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Contribuições do Movimento Construcionista

Social para o Trabalho com Famílias na


Estratégia Saúde da Família
Contributions of the Social Constructionist Movement to the
Family Practice in the Family Health Strategy

Carla Guanaes Resumo


Doutora em Psicologia. Professora doutora do Departamento de
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Neste artigo, discutimos o movimento de transfor-
Preto - USP. mação epistemológica que tem se desenvolvido no
Endereço: FFCLRP - USP, Departamento de Psicologia. Avenida campo das práticas familiares sistêmicas, destacan-
dos Bandeirantes, 3.900, Monte Alegre, CEP 14090-901, Ribeirão
Preto, SP, Brasil.
do suas implicações para o trabalho com famílias em
E-mail: carlaguanaes@ffclrp.usp.br saúde e, especificamente, no contexto da Estratégia
Saúde da Família (ESF). Partindo das contribuições
Augustus Tadeu Relo de Mattos
Mestre em Saúde na Comunidade. Professor Colaborador do
do movimento construcionista social, discutimos a
Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de importância de construção de um contexto dialógico
Ribeirão Preto - USP. na equipe interdisciplinar para a prática de “discus-
Endereço: Hospital das Clínicas da FMRP – USP, Departamento de são de famílias”, em que os profissionais de saúde
Medicina Social, 2o andar, Av. Bandeirantes, 3.900, Monte Alegre, possam se reconhecer como participantes ativos no
CEP 14090-901, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
E-mail: augustus@fmrp.usp.br
processo de significação sobre as famílias e seus
problemas, desenvolvendo uma postura de maior
respeito às diferenças e de valorização dos recursos
e potencialidades das famílias atendidas, em detri-
mento do foco em seus déficits e falhas. Concluímos
que o trabalho com famílias na ESF envolve muitos
desafios, que só podem ser superados se a equipe
profissional se articular num trabalho conjunto e
corresponsável, revisando suas próprias práticas e
narrativas sobre família, problema e mudança.
Palavras-chave: Atenção Básica; Programa Saúde
da Família; Família; Comunicação interdisciplinar;
Epistemologia.

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Abstract Introdução
In this article, we discuss the epistemological trans- Nas últimas décadas, os discursos sobre saúde pas-
formational movement that has been developed in saram por amplos questionamentos, impulsionando
the field of systemic family practices, highlighting transformações no campo das políticas públicas e
implications of this transformation to the work práticas. No Brasil, o movimento da Reforma Sani-
with families in health, especially in the context tária que culminou com a 8a Conferência Nacional
of the Estratégia Saúde da Família (ESF - Family de Saúde em 1986 e cujas propostas foram contem-
Health Strategy). Especially based on the contri- pladas na seção “Da Saúde” na Constituição de 1988
butions of the social constructionist movement, criou o Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 1988).
we discuss the importance of the construction of a Os princípios do SUS, bem como as recomendações e
dialogical context in the interdisciplinary team for intenções da Conferência de Alma Ata sobre Cuida-
the practice of “family discussion”, in which health dos Primários no Cazaquistão em 1978 e a 1a Confe-
professionals can recognize themselves as active rência Internacional de Promoção da Saúde na cida-
participants in the signification process about the de de Ottawa em 1986, marcam essa transformação,
families and their problems, developing an attitude sustentando a visão de saúde como direito, numa
of greater respect for differences and appreciation perspectiva ampliada que considere não apenas seus
of the families’ resources and strengths, instead of determinantes biológicos, mas também psicológicos
focusing on their deficits and failures. We conclude e sociais. Além disso, uma assistência centrada em
that the work with families in the ESF involves many serviços de prevenção, promoção e recuperação da
challenges, which can only be overcome if the health saúde passa a ser preconizada, assim como a defesa
team articulates itself in a joint and co-responsible do setor público e a luta pela participação popular,
work, reviewing its own practice and narratives pela democratização das condições de trabalho,
about family, problem and change. pela humanização do atendimento e pela eficácia
Keywords: Primary Health Care; Family Health na resolução dos problemas da população.
Program; Family; Interdisciplinary communication; Neste cenário, a Atenção Básica desenvolveu-se
Epistemology. como política prioritária do Ministério da Saúde
para reorganização do sistema de saúde, conside-
rada como porta de entrada e coordenadora de toda
a rede assistencial, articulando a referência e con-
trarreferência aos demais níveis de atenção (Brasil,
2007). Em consonância com os princípios do SUS, a
Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) define
que, para sua operacionalização, a estratégia prio-
ritária é a Saúde da Família (Brasil, 2006).
Na Estratégia Saúde da Família (ESF), o trabalho
interdisciplinar é incentivado, sustentando uma
prática pautada na compreensão social, econômica,
cultural, demográfica e epidemiológica da população
de um território; no cuidado familiar; na promoção
e desenvolvimento de ações intersetoriais; na cons-
trução de uma abordagem integral e resolutiva; e no
estímulo à participação da comunidade na elabora-
ção e avaliação das ações propostas (Brasil, 2006;
Tavares, 2004). Tais ênfases marcam a passagem
para um modelo complexo, que valoriza também

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os processos de significação social e de interação A Família como Unidade de Cuidado
entre os diferentes atores envolvidos – profissionais
ou pacientes. Como apresentamos anteriormente, a ESF preconiza
Porém o rompimento com o modelo hegemônico que o trabalho das equipes seja interdisciplinar,
e com as práticas baseadas na visão de doença e buscando o cuidado integral à família, considerada
de cuidado individual, na produção e nos procedi- como parte de um sistema mais amplo (comunidade),
mentos, não se constituem processos simples. São e inserida em um determinado contexto, com suas
muitos os desafios das equipes de Saúde da Família delimitações sócio-histórico-culturais.
na construção de suas práticas, dentre os quais Uma das definições comuns que orienta as práti-
destacamos: a capacidade da própria equipe de se cas profissionais nesse contexto é a de família como
articular internamente (Brasil, 2007); de articular um conjunto de pessoas que residem na mesma
os diferentes núcleos e campos de competência (Al- unidade domiciliar. Essa visão parte da valorização
meida e Mishima, 2001); e de verdadeiramente criar do espaço geográfico, relacionando-se às práticas
pontes com a comunidade, visando à construção de de territorialização e de adscrição da clientela,
ações intersetoriais e de controle social (Dimenstein, fundamentais na coleta de dados demográficos e
2001). Em especial, ressaltamos o grande desafio na organização do trabalho das equipes de saúde
que é desenvolver recursos teóricos e técnicos para da família (Brasil, 2000). Porém outras descrições
transcender às práticas centradas na lógica da do- sobre família circulam entre os profissionais de
ença e do cuidado individual (Andrade e col., 2004), saúde, trazendo implicações para o planejamento
em direção ao desenvolvimento de ações interdis- de suas intervenções, numa valorização ora dos
ciplinares e integrais voltadas verdadeiramente ao vínculos biológicos, ora dos vínculos legais e/ou
cuidado do grupo familiar e da coletividade. emocionais que sustentam o relacionamento entre
Especificamente em relação ao trabalho com as pessoas.
famílias, foco deste artigo, concordamos com Sera- Como sintetizam Moimaz e colaboradores
pioni (2005, p. 243) que o grupo familiar “tem sido (2008), a família brasileira tem passado por muitas
cada vez mais objeto de atenção das instituições transformações, acompanhando os movimentos
governamentais e dos cientistas sociais, em função históricos, sociais e demográficos que envolveram a
das ações de proteção, ajuda e cuidado que ela de- sociedade ocidental nos últimos tempos, tais como:
senvolve”. É o caso da ESF, que elege a família como a diminuição nas taxas de natalidade e mortalidade;
unidade de cuidado, focalizando o espaço social e o aumento da expectativa de vida dos idosos e me-
comunitário em que se insere. lhoria da qualidade de vida; e alterações nos papéis
É com o intuito de contribuir com a reflexão de gênero e de relacionamento familiar.
sobre o trabalho com famílias na ESF e com o de- Todavia, como enfatizam Cerveny e Berthoud
senvolvimento de recursos teóricos para a atuação (2009), a família brasileira mudou sem deixar de
nesse nível do cuidado que propomos o presente exercer as funções estruturadoras e definidoras
artigo. Neste, buscamos refletir sobre a “discussão da instituição “família”, o que inclui sua função
de famílias” – prática comum em algumas equipes, biológica de proteção às novas gerações; e sua fun-
que visa à construção de ações interdisciplinares ção social, de transmissão de padrões e normas de
voltadas ao cuidado integral da família em seu cultura. Assim, a família pode ser definida como
contexto social. A partir da experiência de realizar lócus de proteção social e, do ponto de vista das
reuniões de discussão de famílias com equipes atuais políticas de saúde, também como lócus de
profissionais, apresentaremos algumas reflexões promoção de saúde.
que podem auxiliar na construção dessa prática Especificamente no contexto da saúde, a defini-
como um espaço efetivamente dialógico, contexto ção de família como unidade de cuidado tem sido
para construção de novos significados de família, enfatizada (Resta e Budó, 2004), apontando as dife-
problema e mudança. rentes formas através das quais ela pode funcionar

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como rede significativa de apoio ou como elemento lidades); e de seu desenvolvimento (adicionando a
estressor nos processos de saúde e doença (Sluski, compreensão das crises previsíveis e imprevisíveis
1997). Nas palavras de Elsen (2002), a família pode ao longo do ciclo de vida familiar). Apenas a título
ser compreendida como um sistema de saúde para de exemplo, a literatura apresenta uma diversidade
seus membros, na qual se observa um modelo expli- de ferramentas para o trabalho com famílias em
cativo de saúde-doença, isto é, um conjunto de valo- saúde tais como: o genograma familiar (Ditterich e
res, crenças, conhecimentos e práticas que orientam col., 2009; Muniz e Eisenstein, 2009); o ciclo de vida
as ações da família em relação à doença, incluindo das famílias (Ditterich e col., 2009); o modelo FIRO
sua prevenção e tratamento. Essa compreensão de avaliação (Fundamental interpersonal relations
valoriza os significados que as pessoas atribuem orientations) e o modelo PRACTICE (problems, roles,
aos eventos de saúde que vivenciam, o que passa a affect, communication, time in life, illness, copying
ser considerado como aspecto fundamental para a with stress, enviromnent ecology) (Ditterich e col.,
consolidação de práticas de cuidado mais efetivas 2009); o Ecomapa (Nascimento e col., 2005); a Linha­
e resolutivas. de Vida Familiar e o Mapa da Família (Segovia,
2006); o Apgar Familiar (Shortridge-Bagget e col.,
Ferramentas Úteis no Trabalho com 2004); o Mapa da Rede (Sluski, 1997); o Modelo Cal-
gary de Avaliação e Intervenção em Família (Silva e
famílias na ESF col., 2009); e a escala de classificação
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de risco fami-
Considerando a necessidade de compreender a di- liar (Coelho e Savassi, 2004). Entendemos que essas
versidade de organizações familiares e desenvolver ferramentas podem ser úteis no desenvolvimento de
ações voltadas ao grupo familiar, algumas ferramen- ações com um enfoque mais relacional, direcionadas
tas teórico-metodológicas têm sido utilizadas pelos à promoção da saúde na família e na comunidade.
profissionais de saúde, a maior parte delas inspira- Ao mesmo tempo, observamos que, na prática, a
das nas contribuições das perspectivas sistêmicas utilização dessas ferramentas traz novos desafios,
de avaliação e terapia familiar. relativos tanto à necessidade de superação do enfo-
Em uma perspectiva sistêmica, �����������������
a família é defi- que tecnicista que muitas vezes sustenta o seu uso
nida como um conjunto de pessoas que interatuam pelos profissionais de saúde, como de superação do
como um todo funcional, com estruturas e padrões modelo sistêmico/mecanicista que atravessa algu-
de funcionamento que organizam sua estabilidade mas dessas propostas.
e capacidade de mudança. Essa perspectiva consi- Buscando contribuir com a superação desses
dera que a família está inserida em um conjunto desafios, discutiremos, a seguir, o movimento de
de sistemas mais amplos (como a comunidade e a transformação epistemológica que vêm ocorrendo
sociedade), intimamente relacionados entre si, de no campo das perspectivas sistêmicas de trabalho
modo que mudanças em uma das subpartes afetam com famílias, e suas possíveis contribuições para
todo o seu conjunto (Vasconcelos, 2009). a construção de práticas mais colaborativas no
As perspectivas sistêmicas de avaliação e terapia contexto da ESF. Ressaltamos que, embora nossa
familiar certamente têm influenciado o trabalho reflexão esteja amplamente fundamentada em re-
com famílias em saúde, trazendo um olhar mais am- ferências extraídas no campo da terapia familiar
plo sobre o processo saúde-doença-cuidado. Assim, (Grandesso, 2009; Vasconcellos, 2009; Rapizo,
diferentes níveis de avaliação familiar são trazidos 2002), em que essa discussão tem se colocado de
para discussão, através do emprego de ferramentas maneira premente, entendemos que o campo de
que permitem a compreensão da estrutura familiar trabalho com famílias é bastante amplo, incluindo
(incluindo suas diferentes formas de organização); intervenções com diferentes objetivos e níveis de
de sua dinâmica e funcionamento (inclusive a aná- complexidade (McWhinney e Freeman, 2010) – aspec-
lise dos padrões de comunicação, relacionamento, to que não deve ser negligenciado na compreensão
relações de poder, divisão de funções e responsabi- da presente reflexão.

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Da Descoberta da Verdade à Um avanço importante aconteceu com a emer-
gência da segunda cibernética, focalizando a ins-
Construção Social: uma nova forma tabilidade do sistema e a imprevisibilidade de sua
de inteligibilidade em ciência evolução. Essa perspectiva defendia que a ampliação
Como assinalamos anteriormente, muitas ferra- do desvio em um sistema poderia levar também à
mentas hoje utilizadas para o trabalho com famí- criação de um novo modelo de funcionamento, vi-
lias em saúde foram desenvolvidas, tendo como são que valorizava a capacidade do sistema para a
base as contribuições das teorias sistêmicas e mudança. No campo da terapia familiar, essa visão
seus desenvolvimentos no campo da avaliação e da trazia novamente mudanças importantes. Ao invés
terapia familiar. No entanto, o campo das práticas de buscar o equilíbrio do sistema, o profissional
sistêmicas com famílias vem passando por impor- passava a ver na crise uma situação para a família
tantes redefinições, levando à construção de novos se reorganizar de modo criativo, inventando novas
entendimentos e práticas. pautas relacionais (Vasconcellos, 2009). Contudo,
Dando visibilidade a tais mudanças, Vascon- persistia um profissional interventivo, externo ao
cellos (2009) descreve as diferentes correntes sistema, que, do lugar de especialista, inspecionava
sistêmicas no trabalho com famílias, passando os modos de funcionamento familiar e conduzia a
pelas contribuições da Cibernética de Primeira e de família à mudança (Grandesso, 2009).
Segunda Ordem, e chegando às contribuições das Uma mudança significativa no trabalho com
perspectivas pós-modernas. Assim, a autora favorece famílias deu-se, então, a partir de reflexões episte-
uma visão histórica de como essas perspectivas evo- mológicas desenvolvidas no campo científico. Em
luíram, chegando a propostas menos mecanicistas um movimento crítico à ciência moderna, alguns
e mais coerentes com a compreensão dos sistemas autores passam a questionar a possibilidade de
humanos, vistos na complexidade de sua rede de neutralidade do pesquisador na construção do co-
relações e de significação. nhecimento e, por conseguinte, de se conhecer obje-
Segundo Vasconcellos (2009), a Cibernética foi tivamente a realidade (Gergen, 1997). Essa discussão
desenvolvida pelo matemático americano Norbert impulsionou a emergência de um movimento crítico
Wiener e constituiu-se em uma teoria geral dos siste- e reflexivo também no campo das práticas familiares
mas, fundamentada na visão de que tanto a máquina sistêmicas, que passaram a considerar a influência
como o ser vivo poderiam ser compreendidos como do observador no sistema observado e, assim, a rever
elementos em interação e comunicação, a partir da suas orientações para a prática. Tal mudança é hoje
análise de seus mecanismos de regulação, desvios representada por algumas correntes contemporâ-
e perturbações. Fundamentando-se nas propostas neas, usualmente intituladas de “pós-modernas”,
cibernéticas, o antropólogo inglês Gregory Bate- entre as quais se destacam o construtivismo, o
son buscou compreender a comunicação humana construtivismo social e o construcionismo social. A
e as relações familiares (Bateson, 1997). A partir de despeito da diferença entre elas, tais correntes têm
suas ideias, profissionais de saúde mental e terapia em comum a ênfase na relação sujeito e objeto do
de família passam a conceber a família como um conhecimento e a compreensão da realidade como
sistema em busca da estabilidade homeostática, fruto da relação das pessoas com o mundo que as
deslocando o foco dos indivíduos para as relações e cercam (Grandesso, 2000).
padrões comunicacionais entre eles. Essa compre- De acordo com McNamee (1998), a perspectiva
ensão sustentava a hipótese de que quando a família pós-moderna caracteriza-se pela ênfase dada à
se desviava do equilíbrio ou funcionamento normal, linguagem e à interação entre as pessoas na com-
aparecia em um dos seus membros um sintoma, que preensão dos processos de construção de sentido.
poderia ser compreendido como um recurso do siste- Diferencia-se, assim, da perspectiva moderna, que
ma para se reequilibrar, voltando a atuar de acordo afirma a natureza essencial das coisas e busca re-
com as próprias regras e papéis preestabelecidos velar, por procedimentos de observação controlada
(Vasconcellos, 2009). e cuidadosa, a estrutura básica ou a essência dos

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objetos investigados, a fim de tirar conclusões e premissas comuns aos autores que se concebem ou
estabelecer princípios. Ao contrário, a perspectiva são descritos como construcionistas: a) uma postu-
pós-moderna incentiva o exame de como o processo ra crítica quanto ao conhecimento tido como dado;
interativo proporciona oportunidades para que sur- b) o reconhecimento da especificidade histórica e
jam caracterizações particulares e como contextos cultura do conhecimento; c) a compreensão de que o
específicos criam a possibilidade para emergência conhecimento é sustentado por processos sociais; e
de discursos diferentes (Guanaes, 2006). d) a visão de que conhecimento e ação social andam
Considerando os objetivos do presente artigo, juntos. O conhecimento é visto, assim, como resul-
priorizaremos a apresentação do discurso cons- tado de uma ação-conjunta (Shotter, 2000), fruto da
trucionista social em Psicologia como forma de negociação de sentidos entre interlocutores – visão
elaboração da crítica pós-moderna em ciência (Ger- que nos leva a refletir sobre as implicações do uso de
gen, 1997; Shotter, 2000; Ibãnez, 2001) e de suas determinados significados para a construção/ legi-
contribuições para a prática com famílias. Fazemos timação de certas práticas sociais e formas de vida.
essa escolha por entendermos, baseados em Gergen Enquanto Burr (1995) se dedica à descrição dos
(1985), que como um movimento polissêmico, o aspectos comuns aos diferentes autores constru-
construcionismo social emerge num determinado cionistas sociais, Danzinger (1997) empenha-se
momento histórico-cultural a partir da confluência em marcar a variedade de “construcionismos”,
de diferentes críticas ao discurso científico moder- demarcando as importantes diferenças existentes
no, assim se constituindo como uma “nova forma nesse campo. Em sua análise, propõe como forma
de inteligibilidade em ciência”. Por “nova inteligi- de organização dessas diferenças a classificação
bilidade”, Gergen (1997) entende a emergência de em light constructionism – na qual se situariam os
um discurso alternativo, composto por um conjunto autores que priorizam uma compreensão dos aspec-
de termos, premissas e explicações, que passa a ser tos microssociais na compreensão da construção do
compartilhado por participantes da comunidade conhecimento, valorizando assim o potencial das
científica, colocando-se como uma nova possibili- relações humanas para construção de múltiplos sig-
dade de compreensão do mundo social. nificados ao mundo social; e dark constructionism
Dessa maneira, o movimento ou discurso cons- – em que se posicionariam os autores preocupados
trucionista social define-se pela crítica às noções com “aspectos não discursivos” dos relacionamentos
de que o conhecimento pode ser visto como uma humanos (Rasera e Japur, 2007), tais como rela-
forma de representação objetiva, correta e confiável ções de poder, estruturas sociais, materialidade e
da realidade; de que o objeto pode ser compreendido corporeidade. No campo do trabalho com famílias
como um elemento constitutivo do mundo; e de que e, especialmente, da terapia familiar, a influência
podemos conceber a realidade como uma entidade do discurso construcionista social se fez marcar
independente de nós (Ibãnez, 2001). Em contrapo- também de modos distintos. Usando a linguagem de
sição a estas noções, o discurso construcionista Danzinger (1997), reconhecemos tanto práticas que
social propõe a compreensão de que o conhecimento valorizam mais fortemente o momento interativo de
é sustentado por processos sociais. É por meio de construção de sentido e seu potencial transforma-
participação em práticas discursivas, situadas em dor, como por exemplo, a Abordagem Colaborativa
contexto e tempo determinados, que as pessoas (Anderson e Goolishian, 1995; Anderson, 2009) ou
dão sentido ao mundo em que vivem, construindo, a Abordagem Narrativa, de White e Epston (1990);
conjuntamente, tudo aquilo que será considerado como práticas que valorizam mais fortemente a
como realidade e como verdade no mundo em que influência dos macrocontextos na possibilidade de
vivem (Spink e Medrado, 1999). transformação individual/social. Essas e outras pos-
Concordamos com Burr (1995) de que é impossí- síveis distinções são bem trabalhadas por Grandesso
vel apresentar uma definição única de construcio- (2009) em um texto que discute os desenvolvimentos
nismo social. Contudo, de dentro da diversidade de da terapia familiar, levando em conta especialmente
posições possíveis, podemos reconhecer algumas a articulação entre teorias e práticas.

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Considerando como finalidade última de nosso famílias. Geralmente, participam dessas reuniões
artigo a possibilidade de ampliação da compreensão diferentes profissionais (médico, enfermeiro, au-
do trabalho com famílias em saúde, priorizaremos a xiliares de enfermagem, agentes comunitários de
apresentação das implicações do discurso constru- saúde, entre outros).
cionista social para o trabalho com famílias mais As reuniões de discussão de famílias normal-
pelas semelhanças entre os diversos autores do que mente são propostas para que sejam apresentadas
por suas diferenças. informações sobre aquelas consideradas “difíceis”,
Assim, entendemos que as premissas construcio- em função de problemas complexos de estrutura,
nistas sociais trazem consequências importantes dinâmica, funcionamento ou desenvolvimento
para o trabalho com famílias. Abandonando a ideia familiar ou da existência de situações de risco. Ge-
de realidade e neutralidade do observador, surge ralmente, a proposta de discussão de alguma família
um profissional que questiona o lugar hierárquico parte do Agente Comunitário de Saúde ou de algum
de especialista e se coloca como parte integrante do profissional que encontrou dificuldades no trabalho
sistema terapêutico, constituindo-se como um coau- com a família ou com algum de seus membros. O
tor das histórias construídas nesse contexto. Novos objetivo da reunião é levantar possíveis ações para
significados sobre família, problema e mudança pas- o desenvolvimento do caso e solução do problema
sam a ser valorizados, em um tipo de trabalho que em questão.
privilegia a multiplicidade de descrições possíveis É muito comum, após a apresentação da família
sobre os eventos em detrimento da defesa de uma por um dos membros da equipe, o início de uma con-
verdade essencial e universal, focalizando mais os versa orientada pela busca de propostas objetivas de
recursos e potencialidades da família, do que seus ação junto a ela. Como na maior parte das vezes as
desvios e déficits. Maior ênfase passa a ser dada ao questões levadas à discussão são complexas, envol-
processo terapêutico (visto como empreendimento vendo desde as relacionais até carência de recursos
dialógico) do que aos resultados desse processo, socioeconômicos, não é incomum que a equipe seja
sendo a mudança compreendida como parte do tomada por um forte sentimento de impotência. Ela
diálogo e fruto de uma ação conjunta de produção sente-se responsável por encontrar soluções finais
de significados. para o problema da família e, no enfrentamento com
Para que o trabalho nessa nova lógica seja pos- seus próprios limites, revive o caminho já percorrido
sível também na ESF, acreditamos na importância na busca pelo cuidado familiar, num movimento de
de se criar contextos interdisciplinares e dialógicos permanente culpabilização em que ora os próprios
na formação e na atuação do profissional de saúde, membros da equipe são questionados em relação
que possibilitem a revisão dos significados cons- às ações desenvolvidas; ora a culpa é atribuída à
truídos e as implicações desses significados para própria família pela situação em que se encontra;
a proposição e legitimação das ações voltadas ao ora o “governo” é criticado pela ausência de recursos
cuidado familiar. É sobre a construção desse espaço para a solução dos problemas.
dialógico no contexto do trabalho interdisciplinar Defrontando-nos com esse quadro e baseados
na ESF que falaremos a seguir. nas proposições do discurso construcionista so-
cial, dedicamo-nos a desenvolver uma nova forma
de conceber e de organizar as reuniões de discus-
Refletindo sobre a Prática de são de família no âmbito da ESF. Nesse contexto,
“Discussão de Famílias” nas entendemos que as contribuições deste discurso
Equipes Multiprofissionais podem ser particularmente úteis, permitindo-nos
avançar em relação a algumas questões, entre as
Através de nossas atividades de ensino, pesquisa quais destacamos:
e extensão universitária, temos observado que é
comum, em muitas unidades de saúde da família, a A ampliação do significado de “família”
construção de espaços nas reuniões de equipe para Como referimos anteriormente, o movimento cons-
a discussão de casos clínicos ou de discussão de trucionista social vem questionar a ideia de que

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a realidade existe de modo independente de nós. é vista desse modo pela equipe profissional ou por
Assim, convida-nos a considerar nossa participação outros membros da comunidade? Que referências
na construção dos significados sobre o mundo em de relacionamento as pessoas dessa família têm e
que vivemos, lembrando que linguagem e realidade que parecem justificar determinada configuração?
são processos interdependentes (Gergen, 1997). Isso Esse tipo de questionamento nos permite trabalhar
nos permite avançar de uma postura que considera com a diversidade de discursos sociais nos grupos
a realidade como algo dado e factual, para uma pos- culturais, explicitando as diferenças não apenas
tura que considera a multiplicidade de descrições entre profissionais de saúde e pacientes; mas entre
possíveis para um mesmo acontecimento. os próprios profissionais de saúde que, constan-
A implicação dessa ideia para o trabalho na ESF temente, também fazem distinções diferentes dos
é imediata. Normalmente, quando conversamos mesmos acontecimentos.
sobre uma família, usamos as ferramentas postas Essas redefinições contribuem com a revitaliza-
na literatura para apresentar descrições objetivas, ção da própria reunião de equipe interdisciplinar,
buscando compreender qual é verdadeiramente a que passa a operar não mais numa lógica de exposi-
realidade familiar que se apresenta. Na busca por ção por um profissional da realidade de uma família,
uma definição única, muitas vezes nos esquecemos mas na lógica da coconstrução de significados,
de investigar outras possibilidades de descrição dos visando a criação de narrativas mais libertadoras e
mesmos acontecimentos. ricas em possibilidades.
Partindo dos pressupostos construcionistas, a
“família” se define como tal a partir das descrições A ampliação do significado de “problema”
que ela apresenta e que também nós, integrantes de Do mesmo modo como o significado de “família”,
uma equipe profissional, apresentamos sobre ela. também o significado de “problema” passa a ser
Ou seja, deixamos de definir a família com base em visto como uma construção social, levando à análise
critérios apriorísticos sobre relações geográficas, de seus efeitos e implicações. Baseados nos pressu-
biológicas ou afetivas, para considerar a maneira postos construcionistas, somos convidados a refletir
como a família se constrói como tal nas práticas sobre como nossas descrições sobre problema cons-
discursivas. troem a família, o profissional de saúde e o próprio
É claro que, considerando os pressupostos cons- tratamento de modos particulares. Que práticas
trucionistas, não somos totalmente livres na cons- sociais (e profissionais) os discursos sobre doença,
trução desses significados sobre família, uma vez déficit ou problema sustentam? Que formas de re-
que participamos de um contexto social mais amplo lacionamento eles promovem? Que identidades são
que circunscreve nossas possibilidades de compre- construídas a partir dessas formas de descrição?
ensão e descrição dos acontecimentos. No entanto, Esse tipo de questionamento geralmente traz
esta se constitui uma perspectiva desafiadora, que desconforto entre os profissionais de saúde, con-
nos permite avançar na descrição das famílias e seus siderando que as noções de doença ou patologia
modos de vida, dando forma às diferentes configura- perdem a centralidade como orientadoras, a priori,
ções que encontramos em nosso cotidiano. do tratamento, levando a outras indagações: Como se
Com base nessa postura, podemos nos questio- define e o quê se define como um problema familiar
nar sobre as implicações de nossas descrições de a ser tratado?
família para a construção de determinadas pro- Para responder a essa questão, recorremos
postas de cuidado, colocando-nos numa postura de à definição de problema proposta por Anderson
abertura a novos significados. Por exemplo, em vez (2009), que busca resgatar a necessidade de uma
de descrever uma família como “desestruturada”, particularização dessa definição para cada pessoa,
que outras linguagens poderiam ser usadas para de acordo com a especificidade de suas relações e
significar as relações ali presentes? Por quem essa experiências. Segundo a autora, problema é o que a
família é assim percebida? Como essa família se pessoa e o sistema do qual ela participa o descrevem
sentiria e o que possivelmente diria se soubesse que como tal. O problema é uma descrição (ou descri-

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ções). Assim, um problema não deve nunca ser visto As ferramentas de avaliação como opções dis-
como uma entidade, mas sim como uma realidade cursivas
socialmente construída e sustentada pelas pessoas
Em nossa experiência de atuação na ESF, ao mesmo
na coordenação de suas ações. Um problema é uma
tempo em que observamos a busca pela superação
posição que se assume, um sentido que se constrói
do modelo biomédico e o uso de ferramentas de tra-
ou uma narrativa que se desenvolve, podendo ter
balho baseadas em uma perspectiva mais relacional,
tantas definições quanto os participantes do sistema
percebemos que o emprego dessas ferramentas de
envolvido em torno dele.
avaliação familiar muitas vezes ainda se dá em uma
Essas ideias trazem implicações importantes
para o trabalho com famílias na ESF, reconfigu- lógica tecnicista e mecanicista, pautada pela relação
rando a relação entre profissionais de saúde e as de exterioridade entre o observador e o sistema que
famílias atendidas, bem como o próprio contexto observa. Assim, geralmente os profissionais buscam
da reunião da equipe interdisciplinar. Partindo dos utilizar as ferramentas de avaliação familiar como
pressupostos construcionistas, as pessoas sempre forma de chegar o mais próximo possível da verdade
participam em uma interação, tendo seus pontos sobre uma família.
de vista como referência e construindo o mundo a Partindo das contribuições construcionistas,
partir das posições que ocupam numa interação. continuamos a valorizar o uso de ferramentas de
Assim, é fundamental investir-se na construção da avaliação familiar, sobretudo por considerá-las
reunião interdisciplinar como um contexto para a como maneiras importantes de transição da lógica
negociação de diferenças, num tipo de interação que de cuidado individual para uma lógica relacional
prioriza não a busca por definições essencialistas de compreensão dos sistemas humanos. Porém não
de problema, mas o próprio diálogo em torno da mais tratamos tais ferramentas como instrumentos
diversidade de posições possíveis dentro da própria objetivos que permitem descobrir a verdade sobre
equipe de saúde em relação a o quê pode ser consi- as famílias que acompanhamos, revelando suas
derado um problema e como ele pode ser resolvido. formas de organização e modos de funcionamento.
Esse tipo de interação traz para a própria equipe Ao contrário, passamos a valorizar o uso dessas
a possibilidade de uma atuação mais horizontal, ferramentas como opções discursivas (McNamee,
que deve se reproduzir na interação com a própria 2004), isto é, como recursos para o desenvolvimento
família, nas conversações em torno do problema e de diálogos na própria equipe profissional, de modo
de sua solução. que os significados produzidos através de tais fer-
Um passo ainda mais revolucionário seria a ramentas sejam vistos como construções sociais,
ampliação desse diálogo para a inclusão da própria passíveis de revisão e negociação.
família nesse processo, de modo a efetivamente con-
siderar seu ponto de vista acerca das decisões sobre O foco nos recursos e potencialidades
os melhores jeitos de pensar essa família, a visão Por muito tempo, os profissionais de saúde sustenta-
de problema e a construção das ações de cuidado. ram sua prática na busca por solucionar problemas,
Nessa direção, podem ser particularmente úteis as partindo da investigação do quê há de errado com
ideias propostas por Tom Andersen (1999) acerca as pessoas e suas relações. Assumindo as contri-
dos processos reflexivos. Esse autor, através de uma buições do movimento construcionista social, parte
transformação radical na prática da terapia familiar importante da mudança na maneira de se conceber o
sistêmica, ampliou as possibilidades de diálogo trabalho com famílias implica no desenvolvimento
entre equipes profissionais e família, favorecendo da capacidade das equipes de saúde de valorizar
uma maior democratização das vozes em diálogo e não apenas os sentidos de problema, déficit ou falta,
horizontalização das relações entre profissionais e mas também os recursos e potencialidades que as
pacientes, assim aumentando o potencial de cons- famílias e a comunidade possuem para lidar com as
trução de diálogos verdadeiramente generativos. dificuldades que enfrentam.

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Assim, contrariamente ao foco no problema, que Com base nesses autores, acreditamos que a
tradicionalmente tem sustentado as práticas em construção desse espaço dialógico deve acontecer
saúde, alguns autores têm trabalhado com uma pos- tanto na própria equipe, como no contato com a
tura que ficou conhecida como “Investigação Apre- comunidade atendida. Nas reuniões de discussão
ciativa” (Hammond, 1998). Segundo esta postura, em de famílias, por exemplo, deve-se investir tempo na
todo sistema algo funciona, de modo que a mudança construção do contexto de conversação. Isso signi-
pode emergir da identificação do que funciona e da fica que a equipe precisa re-significar esse espaço
análise de como fazer mais aquilo que funciona. como um contexto colaborativo que tem por objetivo
Aplicando essas ideias no trabalho com famílias, não apenas resolver o problema de uma determinada
somos levados a abandonar a linguagem do déficit, família, mas também exercitar, entre os próprios
a partir da qual a realidade familiar é descrita como participantes da equipe, uma nova concepção de
desestruturada, disfuncional ou estressante, para diálogo, que convida à diferença e à multiplicidade.
investir na construção de novas narrativas, a partir Ou seja, a própria equipe poderá participar de um
do foco nas qualidades já existentes nas relações da processo de conversação voltado à negociação de
família e na valorização de suas histórias passadas novos significados de família e problema, exer-
de sucesso e de superação. cendo as posições de não julgamento e de respeito
Assumindo a importância de nossas descrições às diferenças. Assim, os próprios profissionais de
na construção do mundo, esta postura investe na saúde podem fazer uma passagem de modos mais
criação de novos significados, em que a família pos- estáticos de pensar sobre a família e seus problemas,
sa ser vista também a partir de suas capacidades e para modos mais fluidos e dinâmicos, nos quais a
recursos de enfrentamento. Através da investigação diversidade de significados possa ser valorizada.
das histórias de sucesso, a equipe de saúde pode au- Concordamos com Grandesso (2000) que para ha-
xiliar as famílias no desenvolvimento de um maior ver a possibilidade de reconstrução de significados,
senso de agenciamento, por meio da criação de novos é necessário que haja um acontecimento de “quebra
vocabulários para descreverem a si mesmas e aos de sentido, de não encaixe”, no qual narrativas até
problemas de seu cotidiano. Trata-se de uma mudan- então não questionadas passam a ser olhadas com
ça importante na postura do profissional de saúde estranhamento. Esse tipo de diálogo destaca-se pela
que passa a efetivamente acreditar na capacidade valorização da multiplicidade de entendimentos pos-
das pessoas de se descreverem de novas maneiras, síveis sobre uma questão, e não pela sua unicidade.
assim construindo novas possibilidades de futuro. O próprio estar em diálogo é valorizado como um
recurso útil para a equipe desenvolver novos modos
A ampliação da visão de mudança ou cura de se relacionar, na própria equipe e no trabalho
Embora considerando a mudança como possibilida- com a comunidade. Parte dessa aprendizagem se
de permanente nas interações humanas, alguns au- faz através do entendimento de que os significados
tores têm se dedicado a compreender como algumas dependem dos contextos e são construídos relacio-
formas específicas de conversação podem favorecer nalmente, o que leva a uma postura de maior tole-
a geração de novos significados de problema, de rância à diferença e à incerteza, características do
mundo e de si. Em geral, discutem a importância processo de produção de sentidos.
de que contextos efetivamente dialógicos sejam Acreditamos que a participação desse tipo de
construídos, nos quais as pessoas possam se en- prática tem um potencial também formador. Enten-
gajar em relacionamentos de não julgamento; de demos, com base nas propostas construcionistas,
convivência respeitosa das diferenças e posições que discurso e ação são aspectos entrelaçados. A
pessoais; e de valorização das narrativas construí- linguagem é também uma forma de prática social.
das pelas pessoas na busca por darem sentido aos Assim, criar contextos para negociação de signifi-
problemas que vivenciam (Shotter, 1998; Guanaes, cados é parte fundamental do processo de recons-
2006; Grandesso, 2000). trução das práticas em saúde.

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Considerações Finais Referências
Neste artigo, buscamos discutir a concepção de que Almeida, M. C. P.; Mishima, S. O desafio do
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suem, etc. Tais significados constroem a família de ANDERSON, H; GOOLISHIAN, H. O cliente é
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Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. p. 88-100.
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que valoriza a participação da família na construção Bateson, G. Pasos hacia uma ecologia de la
das ações de cuidado a ela destinadas, cria, entre os mente. Buenos Aires, Lumen, 1997.
próprios profissionais, uma cultura de maior parti- Brasil. Conselho Nacional de Secretários da
cipação e negociação de diferenças. Saúde. Atenção primária e promoção de saúde.
Embora a perspectiva construcionista social não Brasília: CONASS, 2007. (Coleção Progestores).
conduza a técnicas a serem aplicadas no contexto da
conversação, ela pode, como uma opção discursiva e BRASIL. Constituição da República Federativa
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Acreditamos que, desde sua formação, o profis- Brasil. Ministério da Saúde. Manual do Sistema
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dialógicos e interdisciplinares de valorização da Ministério da Saúde, 2000.
natureza processual do conhecimento. Isso facili- Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de
taria a posterior construção desse tipo de prática Atenção Básica. Portaria n. 648, de 28 de março de
nas equipes interdisciplinares e no trabalho com a 2006. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. (Série
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muitos desafios, que só podem ser superados se a
equipe profissional articular-se num trabalho con- BURR, V. An introduction to social
junto e corresponsável, criando possibilidades para constructionism. London: Routlege, 1995.
reflexão sobre suas próprias práticas e abrindo-se
à revisão de suas próprias narrativas sobre família,
problema e mudança.

Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.4, p.1005-1017, 2011 1015


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Recebido em: 05/05/2010


Reapresentado em: 13/04/2011
Aprovado em: 01/07/2011

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