng”

Stanford Waverly introduziu a chave na fechadura, abriu


a porta e deu passagem à sua convidada, dizendo:
— Não é grande, mas tem espaço de sobra para um
solteirão..
Brigitte sorriu e entrou, passando por amplo vestíbulo
adornado e decorado com sóbrios motivos europeus.
Chegou ao living, que o inglês indicou abrindo os braços em
círculo.
— Espero que seja do seu agrado, Monique.
Não podia deixar de ser. Era uma sala enorme, com
quadros maravilhosos, tapetes valiosíssimos, mobiliário da
mais alta qualidade, uma estante contendo obras em vários
idiomas, um barzinho discreto. À esquerda, portas
envidraçadas dando para amplo terraço; à direita, duas
portas fechadas e, mais adiante, um corredor que por certo
levaria à cozinha.
— Muito bonito — murmurou “Baby”.
— Do terraço vê-se toda a baía. Durante o dia é um
espetáculo bonito, mas à noite é fantástico. Algo parecido
com Hong-Kong. Você já esteve em Hong-Kong, Monique?
— Não — mentiu ela.
— Venha... Estou certo de que jamais esquecerá este
espetáculo. Em certas ocasiões sinto a tentação de voltar
para a Inglaterra, mas quando contemplo a baía de
Cingapura me convenço de que seria uma tolice abandonar
esta cidade.
Abriu as portas envidraçadas e deu passagem a Brigitte.
Saíram para o terraço, verdadeiro jardim suspenso, florido.
Daquele quinto andar de moderno edifício situado na Queen
Avenue, paralela à Seaside Road, via-se realmente um
fantástico espetáculo noturno. Brigitte estava mais longe da
baía, mas tinha a impressão de estar mais perto do que na
noite anterior, quando contemplara a grande enseada do bar
chamado “Malaysian Party” em companhia de Cheke Sakti.
— Realmente maravilhoso, mister Stanford — sorriu a
espiã. — Deve sentir-se muito feliz aqui.
— Feliz? — pareceu surpreender-se Waverly.
— Sim, feliz. Nunca ouviu falar em felicidade?
— Muitas vezes, porém jamais me perguntei se sou ou
não feliz. Não disponho de tempo para essas indagações.
— Pois devia arranjar alguns minutos para pensar nisso
— disse ela, com o olhar no lindo panorama. — Sem
dúvida, haverá algo no mundo capaz de fazê-lo sentir-se
feliz... Só é necessário encontrá-lo.
Stanford Waverly colocou as mãos nos ombros de
Brigitte.
— Talvez eu já tenha encontrado esse... algo — disse,
olhando-a nos olhos.
— Talvez — sussurrou ela, com um ligeiro tremor nos
lábios.
As mãos de Waverly deslizaram suavemente até as
costas da espiã, que cerrou os olhos e entreabriu os lábios.
Quando se beijaram, Waverly estremeceu. Sim, talvez
tivesse já encontrado a felicidade. Talvez. Afastou-a
lentamente de si.
— Monique, eu gostaria...
— Não é necessário falar disto, Stanford — murmurou
ela. — São emoções que freqüentemente nos enganam.
— Sim, você deve ter razão...
Tomou a beijá-la e, desta vez, ela o abraçou, colando-se
a ele da cabeça aos pés. Foi um beijo demorado, com a
participação total de ambos.
— Stanford, acho que viemos aqui para jantar... — disse
ela, afastando-se delicadamente.
— É verdade — sorriu Waverly, suspirando. — Mas
você é tão atraente, tão... Monique, em poucas horas, eu me
deixei perder de amores por você. Quero proporcionar-lhe
tudo neste mundo.
— Até mesmo um jantar? — brincou ela.
Riram-se alegremente, virando-se para entrar no living.
Brigitte assustou-se ao ver uma silhueta silenciosa recortada
contra a luz interior junto a porta que dava para o terraço.
— Li Yuang! — exclamou Waverly. — Está brincando
de assombração?
Agora Brigitte podia ver bem o diminuto e idoso chinês,
todo de branco, com um gorro de “mestre cuca”. Li Yuang
falou um idioma ininteligível para ela, retirando-se após
receber a resposta de Waverly e inclinar a cabeça.
— Ele veio dizer que preparou um jantar caprichado
para a bela ocidental — revelou Waverly. — Sempre foi
muito galante. Agora, querida, você me perdoa um minuto?
Tenho que dar um telefonema.
— Não se preocupe por minha causa.
Waverly se voltou para o telefone que estava sobre uma
pequena mesa, mas mudou repentinamente de idéia e,
sorrindo para Brigitte, dirigiu-se a uma das duas portas que
davam para o living. Entrou e deixou a porta ligeiramente
entreaberta.
A espiã sentou-se no sofá, abriu a bolsa e tirou uma
cigarreira. Deixou-a sobre uma mesinha, enquanto acendia
o cigarro com o seu isqueiro de platina e brilhante capaz de
tirar cinqüenta microfotos.
Li Yuang tornou a aparecer na sala e se dedicou
atarefadamente a pôr a mesa, a um canto, sem fazer o menor
ruído. Ela ouviu o girar do disco do telefone e a voz de
Waverly, porém em tom muito baixo, ininteligível. E devia
estar falando em chinês ou em malaio. Enquanto Brigitte
fumava, Li Yuang acabava de pôr a mesa. Uma bonita
toalha de linho, copos de legítimo cristal, louça inglesa da
mais fina, talheres cintilantes e um candelabro com duas
velas vermelhas.
Finalmente, ouviu-se o ruído característico do telefone
sendo desligado e, dois segundos depois, Waverly
reaparecia sorrindo no living, mas tendo no rosto uma
sombra de preocupação que Brigitte captou facilmente.
— Queira desculpar — disse ele. — Era um assunto
importante. Negócios... Tudo pronto, Li?
O chinês assentiu com a cabeça e se retirou. Waverly
aproximou-se de Brigitte, com os olhos brilhando de
admiração.
— Quer um drinque antes? Não aconselho, porque os
aperitivos, por mais suaves que sejam, insensibilizam um
pouco o paladar...
— Então, não haverá aperitivos... Que preparou o seu
criado chinês?
— Você ficará sabendo... no devido tempo.
Tomou-a de um braço, levando-a para a mesa.
Ajudou-a a sentar-se e sentou-se de frente a ela.
Acendeu as duas velas vermelhas e ficou olhando para ela,
sorridente, encantado.
— Por certo não sou a primeira convidada... —
murmurou mademoiselle Lafrance. — A primeira a vir ao
seu apartamento...
— Acho que nenhum homem se lembraria de mulher
alguma estando diante de você. Ah... Aqui temos a sopa.
Não me pergunte de que, nem como é feita. Nem eu mesmo
sei de alguns detalhes, porque Li Yuang os guarda
exclusivamente para si. Prove.
Li Yuang, risonho, seguro de sua maestria culinária,
serviu a sopa. Afastou-se alguns passos e, como Waverly,
ficou observando a convidada, em expectativa. Brigitte
tomou cuidadosamente uma colherada de sopa. Franziu a
testa e tomou outra colherada... Uma terceira... Por fim,
olhou para o chinês, maravilhada.
— É uma delícia, Li Yuang. Nunca provei coisa igual!
Que sabor delicado! Stanford — olhou para Waverly —
você tem de arrancar o segredo dessa sopa de Li Yuang. Ele
não pode ser tão egoísta!
— Acho que ele não se negará, pelo menos, a dizer de
que é feita. Não é verdade, Li? Diga.
— Salanga — disse o chinês, retirando-se a toda a
pressa.
— Salanga? — murmurou Brigitte, voltando-se
novamente para Waverly.
— Solanga ou salangana — disse ele, sorrindo. — Deve
estar surpreendida...
— Um pouco. Não tanto quanto você possa imaginar.
Segundo os meus parcos conhecimentos ornitológicas, a
salangana é uma espécie de andorinha asiática.
— Mais ou menos... — admitiu Waverly. —
Terminemos a sopa antes que esfrie. Seria uma barbaridade.
Acabaram a sopa em silêncio. Sem dúvida, o sabor e a
finura não tinham comparação com muitas sopas que
Brigitte conhecia. Sorriu.
— Só é lamentável que, para se obter uma sopa tão
deliciosa, seja necessário matar os simpáticos bichinhos
chamados salangana.
— Matar? — riu-se o inglês. — Oh, não! Não é
necessário.
— Não me diga que cozinham os pobres animaizinhos
vivos! — protestou Brigitte, penalizada.
— Não, minha querida. Na verdade, a sopa não é da ave,
mas de seu ninho.
— De seu.., ninho?
— A salangana pertence à família ornitológica chamada
Collocalia esculenta e não à dos Hirun diniday, como a
andorinha. É uma ave miúda, simpática, que faz ninhos
originalíssimos com sua secreção salivar.
— Com...?
— Com secreção salivar. Com saliva — explicitou
Waverly. — Essas aves segregam um líquido salivar
viscoso que endurece rapidamente em contato com o ar.
Assim, uma salangana decide fazer o seu ninho e, então,
começa a segregar saliva, que vai depositando no alto de
penhascos escarpados, nas penedias das ilhas que nos
rodeiam. Finalmente, consegue construir o seu ninho,
colocando nele Seus dois únicos ovos. Mas voltemos ao
ninho. Muitos malaios escalam os penhascos e penedias
com risco de vida para roubar esses ninhos, os quais,
mergulhados em água fervendo, dão a sopa que acabamos
de tomar.
— Quer dizer que acabo de tomar... saliva de
salangana?
— Bem, eu diria que sim, Monique.
A espiã internacional ficou durante alguns segundos algo
desconcertada, mas finalmente saiu-se bem do embaraço,
comentando:
— O mundo é muito grande e variado para que nos
surpreendamos com os seus múltiplos segredos. Qual é a
próxima surpresa?
— Ótimo — sorriu Waverly. — Felicito-a por seu
discernimento. Tudo o que há no mundo é bom. Por que não
deveria ser boa a sopa de ninho de salangana?
— Por que não? — riu-se também Brigitte.
— Quanto aos outros pratos... Bem, se Li Yuang não me
falhou, teremos deem-sum, chowfan e um estupendo shau-
shing. Isso, por enquanto. Se depois você ainda estiver com
apetite, sem dúvida Li Yuang encontrará outra iguaria que
merecerá a sua aprovação.
— Primeiro, quero saber o que são os pratos
mencionados.
— O deem-sum é um entremeio: mexilhões, rodelas de
postas de robalo, gengibre, camarão, azeitonas recheadas...
Normalmente, depois disso come-se pato ou galinha, mas,
imaginando que você não queira engordar, tomei a
liberdade de dizer a Li que nos servisse o segundo prato:
chowfan. Ou seja, arroz com ovo preparado de um modo
misterioso e secreto. Finalmente, o shau-shing é um vinho
destilado de arroz, muitas vezes servido quente, como o
mais famoso do gênero, chamado sakê. Terminado o jantar,
teremos de realizar o mui cortês yammado.
— Acho que não serão necessárias outras novidades —
disse Brigitte, meio assustada. Que é yammado?
— Uma espécie de “agradecimento” pela excelência do
convite. Bate-se suavemente na mesa com os dedos. Fazê-lo
é sinal de aprovação e agradecimento ao anfitrião. Ai está o
shau-shing. Pode servir, Li.
O chinês serviu o vinho tépido e Waverly ergueu o
copinho de porcelana, sorrindo.
— Yam seng — disse. Tomou o conteúdo de um trago e
emborcou o copinho para mostrar que estava vazio. — Yam
seng significa “até à última gota”. É mais uma cortesia
chinesa, uma espécie de brinde.
— Ah!... Yam seng — exclamou Brigitte, também
sorrindo.
Esvaziou o copinho de um trago.
***
Monique Lafrance suspirou, comodamente sentada no
sofá, com a taça de champanha entre os dedos.
— Foi um delicado gesto oferecer-me champanha para
encerrar, Stanford. Você deve ser um homem rico.
Waverly, sentado junto a ela, beijou-lhe a mão
delicadamente.
— Isso tem importância? — perguntou.
— Nenhuma. Pelo menos para mim, que não me posso
queixar da distribuição da riqueza no mundo... A mim me
coube boa parcela. De onde você tira tanto dinheiro,
querido?
— Do trabalho — riu-se o inglês. — Não sou milionário
por herança. Tenho uma companhia exportadora de látex. Já
sabe: derivados da árvore da borracha. Também exporto
copra, polpa da qual se extrai copraol para fins
farmacêuticos, e coisas do gênero. Não temos prejuízo.
— Não temos? A quem mais se refere?
— Oh, a um sócio. Ele foi, na realidade, o capitalista
inicial.
— Foi com ele que você falou antes do jantar?
— Foi. Negócios. Já lhe disse.
— Eu gostaria de conhecê-lo. Como é ele? Tão bem
apessoado e simpático quanto você?
A espiã captou perfeitamente o ligeiro estremecimento
de Waverly.
— É malaio — murmurou o inglês. — Ou mestiço de
chinês e malaio. Não sei ao certo. Receio que não lhe
agrade tanto quanto eu.
— Também mora neste prédio? Eu gostaria realmente de
conhecê-lo.
— Não mora aqui. Oh, Monique, não falemos mais nele.
Para quê?
— Sinto grande curiosidade por tudo que se relacione
com você. Como se chama esse... mestiço?
— Bota Gunong. Sinceramente, Monique, eu gostaria
que falássemos exclusivamente de nós dois.
— Que podemos falar de nós dois? — sorriu a espiã. —
Parece que tudo já está dito. Nós nos conhecemos e estamos
aqui... Li Yuang também está aqui...
— Eu já estava pensando em mandar Li Yuang dar um
passeio — respondeu significativamente Waverly. — Acho
que duas criaturas como nós devem ficar sozinhas. Bem,
para falar a verdade, Li Yuang já saiu.
— Oh... Você pensa em tudo, hem, Stanford Waverly?
— Está redondamente enganada — murmurou ele. —
Eu só penso numa coisa.
Tirou a taça de champanha da mão de mademoiselle
Monique Lafrance, pondo-a sobre a mesinha. Beijou-lhe os
dedos carinhosamente. Depois, com muita finura, fez um
pedido bastante audacioso.
Aconteceu que Brigitte também queria o mesmo...
***
— Você não devia ir embora tão cedo, querida — disse
Waverly. — A noite ainda é jovem...
— Não quero fazer com que ela lhe pareça uma anciã —
respondeu mademoiselle Lafrance, vestindo-se.
— Se você ficasse, tudo poderia tornar-se ainda mais
delicioso.
— Não. As coisas podem ser deliciosas várias vezes;
mas não podem ser mais deliciosas de uma só vez.
— Sempre se pode prolongar a delícia.
— Com o perigo de chegar-se ao fim... Não se deve
dizer yam seng para certas coisas, meu querido. E preciso
deixar algumas gotas para depois.
— Concordo sob veementes protestos. O meu pequeno
Hanna continua à porta e...
— Não será preciso. Irei de rickshaw.
— Mas...
— E um pedido. Vamos discutir logo na primeira noite?
— Você é invencível! Poderei vê-la amanhã?
— Só depende de você.
— Às dez?
— Será melhor às onze.
Brigitte recolheu a bolsa e a cigarreira, que continuava
sobre a mesinha junto do sofá, encaminhando-se para a
saída do living. Despediu-se uma vez mais, com um beijo
que deixou Waverly por alguns segundos sem fala.
— Então, as onze? — insistiu ele, recompondo-se da
emoção.
— Meu querido, você desmente em definitiva falsa
assertiva de que os britânicos são homens frios.
Além desse aspecto animador dos ingleses mademoiselle
Monique Lafrance saiu do apartamento de Stanford
Waverly conhecendo outro detalhes, úteis à sua missão.

CAPÍTULO SEXTO
Cigarreira não é só para guardar cigarros
Dois tigres de Bengala contra uma gata preta
Um inesperado visitante noturno

O porteiro noturno do hotel estava bem desperto quando


ela chegou.
— Há um recado telefônico para mademoiselle — disse,
entregando-lhe a chave da suíte.
— Um momento...
Recolheu uma folha de papel de uma caixinha, exibindo-
a. A mensagem era simples, inocente e até simpática:
“Tudo arranjado para que comece as aulas de silat.
Estou à sua disposição, ainda que lhe ocorra iniciar esta
mesma noite, a qualquer hora. Respeitosamente, Silat-Art”.
Brigitte subiu ao seu apartamento, queimou a nota, que
estava escrita em inglês, jogando as cinzas pela janela. Foi
ao armário e retirou sua maletinha, metendo nela uma
pequena bolsinha preta que parecia de malha de meia.
Considerou durante alguns segundo a conveniência de
comunicar-se com Cheke Sakti pelo radinho, concluindo
que seria imprudente. Sem dúvida ele a chamara por este
meio e, como ela não tinha levado consigo a maletinha, não
pudera atendê-lo. Sakti optara pelo telefonema e, se ela o
chamasse naquele instante, talvez fosse inoportuno...
O melhor seria vê-lo pessoalmente.
Um minuto mais tarde, saía do hotel sob o olhar de
espanto do porteiro, que àquela altura já estava dormitando.
Logo apareceu um trishaw. Brigitte embarcou nele e deu o
endereço de Sakti. O centro de Cingapura tinha quase tanta
animação quanto durante o dia, mas à medida que o trishaw
ia enveredando pelas ruas mais estreitas, silenciosas, cheias
de maus pre6ságios, Brigitte tornava-se preocupada,
acabando por meter a mão embaixo da saia e empunhar a
pistolinha presa à sua coxa direita por tiras de esparadrapo
cor da pele. Seria uma estupidez cair em mãos de ladrões
malaios que decidissem assaltar o trishaw.
Chegaram sem novidades. Brigitte pagou regiamente e
esperou que o coolie se afastasse para bater à porta de
Sakti’s Silat. O gigantesco Wila apareceu diante dela,
fazendo-lhe um sinal para que entrasse rapidamente. Fechou
a porta e levou-a depressa à presença de Sakti, que
evidentemente a estivera esperando. Estava no mesmo lugar
da véspera, encostado ao marco da janela, de sarong, com
idêntico aspecto nostálgico.
Wila fechou a porta de papel pintado e sentou-se a um
canto, no chão, passando a observar atentamente a espiã
americana. Sakti indicou uma cadeira.
— Sente-se, por favor. Recebeu a minha mensagem?
— Suponho que tem algo urgente a me comunicar...
— Não sei se é urgente, mas julguei que deveria
informá-la o quanto antes: sei quem é o sócio de Stanford
Waverly.
— Bota Gunong — disse Brigitte.
— Isso mesmo. Como soube?
Brigitte fez um gesto indicativo de que o assunto não
tinha importância. Retirou a cigarreira da maletinha,
depositando-a na mesa depois de comprimir um dos cantos
do belo objeto dourado.
— Há, aqui, algumas gravações em malaio ou em chinês
— disse. Quero que faça o passível para traduzir.
Ouviu-se primeiro, nitidamente, o ruído do disco de um
telefone. Depois algumas palavras, em voz muito baixa.
Cheke Sakti fez um sinal para Wila, que se aproximou
rapidamente. Os dois estiveram escutando, mas quando
terminou o play-back, ambos moveram a cabeça negativa-
mente.
— Sinto muito — disse Sakti — mas não entendi coisa
alguma. E você, Wila?
O gigante também negou com a cabeça e tornou a
sentar-se no chão. Brigitte ficou aborrecida, mas teve que se
conformar. Sua gravadora era muito sensível, porém não o
suficiente.
— Que sabe do sócio de Waverly? — perguntou.
— Diga-me, primeiro, como conseguiu descobri-lo. A
mim, me custou...
— Deixemos os detalhes para outra ocasião, Sakti —
interrompeu-o. — Que sabe desse... Bota Gunong?
— Pouco. É riquíssimo. Vive em esplêndida quinta
situada numa colina, fora da cidade. Afirma-se que é
homem muito esquisito. Raramente se deixa ver.
— Esquisito? Em que sentido?
— Não sei. São rumores.
— Uma quinta, nas cercanias de Cingapura —
murmurou Brigitte. — Por que não?
— De que está falando? — estranhou Sakti.
— Dê-me um telefone e o catálogo.
Wila, a um sinal de seu amo, simplesmente arrancou o
telefone da parede, aproximando-o de Brigitte e passando a
servir, ele próprio, de suporte! Ao mesmo tempo, o primeiro
bailarino de silat da luxuosa Sakti’s Sila apanhava o
catálogo. A espiã pediu-lhe que encontrasse o endereço de
Bota Gunong. Enquanto Sakti folheava o grosso volume
com introdução em vários idiomas, Brigitte discava com a
mão no gancho do telefone para impedir que se processasse
qualquer chamada. Repetiu várias vezes o play-back do
começo da gravação em sua cigarreira-gravadora,
continuando a discar e fazendo anotações numa folha de
papel. Por fim, escreveu o último número.
— Aqui está — disse Sakti. — Mora...
— Veja se este é o seu telefone — interrompeu-o
Brigitte, entregando-lhe a folha de papel.
Para assombro do hercúleo professor de silat, o número
estava certo.
— Como? — exclamou ele, boquiaberto.
— Isso quer dizer que Waverly se comunicou com
Bota... — murmurou a espiã. — E parecia coisa urgente.
Por quê? Que podem dois sócios ter a falar com tanta
pressa?
— Não entendo o que está dizendo! — protestou Sakti.
— Deixe-me ver o endereço de Bota Gunong.
Girou o catálogo e olhou para o ponto que Sakti indicava
com um dedo. Deu-se por satisfeita, queimando o papel no
qual anotara o número do telefone que obtivera valendo-se
da comparação entre as batidas do aparelho de Sakti e as
que estavam gravadas na cigarreira. Ainda segurando o
papel em chamas, acendeu com ele um cigarro. Olhou
alternadamente para os dois malaios.
— Vocês terão de dar um passeio agora mesmo. Prestem
bem atenção, porque não posso. perder tempo: irei à quinta
de Bota Gunong, enquanto vocês irão..
***
Como Cheke Sakti e Wila não iriam necessitar da
limusine MG no desempenho da missão que lhes fora
confiada, “Baby” se meteu no carrinho e partiu veloz para a
quinta de Bota Gunong, seguindo as indicações fornecidas
por Sakti.
Não teve a menor dificuldade em localiza-la. Deixou o
veículo escondido entre árvores, à margem da estrada de
terra, a uns quatrocentos metros da quinta, aproximando-se
a pé.
Esteve alguns segundos escondida no mato, observando
seu objetivo, do qual só conseguia ver, à luz da lua, o
grande alambrado e as copas de árvores. Depois, conseguiu
distinguir uma mancha branca no alto da casa, uma espécie
de torre ou mirante em forma de cúpula.
Aguardou ainda uns cinco minutos, imóvel como um
felino a ponto de atacar, atenta. Poucas pessoas no mundo
terão o sentido de audição aguçado como Brigitte.
Convenceu-se de que tudo estava em paz dentro da quinta.
Ainda escondida no mato, retirou da maleta a bolsa de
malha preta; desta, sacou estranha vestimenta para
incursões noturnas: um finíssimo colante também de malha
de meia, de um preto fosco. Despiu-se por completo e
vestiu a malha, transformando-se em... mais uma sombra.
Parecia uma africana nua, de tal modo a malha aderia ao seu
corpo. Guardou o vestido na male-tinha e se encaminhou
para o alambrado. Em poucos segundos caía do outro lado
com a agilidade de uma gata.
Ficou imóvel, como se fosse de pedra. Ouviu um rumor
estranho, como um miado, talvez...
Ergueu-se e correu para a casa, sempre pela borda do
caminho, oculta entre as árvores, silenciosa, em seus finos
mocassins de pelica, negros. Chegou junto à pequena
esplanada e ficou olhando para a casa, grande e bonita, com
muitas flores cujo aroma perfumava a noite. Parecia um
lugar romântico e idílico. Sobressaltou-se ao escutar um
grito, mas logo se acalmou quando percebeu que partia de
um tanque: a voz de alguma rã. Teria de encaminhar-se para
aquele ponto, contornando uma pequena moita de caniços,
para evitar a esplanada e chegar, sempre protegida pelas
sombras, até a construção baixa que, sem dúvida, seria uma
garagem.
Tornou a ouvir o estranho ronronar, mas não fez caso.
Deslizou a toda a pressa por entre as árvores, circundou a
moita de caniços e defrontou o tanque de criação de rãs, que
agora coaxavam todas em uníssono, monotonamente.
Sorrindo, a espiã orientou-se para a garagem. Sua
primeira intenção era verificar se havia lá um automóvel
preto, possivelmente o mesmo utilizado na perseguição a
Dick Hinman, o enlouquecido agente da CIA.
Estacou, sobressaltada, ao ver um tigre! Mas logo sorriu
ao perceber que era de pedra, belo exemplar da escultura
asiática. Ao passar pelo animal perpetuado em granito, deu-
lhe um puxão no rabo. É fácil brincar com tigres de pedra...
Por fim, estava na borda do jardim, a uns dez metros da
garagem. Considerou a possibilidade de que estivesse
trancada, porém afastou a idéia: dificilmente os ocupantes
da quinta temeriam que alguém entrasse para roubar um
automóvel.
Percorreu a distância como uma flecha negra e empurrou
as duas bandas da porta, feitas de bambu. Entrou e olhou ao
redor, encostando a porta. Orientou-se à luz do luar que
penetrava por estreitas e alongadas janelas horizontais,
dispostas muito alto nas paredes laterais. Viu o carro preto
ou grená apenas com aquela tênue iluminação natural.
Apelou para a sua mini-lanterna de aventuras noturna:
recuou e projetou um pequeno mas intenso círculo luminoso
sobre a carroçaria. Era um automóvel preto. Ainda não
constituía uma prova definitiva.
Entrou no carro, examinando detidamente o pára-brisa, o
painel, o porta-luvas, as bolsas das portas. Nada de
interessante. Debruçou-se por cima do encosto e, sempre
com a lanterninha acesa, inspecionou toda a parte de trás.
Nada. Afinal, que esperava encontrar num automóvel,
tantos dias depois? Notava-se a mais absoluta tranqüilidade
por parte de seu dono, pois até a chave estava em seu
devido lugar, no painel de instrumentos.
Ajoelhou-se no chão do carro e levantou o banco. O
“cofre” do assento traseiro ficou à vista, inteiramente vazio.
Apresentava alguns arranhões, que bem poderiam ter sido
produzidos por ferramentas.
Decepcionada, “Baby” baixou o banco e saiu do carro.
Deu uma volta pela garagem, mas só encontrou as coisas
normalmente guardadas em tal lugar: ferramentas de
mecânica automobilística, enxadas, pás e ancinhos, além de
pneus novos e usados.
Um rugido espantoso deixou-a petrificada, gelada de
terror. Seguiu-se outro rugido que, como o primeiro, fez
vibrar as vidraças das janelas. E tão perto, às costas da
espiã, que ela se virou rapidamente, empunhando sua
pistolinha de coronha de madrepérola.
Os rugidos se repetiram. Brigitte se aproximou das duas
bandas de porta de bambu, puxou-as e olhou para fora.
Não eram tigres de pedra, como o primeiro a assustá-la,
mas duas feras enormes que passeavam nervosamente
diante da garagem. Viram a porta ser entreaberta e lançaram
rugidos ainda mais possantes.
Brigitte fechou precipitadamente as duas bandas e
procurou a fechadura, um trinco, um ferrolho, uma
taramela, uma tranca, um fecho, fosse o que fosse, para se
proteger devidamente. Nada! Estremeceu ao compreender
que estivera à merca dos tigres ao transpor o jardim.
Começou a transpirar.
Ouviu uma voz humana, muito distante, e os tigres
pararam de rugir, passando a rosnar. Pouco depois, ouvia a
voz mais de perto, irada. Gritava em malaio. Uma réstia de
luz entrou por baixo da porta, enquanto a voz masculina
continuava muito forte, aparentemente tentando silenciar ou
afastar os felinos.
A luz que passava por baixo da porta se tornou mais
intensa e ela compreendeu que o homem pretendia entrar na
garagem para certificar-se de que á irritação das feras não
passava de um capricho animal.
Brigitte se afastou justamente quando o homem
empurrava as duas folhas da porta e movia o facho de luz
em leque. A essa altura, a espiã já estava escondida atrás da
folha direita. O homem disse algo em malaio, talvez um
impropério, adiantando-se dois passos de modo a poder
iluminar atrás da porta. Não havia coisa alguma atrás da
folha esquerda.
Não pôde continuar a inspeção, porque a mão de “Baby”
desceu como pesada acha de lenha sobre o seu crânio,
produzindo um estalido macabro. O homem caiu fulminado,
deixando escapar a lanterna de pilhas, que rolou pelo chão.
E um revólver de grosso calibre, que foi ocasionalmente
iluminado pela luz da lanterna.
“Baby” contemplou o cadáver do malaio apenas por uma
fração de segundo, porque um rugido ensurdecedor sacudiu-
a, fazendo-a virar-se. Pensou em apanhar aquele revólver,
muito mais possante do que sua pistola, para liquidar os
dois tigres que avançavam para ela a grande velocidade.
Mas seria o mesmo que se denunciar, indicando facilmente
seu esconderijo ocasional.
Contendo um grito de susto, correu para o automóvel e
se meteu dentro dele, fechando rapidamente a porta. Um
dos tigres se lançou contra ela, dando uma patada que fez
estremecer o vidro inquebrável. Forte pancada no teto fez
Brigitte compreender que o outro tigre também atacara. O
automóvel oscilou, rangendo, ao receber o impacto de cento
e cinqüenta quilos. Uma cabeça descomunal, com fauces
horríveis, surgiu diante do pára-brisas e duas manchas
verdes, fosforescentes, pareceram lavrar sua sentença de
morte...
Tremendo muito, Brigitte ligou o motor. Estudou
rapidamente o sistema de mudança para descobrir a marcha
à ré, pois percebera que o outro tigre, que atacara primeiro,
tentava subir na carroçaria, pela traseira, O motor roncou e
o carro saltou para trás. Brigitte ouviu nitidamente o rugido
de dor e fúria do tigre. Exímia em tudo, fez uma mudança
de marcha sem debrear e arrancou para o caminho de terra,
vendo três homens que saíam correndo da casa, gritando,
todos com apenas um pano branco enrolado na cintura. Um
deles, o que corria mais, perdeu essa pouca roupa,
continuando a carreira inteiramente nu. Porém armado de
revólver...
Brigitte pisou fundo o acelerador e moveu o volante de
um lado para outro, enfiando pela esplanada em ziguezague.
Conseguiu seu objetivo: o tigre caiu do teto; com um
rugido. Sempre ziguezagueando, ela embicou o carro para o
grupo de malaios. Um deles, o que estava despido, disparou
várias vezes, nada conseguindo porque todos os vidros eram
à prova de. balas. Por incrível que pareça, Brigitte sorriu:
descobrira o primeiro detalhe comprometedor no elegante
Humber.
Passou entre os malaios e um deles tentou agarrar-se ao
carro, no que foi muito infeliz: deslizou pela carroçaria,
chocou-se de cabeça contra o trinco da porta, rodopiou e foi
parar longe. Com isso, o carro embicou direto para uma
árvore. Brigitte manobrou desesperadamente, levando outra
vez o Humber para o centro da esplanada. Ligou
bruscamente os faróis, disposta a não perder de vista o
caminho de terra da saída. Isso no momento exato em que o
carro passava diante da porta da casa.
Viu fugazmente, no pórtico, uma coisa impressionante:
um malaio de cabeça raspada, com quase dois metros de
altura, gordo, abrutalhado. Estava completamente nu,
agitando no ar um sarong colorido e gritando tanto que
parecia um possesso. Foi uma visão de fração de segundo,
porém chocante, inolvidável.
O carro acabou de dar a volta, seguindo novamente pelo
caminho de terra, derrubando mais um malaio e obrigando
Outro a dar um salto simiesco para fugir ao impacto.
Por fim, Brigitte viu diante dela, livre, o caminho que
levava à saída e pisou o acelerador como se pretendesse
levantar vôo. Atrás dela, uni bando de malaios e... dois
tigres de Bengala! Quando estava a uns dez metros do
portão de feno, fez nova mudança de marcha e, em
“segunda”, tirou o pé do acelerador e pisou o freio com
tanta violência que a carroçaria quase se desprendeu do
chassi. Os pneus cantaram e o pesado Humber foi de
encontro à coluna da esquerda. O carro e a coluna ainda
vibravam quando “Baby” saiu, lançando sua maletinha por
cima do alambrado e olhando para a casa, cuja luz
transformava o bando de malaio num tropel de sombras
agitadas. Viu duas línguas de fogo mas não se preocupou,
por que a distância em que se encontrava e sua colante
roupa de ação noturna faziam-na inatingível.
Galgou o alambrado e já se preparava para descer pelo
outro lado quando um dos tigres deu um salto vertical,
fantástico, desferindo uma patada que a poderia ter
decapitado. Fera e mulher caíram simultaneamente. O tigre,
do lado de dentro, pousou macio no chão; a mulher chocou-
se com o solo e rolou. Outra qualquer, sem o treino de
“Baby”, teria sofrido diversas fraturas naquele tombo de
quatro metros e meio. Mas a figurinha esbelta e sensual
logo se levantou de um salto e correu, embrenhando-se no
mato.
Os malaios se esforçaram, inicialmente, para safar o
pesado carro preto. Desistiram, preferindo escalar o
alambrado.
Enquanto isso, Brigitte Montfort corria como um a bala
para onde havia deixado o MG, maldizendo-se pela triste
idéia de abandoná-lo tão longe. Percorreu os quatrocentos
metros em menos de um minuto, atirou a maletinha dentro
do carro, entrou, ligou o motor e saiu disparada. Os malaios
já estavam a menos de cem metros...
Dez minutos depois, certa de que não fora seguida,
parou a 1imousine numa ruela perto de Seaside Road, onde
ficava o “Singapore Bay Hotel”. Desligou o motor, cruzou
os braços sobre o volante e deitou a cabeça em cima deles,
ainda com a impressão de ter pela frente aqueles olhos
verdes, fosforescentes, de animal nictalope.
Tirou a custo sua roupa de malha, que estava grudada ao
corpo pelo suor, vestindo o traje comum. Saiu, trancou o
carro e guardou as chaves na maletinha, afastando-se dele
na direção em que imaginava encontrar-se o seu hotel.
Três minutos depois mademoiselle Monique Lafrance
deslizava silenciosamente diante do porteiro, que dormia a
sono solto.
Subiu pelas escadas, abriu a porta da luxuosa suíte e,
com um suspiro de alívio, acendeu a luz.
— Wila! — exclamou, franzindo a testa.
CAPÍTULO SÉTIMO
Um tiro no tiro...
A indefesa mademoiselle Lafrance
Fuga apressada para lugar seguro

O gigantesco Wila estava estirado de bruços no pequeno


vestíbulo da suíte. Brigitte se aproximou dele, ajoelhou-se e
pousou os dedos em sua carótida.
Enquanto se convencia, desse modo, de que o malaio
estava morto, observava, sem compreender, os caracteres
traçados com sangue no soalho. Levantou uma das mãos do
malaio: dois dedos estavam manchados de sangue. Wila
devia ter sentido que ia morrer ao chegar. Caíra de bruços e,
percebendo que era o seu fim, deixara uma mensagem com
seu próprio sangue.
Mas.... em malaio!
Deixou cair a mão do cadáver e se levantou, ainda
contemplando aqueles caracteres que nada lhe diziam. Mas
compreendia perfeitamente o que ocorria: agonizante, Wila
deixara sua última mensagem em seu próprio idioma.
Espontaneamente, sem pensar em conveniências para os
demais.
— Você já fez muito deixando essa mensagem, bom
amigo Wila — murmurou a espiã. — Receio que sua
presença signifique que Cheke Sakti se encontra em sérias
dificuldades, ou talvez já esteja reunido com você no além...
Aproximou-se do telefone e chegou a tocá-lo com os
dedos, mas desistiu. Não queria despertar o porteiro àquelas
horas para pedir uma ligação. Não convinha, porque talvez
as coisas se complicassem, envolvendo-a no homicídio.
Recorreu ao radinho de bolso, procurando estabelecer
contato com o possante aparelho instalado na escola de
dança-combate. Após um minuto de tentativas convenceu-
se de que a missão de Wila e Sakti fora pior do que a sua. O
fato de Wila estar ali era indício bastante de que devia ter
considerado perigoso voltar a Sakti’s Silat.
Parecendo esquecer a presença do cadáver, “Baby” se
despiu e tomou um banho frio, de chuveiro. Depois, ainda
nua em pêlo, muniu-se de uma esponja e removeu as
manchas de sangue do chão, inclusive os caracteres
malaios, que ficaram fotografados em sua mente prodigiosa.
Girou o corpo de Wila, deixando-o em decúbito dorsal,
com os pés voltados para a porta de entrada. Esteve alguns
segundos observando o furo da bala no peito do gigante. Foi
buscar sua pistolinha e se pôs ao lado do cadáver, de pé.
— Perdoe-me pelo que vou fazer, Wila — murmurou.
Apontou cuidadosamente e apertou o gatilho. A
pistolinha emitiu um ligeiro estalido, quase inaudível, e a
balinha entrou no corpo de Wila, exatamente pelo orifício
da bala já existente. Tornou a virar o cadáver de bruços,
apanhou a esponja e acabou de limpar os últimos restos de
sangue, bem como os dedos de Wila
Contemplou o resultado de sua atuação e aprovou com a
cabeça, encaminhando-se para o telefone. Desta vez não se
importou de acordar o porteiro dorminhoco. Lembrava-se
do número de Waverly, pois prestara muita atenção quando
ele o discou, de um bar, comunicando-se com Li Yuang
para decidir sobre o cardápio para o jantar.
Pouco depois ouvia a voz do “mestre cuca” de Waverly
falando em chinas.
— Aqui fala mademoiselle Lafrance — disse Baby”. —
É Li Yuang?
— Ele mesmo, mademoiselle.
— Por favor, chame mister Waverly. É urgente.
— Patrão dormindo mas Li chamar assim mesmo.
Não tardou para que ela ouvisse a voz de Stanford
Waverly, muito excitada:
— Monique! Que aconteceu?
— Nada, meu querido. Apenas... não sei por que... não
consegui dormir até agora. Eu devia ter ficado com você.
— Mas Monique...
— Não, não diga nada. Se já me perdoou, venha buscar-
me aqui no hotel. Por favor, meu querido, venha.
— Embora não entendendo de que se julga culpada,
estarei aí dentro de... dez minutos.
— Você já sabe: “Singapore Bay”, suite 121.
— Está bem, Monique. Até já.
***
Brigitte abriu a porta. Tinha apagado a luz, de modo que
Waverly entrou as escuras e se voltou para ela.
Mademoiselle Lafrance fechou a porta e acendeu a luz,
constatando, pela fisionomia de Waverly, que ele estivera
dormindo profundamente. Isso significava que ele não tinha
sido informado da incursão de dois homens ao “Vento da
Malásia”. Uma incursão que resultara na morte de um deles
e no desaparecimento do outro, Cheke Sakti. Por que os
tripulantes do “Vento da Malásia” não tinham avisado
Stanford Waverly? Talvez por não desejarem que ele se
inteirasse de algo somente conhecido de seu sócio. Estaria
Bota Gunong desenvolvendo atividades ignoradas por
Waverly?
— Que houve, Monique? — indagou o inglês. — Pelo
seu modo de falar, depreendi que...
Virou-se, olhando para onde apontava a espia. Sofreu
notável e autêntico sobressalto ao deparar com o cadáver do
gigante malaio, deitado de bruços.
— Quem é? Que aconteceu aqui, Monique? —
perguntou espantado.
— Não... não sei quem é, Stanford. Juro. Ele entrou e... e
não sei...!
— Acalme-se — disse Waverly, abraçando-a pelos
ombros. — Acalme-se, querida. Vamos para a sala. Será
melhor você não continuar ornando para esse brutamontes.
Foram para a sala e sentaram-se no sofá.
— Eu... eu... estou tão assustada...
— Você tem de se acalmar e me contar tudo. Conhecia
este homem?
— Não... não. Claro que não!
— Então, que veio ele fazer aqui? Roubar?
— Não sei... Acho... acho que ele proferiu o seu nome...
e.... e também algo como... “Vento da Malásia”...
— “Vento da Malásia”?! — exclamou Waverly.
— Mas...!
— Sim, foi isso mesmo... Ele... Eu estava deitada, depois
de tomar um banho de chuveiro, quando bateram na porta.
Fui abrir assim mesmo como estou agora... Ele falava muito
mal o inglês e disse... disse também algo sobre dois tigres...
Stanford Waverly empalideceu ligeiramente. Acendeu
um cigarro, oferecendo-o a Brigitte, que fumou com avidez
como se até então não lhe tivesse ocorrido esse remédio
para o seu “nervosismo”.
— Monique, eu lhe suplico: faça um esforço para
explicar tudo com calma, na ordem em que as coisas se
deram... Acha que pode?
— Farei o possível, Stanford.
— Bem... Não há pressa. Ordene seu pensamento,
procurando lembrar-se de tudo muito bem. Entendido?
— Sim. Eu estava deitada e bateram na porta. Fui
atender tal como estou agora, porque pensei que talvez
fosse você e a idéia não me desagradou... Abri e esse
homem entrou, empurrando-me. Falava muito depressa,
numa mistura de inglês e malaio que não consegui
compreender bem. Mas estou certa de que mencionou o seu
nome e disse algo sobre uma coisa chamada “Vento da
Malásia”, referindo-se também a dois tigres. Talvez eu não
tenha entendido bem. Não sei...
— Continue.
— Bem... Ele parecia estar certo de que eu lhe poderia
dar alguma informação a seu respeito. Tive a impressão de
ouvi-lo dizer que nos seguira, que nos vira juntos... Insistia
em me perguntar não sei que sobre “Vento da Malásia”.
Que é isso, Stanford?
— Um de meus barcos — respondeu ele,
— Oh! Mas não compreendo...
— Que mais disse esse homem?
— Não pude entendê-lo! Compreendi palavras soltas,
mas não o que ele queria exatamente. Isso pareceu irritá-lo,
pois me empurrou, derrubando-me. Fiquei muito assustada,
tive medo de que ele me matasse e... e... disparei contra
ele... Está morto, Stanford! Eu o matei!
— Como?
— Com a minha pistola.
— Você tem uma pistola?
— Tenho. Não me separo dela, porque já me
aconteceram certas coisas...
— Compreendo. Mas.., se você estava apenas com essa
liseuse, não compreendo como podia...
— Venha — tomou-o pelo braço, levando-o de novo ao
vestíbulo e apontando para um cabide de chapéus, junto à
porta. — Ao chegar, pendurei a minha bolsa no cabide.
Sempre levo a pistola na bolsa. Quando ele me empurrou,
caí embaixo dela. Levantei-me, peguei a bolsa e... e
disparei!
— Onde está a pistola?
— Na bolsa...
Waverly pegou a bolsa, retirou a pistola, e ficou olhando
para ela, quase sorrindo, dada a sua pequenez. Tirou o pente
e constatou que, de fato, faltava uma bala.
— Bonito brinquedo — sorriu secamente. — Mas muito
útil em certas ocasiões. Ele não estava armado?
— Não... não sei. Era tão grande que me empurrou com
as pontas dos dedos.... Queria matar-me, Stanford! Tenho a
certeza! — mentiu “Baby” desavergonhadamente.
— Ainda bem que isso não aconteceu. Por que não
avisou a Policia?
Brigitte mordeu os lábios e ficou olhando fixamente para
Stanford Waverly, que finalmente teve que compreender.
— Temia que isso me comprometesse de algum modo,
não é? — indagou ele.
— Esse homem pronunciou seu nome e... parece que nos
seguiu... Pensei que talvez você estivesse.. . estivesse...
— Envolvido em algum caso comprometedor?
— Sim...
O inglês abraçou-a carinhosamente.
— Agradeço sua intenção, Monique. Você foi muito
prudente.
— Bem é que... além disso, eu tive muito medo. Não
sei... Eu nunca matei ninguém... Que acontecerá agora,
Stanford? Eu matei um homem! A Polícia...
— A Polícia não ficará sabendo.
— Como? — surpreendeu-se ela. — Não é possível! Oh,
não sei o que fazer..
— Deixe comigo. Eu já disse que você está aos meus
cuidados enquanto permanecer em Cingapura. Aliás...
espero que seja por muito tempo.
— Stanford, você me vai perdoar, mas eu prefiro partir.
Talvez esse homem não seja o único a me procurar para
saber coisas a seu respeito... Eu não estaria em segurança
nesta cidade. Compreenda. Não quero saber a que você se
dedica nem o que esse homem estava procurando. Você não
tem de me dar explicações sobre sua vida. Mas eu lhe
suplico: ajude-me a fugir daqui. Não quero... Não quero ser
assassinada... nem me envolver com a Polícia!
— Depois do que já houve entre nós, de... de eu me
apaixonar por você, não me sinto com forças para ajudá-la a
fugir.
As perigosas mãozinhas da espiã se crisparam na gola do
paletó de Waverly.
— Eles me matarão! — soluçou. — Eu também quero
estar ao seu lado, mas tenho medo que me matem!
— Você ficaria se eu lhe oferecesse um lugar seguro,
onde pudéssemos nos encontrar sem perigo algum?
— Que... que lugar? Se for o seu apartamento...
— Não! — riu-se o inglês. — É um lugar tão seguro que
ninguém poderá sequer aproximar-se de você.
— Nenhum lugar de Cingapura me parece seguro,
Stanford!
— Esse lugar fica fora da cidade. Lá ninguém irá
procurá-la, mas, se o fizesse, não lhe poderia causar o
menor dano.
— E... poderíamos continuar... — colou-se ao inglês,
completamente.
Waverly sentiu um frisson.
— Eu iria visitá-la todos os dias e, quando este assunto
estivesse terminado, tudo voltaria à normalidade. Talvez
com você mais bem instalada do que neste hotel.
— Tenho muito medo, mas... se você jurar que não
haverá perigo e que nos poderemos ver diariamente...
— Juro! — disse enfaticamente Stanford Waverly.
— Então... ficarei com você.
Fechou os grandes olhos azuis e entreabriu os lábios.
— Vista-se depressa, querida — disse o inglês. —
Partiremos imediatamente. A menos que você prefira passar
o resto da noite aqui...
— Não! Tire-me daqui agora mesmo!
— Está bem. Leve apenas o imprescindível para esta
noite. Cuidarei de sua bagagem ao amanhecer, enviando-a
para onde você vai ficar.
— E... e o morto?
— Também cuidarei dele. Esqueça tudo, como se nada
tivesse acontecido. Vista-se. Está claro que levaremos a
chave da suíte.
— Estou em suas mãos, meu querido. Não se afaste de
mim.
Pegou-o pela mão e levou-o para o quarto, disposta a
vestir-se e ir com seu “querido” Stanford para um lugar
seguro... onde a suave mademoiselle Lafrance nada teria a
temer. Ela não, certamente. Mas... e os outros?
CAPÍTULO OITAVO
O rosto desfigurado de Cheke Sakti
O incrível homem do olho vermelho
Congelamento por um hálito quente

Finalmente, o carro esportivo de Waverly parou diante


do alambrado da quinta em cujos jardins passeavam os dois
tigres de Bengala.
O Humber já não estava mais engavetado na coluna do
portão de ferro, mas as barras continuavam retorcidas. Não
havia luz na casa e podia-se notar certa agitação no jardim,
precisamente para os lados do tanque das rãs, as quais não
coaxavam, assustadas com o grande movimento.
Waverly ficou olhando para a casa, estranhando o
rebuliço. Seus olhos claros não escondiam certa apreensão.
— Parece que há gente acordada — murmurou Brigitte.
— São mais de duas da madrugada, Stanford. Tem certeza
de que estarei segura neste lugar tão...?
Um malaio apareceu do outro lado do aramado, pelo que
Brigitte calou-se bruscamente. Waverly desceu do carro e se
aproximou do homem, o qual vestia apenas uma espécie de
sunga. O homem assentiu com a cabeça e se afastou.
Waverly acenou para Brigitte, que se juntou a ele perto do
aramado.
— Temos de esperar um pouco, pois os tigres estão
soltos — disse o inglês.
— Os... os...?
— O meu sócio tem várias extravagâncias — comentou
Waverly. — A maior delas não é precisamente a de manter
tigres soltos nos jardins.
— Stanford, acho que seria melhor...
— Não tenha receio. Serão agrilhoados e poderemos
entrar tranqüilamente. Bota comprou essas feras quando
ainda eram muito pequenas, criando-as pessoalmente. Só
atacam os intrusos e... a quem ele ordena que ataquem.
Brigitte estremeceu sem exageros. Queria fazer-se de
rogada, mas não a ponto de levar Waverly a desistir da idéia
de hospedá-la na quinta.
O empregado malaio reapareceu três minutos depois e
abriu o portão. Waverly e Brigitte tornaram a entrar no
Hanna, que logo enfiou pelo caminho de terra em direção à
casa. Brigitte ouvia os rugidos dos tigres e sentiu-se muito
contente de saber que estavam acorrentados, porque não os
poderia enganar. “Baby” seria capaz de enganar todos os
homens daquela quinta, com um pouco de sorte, mas as
feras têm um olfato infalível...
O carro parou na esplanada, diante da casa. Brigitte viu
no pórtico o homem que tanto a impressionara: de costas
para a luz que vinha de dentro, mais parecendo a sombra
projetada de um homem do que uma pessoa de carne e osso,
tal a sua enormidade tridimensional.
— Será melhor você esperar aqui um pouco —
murmurou Waverly. — Não tenha medo, porque tudo vai
bem.
Dois malaios surgiram das sombras e se aproximaram do
pequeno automóvel. Pararam perto de Brigitte e ficaram
olhando, para ela com expressão indecifrável, sem prestar
atenção a Waverly, que já subia os degraus da entrada e
encaminhava-se para o gigante silhuetado na porta. Os dois
entraram na casa e os malaios continuaram olhando para
Brigitte, que acendeu um cigarro com um tremor nas mãos
magistralmente simulado. Ela bem sabia que eles não a
identificariam como sendo a mesma mulher da visita
noturna que matara um homem com um golpe de caratê e
depois fugira diabolicamente.
Os tigres continuavam rugindo e “Baby” compreendeu
que haviam sentido o seu cheiro, reconhecendo-a sem vê-la
sequer. Era de esperar que não os soltassem...
Estava esperando havia menos de cinco minutos quando
ouviu o ruído de um motor perto do alambrado, fora da
quinta. Os dois malaios que estavam ao seu lado olharam
para o portão de ferro, entreolharam-se e se encaminharam
para o alambrado, às pressas, murmurando palavras cm seu
idioma.
Três minutos depois voltaram sujeitando um homem
que, aparentemente, estava com as mãos atadas às costas.
Empurravam-no rudemente para a casa, enquanto se ouvia
novamente o ruído do motor, agora se afastando.
De repente, a luz da casa deu em cheio no homem que,
obviamente, só poderia ser um prisioneiro. Tinha o rosto
banhado em sangue, todo inchado por efeito de
espancamento. Os lábios estavam tumefactos, arrebentados.
Um rosto desfigurado que, assim mesmo, Brigitte
reconheceu, estremecendo: era o rosto de Cheke Sakti!
Não mais precisava procurá-lo, perguntar-se onde estaria
Cheke Sakti, o professor de silat que trabalhava para a CIA
comandando uma emissora de longo alcance em Cingapura,
estava ali diante dela, prisioneiro, quase massacrado. Wila
conseguira escapar durante a malfadada incursão ao “Vento
da Malásia”, mas Sakti tivera pior sorte. Relativamente,
claro, pois o atlético bailarino ainda estava vivo, enquanto
que Wila...
Um dos malaios que manietavam Sakti gritou algo,
dispondo-se a esperar. Sakti virou ligeiramente a cabeça
para Brigitte e ela pôde ver pela fresta de suas pálpebras
inflamadas que seus olhos transmitiam uma mensagem de
confiança, dizendo-lhe que não pretendia atraiçoá-la. Por
enquanto... Sim, porque a longa experiência de “Baby” lhe
dizia que a resistência humana tem um limite. Mas naquele
momento ele assumia a atitude de um completo
desconhecido.
Brigitte desejou ardentemente que ele pudesse agüentar
durante vinte quatro horas. Seria o bastante...
Waverly apareceu no pórtico, seguido do gigante de
sarong colorido. Enquanto este se encaminhava para Cheke
Sakti, o inglês se aproximou dela.
— Venha — disse. — Tudo está resolvido, Monique.
Ela desceu do carro em silêncio, seguindo-o até ao
interior da casa. Estava transpondo o umbral quando ouviu
o ruído de uma pancada e virou-se. O descomunal sócio de
Waverly acabara de golpear Sakti, que já estava caído no
chão.
— Não olhe.... — aconselhou Waverly. — É assunto
que não nos diz respeito. Vamos.
Levou-a para o grande salão da bela residência malaia.
Decorações em bambu, flores, quadros chineses de uma
delicadeza impressionante, tapetes finíssimos, lanternas
pintadas. Mobiliário exótico, sem que faltassem as
comodidades ocidentais sob a forma de poltronas, sofás,
estantes com livros, ventiladores no teto e uma infinidade
de estatuetas de Buda, nos mais variados tamanhos, cores e
atitudes. Brigitte foi tentada a saudar o Gautama, porém sua
ironia não lhe pareceu harmonizar-se com o momento. Já o
fizera mais oportunamente.
(Quando Buda Sorri, especial 2)
— Sente-se, Monique. Espero que Bota não se demore.
— Stanford, quem é o homem que ele agrediu?
— Aconteceu uma coisa esta noite sem que eu fosse
informado: dois homens entraram no ‘Vento da Malásia”.
— Para quê?
— Bota disse que pretendiam sabotar. Um deles
escapou, mas o outro, segundo imagino, deve ser esse que
você viu. Bota vai querer saber quem os enviou ao nosso
barco e para que. Também houve uma incursão
audaciosíssima contra esta quinta, esta mesma noite. Parece
que estão tramando algo contra nós, Monique.
— Contra... nós?
— Refiro-me a Bota e a mim. Mais precisamente, contra
a nossa companhia, a “Stabo Lates Ltda.”
— Não entendo... Por que pretendem sabotar?
— Ignoro.
— E Bota?
— Bem... Deve saber mais do que eu, mas não se
mostrou muito comunicativo... Quer tomar alguma coisa?
Creio que tomaria com gosto um uísque algo parecido.
— Bota tem bons uísques.
Waverly foi ao barzinho e serviu duas doses de scotch.
Voltou para junto de Brigitte, entregou-lhe um copo e disse,
preocupado:
— Yam seng?...
— Oh, não. Irei até à última gota, porém devagar.
Uísque não é vinho de arroz...
— Um pouco mais forte — comentou Waverly, ainda
preocupado.
Stanford, diga-me a verdade: você sabe o que está
acontecendo?
— Não muito bem. Lamento que você tenha sido
envolvida.
— Sempre... sempre ocorrem coisas assim?
— Algumas vezes, mas não contra nós. É a primeira vez
e eu estou um pouco... surpreso. Dois homens entram no
“Vento da Malásia”, um invade esta quinta e outro vai ao
seu apartamento. Parece tratar-se de uma sabotagem total,
sem consideração de espécie alguma. Não trepidarão em
matar...
— Santo Deus! Stanford...
— Não tenha receio, porque não tornarão a entrar aqui.
O homem que invadiu a quinta deve ser fortíssimo, porque
matou um dos empregados de um só golpe e Bota assegura
que o fez com a mão.
— Com a mão? É impossível! — exclamou Brigitte.
— Não é, para quem conhece caratê. O intruso partiu o
crânio do empregado de um só golpe e fugiu de modo
assombroso. Bota e sua criadagem ainda não se refizeram
do assombro. Só puderam ver uma sombra negra saltando o
alambrado. Saltou quatro metros e meio como se estivesse
transpondo... uma cerca comum e desapareceu. Monique,
você não consegue, realmente, lembrar-se de algo mais que
lhe tenha dito aquele homem?
— Não entendi o que disse. Oh, sim: falou dos tigres.
Talvez ele próprio tenha entrado aqui!
— É possível — refletiu Waverly. — Sim, é possível. A
julgar pelo tamanho e pela musculatura, seria capaz de
partir a cabeça da um homem até mesmo sem conhecer
caratê. Depois, teria ido procurá-la por um motivo que
ignoramos.
— Eu... entendi que me foi procurar porque no viu
juntos.
— Sim, claro: É bem lógico. Talvez pretendessem
utilizá-la de algum modo...
— Stanford, eu tive uma idéia: se algo aconteceu no seu
barco, que estava no porto de Cingapura, por que não o
avisaram? Afinal, você estava mais perto do que seu sócio,
não é verdade?
— É — rosnou Waverly. — Eu estava mais perto. Bota
deve ter dado algumas ordens sem meu conhecimento.
— Sobre que?
— Não sei. Ele tem se mostrado um pouco inquieto
ultimamente. Dá a impressão de estar tratando de um
assunto difícil, que não quer me revelar.
— Talvez por causa desse assunto tenham ido ao “Vento
da Malásia” e invadido esta quinta — sugeriu Brigitte. —
Na melhor das hipóteses, queria matar o seu sócio...
— Talvez.
— Você devia perguntar frontalmente a Bota se ele está
envolvido em alguma trama, para que pudesse ajudá-lo.
— Terei que fazer isso, mas não agora. Bota é um tipo
que só pode ser abordado em seus bons momentos. Claro
que lhe pedirei explicações, pois não estou disposto a pagar
por assuntos em que se tenha envolvido por conta própria.
Aí vem ele...
Não se via Bota Gunong, mas podia-se saber que se
aproximava pela vibração do soalho, das paredes, dos
Budas em seus suportes... Brigitte ouviu-o entrar, mas, antes
de virar-se para ver o sócio de Stanford Waverly, tomou um
gole de uísque com certa displicência, como que
pretendendo dar a entender ao brutamontes que sua
personalidade podia ser tão forte quanto a dele.
— Esta é Monique, Bota; Monique, apresento o meu
sócio, Bota Gunong.
Brigitte voltou-se no sofá, sorrindo.
— Muita satisfação, mister...
Ficou com a mão parada no ar, emudecendo
bruscamente de surpresa, impressionadíssima com o rosto
de Bota Gunong visto em plena luz. Já conhecia suas
proporções elefantinas, porém... aquele rosto!
Além da gordura, da boca enorme e da inevitável
papada, Bota Gunong era caolho e seu olho normal, caso se
possa dizer assim, não passava de um pontinho escuro,
muito brilhante, em meio a camadas de gordura. Porém não
era esse o olho que mais impressionava, mas o outro,
consideravelmente maior. Toda a cavidade ocular era
ocupada por um olho vermelho, cintilante, pavoroso. Olhar
para aquele olho era o mesmo que encarar uma bola de
fogo.
— Ia dizer... mademoiselle Lafrance? — sorriu
ironicamente o mestiço de chinês e malaio, num inglês
oxfordiano, de mistura com o mais puro francês.
— Que... que estou encantada em... conhecê-lo.
— Mais encantado estou eu — atalhou ele, voltando-se
para Waverly: — Sua amiguinha é deveras bonita, Stanford,
embora muito impressionável. Como todas, enfim...
— Qualquer pessoa normal se impressionaria ao ver o
seu olho — rosnou Waverly.
— É o que tem sucedido, infalivelmente — disse a
enormidade. — Não obstante, eu alimentava a esperança de
que a sua amiguinha tivesse mais... tempera.
— É um olho... digamos, estranho — comentou Brigitte.
— Apenas um rubi... Uma pedra preciosa enorme. Quer
vê-la?
— N... não! Creio que não...
— Quase todos os que perdem um arranjam outro de
vidro, não é certo?
— Bem... Sim, é verdade.
— Isso não a impressiona?
— Não sei...
— A mim me causa repugnância. Um olho de vidro é
uma coisa morta. Irreparavelmente morta! Nota-se
facilmente que um olho de vidro é falso, uma grosseira
imitação da vida. E, por melhor que seja, com ele não se
consegue ver coisa alguma. É certo que eu também não vejo
com o meu olho de rubi, mas pelo menos não me presto ao
ridículo da imitação. A vida não pode ser imitada. A vida ou
a morte... Não está de acordo, mademoiselle Lafrance?
— Sim.., sim, mister Gunong.
— Por outro lado, o meu olho é a vida em si. O fogo
vital contido num rubi merece muito mais respeito do que a
falsa vida de um olho de vidro. Eu não procuro fazer crer
que tenho os dois olhos. Simplesmente, para não ficar com
a cavidade ocular vazia, coloco nela um rubi. Algo mais
legítimo que um olho de imitação. Não concorda comigo?
— Para falar a verdade, mister Gunong, eu... considero
esse seu rubi aterrador.
— Aterrador? — sorriu o sino-malaio.
— Digamos... impressionante — corrigiu Brigitte. — É
como se alguém não nos olhasse com um olho, mas com
uma chama. Ao vê-lo pela primeira vez, a criatura normal
sente uma espécie de atonia logo seguida de espanto, caindo
na defensiva pelo temor de que todos os seus pensamentos
sejam captados por essa... chama encarnada.
— Inteligente! Inteligentíssima — exclamou Bota
Gunong. maravilhado. — Magnífica definição para o meu
bonito olho, mademoiselle Lafrance! Devo também felicitá-
la por sua sinceridade.
Stanford Waverly deixou o copo em cima da mesa e
levantou-se.
— Você vai embora? — quase gritou a desprotegida
Monique.
— Tenho... coisas para fazer em Cingapura ainda esta
noite. Devo examinar o “Vento da Malásia”. Podem ter
colocado uma bomba ou qualquer outro... artefato.
— Mas eu prefiro que... que você ficasse... Leve-me
também, Stanford!
— Você está mais segura aqui. Virei visitá-la pela
manhã — ele hesitou visivelmente. — Não tenha receio:
com Bota você estará tão protegida quanto comigo. Sim...
Estará segura, Monique.
— Sem dúvida — sorriu o asiático.
Waverly sé inclinou e beijou a assustada Monique
Lafrance. Depois, acenou com a mão para Bota Gunong e
saiu. Daí a pouco se ouvia o ronco do motor de seu carro se
afastando.
— A julgar pelo que me disse Stanford, deve estar muito
cansada, mademoiselle Lafrance — disse o anfitrião, cujo
olho faiscava. — Vou mostrar-lhe os seus aposentos.
Saíram da bonita sala e Bota Gunong indicou uma
escada. Subiu atrás de Brigitte, fazendo tremer toda a casa a
cada pisada. Chegaram a um corredor e pouco depois ele
abria uma porta.
— Espero que consiga sentir-se à vontade — desejou. —
Se necessitar de algo, seja o que for, puxe a borla pendente
junto à cabeceira da cama. Tenha bons sonhos.
— Muito obrigada.
O enorme personagem inclinou-se para frente, com o
que seu ventre disforme se projetou por cima do sarong.
Depois, toda a casa voltou a tremer enquanto ele descia a
escada.
Brigitte olhou ao redor e quase soltou uma exclamação
diante de tanta e tão delicada beleza: cortinas, alfombras,
biombos com desenhos sutis, móveis vermelhos e pretos,
em exótica mistura de laca e teca.
Certificou-se de que a porta estava bem trancada por
dentro e deixou sobre a mesa baixa de laca pintada sua
maletinha, na qual faltava apenas a roupa de malha preta,
para a eventualidade de ser revistada. A janela estava
aberta, deixando entrar um frescor muito agradável. Esteve,
dois minutos junto a elas mas não ouviu som algum vindo
dos jardins, a não ser o coaxar das rãs. Aparentemente, tudo
voltara à normalidade. E como tentar algo naquela mesma
noite em favor de Cheke Sakti seria uma insensatez, decidiu
deitar-se e dormir. Afinal, merecia algum descanso.
***
Despertou de súbito e ficou ornando para o teto, que
estava ligeiramente cinza-prateado graças ao resplendor da
lua. Também viu, sem mover a cabeça, o claro retângulo da
janela aberta. Tudo o mais estava às escuras. Não ouvia
ruído algum, porém algo a despertara. Seu finíssimo sexto
sentido jamais lhe falhara.
Ouviu um rumor ao seu lado e moveu a mão lentamente.
Tocou algo... Algo peludo, suave, macio. Grande, de forma
aproximadamente redonda. A seguir, um grande oco úmido,
com protuberâncias que pareciam punhais longos,
fortíssimos.
Um rugido pavoroso fez tremer o quarto, ao mesmo
tempo em que um hálito pútrido aquecia o rosto da espiã.
Quase simultaneamente ouviu-se outro rugido, tão perto
quanto o primeiro. E também simultaneamente Brigitte
Montfort compreendeu que estava com a mão direita dentro
da boca de um tigre, apalpando suas terríveis presas.
Apesar do hálito quente, fétido, o rosto de “Baby”
estava muito frio. A verdade é que todo o seu corpo se
congelara de puro pavor,
Qualquer um, homem ou mulher, morreria de medo ao
receber, em seu próprio quarto, a visita noturna de dois
gigantescos tigres Bengala!

CONTINUA...

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