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A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico e


cultural

Giovani José da Silva*


Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

Resumo Cambas. O objetivo do presente artigo é


A chegada de dois indígenas Aymará aos
contribuir para a compreensão desse cenário
cargos políticos de maior expressão da
multifacetado, formado por etnias indígenas
república boliviana nas últimas duas
que ficaram alijadas do poder político e que
décadas (Victor Hugo Cárdenas, vice-
agora se veem diante de desafios de
presidente de 1993 a 1997; Juan Evo
superação e ocupação de espaços sociais e
Morales Ayma, presidente desde 2006)
políticos outrora violentamente negados.
colocaram algumas complexas questões a
Palavras-chave: Bolívia, Chiquitania,
serem refletidas no campo dos estudos e
Populações Indígenas, Mosaico Étnico-
pesquisas sobre etnicidades nas Américas,
Cultural.
particularmente na América do Sul. Para se
compreender o atual cenário político
Resumen
boliviano é necessário, pois, montar um
La llegada de dos indígenas Aymara a la más
verdadeiro mosaico de grupos que compõem
alta expresión política de la República de
uma rica diversidade étnica e pluricultural,
Bolivia en las últimas dos décadas (Víctor
tratada por muito tempo como motivo de
Hugo Cárdenas, vicepresidente de 1993 a
“atraso” e “subdesenvolvimento” da
1997, Juan Evo Morales Ayma, presidente
Bolívia, que já foi considerada um dos países
desde 2006) pone algunas cuestiones
mais pobres do continente. Para tanto foram
complejas que se reflejan en el campo de
realizados extensos levantamentos
estudios e investigaciones sobre la etnicidad
bibliográficos, no Brasil e na Bolívia, além
en las Américas, especialmente en América
de consultados trabalhos acadêmicos que
del Sur. Para entender el actual escenario
pudessem revelar uma parte da riqueza
político boliviano es necesario, por lo tanto,
sociocultural dessa fragmentada sociedade,
montar un verdadero mosaico de grupos que
particularmente no que se refere aos
conforman una rica diversidad étnica y
indígenas Chiquitano, moradores das “terras
cultural, tratada como una razón para
baixas” bolivianas e identificados por
"retraso" y "subdesarrollo" de Bolivia, que
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ya fue considerado uno de los países más América do Sul. Afinal, a Bolívia jamais teve
pobres del continente. Para eso encuestas indígenas como mandatários em períodos
exhaustivas en la bibliografía se llevaron a anteriores a este, embora sua população,
cabo en Brasil y Bolivia, y consultó desde a criação do país, em 1825, seja
documentos académicos que podrían revelar majoritariamente formada por aqueles que se
una parte de la riqueza sociocultural de esta autodenominam na atualidade como pueblos
sociedad fragmentada, especialmente en originarios. Ainda assim, os índios das
relación a los pueblos indígenas Chiquitano, chamadas “terras baixas” bolivianas, dentre
residentes de las "tierras bajas" e eles os Chiquitano, têm dificuldades em se
identificados como Cambas. El propósito de verem representados politicamente por
este artículo es contribuir a la comprensión indígenas que são do Altiplano e, portanto,
de este escenario multifacético, formado por expressam valores e causas distantes, muitas
grupos indígenas que fueron expulsados del vezes, dos membros das chamadas “minorias
poder político y que ahora se encuentran étnicas”.
ante retos de superación y la ocupación de Para se compreender o atual cenário
los espacios sociales y políticos político boliviano é necessário, pois, montar
violentamente negados a ellos a lo largo del um verdadeiro mosaico de grupos que
tiempo. compõem uma rica diversidade étnica e
Palabras clave: Bolivia, Chiquitania, pluricultural, tratada por muito tempo como
Pueblos Originarios, Mosaico Étnico y motivo de “atraso” e “subdesenvolvimento”
Cultural da Bolívia. A atual constituição boliviana
reconhece o país como multiétnico e
pluricultural, embora como saliente Xavier
Albó (1999, p. 478), “[...], la marginación de
Considerações Iniciais los pueblos originarios sigue particularmente
A chegada de dois indígenas Aymará en toda la esfera econômica”. 1 Ainda assim,
aos cargos políticos de maior expressão da os indígenas bolivianos continuam a se
república boliviana nas últimas duas décadas organizar e a reivindicar seus direitos, em
(Victor Hugo Cárdenas, vice-presidente de uma demonstração de esperança em dias
1993 a 1997; Juan Evo Morales Ayma, melhores naquele que já foi considerado um
presidente desde 2006) colocaram algumas dos países mais pobres das Américas. O
complexas questões a serem refletidas no objetivo do presente artigo é contribuir para a
campo dos estudos e pesquisas sobre
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Tradução: “A marginalização dos povos indígenas
etnicidades nas Américas, particularmente na segue particularmente em toda a esfera econômica”.
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compreensão desse cenário multifacetado, produz, é também reconhecida por formar


formado por etnias indígenas que ficaram historicamente uma complexa sociedade
alijadas do poder político e que agora se pluricultural e multiétnica. Em território
veem diante de desafios de superação e boliviano há tempos convivem inúmeros e
ocupação de espaços sociais outrora diferentes grupos étnicos indígenas, dentre os
violentamente negados. quais podem ser destacados, na atualidade, os
Para tanto foram realizados extensos Aymará, os Quéchua e os Guarani. Há
levantamentos bibliográficos, no Brasil e na também um expressivo contingente de
Bolívia, além de consultados trabalhos “minorias étnicas”, dentre as quais os
acadêmicos que pudessem revelar uma parte Chiquitano, os Chiriguano e os Ayoreo, entre
da riqueza sociocultural dessa fragmentada outros. Pouco mais de 60% da população
sociedade (José da Silva, 2011; 2012), atual daquele país considera-se indígena, de
particularmente no que se refere aos acordo com o recenseamento realizado em
indígenas Chiquitano, moradores das “terras 2001, em que pese o fato de pesquisadores
baixas”. A partir das análises empreendidas, como Silvia Rivera Cusicanqui (2008),
conclui-se que os fatais prognósticos dos questionarem o critério de auto-identificação
editores do recenseamento boliviano de utilizado naquele censo. Ainda que haja um
1900, que davam como certa a “extinção da complexo emaranhado de categorias sociais
raça indígena” (Albó, 1999) estavam (mestizos, cholos, etc.) a ser levado em conta
incorretos. Mais de 100 anos depois, em qualquer análise demográfica sobre a
continua-se a falar em povos indígenas ou Bolívia e que a definição do número de
pueblos originarios na Bolívia e que os sociedades indígenas careça de consenso,
mesmos não defendem apenas o direito à dados levantados pela ONU apontaram pelo
própria existência, mas colocam em xeque as menos 34 grupos vivendo em áreas urbanas e
estruturas de um Estado que se enxerga rurais, no início do século XXI naquele país
multiétnico, pluricultural e, em última (Organização das Nações Unidas, 2005).
instância, plurinacional. Tais grupos tiveram e têm, ao longo
da história, significativa participação na vida
As complexas relações étnicas em política do país, marcada nas últimas décadas
território boliviano: um país por grandes e graves turbulências. Sem
fragmentado? resvalar para qualquer forma de
determinismo geográfico, um estudo mais
A Bolívia, além de ser conhecida acurado do relevo do país pode ajudar na
mundialmente pelas riquezas minerais que compreensão desta situação e elucidar
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algumas questões importantes para o baixas” possui uma cobertura vegetal de


entendimento daquela realidade. 445.000 km² sobre uma extensão total de
Caracterizada por descontinuidades aproximadamente 763.000 km² (Birk, 2000).
geográficas, a Bolívia encontra-se dividida, Para além dos aspectos geográficos, o
grosso modo, em duas grandes regiões concurso de uma diversidade de fatores
claramente distintas: a região andina ou históricos foi determinante na estruturação da
Altiplano (montanhosa, árida, fria e rica em formação política, social, econômica e
minérios) e a região das “terras baixas” (de cultural da Bolívia, em uma análise na qual
clima tropical, formada por imensas não se podem deixar de lado as pretéritas e
planícies, ricas em petróleo e gás natural). De presentes mobilizações camponesas e
2
acordo com Leandro Mendes Rocha (2006, indígenas, dentre outras. A importância de
p. 09), “nessa última região, que cobre dois diferentes eventos históricos – dentre eles a
terços da superfície do país, vive apenas um Guerra da Independência (1809-1825), a
terço da população total”. Guerra Federal de 1898-1899 e a Revolução
3
As “terras baixas” cobrem toda a de 1952 – remete à forma como se
parte norte e leste da Bolívia e dividem-se articularam antigos e atuais processos
em quatro regiões: Yungas, Amazônia, Chaco internos nesta formação. Pode-se dizer,
e Chiquitania. Yungas formam uma zona de assim, que a Bolívia dos séculos XX e XXI
transição entre as montanhas e cordilheiras sintetiza uma história que compõe um
dos Andes e a Amazônia, ao norte do país. A heterogêneo mosaico étnico, cultural,
Amazônia, por sua vez, é formada por linguístico e social; mosaico este que se
grandes extensões de florestas úmidas, contrapõe à unidade política e territorial do
apresentando alta diversidade de espécies de país, constituída nas primeiras décadas do
plantas. Na parte sul desta região encontram- século XIX e mutilada por sucessivas perdas
se amplas planícies cobertas de variedades que chegaram a mais de 1.000.000 km²,
vegetais que são aproveitadas como pastos consequências de sangrentas guerras e
por grandes rebanhos de gado bovino. O tratados diplomáticos lesivos aos bolivianos.
Chaco é uma região de intenso calor, coberta Entre a segunda metade do século
por matas baixas, savanas áridas e algumas XIX e a primeira metade do século XX, a
áreas úmidas. A Chiquitania, no noroeste do 2
De acordo com Marcelo Grondin (1984, p. 07),
país (Departamento de Santa Cruz), é uma “Entre os anos 1780-1783, os vice-reinados do Peru
e de La Plata [atual território boliviano], foram
região menos úmida e está coberta por uma palco das rebeliões indígenas mais consideráveis de
toda a história da colônia na América do Sul e que
paisagem em que se alternam bosques semi- serviram de prelúdio às guerras da Independência”.
3
Cf. para outras informações a respeito desses eventos:
úmidos e savanas. O conjunto das “terras Mesa; Gisbert; Mesa Gisbert, 2007.
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Bolívia sofreu pesadas derrotas militares para e são identificados como Collas (derivado de
o Brasil, o Chile e o Paraguai, além de ter Colla Suyo, uma das quatro antigas divisões
negociado, no mesmo período, extensas áreas do império incaico, que era também formado
de terras com o Brasil, a Argentina e o Peru por Antesuyo, Contesuyo e Chinchai Suyo,
(Carvalho, 2005). Interesses nacionais e que reunidos formavam Tawantisuyo, “as
estrangeiros estiveram presentes durante os quatro terras”). Já os que vivem nas “terras
eventos assinalados e provocaram ou baixas”, como os indígenas Chiquitano,
acirraram profundas divisões internas entre a genericamente são identificados e
população boliviana. Não apenas prejuízos identificam-se como Cambas. Há uma
materiais, mas, sobretudo, imensas perdas histórica rivalidade entre Collas e Cambas,
humanas marcaram o envolvimento dos manifestada, muitas vezes, em um tradicional
bolivianos em tais conflitos bélicos e litígios regionalismo.
diplomáticos. Embora pouco documentada e Antropólogos e outros pesquisadores
ainda praticamente não estudada, crê-se que a têm observado que a utilização de
participação de indígenas nesses conflitos expressões, jocosas ou não, revela
tenha sido intensa, sobretudo na Guerra do preconceitos alimentados, tanto no Altiplano
Chaco (1932-1935), ocorrida entre Bolívia e como nas “terras baixas”, por um grupo em
Paraguai. Nesse sentido, destacam-se os relação ao outro e vice-versa. Aos Collas, por
esforços dos trabalhos de Jürgen Riester exemplo, é atribuído um espírito
(2005), na recuperação de narrativas “depredador”, possivelmente herdado do
indígenas Guarani sobre a Guerra, além de antigo império incaico. Já sobre os Cambas,
um recente trabalho compilado por Nicolás se diz que “não gostam de serviços pesados”
Richard (2008) publicado no Paraguai. e que, por essa razão, “trabalham pouco”.
A referida pluralidade étnica e Existem, pois, atitudes de rechaço e de
sociocultural constituiu-se em permanente discriminação, incorporadas culturalmente e
desafio à fragmentada sociedade boliviana, reproduzidas no cotidiano não apenas no
como já constatou Herbert S. Klein (1994), interior da Bolívia, como também no exterior
além de exigir dos pesquisadores atenção daquele país. Isso sem contar no constante
redobrada às complexas relações que se enfrentamento entre o poder central
estabeleceram entre os distintos universos (parcialmente sediado nos Andes, em La Paz,
socioculturais. Cabe ressaltar que estas associado aos Collas) e o Departamento de
relações foram e são, ainda, fortemente Santa Cruz de la Sierra (localizado nas
marcadas por uma questão regional: os que planícies e, portanto, relacionado aos
vivem no Altiplano, em geral, identificam-se Cambas), o que coloca em choque, muitas
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vezes, os interesses dos que se dizem diversificó y actualmente cada país


pertencentes a um ou a outro grupo (Montaño tiene sus propias formas de nombrar
Aragón, 1977; Hollweg, 1977; Stearman, y dividir a la población en grupos.
1987). En Bolivia, se hacen las siguientes
Para Sidney Antonio da Silva (1997, distinciones:
p. 73), entretanto, LOS COLLAS son los habitantes de
la región andina, en oposición a
[...] essas duas categorias não dão LOS CAMBAS que son los
conta de expressar a diversidade mestizos del trópico.
cultural que caracteriza essas duas CAMPESINOS se llama a los
regiões do país. [...] as sociedades quechuas y aymaras rurales de la
do Altiplano caracterizam-se pela región andina.
agricultura, e por isso é comum o COLONOS son los campesinos
culto à fertilidade da terra quechuas y aymaras que han
(Pachamama), enquanto que as migrado al trópico.
sociedades dos trópicos INDÍGENAS es la
caracterizam-se pela pecuária [...], o autodenominación de las etnias del
fator climático também teria trópico y así son llamados por la
incidido na maneira de ser do población nacional.
homem do Altiplano e dos trópicos. Cabe recalcar que la denominación
“indio”, que es utilizada en muchos
Evidentemente que a questão da países latinoamericanos para
influência climática no modo de ser dos designar a los pueblos originarios,
grupos humanos já foi amplamente debatida, en Bolivia tiene una fuerte
tanto pela Antropologia como pela connotación racista y equivale a un
Geografia, uma vez que o uso de tais insulto. 4
tipologias ou divisões pode reificar
estereótipos de toda ordem e, por essa razão, 4
Tradução: “[...], a composição étnica dos países
latino-americanos se diversificou e atualmente cada
devem ser evitados. país tem suas próprias formas de nomear e dividir a
Gudrun Birk (2000, p. 15) assim se população em grupos. Na Bolívia, se fazem as
seguintes distinções:
refere a essas divisões: OS COLLAS são os habitantes da região andina, em
oposição aos
CAMBAS que são os mestiços do trópico.
CAMPESINOS se chamam aos quechuas e aymaras
[...], la composición étnica de los rurais da região andina.
COLONOS são os camponeses quechuas e aymaras
países latinoamericanos se que migraram para o trópico.
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como já visto, comportam inclusive razões de


Estes estereótipos, difíceis de serem cunho geográfico (Cambas e Collas). Mario
extirpados de diversas etnografias, precisam Montaño Aragón (1977) propõe pelo menos
ser, antes de tudo, questionados e três configurações distintas para a sociedade
relativizados, não sendo diferente com o caso boliviana: um complexo cultural hispano-
boliviano (Silva, 1997, p. 74). criollo, que se confundiria com as pautas
É importante salientar que na Bolívia, culturais das camadas sociais dominantes,
os Chiquitano, por exemplo, não se compostas por indivíduos descendentes de
autodenominam indígenas e nem mesmo são conquistadores e colonizadores europeus e
denominados assim pela população não considerados “brancos”; a cultura chola, das
indígena, pois: camadas médias e baixas, associadas aos
mestizos, resultante da miscigenação entre
Las comunidades indígenas son “brancos” e indígenas.
llamados ranchos por los Para Ozzie Simmons, entretanto, que
chiquitanos, y comunidades investigou a presença dos cholos na
campesinas por la sociedad sociedade peruana, existiria outra
nacional, en un intento luego de interpretação para o uso do termo cholo na
1953, de rechazar la connotación América andina:
peyorativa y racista que aquella
época tenía el vocablo “indio” y por [...] el término cholo está reservado
extensión “indígena” (Tonelli para los “indios” que están
Justiniano, 2004, p. 334). 5 asimilándose rápidamente al grupo
cultural de los mestizos, pero que
Aqui se abre um pequeno parêntese todavía no han “llegado”. Un cholo
para abordar brevemente as complexas puede ser clasificado como más o
divisões sociais presentes na Bolívia que, menos criollo, dependiendo del grado
de su orientación hacia la mirada

INDÍGENAS é a autodenominação das etnias do criolla (apud Stearman, 1987, p. 80). 6


trópico e assim são chamados pela população nacional.
Cabe ressaltar que a denominação ‘índio’, que é
utilizada em muitos países latino-americanos para
6
designar os povos originários, na Bolívia tem uma Tradução: “[...] o termo cholo é atribuído aos ‘índios’
forte conotação racista e equivale a um insulto”. que estão se assimilando rapidamente ao grupo
5
Tradução: “As comunidades indígenas são chamadas cultural dos mestizos, mas que, todavia, não têm
ranchos pelos chiquitanos, e comunidades ‘chegado’ [a serem considerados mestizos, de fato].
campesinas pela sociedade nacional, em uma Um cholo pode ser classificado como mais ou
tentativa a partir de 1953, de rechaçar a conotação menos criollo, dependendo do grau de sua
pejorativa e racista que naquela época tinha o orientação em direção à cosmovisão criolla”.
vocábulo ‘índio’ e por extensão ‘indígena’”.
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Finalmente, de acordo com Montaño boliviana, tal como se conhece hoje, deu-se a
Aragón, há o complexo cultural indígena, partir da segunda metade do século XX,
sendo que muitos deles, inclusive os depois dos períodos de extração da borracha
Chiquitano, preferem ser chamados de (goma), da Guerra do Chaco e da construção
campesinos, reservando-se o termo “índio” da estrada de ferro entre o Brasil e a Bolívia.
exclusivamente ao morador das matas, com Influenciou, também, nesse processo o
pouco ou nenhum contato com não colapso econômico da agricultura comercial,
indígenas. ocorrido entre o final da década de 1940 e
Riester (1976, p. 129) estabelece uma meados da década de 1950, quando os
tipologia para os diferentes núcleos estancieros perderam o interesse pelo cultivo
populacionais onde vivem os Chiquitano na de grandes superfícies, preferindo a criação
Bolívia: ranchos (aldeias habitadas de gado, ficando a produção agrícola a cargo
unicamente por indígenas); estancias dos índios Chiquitano. Isso não significou,
(propriedades não indígenas, de criação de contudo, um avanço para os indígenas, posto
gado), geralmente cercadas por ranchos; que os mesmos trocassem os produtos da
haciendas (propriedades de mestizos, agricultura e da caça por toda sorte de artigos
voltadas para a produção agrícola); pueblos industrializados, levados até a região por
(antigas missões jesuíticas, em que comerciantes chamados mercachifles. O
predomina população não indígena); ranchos consumo de álcool cresceu
y pueblos (apesar dos mesmos nomes, consideravelmente entre os índios em virtude
diferentes dos já citados, por estarem da presença desses comerciantes.
localizados especificamente ao longo da Tonelli Justiniano (2004, p. 335).
linha férrea que liga Santa Cruz de la Sierra a aponta ainda que:
Corumbá) e barracones (povoados ainda
existentes nos seringais de Ñuflo de Chávez e En los años [19]50 y posteriores se
Velasco). O antropólogo assinala que existem presenta un tercer factor, que estimuló
diferenças entre os habitantes indígenas de e impulsó grandemente el proceso de
cada um destes núcleos, bem como entre nuclearización rural: la promulgación
províncias, principalmente nas atividades de la Ley Reforma Agraria, que libera a
econômicas e, também, nas relações los indígenas del régimen del
estabelecidas pelos indígenas com a empatronamiento forzoso y obliga a los
sociedade nacional. empresarios a pagarles un salario justo.
A organização de comunidades Se estima que durante los años 60, 70 y
indígenas, ou ranchos, na Chiquitania 80 [do século XX], el número de
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comunidades indígenas se triplica o los fondos necesarios para la


cuadruplica. 7 remuneración de los maestros, pero
nunca alcanzó a supervisar la efectiva
Outro fator a ser apontado, aplicación de las disposiciones
juntamente com a Reforma Agrária de 1953, adoptadas. De ahí que no solo en las
foi a primeira Reforma Educativa produzida regiones caucheras, sino también en el
pelo governo do MNR (Movimiento sur de país, más favorecido desde el
Nacionalista Revolucionario), que se punto de vista político y mejor dotado
traduziu principalmente na abertura de vías de comunicación, los sueldos
sistemática de escolas nas comunidades de los maestros se diluyen en manos de
rurais que apresentassem pelo menos 25 quienes nada tienen que ver con la
alunos. Antes da reforma, o número de enseñanza y que muchas veces no
escolas na Chiquitania era muito reduzido e saben leer ni escribir (Riester, 1976, p.
aqueles que podiam pagar, o que não era o 135).8
caso da maioria, contratavam professores
particulares para que ensinassem as crianças Foi somente a partir da segunda
a ler e a escrever. Apesar do esforço realizado metade da década de 1980 que os Chiquitano
pelo governo para garantir a instrução foram progressivamente conquistando
escolar, inclusive nos locais mais remotos do espaços sociais mais amplos e fazendo valer
país, o programa do MNR se mostrou, com o direitos históricos que, por séculos, lhes
tempo, demasiado ambicioso e não logrou os foram sistematicamente negados. Esse
efeitos desejados entre os indígenas, dentre movimento culminou com o processo de
eles os Chiquitano. consolidação territorial das populações
De acordo com Riester, isso ocorreu indígenas, sob o conceito de TCO (Tierras
por que: Comunitarias de Origen), iniciado em 1990
com a Marcha por Territorio y la Dignidad e
De hecho, [o governo] decretó la ainda em curso (Balza Alarcón, 2008). Pode-
construcción de escuelas y suministró
8
Tradução: “De fato, [o governo] decretou a
construção de escolas e subministrou os fundos
7
Tradução: “Nos anos [19]50 e posteriores se necessários para a remuneração dos professores,
apresenta um terceiro fator, que estimulou e mas nunca chegou a supervisionar a efetiva
impulsionou grandemente o processo de nucleação aplicação das disposições adotadas. Daí que não
rural: a promulgação da Lei Reforma Agrária, que apenas nas regiões da borracha, mas também no sul
libera os indígenas do regime do empatronamiento do país, mais favorecido desde o ponto de vista
forzoso e obriga aos empresários a pagar-lhes um político e melhor dotado de vias de comunicação,
salário justo. Estima-se que durante os anos 60, 70 os soldos dos professores se diluem nas mãos de
e 80 [do século XX], o número de comunidades quem nada têm que ver com o ensino e que muitas
indígenas se triplica ou quadruplica”. vezes não sabem ler nem escrever”.
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se afirmar que a crescente denúncia de língua dos conquistadores permaneceu


abusos na outorga de títulos fundiários, as uma língua de minoria até o século XX.
políticas internacionais em favor da Dessa forma, as prósperas colônias
conservação do meio ambiente e o mineiras de antigamente emergiram em
fortalecimento do movimento indígena sua nova existência republicana, como
conduziram, nos anos 1990, a uma uma sociedade extremamente pobre,
reformulação das leis agrárias. Este é um composta na esmagadora maioria por
processo que poderá apresentar outros índios camponeses.
desdobramentos, uma vez que a visibilidade
dos Chiquitano hoje é muito maior do que no Até então, ao longo do período
passado, tendo em vista que um conjunto de colonial, as atuais terras bolivianas fizeram
antigos templos jesuíticos (San Francisco parte, primeiro, do Vice-Reino do Peru
Javier, Concepción, Santa Ana, San Miguel, (1543) e, posteriormente, quando o mesmo
San Rafael e San Jose) foi selecionado, em foi dividido, do Vice-Reino do Prata (1776),
1990, pela Unesco (Organização das Nações com capital em Buenos Aires. A conquista
Unidas para a Educação, a Ciência e a espanhola nessa porção da América seguiu o
Cultura) como Patrimônio da Humanidade. modelo precedente da conquista do México e
de parte da América Central, em que uma
A Bolívia e a Chiquitania: complexidades avançada tecnologia militar possibilitou que
étnico-culturais várias centenas de espanhóis sobrepujassem,
em pouco tempo, grupos indígenas formados
Como república independente, a por milhares de homens e mulheres.
Bolívia constituiu-se, no plano político, a Ainda de acordo com Klein:
partir de 1825, sobre a base territorial da
antiga Real Audiência de Charcas. Tornando- O domínio espanhol na América
se um país emancipado politicamente na organizou-se em unidades político-
primeira metade do século XIX, tendo à administrativas denominadas vice-
frente José Antonio de Sucre e Casimiro reinos. O primeiro deles, o Vice-Reino
Olañeta, a Bolívia, nas palavras de Klein da Nova Espanha, cuja capital era a
(1991, p. 73): cidade do México, foi criado em 1535 e
abrangia América Central, Antilhas e
[...] constituiu-se assim na mais parte considerável do sul dos Estados
indígena das novas repúblicas da Unidos. Em 1543 foi criado o Vice-
América espanhola; república na qual a Reino do Peru, tendo Lima como
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capital. O Vice-Reino do Peru estendia durante quase três séculos, os avanços da


sua jurisdição a todo território sul- colonização ibérica na região:
americano submetido ao domínio
espanhol, incluindo o Alto Peru, nome Estudios recientes [...] indican que
que então se dava à região que iria los Incas nunca tuvieron éxito en sus
constituir a maior parte da base esfuerzos por sojuzgar a los aborígenes
territorial do Estado boliviano, três de las tierras bajas y que, por tanto, se
séculos mais tarde (Klein, 1991, p. 27). vieron obligados a construir una serie
de fortalezas para evitar que invadieran
Diversos grupos povoaram em los asentamientos de las tierras altas
tempos pretéritos as terras bolivianas, (Stearman, 1987, p. 41). 9
formando distintos e importantes conjuntos
culturais: Tiahuanaco, Mollo, Charcas, Urus Já em tempos pré-coloniais, portanto,
e Chipaias, dentre inúmeros outros (Hany, a atual região da Chiquitania esteve povoada
2007). Antes da chegada dos espanhóis, entre por inúmeras etnias pertencentes a diversos
o século XII e as primeiras décadas do século grupos linguísticos. Algumas delas eram
XVI, floresceram, nos planaltos andinos do formadas por agricultores sedentarizados que
Sul, uma sociedade e uma organização estatal viviam em grandes aldeias cultivando milho,
altamente complexas, ancoradas em um mandioca, tabaco, diversos tipos de abóboras
denso sistema de aldeias agrícolas. Algo em e outros produtos com um sistema de roça e
torno de três milhões de indígenas estava sob queima, complementando a dieta alimentar
o controle do Inca, envolvendo uma com carne de caça, peixes e vegetais
multiplicidade de distintas sociedades, silvestres. Havia, também, numerosos grupos
falantes de numerosas línguas, que se seminômades que alternavam períodos de
10
agrupavam num vasto sistema de trocas, não perambulação e sedentarismo em chacos ,
mercantil. Já na região das planícies para a preparação da semeadura dos cultivos.
desenvolveu-se um sistema de povoamento Estes grupos percorriam grandes extensões a
paralelo ao andino, que formava uma espécie fim de coletar nas matas, satisfazendo suas
de “fronteira” integrada por uma combinação necessidades de alimentação, vestimenta,
de grupos caçadores, coletores e agricultores 9
Tradução: “Estudos recentes [...] indicam que os Incas
(Wachtel, 2004). nunca tiveram êxito em seus esforços para subjugar
os aborígenes das terras baixas e que, portanto, se
Esta verdadeira “fronteira humana” viram obrigados a construir uma série de fortalezas
para evitar que invadissem os assentamentos das
impediu a expansão dos grupos andinos terras altas”.
10
A palavra chaco é de origem Quéchua e significa
nesses domínios territoriais, além de conter,
“campo de caça” (Brasil, 1997, p. 398).
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ferramentas e regressando aos campos para a Em relação à localização geográfica,


colheita. Assim mesmo, pequenos grupos uma das primeiras delimitações da área então
nômades de caçadores, coletores e conhecida como “Nación de los Chiquitos”,
pescadores recorriam constantemente às hoje Chiquitania, aparece em um memorial,
matas a fim de garantir a subsistência (Birk, datado do ano de 1703, escrito por Francisco
2000). Burgés, então Procurador Geral da Província
A grande maioria destas etnias era Jesuítica do Paraguai:
formada por sociedades igualitárias, que não
produziam excedentes, não havendo, pois, La Nación de los Chiquitos confina
grandes diferenças econômicas entre as por el Occidente con la Ciudad de San
famílias extensas que formavam os grupos. Lorenço y Provincia de Santa Cruz de
As decisões que afetavam as comunidades la Sierra. Su distrito corre azia el
eram tomadas pelos membros adultos, Oriente hasta el Río Paraguay por
mediante consenso; quando isto não era espacio de ciento y cuarenta leguas; por
possível, o grupo dividia-se em parcelas la parte del Norte se termina en la
menores. Havia chefias, que se destacavam Sierra de los Tapacuras, que divide esta
por suas virtudes guerreiras, habilidades de Missión de la de los Moxos, y corre la
oratória e atos de generosidade, intervindo Serranía desde el Poniente al Oriente
apenas em casos de crise, sobretudo em hasta el dicho Río Paraguay. Y por la
conflitos com outros grupos, quando então parte del Sur confina con Santa Cruz la
eram apoiadas pelo conselho de anciãos. A Vieja y su Serranía, que assimismo
personagem de maior poder simbólico era o corre hasta el mismo Río. La distancia
xamã, que fazia a mediação entre as forças da que ay de Norte à Sur será de cien
natureza e os seres humanos e à qual era léguas (apud Tomichá Charupá, 2008,
atribuída a capacidade de curar enfermos, p. 237-238). 11
dentre outras. Até o momento, os
especialistas insistem que, apesar dos poucos Tais limites, confirmados em outra
dados disponíveis, é possível afirmar que os
11
Tradução: “A Nação dos Chiquitos confina pelo
Chiquitano não conformaram uma sociedade Ocidente com a Cidade de São Lorenço e Província
fortemente estratificada, com sistema de de Santa Cruz de la Sierra. Seu distrito ‘vai’ pelo
Oriente até o Rio Paraguai por um espaço de cento
cacicatos e que este sistema teria sido e quarenta léguas; pela parte do Norte se encerra na
Serra dos Tapacuras, que divide esta Missão da dos
introduzido pelos jesuítas a partir do final do Moxos, e corre a Serrania desde o Poente ao
Oriente até o dito Rio Paraguai. E pela parte do Sul
século XVII (Riester, 1976; Krekeler, 1995; confina com Santa Cruz la Vieja e sua Serrania, que
assim mesmo corre até o mesmo Rio. A distância
Birk, 2000). que há do Norte ao Sul será de cem léguas”.
113
A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

fonte da época (Fernández, 1895; 1896), los diversos grupos han experimentado
correspondem, grosso modo, à região onde se una adecuación considerable, de tal
estabeleceu a experiência reducional manera que podemos hablar de una
promovida pelos jesuítas. O uso do vocábulo cultura chiquitana, a pesar de que la
“Nación”, por Burgés, inclusive, permite calificación de un indígena como
entrever certa hegemonia geográfica e “chiquitano”, no explique su origen
sociocultural do grupo étnico majoritário cultural. 12
conhecido como Chiquito ou Chiquitano. O
mesmo jesuíta assinala, em outros trechos de Alfred Métraux se reporta à
seu memorial, os diversos grupos indígenas complexidade de se determinar com exatidão
que existiam, então, na região, pertencentes a quem foram os Chiquitano e onde os mesmos
inúmeras e distintas famílias linguísticas: se localizavam, pois, de acordo com aquele
Arawaca, Chapacura, Guarani, Otuqui, etnólogo, “one of the most hopeless tasks of
Zamuca e Suma. the South American Ethnology is that
E o que se entende, afinal, por obtaining a clear picture of the linguistic
Chiquitano? Outrora conhecidos também affiliations or even of the exact locations of
como Trabacicosis ou Tapuymirí, Chiquito the Indian tribes of the vast region known as
ou Chiquitano hoje é, genericamente, a the Province of Chiquitos” (Métraux, 1942,
13
definição de um cadinho de grupos p. 114). Sobre a história do grupo, Birgit
indígenas, os mais variados, que foram Krekeler (1995) aponta uma divisão em
reunidos graças à ação missionária jesuítica fases: de 1542 a 1620 (conquista e subjugo
(1691-1767) nas “terras baixas” bolivianas. dos indígenas), 1620 a 1692 (perambulação
Esta ação missionária pode ser resumida em de vários grupos pela Chiquitania e a
dois aspectos principais: a aglomeração de eventual caça de índios, pelos espanhóis e
indígenas em reduções (com a consequente e portugueses, para escravização), 1692 a 1767
14
progressiva sedentarização dos grupos) e a (cristianização dos indígenas) , 1767 aos
imposição de uma única língua, o Chiquitano
12
Tradução: “No curso dos últimos duzentos anos, os
como língua geral, também chamada, hoje diversos grupos experimentaram uma adequação
considerável, de tal maneira que podemos falar de
em dia, de Chiquito pelos linguistas e de
uma cultura chiquitana, apesar de que a
Besüro ou Besoro pelos próprios indígenas. qualificação de um indígena como ‘chiquitano’, não
explique sua origem cultural”.
13
Riester (1976, p. 123-124) ainda Tradução: “Uma das tarefas mais desesperadoras da
Etnologia sul-americana é a de obter uma visão
esclarece que: clara da afiliação linguística e ainda mais da
localização exata das tribos indígenas na vasta
região conhecida como a Província de Chiquitos”.
14
Parejas Moreno & Suárez Salas, dentre outros
En el curso de los últimos 200 años,
autores, estabelecem a data de fundação de San
114
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.6, No 2/ 2012

nossos dias (eventos que assinalam intenso Jurgen Riester, para a Bolívia [...]
contato entre os Chiquitano e não índios). (Silva, 2005, p. 120).
Nota-se que a autora não faz menção alguma
ao período anterior à conquista espanhola. De acordo com Krekeler (1995, p.
As palavras de Joana A. Fernandes 217), se por um lado as missões jesuíticas
Silva explicam tal silêncio sobre o período constituíram-se em um evento incisivo na
mencionado, além de oferecerem um história dos Chiquitano, por outro
panorama sintético sobre o atual estágio das propugnaram a destruição de tradicionais
pesquisas a respeito da história dos indígenas estruturas políticas, sociais, econômicas,
Chiquitano: culturais e religiosas, assim como a mistura
entre grupos diversos, alguns até mesmo
A literatura sobre os Chiquitanos inimigos entre si.
tem demonstrado exaustivamente a Roberto Tomichá Charupá, de origem
importância da Missão de Chiquitos na indígena Chiquitano, de um ponto de vista
conformação desse povo na atualidade, pouco mais positivo do que o de Krekeler,
mas há uma carência acentuada de assim se refere à presença jesuítica e aos
estudos etnográficos. Há um cuidado contatos entre indígenas e religiosos nas
grande no estudo do período jesuítico, “terras baixas”:
ao passo que há quase uma
impossibilidade em recuperar os dados El oriente boliviano es una región
anteriores à expansão missionária no rica de tradiciones culturales y
território Chiquitano, uma vez que os religiosas que ha plasmado no sólo
mais de dez povos aldeados pelos estilos, costumbres, características
jesuítas ainda não foram estudados ou, socioculturales de […] [diferentes]
então, não há como recuperar pueblos, sino también la interioridad de
informações sobre eles. No período la persona misma de estas tierras, su
pós-Missão de Chiquitos, entre os visión del mundo y actitud ante la vida,
séculos XVIII e XX, há informações su talante de relación interpersonal y,
esparsas apenas. Para finais do século por supuesto, sus profundas
XX, devemos salientar os trabalhos de convicciones religiosas. Estas raíces
religiosas se remontan a tiempos
Francisco Javier, a primeira missão jesuítica entre inmemoriales cuando la región estaba
os Chiquitano, em 31 de dezembro de 1691 (Parejas
Moreno; Suárez Salas, 1992, p. 67). Há aqueles, poblada por numerosas naciones
entretanto, que dão como data de fundação o ano de
1692, como Krekeler, por exemplo. originarias que vivían con sus propias
115
A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

cosmovisiones míticas, tipologías futuro!) dos Chiquitano estão intimamente


culturales, organizaciones sociales y relacionados com o projeto missionário dos
normas éticas, enfrentando ya entonces, jesuítas, desenvolvido entre o final do século
el desafío cotidiano de la diversidad XVII e o início da primeira metade do século
étnica y de la convivencia intercultural XVIII (Riester, 1976; Freyer, 2000).
y religiosa.
Como assevera Roberto Balza
Porém, ressalta o mesmo autor que: Alarcón (2008, p. 271):

La llegada de las tradiciones En efecto, la presencia de los


religiosas y culturales españolas supuso jesuitas en lo que hoy es el
un cambio radical en la concepción de departamento de Santa Cruz – en
vida de los antiguos pobladores del Bolivia, representó para las diferentes
oriente boliviano, tanto por la radical parcialidades chiquitas y otros pueblos
novedad de contenidos como por la indígenas vecinos, la oportunidad de
imposición forzosa y la conquista sobrevivir al régimen colonial, que
sociopolítica de los espacios indígenas dominado por españoles y portugueses,
(Tomichá Charupá, 2005, p. 05). 15 condenaba el destino de los indígenas
del lugar al exterminio físico o a la
Os especialistas na questão são esclavitud. 16
praticamente unânimes ao afirmarem que o
passado, o presente (e, provavelmente, o Contudo, em contrapartida à
sobrevivência física representada pelas
15
Tradução: “O oriente boliviano é uma região rica de
missões e para além dos esforços dos
tradições culturais e religiosas que tem plasmado não
apenas estilos, costumes, características socioculturais religiosos em adequar seus métodos de
de […] [diferentes] povos, mas também a interioridade
da pessoa mesma destas terras, sua visão de mundo e evangelização àquela realidade, a vida nas
atitude diante da vida, seu caráter de relação
interpessoal e, com toda certeza, suas profundas missões implicou, para os Chiquitano e para
convicções religiosas. Estas raízes religiosas remontam
a tempos imemoriais quando a região estava povoada os outros grupos indígenas reduzidos, uma
por numerosas nações indígenas que viviam com suas
série de mudanças em suas pautas culturais
próprias cosmovisões míticas, tipologias culturais,
organizações sociais e normas éticas, enfrentando já
16
então, o desafio cotidiano da diversidade étnica e da Tradução: “Com efeito, a presença dos jesuítas no
convivência intercultural e religiosa. que hoje é o departamento de Santa Cruz – na
A chegada das tradições religiosas e culturais Bolívia, representou para as diferentes parcialidades
espanholas supôs uma mudança radical na concepção chiquitas e outros povos indígenas vizinhos, a
de vida dos antigos povoadores do oriente boliviano, oportunidade de sobreviver ao regime colonial, que
tanto pela radical novidade de conteúdos como pela dominado por espanhóis e portugueses, condenava
imposição forçosa e a conquista sociopolítica dos o destino dos indígenas do lugar ao extermínio
espaços indígenas”. físico ou à escravidão”.
116
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.6, No 2/ 2012

próprias, desde os aspectos religiosos e chiquitos. A primeira situada em


econômicos até os sociopolíticos. trechos das bacias dos rios Uruguai,
Impuseram-se crenças e rituais católicos, Paraná e Paraguai. As outras duas no
introduziu-se a criação de gado e houve o atual Oriente Boliviano em região
incremento da atividade agrícola, dentre tropical, de pequena altitude e
outras profundas mudanças operadas ao declividade mínima, sujeitas à
longo tempo. Implantou-se, ainda, inundações periódicas, que cobrindo
paulatinamente, uma estrutura social porcentagem elevada de seus territórios
organizada verticalmente e composta por constituem um dos melhores exemplos
rígidas hierarquias até então desconhecidas de penetração européia em condições
pelos indígenas (Balza Alarcón, 2008). as mais adversas. É bem verdade, que
Uacury Ribeiro de Assis Bastos avalia as características fundamentais da
de maneira distinta o empreendimento cultura indígena foram respeitadas
jesuítico e suas relações com as populações pelos missionários. Baseados no que
indígenas: existia, estabeleceram as diretrizes da
ocupação do solo, fundaram aldeias e
Da Espanha da Contra-Reforma incrementaram atividades econômicas
originou-se o mais vigoroso pré-existentes (Bastos, 1971, p. 152-
movimento missionário do nôvo 153).
mundo. Das diversas ordens que se
dedicaram à catequese destaca-se a dos Relativizando as palavras de Bastos,
jesuítas que, espalhados desde a necessário se faz dizer que a inserção dos
Califórnia até ao Rio da Prata jesuítas nas Américas modificou
instalaram-se nos mais variados profundamente a vida dos indígenas
ambientes geográficos, creditando a reduzidos, mesclando conhecimentos
seu favor, o grande mérito de preservar tradicionais dos nativos com os valores
populações e línguas indígenas, que cristãos e europeus trazidos pelos inacianos.
talvez tivessem perecido frente à horda Em outras palavras, teria ocorrido um
dos conquistadores. encontro/ confronto característico de áreas de
Na América do Sul, das áreas fronteiras, no caso das Coroas espanhola e
ocupadas por aqueles catequistas portuguesa, entre os religiosos e as etnias
sobressaem pela originalidade e indígenas da Chiquitania. Tentativas de
importância as que tiveram as missões convivência, imposição de pautas culturais
dos guaranis, dos moxos e dos novas, ressignificações de práticas e
117
A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

representações, diálogos interculturais e indígenas das “terras baixas”. 17


resistências armadas foram ingredientes Camba y Colla: migracion y
presentes nessa história. Uma experiência, desarollo en Santa Cruz, Bolivia (Stearman,
sem dúvida, radicalmente transformadora 1987), de Allyn Maclean Stearman, trata da
para ambos: missionários e indígenas. migração de Cambas e Collas no
Departamento de Santa Cruz de la Sierra.
Populações Indígenas na Bolívia e Para a autora, o termo Camba teria se
na Chiquitania: aportes bibliográficos originado de um vocábulo Guarani e, a
princípio, se aplicaria somente aos
Sobre as populações indígenas na campesinos, sendo sinônimo de que os
Bolívia, em geral, e dos Chiquitano, em mesmos estavam presos por dívidas aos
particular, há inúmeras obras publicadas, em grandes estabelecimentos agrícolas.
Espanhol, naquele país. Muitas delas se Com o passar do tempo, o termo, que
sobressaem por trazerem informações de passou a incluir indígenas e não indígenas,
cunho antropológico e histórico e quatro tornou-se um meio de os habitantes das
delas, dentre outras tantas lidas, foram “terras baixas” demonstrarem sua distância,
escolhidas para uma breve referência, seja tanto cultural como geográfica, frente aos
pela ampla circulação no país, seja pela Collas do Altiplano, pois de acordo com a
disponibilidade em bibliotecas e livrarias. antropóloga:
Três dos trabalhos aqui elencados foram
publicados na década de 1980, enquanto o de Los bolivianos de las tierras bajas
Riester é da segunda metade década de 1970 rechazarán en lo posible cualquier
e encontra-se esgotado. Em geral são influencia andina sustantiva en la
cientistas sociais (antropólogos e sociólogos) formación de su cultura y tradición. La
quem escrevem as obras e trazem filosofía separatista de los cambas
informações atualizadas para a época em que comenzó y se cultivó durante los
foram publicadas. Ressalta-se, também, o tempos coloniales y continúa hasta el
importante trabalho que vem sendo día de hoy (Stearman, 1987, p. 41). 18
desenvolvido pela organização não
17
governamental APCOB (Apoyo Para el Além disso, a APCOB mantém o importante CDPI
(Centro de Documentación de la Problemática
Campesino-Indígena del Oriente Boliviano), Indígena), em Santa Cruz de la Sierra, onde é
possível consultar inúmeras obras e adquirir
publicando obras a respeito das populações materiais bibliográficos e iconográficos.
18
Tradução: “Os bolivianos das terras baixas
rechaçarão dentro do possível qualquer influência
andina substantiva na formação de sua cultura e
tradição. A filosofia separatista dos cambas
118
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.6, No 2/ 2012

resulta difícil de dar cifras precisas por


Para Stearman, a “sociedade camba” la falta de estadísticas confiables y por
existe desde a conquista ibérica e remonta el permanente trasvase cultural de
sua origem aos primeiros conquistadores muchos de ellos a la cultura
espanhóis, ou seja, se refere mais a não castellanizada dominante. Diversas
indígenas do que propriamente aos indígenas. estimaciones, basadas en criterios más
A autora ainda assinala que os oriundos da o menos amplios, arrojarían cifras entre
cidade de Santa Cruz de la Sierra não los 80.000 y 150.000 (Albó et al., 1989,
aceitam a denominação Cambas, preferindo p. 171). 19
(e muitas vezes exigindo) serem chamados
de Cruceños. Ainda com relação aos grupos
Em Para comprender las culturas considerados Cambas indígenas, os autores
rurales en Bolivia (1989), dos pesquisadores referem-se àqueles, que na classificação
Xavier Albó, Kitula Libermann, Armando sugerida, são de “intensa aculturación”,
Godinez e Francisco Pifarre, as questões dentre os quais os Chiquitano:
indígenas do país são tratadas no intuito de
oferecer alguns instrumentos de análise e de Son entre todos ellos los más
aproximação cultural àqueles que trabalham numerosos, los de orígenes menos
em projetos de promoção e educação popular. conocidos (son resultado de la fusión
A obra divide-se em três partes, sendo que a de muchos grupos diversos) y los más
mais interessante, para os fins do presente aculturados. Hay entre ellos una mayor
texto, é a segunda (“Mundo rural Camba”), diversificación que en otros grupos,
em que os autores, ao tratarem da parte desde los que están en los pueblos,
oriental da Bolívia, discorrem a respeito dos pasando por los de los ranchos y los
sentidos do termo Camba. peones de estancias ganaderas, hasta
Ao mencionar os Cambas indígenas, los que viven aislados en gomales del
os autores afirmam que: norte y los emigrados a zonas de
colonización. El impacto negativo de
Queda un último grupo formado por
19
los antiguos dueños de todas estas Tradução: “Há um último grupo formado pelos
antigos donos de todas estas terras baixas.
tierras bajas. Actualmente tiene un Atualmente tem um caráter claramente minoritário,
ainda que seja difícil de dar cifras precisas pela
carácter claramente minoritario, aunque falta de estatísticas confiáveis e pelo permanente
intercâmbio cultural de muitos deles com a cultura
castellanizada dominante. Diversas estimativas,
começou e se cultivou durante os tempos coloniais baseadas em critérios mais ou menos amplos,
e continua até os dias de hoje”. resultariam em cifras entre os 80.000 e 150.000”.
119
A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

los diversos tipos de patrones blancos – compreendido, na época, como comunidad


los schararch – aquí se deja sentir con indígena, na Bolívia:
más fuerza que, por ejemplo, en Moxos
o en la Chiriguania (Albó et al., 1989, El Decreto-Ley de 2 de agosto de
p. 215). 20 1953, elevado a la categoria deley en
29 de octubre de 1956, en su Art. 123
Os autores ainda informam que a reconoce tres clasesde comunidades
língua Chiquito está se perdendo rapidamente campesinas: a) la comunidad de
e que apesar disso, traços culturais, tais como hacienda;b) la comunidad campesina
as concepções religiosas, simbólicas e agrupada; y c) la comunidad
míticas mantêm-se, apesar de todas as indígena.
pressões sofridas por estes indígenas. Nesse Las dos primeiras configuran,
cenário, Lomerío destaca-se como uma das propiamente, comunidades rurales de
comunidades em que a identidade étnica simple vecindario, cuyos vínculos
Chiquitano é reafirmada de forma mais emergen del hecho de vivir en el
contundente, em pleno século XX, e de onde mismo lugar, exteriorizándose en
partem inúmeros movimentos intereses locales y modos de existencia
reivindicatórios dos direitos indígenas. comunes.
Por sua vez, Arturo Urquidi, na obra La comunidad indígena, en
Las comunidades indigenas en Bolivia cambio, caracteriza a lós agregados
(1982), não faz menção alguma aos sociales gentílicos, que conservan aún
Chiquitano ou mesmo às populações los vínculos aglutinantes del ayllu
indígenas das “terras baixas”, considerados tradicional, y cuya condición de sujetos
“aculturados” e chamados de campesinos. de derecho sobre la tierra que poseen
Segundo o autor, sua preocupação esteve colectivamente arranca desde los
voltada somente para aquilo que era tempos coloniales (Urquidi, 1982, p.
07; negritos no original). 21
20
Tradução: “São entre todos eles os mais numerosos,
21
os de origens menos conhecidas (são resultado da Tradução: “O Decreto-Lei de 2 de agosto de 1953,
fusão de muitos grupos diversos) e os mais elevado à categoria de lei em 29 de outubro de 1956,
aculturados. Há entre eles uma maior diversificação em seu Art. 123 reconhece três classes de comunidades
que em outros grupos, desde os que estão nos campesinas: a) a comunidade de hacienda; b) a
pueblos, passando pelos dos ranchos e os peões de comunidade campesina agrupada; e c) a comunidade
fazendas de gado, até os que vivem isolados em indígena.
seringais do norte e os emigrados a zonas de As duas primeiras configuram, propriamente,
colonização. O impacto negativo dos diversos tipos comunidades rurais de simples vizinhança, cujos
de patrões brancos – os schararch – aqui se deixa vínculos emergem do fato de viver no mesmo lugar,
sentir com mais força que, por exemplo, em Moxos exteriorizando-se em interesses locais e modos de
ou na Chiriguania”. existência comuns.
120
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.6, No 2/ 2012

mais de quarenta anos, permanecendo entre


Assim, na concepção de Urquidi, e de estes índios e realizando trabalhos de campo.
outros tantos estudiosos, apenas os grupos Atualmente, está à frente de uma organização
localizados nos Andes e que remetem ao não governamental, sediada em Santa Cruz
passado incaico, estruturados sob a forma de de la Sierra.
22
ayllus , são considerados como legítimas Na introdução da obra ambos os
comunidades indígenas na Bolívia, enquanto autores explicitam o que compreendem por
os Chiquitano e outros grupos seriam índio, mestizo e blanco:
categorizados como comunidades
campesinas agrupadas. Esta é uma ideia Indígenas: a personas que están
muito presente entre os bolivianos, de modo estrechamente ligadas a su mundo
geral, particularmente entre aqueles que tradicional y cultural, lo cual se expresa
habitam o Altiplano. por ejemplo, en la forma económica
Por fim, En busca de la loma santa practicada, el parentesco, la religión, el
23
(Riester, 1976) , de Jürgen Riester em idioma, etc.
colaboração com Bernd Fischerman, Mestizos: a personas que se han
proporciona uma visão geral acerca da separado conscientemente de su cultura
população das planícies do Oriente boliviano, tradicional y que se orientan por los
com destaque especial para os indígenas. valores y las normas de los blancos.
Riester tem investigado os Chiquitano por Este proceso es cultural.
Blancos: a personas que, con motivo
A comunidade indígena, diferentemente, caracteriza
aos agregados sociais gentílicos, que conservam de progresos económicos, su posición
ainda os vínculos aglutinantes do ayllu tradicional,
e cuja condição de sujeitos de direito sobre a terra en la vida pública y su formación
que possuem coletivamente vem desde os tempos
coloniais”. escolar, se sobreentienden como grupos
22
O ayllu é a unidade geográfica sociopolítica e cerrados y se distancian concretamente
econômica que constitui a base organizativa dos
grupos andinos à época anterior à formação do de los indios y mestizos. Estos hechos
Império Inca. Era formado por um número razoável
de famílias vinculadas por relações de parentesco e son de gran importancia para el
que colocavam em comum as suas terras. O chefe
recebia o nome de kuraka, cargo hereditário que entendimiento de la realidad boliviana
reunia as funções de julgar e executar as leis. Tal
instituição não chegou a desaparecer (Fischerman; Riester, 1976, p. 16). 24
completamente com a conquista espanhola (Cf.
Lamounier, 1991).
23 24
De acordo com o autor, a busca da Colina (Loma) Tradução: “Indígenas: a pessoas que estão
Santa é equivalente à da Terra sem Males, presente estreitamente ligadas a seu mundo tradicional e
em outras populações indígenas da América do Sul. cultural, o qual se expressa por exemplo, na forma
Trata-se de um movimento messiânico no qual econômica praticada, o parentesco, a religião, o
tomaram parte, desde o início do século XX, grupos idioma, etc.
indígenas de distintas filiações linguísticas (Riester, Mestiços: a pessoas que se separaram
1976, p. 311). conscientemente de sua cultura tradicional e que se
121
A Bolívia, a Chiquitania e as populações indígenas em um mosaico étnico...

linguísticos do grupo, estudados a partir de


A respeito das denominações Camba quatro anos de permanência do autor na
e Colla, Fischerman e Riester esclarecem Chiquitania. Há, inclusive, uma seção
que: dedicada inteiramente à ferrocarril Santa
Cruz-Corumbá, em uma análise dos fortes
En Bolivia son importantes otros impactos da construção desta sobre a vida
dos conceptos: dos índios. Fotografias e mapas ilustram a
Colla y Camba. Generalmente se obra, permitindo entrever uma história de
llaman así mutuamente los habitantes séculos de exploração interétnica.
de la llanura y del valle del altiplano
respectivamente. Sin embargo, estas Considerações Finais
denominaciones varían según la región
(Fischerman; Riester, 1976, p. 16-17). A configuração de um Estado
25
multiétnico e pluricultural na Bolívia traduz-
se em um processo político e social que se
Os autores lembram que a definição encontra em curso a partir das duas últimas
de termos, tais como indígena, mestizo, Colla décadas e que terá desdobramentos por ora
e Camba dependem fundamentalmente de imprevisíveis do ponto de vista político e
fatores culturais e locais, relacionados ao social. A eleição de Victor Cárdenas
contexto histórico boliviano. Há, na obra, (atualmente na oposição a Morales,
extensas referências aos indígenas Ayoreode, reivindicando para si uma “verdadeira”
Ivirehi Ahae e Chiriguano, dentre outros. identidade indígena) e de Evo Morales para
Sobre os Chiquitano, Riester dedica um os cargos de vice-presidente e presidente,
capítulo em que, além da história de contato, respectivamente, da Bolívia, em momentos
trata de alguns aspectos culturais e distintos, mostra que novos atores sociais têm
emergido no país, em contraposição a séculos
orientam pelos valores e as normas dos brancos. Este de exploração dos “brancos”, descendentes
processo é cultural.
Brancos: a pessoas que, com motivo de progressos de europeus e minoria populacional. O
econômicos, sua posição na vida pública e sua
próprio movimento indígena, bastante
formação escolar, se subentendem como grupos
fechados e se distanciam concretamente dos índios fragmentado, encontra-se em ebulição,
e mestiços. Estes fatos são de grande importância
para o entendimento da realidade boliviana”. oscilando entre o apoio e a oposição ao atual
25
Tradução: “Na Bolívia são importantes outros dois
conceitos: governo Morales.
Colla e Camba. Geralmente se chamam
assim mutuamente os habitantes da planície e do Não faz sentido uma análise política
vale do altiplano respectivamente. Não obstante,
da situação boliviana contemporânea sem o
estas denominações variam segundo a região”.
122
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, vol.6, No 2/ 2012

conhecimento e a compreensão da existência em termos demográficos, há um longo


de tantos e distintos marcadores de caminho a ser percorrido na busca pela plena
identidades utilizadas pelos próprios atores cidadania, tal como se verifica em outros
sociais em cena. Cárdenas e Morales, além países das Américas.
de serem Aymará, também são vistos como
Collas, com todos os sentidos, positivos e/ ou Referências Bibliográficas
negativos, que tal identificação lhes confere.
Na Bolívia, portanto, não é possível enxergar ALBÓ, X. Etnias y pueblos
a população sem todos os matizes específicos originarios: diversidad etnica, cultural e
que formam esse verdadeiro mosaico étnico e lingüística. In: CAMPERO PRUDENCIO, F.
cultural. Diferentemente do que se verifica Bolivia en el siglo XX: la formación de la
no Brasil, por exemplo, pode-se dizer que na Bolivia contemporánea. La Paz: Harvard
Bolívia há pouca diversidade (34 etnias Club de Bolivia, 1999. p. 451-482.
bolivianas versus mais de 230 etnias
brasileiras) e uma grande população indígena ______ et al. Para comprender las
em termos numéricos percentuais (mais de culturas rurales en Bolivia. La Paz: MEC/
60% na Bolívia versus menos de 1% no Cipca/ Unicef, 1989. 298 p. (Bolivia
Brasil). Pluricultural y Multilingüe).
Nesse intricado labirinto de
identidades étnicas, conhecer um pouco BALZA ALARCÓN, R. Uso
melhor as diversas configurações que contemporáneo del espacio y territorialidad
assumem os bolivianos, indígenas e não entre los Chiquitanos de Bolivia. In: SILVA,
indígenas, em seu cotidiano, ajuda a J. A. F. (Org.). Estudos sobre os
compreender esse multifacetado cenário, Chiquitanos no Brasil e na Bolívia:
formado por etnias indígenas que se ficaram história, língua, cultura e territorialidade.
alijadas do poder político por tanto tempo, Goiânia: UCG, 2008. p. 265-288.
agora se veem diante de inúmeros desafios. É
fato que os índios bolivianos especialmente BASTOS, U. R. de A. Os jesuítas e
os da Chiquitania, ainda são vistos como seus sucessores (I). (Moxos e Chiquitos –
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