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Mandioca é comid

de quilombo
Representações e prátic
alimentares em u
comunidade quilombola
Amazônia brasile

408
da
ola? Mandioca é comida
de quilombola?
cas Representações e práticas
uma alimentares em uma
comunidade quilombola da
a da Amazônia brasileira
eira
MARCILENE SILVA COSTA
Université de Toulouse 2 Le Mirail, Toulouse, França

409
Costa, M. S.

MANDIOCA É COMIDA DE QUILOMBOLA? REPRESENTAÇÕES E


PRÁTICAS ALIMENTARES EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA
DA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Resumo
O presente artigo analisa, a partir de uma perspectiva socioantropológi-
ca, práticas alimentares de habitantes de uma comunidade quilombola
da Amazônia brasileira. As terras onde vivem são cercadas por grandes
fazendas de criação de gado que, em geral, pertencem a grandes fazen-
deiros, homens influentes na vida política regional. O cercamento das
terras gera como principal dificuldade a falta de espaço para plantar e
cultivar alimentos para consumo próprio. O principal acesso aos alimen-
tos necessários para sobrevivência acaba sendo pela forma de compra
e dependência do mercado local, acarrentando assim modificações nas
representações e práticas alimentares cotidianas. A técnica de investiga-
ção escolhida para a realização do trabalho foi uma pesquisa etnográfica
onde se privilegiou a observação participante, aplicação de formulários,
entrevistas e oficina de desenhos com as crianças da comunidade.
Palavras-chave: Amazônia brasileira, comunidade quilombola, práticas
alimentares, representações de alimentos.

IS MANIOC QUILOMBOLA FOOD? REPRESENTIONS AND


EATING HABITS OF A QUILOMBOLA COMMUNITY OF THE
BRAZILIAN AMAZON
Abstract
This paper analyzes, through a socio-anthropological perspective, the
eating habits of a community quilombola of the Brazilian Amazon. The
lands on which they are living are spaces surrounded by fazendas, large
agricultural areas used for livestock owned by large landowners, influen-
tial men in the regional politics. This implies that only a reduced space
remains for the families’ agricultural activities, former basis of their eco-
nomic activity. The consequence is a reduced part of produced or locally
picked up food, which causes changes in lifestyle and leads to increas-
ingly consumption of market bougth foods. This leads to changes in
representations and daily dietary practices. The observation technique
chosen to this research is based on an ethnographic participant observa-
tion, interviews and drawing workshops on foods with the children of
the community.
Keywords: Brazilian Amazon, quilombola community, feeding practices,
representations of food.

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Mandioca é comida de quilombola?

LE MANIOC EST-IL LA NOURRITURE DE QUILOMBOLA?


REPRÉSENTATIONS ET PRATIQUES ALIMENTAIRES DANS
UNE COMMUNAUTÉ QUILOMBOLA DE L’AMAZONIE
BRÉSILIENNE
Résumé
Cet article analyse à travers une perspective socio-anthropologique les
pratiques alimentaires des habitants d'une communauté quilombola
de l’Amazonie brésilienne. Les terres sur lesquelles ils vivent sont des
espaces entourés par des fazendas, domaines agricoles de grande taille
utilisés pour l'élevage de bétail appartenant à des grands propriétaires,
hommes influents dans la vie politique régionale. Ceci implique qu’ils
ne disposent plus que d’un espace réduit pour pratiquer l’agriculture
familiale, anciennement base des activités économiques. La conséquence
est la réduction de la part d’aliments produits ou captés localement, ce
qui provoque un changement dans leur mode de vie et dans la consom-
mation des aliments qui sont de plus en plus achetés au marché. Ceci
entraîne des modifications des représentations et pratiques alimentaires
quotidiennes. La technique d’observation choisie pour faire la recherche
est celle d’une enquête ethnographique par observation participante,
interviews et ateliers de dessins sur les aliments avec les enfants de la
communauté.
Mots clés: Amazonie brésilienne, communauté quilombola, pratiques
alimentaires, représentation des aliments.

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Costa, M. S.

O QUE COMEM OS QUILOMBOLAS? suas terras é reconhecida a propriedade


definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
O presente trabalho busca analisar, a par-
os respectivos títulos”.1
tir de uma perspectiva socioantropológi-
ca, práticas alimentares de habitantes de
uma comunidade quilombola da Amazô- CONSTRUINDO QUILOMBO: A LUTA
nia brasileira. Busca-se privilegiar obser- PELA TERRA
vações em campo sobre a alimentação
quilombola e a percepção que as crianças Em 1999, os moradores de Boa Vista,
do lugar têm sobre os alimentos produzi- com auxílio de representantes de uma
dos e consumidos localmente. entidade do movimento negro urbano
de Belém e de pesquisadores da Uni-
Muitos estudiosos afirmam que, por versidade Federal do Pará, deram en-
meio dos hábitos alimentares, uma so- trada no processo de legalização das
ciedade ou um grupo social pode se terras da comunidade como remanes-
expressar e se comunicar, sendo que cente de quilombo junto ao Instituto
os hábitos alimentares podem ser uti- de Terras do Pará – ITERPA.2
lizados para compreender e interpretar
uma determinada realidade (Bonim & Em 2003 modificaram o nome da as-
Rolim 1991). sociação local, São João, fundada em
1988 em homenagem ao padroeiro da
De acordo com Torrão (1995), a ali- comunidade, para Associação Comu-
mentação não é determinada apenas nitária de Remanescente de Quilombo
por fatores geográficos ou climáticos, Boa Vista do Itá, ato necessário para
visto que na fixação de uma dieta ali- que continuassem a luta pelas terras. A
mentar entram da mesma forma ele- área pleiteada é de 1.210 ha, sendo que
mentos psicossociológicos que a mar- 90% dessa área se encontra titulada a
cam e definem. Um alimento, além de favor de terceiros.
ser uma substância nutritiva que serve
para a manutenção física dos indivídu- De acordo com a memória local as
os, encerra também código de valores terras que eles habitam foram doadas
e símbolos próprios. por um senhor francês chamado Major
Santos ao seu casal de escravos, Felipe
Baseados na memória coletiva local, os Mariano dos Santos e Maria Madalena
habitantes de Boa Vista do Itá, repre- da Fonseca, que originou a atual locali-
sentados pela associação comunitária do dade. Segundo Conde (1999), o Major
lugar, reivindicam atualmente a titularização Santos possivelmente imigrou para essa
de terras onde vivem, a partir da alegação região, por meio do sistema de doação
de habitarem uma comunidade de remanes- de sesmarias, durante o governo impe-
centes de quilombo (descendentes de escra- rial no início do séc. XVIII. Ao longo
vos), de acordo com o artigo 68 da Consti- do rio Caraparu, principal da região,
tuição Federal brasileira de 1988 que diz: tem-se registrada a concessão de várias
“aos remanescentes das comunidades sesmarias.
dos quilombos que estejam ocupando

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Mandioca é comida de quilombola?

O referido Major deixou ao casal de pessoas migraram para próximo dessa


escravos o equivalente a 2.000ha de visando as facilidades para escoação dos
terras, onde se desenvolveu o po- produtos agrícolas pela estrada.
voado. Atualmente, Boa Vista do Itá
Boa Vista do Itá assemelha-se a vários
é composta por 33 famílias (156 pes-
outros povoados localizados às mar-
soas), onde precisamente 30 famílias
gens do rio Itá, sendo que um dos tra-
têm como primeiro ou segundo sobre-
ços em comum dessas comunidades
nome “dos Santos”. Sabemos que na
é o fato dos habitantes serem negros
época da escravidão o senhor batizar
vivendo em meio rural.
os escravos com seu próprio nome de
família era uma prática comum.
O nome de família “dos Santos” é bas- MAZAGÃO NÃO FOI MOSTRADO
tante recorrente também nas comunidades NA NOVELA
próximas: Conceição do Itá, São Francisco Na memória coletiva dos habitantes de
do Itá, Macapazinho e Nossa Senhora do Boa Vista estão presentes referências ao
Carmo do Itá visto que essas estão localiza- lugar de origem do Major dos Santos, que
das proximas ao rio Itá, um dos braços do teria imigrado de Mazagão,3 na África,
rio Caraparu (Figura 1). Dessa forma, tais com seus escravos para o local onde se
comunidades estão ligadas não só espacial- situa atualmente a comunidade.
mente, mas também socialmente por laços
de parentesco. Geralmente, os habitantes Mazagão era um pequeno vilarejo forti-
dessas localidades costumam enfatizar que ficado, de domínio português, banhado
são todos parentes. pelo oceano Atlântico, localizado no
norte da África, no Marrocos, foi res-
Provavelmente, Boa Vista do Itá é o po- taurada e rebatizada, em 1832 como
voado mais antigo que gerou as outras lo- El Jadida, pelo sultão Moulay Abder-
calidades às margens do rio Itá, visto que, rahman.4 Visitei a referida localidade em
com a construção da estrada PA-140, as 2008 ocasião em que fiz fotos do lugar
para mostrar aos interlocutores da pes-
quisa. Ao ver as fotos eles discutiram
animadamente por ser a primeira vez que
viam um Marrocos que não foi mostrado
na telenovela O Clone da Rede Globo.
As terras doadas pelo Major dos San-
tos (2000 ha) foram reduzidas a 12ha
devido à venda das mesmas pelos
parentes dos atuais moradores, e até
mesmo vendida pelo INCRA e ITER-
PA como terra devoluta a dois fazen-
Figura 1. Croqui de Macapazinho e comu-
deiros na década de oitenta, sendo que
nidades próximas. Fonte: Varela, M. S. B. e
A. S. Meneses (2002).
a prática dos antigos compradores era

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Costa, M. S.

comprar um pedaço e invadir o resto. de Santa Izabel pertencia à colônia de


Benevides, a qual foi um dos primeiros
Posso citar como exemplo o caso do
núcleos coloniais beneficiados com a
médico Sebastião Ramalho, residente
estrada de ferro.” (1999:11-12).
em Belém, que contesta o edital de titu-
lação das terras da comunidade. Em um O historiador Aldrin Figueiredo refere
primeiro momento ele se diz agricultor e que em 1888, ano da abolição da es-
residindo permanentemente na comu- cravidão no Brasil, Caraparu consti-
nidade, pois comprou de Osvaldo dos tuía-se apenas em um pequeno vilarejo,
Santos (já falecido), o terreno de 25 onde viviam os descendentes de escra-
hectares, em 1989 por NCz$ 1.500,00 vos foragidos, especialmente de Belém.
(hum mil e quinhentos cruzados no- Para o referido autor: “Caraparu era a de-
vos). Atualmente se diz propietário nominação dada a um quilombo pouco
de 32ha na comunidade. Percebe-se, conhecido que existiu nas proximidades
então, que o médico acresceu 7ha ao de Belém durante a primeira metade do
terreno que comprou.5 século XIX.” (1996:178).
Alguns moradores relembram que seus De acordo com Salles (1988), em um dos
parentes trocaram grandes porções de braços do rio Guamá, no rio Caraparu,
terra pelo equivalente a uma cesta básica havia um mocambo7 formado por ca-
de alimentos. Sendo assim, hoje em dia se banas distribuídas na área, localizado às
encontram em uma situação de extrema margens do igarapé Itá. Por esse motivo,
precariedade, sem terras para plantar, a região do rio Guamá foi alvo de “ba-
completamente cercados por fazendas. tidas” policiais freqüentes à procura de
mocambos com o intuito de destruí-los e
prender os negros que os habitavam.
LOCALIZAÇÃO DE BOA VISTA DO ITÁ
Boa Vista do Itá é um povoado localizado
ATIVIDADES ECONÔMICAS DOS
no municipio de Santa Isabel do Pará,
HABITANTES DE BOA VISTA DO ITÁ
distante aproximadamente 60 km da
capital do estado do Pará, Belém, Bra- Embora Boa Vista do Itá seja considera-
sil. Localiza-se precisamente no dis- do um povoado de agricultores, algumas
trito do Caraparu.6 O município de mudanças ocorreram devido à restrição
Santa Isabel do Pará é formado por das terras, o que obrigou vários habitan-
três distritos: Caraparu, Americano e tes do lugar a mudarem suas atividades
distrito sede. De acordo com Conde, econômicas e por consequência também
a origem do município “... está direta- as práticas alimentares.
mente ligada ao processo de estratifi-
De acordo com a memória local,
cação da região bragantina para fins de
nos tempos antigos, havia menos de-
colonização, que teve como marco a
pendência do mercado; plantavam,
construção da estrada de ferro Belém-
pescavam e produziam para o próprio
Bragança, inaugurada em junho de
consumo, de forma que todas as famí-
1883. Na época colonial, o povoado

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Mandioca é comida de quilombola?

lias locais trabalhavam com agricultura. dades se destacam, como, por exemplo,
Atualmente, esse quadro se modificou, serviços gerais (05 pessoas), o que sig-
já que alguns deles exercem outras nifica nesse contexto trabalhar como
atividades econômicas que não são re- mão de obra não qualificada para fazen-
lacionadas à agricultura. deiros da região. Dez outros moradores
trabalham na empresa avícola Frango
Mesmo assim, apesar das dificuldades
Americano, localizada a aproximada-
ocasionadas pela falta de terra para
mente 6km do povoado. Na empresa
cultivar a ocupação principal continua
trabalham como mão-de-obra não
sendo o trabalho com a agricultura
qualificada: a maioria trabalha à noite
(roça ou horticultura).
desembarcando frango de dentro de
Atualmente, segundo o censo que caminhões, como auxiliar de abate dos
realizamos em 20098 na comunidade, frangos ou no serviço de embalagem
das 156 pessoas recenseadas, 62 pes- dos produtos.
soas trabalham com agricultura. No
Três pessoas exercem a função de ca-
item sobre atividade profissional, a que
seiros, ou seja, se ocupam de casas ou ter-
mais se destaca é o trabalho na roça;
renos, para pessoas, geralmente de fora,
cinquenta pessoas respoderam que de-
que compraram terrenos na localidade,
senvolvem essa atividade.
moram em Belém, e vêm no final de
Dessa forma, percebe-se que, apesar semana à comunidade para repou-
das dificuldades, a base da economia sarem. É também possível exercer a
continua sendo o trabalho na roça para atividade de caseiro, em outros lugares,
fabrico de farinha de mandioca, segui- como ocorre com o pai de uma das habi-
do de trabalho na horta, do cultivo de tantes que é caseiro de um terreno na ci-
verduras e legumes.9 É necessário res- dade de Bujaru e tem direito a folga para
saltar que grande parte das pessoas que visitar a comunidade uma vez por mês.
responderam como atividade principal
Há seis mulheres que trabalham no dis-
o trabalho na roça associou uma ativi-
trito sede de Santa Isabel como emprega-
dade secundária como produção de
das domésticas; duas exercem a profissão
carvão vegetal ou serviços gerais.
para terem a possibilidade de cursar o
Atualmente, apenas sete pessoas estão Ensino Médio, visto que o acesso à esco-
trabalhando com horticultura; antes larização restringe-se ao Ensino Funda-
mais pessoas trabalhavam, mas devido mental em uma escola próxima.
à escassez de água, muitos desistiram
O acesso ao Ensino Médio só é pos-
e continuam apenas no fabrico da
sível na cidade, mas a municipalidade
farinha de mandioca.
não dispõe de transporte coletivo aos
O grupo familiar tem a responsabili- moradores. Os poucos que se aventuram
dade pela produção e comercialização a estudar são obrigados a pedalar cerca
dos produtos. Embora o número de de 30km de madrugada para poderem
pessoas que trabalham com agricultura chegar na aula a tempo, sabendo que no
seja predominante, algumas outras ativi- retorno à casa, o trabalho, auxiliando os

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Costa, M. S.

parentes no fabrico da farinha, os espera. de transporte depende da distância que


percorrem. Existem, mais ou menos,
Duas mulheres que trabalham como
sete casas de farinha na comunidade,
empregadas domésticas o fazem em troca
mas apenas uma é utilizada pela maio-
de alimentação e estudo. As outras
ria dos moradores, a casa de farinha
quatro não recebem sequer um salário
comunitária. As outras seis são utiliza-
mínimo e não têm carteira assinada.
das pelos próprios donos. Raras vezes,
Todas dormem na casa dos patrões e
outras famílias a freqüentam. O trabalho
folgam quinzenalmente.
requer ajuda de toda família, dos adul-
Embora a maioria do pessoal de Boa tos às crianças.
Vista trabalhe na roça e na fabricação
Em geral, o trabalho é dividido: os
de farinha de mandioca, grande parte
homens torram a farinha, as mulheres
das famílias se vêem obrigadas a com-
extraem o tucupi, as crianças peneiram
prar mandioca de terceiros, devido à
massa, os jovens ralam mandioca. Em-
falta de espaço para plantar. Por ser tão
bora torrar a farinha seja considerado
ínfimo o espaço em que estão confina-
um trabalho tipicamente masculino, algu-
dos, alguns fazem roças nas terras das
mas vezes, as mulheres também o fazem.
fazendas próximas.
A casa de farinha, além de um espaço
Os quilombolas compram a saca de
de produção, pode ser considerada
mandioca por R$15,00 (quinze reais)
também um espaço de sociabilidade.
e vendem a saca da farinha já pronta
As pessoas, durante o trabalho, con-
para o consumo a R$ 80,00 (oitenta
versam, riem e se divertem, contando
reais), uma saca de farinha significa o
casos, piadas, fofocando, fazendo re-
trabalho de uma semana de uma famí-
feições, transformando o trabalho em
lia inteira. Vendem também outros
uma grande reunião familiar.
produtos extraídos da mandioca como
por exemplo: o tucupi (líquido amarelo A produção agrícola é escoada por um
extraído da mandioca fresca) e a goma caminhão da Prefeitura Municipal que
(fécula da mandioca). Antes faziam passa aos sábados, pela madrugada, para
apenas a farinha, mas graças a uma levar os produtos e produtores com des-
oficina ministrada pela Fundação Cur- tino à feira municipal do agricultor. Che-
ro Velho na comunidade – instituição gam à cidade por volta de 5h da manhã
pública estadual – sobre fabricação de e vendem a produção na calçada da feira
goma e tucupi, aprenderam a trabalhar do agricultor, devido não terem um es-
também com esses produtos. paço assegurado dentro da feira para
venderem seus produtos; isso significa
As famílias geralmente fazem farinha
que os vendem informalmente. Alguns,
uma vez por semana. Homens e mulheres
devido a essa dificuldade, preferem
juntos arrancam e carregam as man-
vender os produtos por preços irrisórios
diocas compradas e as transportam
aos intermediários, o que significa que
até a casa de farinha em carro de mão,
não têm quase nenhuma margem de lucro.
bicicleta ou caminhão fretado; o meio

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Mandioca é comida de quilombola?

A venda dos produtos gera de R$ 80,00 lias ficaram mais dependentes do merca-
(oitenta reais), no máximo, a R$ 20,00 do para se alimentar. No entanto, como
(vinte reais), no mínimo, semanalmente, vimos, a renda que obtêm é baixa, o que
por família. Com o dinheiro das vendas, leva a comprarem pouca variedade de ali-
eles compram alimentos para passarem mentos, além de uma quantidade insufici-
a semana: feijão, arroz, macarrão, carne, ente para alimentar toda a família.
suco artificial, entre outros.
Na compra desses alimentos, a escolha
A renda mensal dos habitantes de se faz pelo menor preço e não pela
Boa Vista do Itá varia de R$ 200,00 a qualidade, o que significa que acabam
R$ 5.000,00. A única pessoa que recebe consumindo alimentos com grande
cinco mil reais não é originária de lá; trata- quantidade de sódio e conservantes,
se de um senhor de Belém que é aposen- acarretando dessa forma prejuízos à saúde.
tado pela Marinha Mercante e que por Além disso, algumas vezes, quando se
medo da violência da cidade grande se encontram sem dinheiro para comprar à
mudou para Boa Vista (Tabela 1). vista alimentos na feira ou supermerca-
dos na cidade, acabam comprando cestas
As famílias em média recebem mensal-
de alimentos a crédito de um caminhão
mente menos de um salário mínimo por
que passa na comunidade, vendendo
mês.10 Das 33 famílias, 14 recebem auxí-
produtos caros e de qualidade duvidosa.
lio do governo federal, em forma de Bol-
sa-Família e apenas uma família é benefi-
ciada pelo programa Bolsa-Trabalho. Os
O PROMETIDO: SEGURANÇA
valores variam de R$ 122,00 a R$ 60,00
ALIMENTAR GOVERNAMENTAL
mensais. Em alguns casos, é a única fonte
de renda fixa. A temática da alimentação apareceu
com mais vigor na pauta da política
Devido à falta de espaço para plantar, a
brasileira, a partir do governo Lula,
renda acaba sendo o principal meio para
com o lançamento, em 2001, da políti-
aquisição de alimentos, ou seja, as famí-
Tabela 1
Renda familiar mensal

Renda por família Nº de famílias


Menos de 1 Salário Mínimo 11
1 Salário Mínimo 5
+ 1 Salario Mínimo 9
2 Salários mínimos 1
+2 Salários mínimos 2
3 Salários mínimos 1
+3 Salários mínimos 4
Total de famílias 33

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Costa, M. S.

ca de segurança alimentar, intitulada prometimento de outras necessidades


Programa Fome Zero, além disso, foi essenciais da pessoa.
criado um ministério específico para o
O fato de reivindicar as terras como
combate à pobreza e à fome, o Minis-
quilombola integrou vários habitantes
tério Extraordinário de Segurança Ali-
de Boa Vista a programas sociais do
mentar e Combate à Fome (MESA).
governo, sendo que o mais importante
O programa tinha como objetivo pro-
é o Bolsa-família, programa de política
mover ações para proporcionar a segu-
pública de transferência de renda, em
rança alimentar e nutricional de todos
forma de auxílio financeiro às famílias
os brasileiros. O Ministério foi inte-
que têm os filhos regularmente matricu-
grado, em 2004, ao novo Ministério do
lados em escolas públicas. Tal pro-
Desenvolvimento Social e Combate à
grama é universal, não é específico aos
Fome (MDS).
quilombolas, mas destinado a famílias
De acordo com Beraldo (2006), os que vivem em situação de extrema po-
projetos e políticas públicas volta- breza com renda mensal por pessoa de
dos para a construção da segurança R$ 70,00 a R$ 140,00, o que é a média
alimentar brasileira estão atrelados em Boa Vista.
a ações e programas internacionais,
Os agentes de governo são respon-
tendo como principal financiador o
sáveis pela divulgação e aplicação de
Banco Mundial. Um dos oito objetivos
políticas públicas nessas comunidades,
do Milênio do Programa das Nações
visto que a maioria dos moradores não
Unidas é reduzir a extrema pobreza e a
tem conhecimento desses direitos bási-
fome no mundo.
cos. Sendo assim, o fato de revindicar a
Em tais programas e projetos, especial terra como quilombola traz a possibili-
atenção é dada à população rural, prin- dade de um acesso, ainda que mínimo,
cipalmente indígenas e quilombolas. a esses programas de governo.
Na III Conferência Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional, que ocor-
reu em 2007, foi adotado um sistema O "DE FATO": INSEGURANÇA
de cotas para que representantes desses ALIMENTAR QUILOMBOLA
dois segmentos tivessem ampla par- Para que haja segurança alimentar, é
ticipação em seminários e conferências preciso que exista disponibilidade de
municipais, estaduais e federais sobre alimentos, o que não ocorre em Boa
a temática da segurança alimentar e nutri- Vista. Se tomamos como base a afir-
cional. Tal medida foi adotada porque são mação de Trigo et al.(1989), o estado
os indígenas e quilombolas que sofrem de nutricional de uma comunidade depende,
maior insegurança alimentar no país. principalmente, da existência e possibili-
Na concepção do governo, segurança dade de acesso a alimentos indispensáveis
alimentar é o direito ao acesso regular à sobrevivência.
e permanente a alimentos de qualidade Em Boa Vista do Itá, devido principal-
em boa quantidade, sem que haja com-

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Mandioca é comida de quilombola?

mente ao cercamento de suas terras pelos dos aqui foram elaborados no decorrer
fazendeiros, os quilombolas têm sua se- da referida oficina.
gurança alimentar comprometida.
O peixe foi o alimento mais represen-
O cercamento das terras gera como tado, seja ainda vivo no rio, seja dentro
principal dificuldade a falta de espaço da frigideira já frito ou mesmo dentro
para plantar e cultivar alimentos para de um prato pronto para o consumo
consumo próprio. O acesso aos ali- (Figura 2).
mentos necessários para sobrevivência
O que não surpreende visto que,
acaba se dá pela compra e dependência
segundo Mendes (2006) o peixe, a
do mercado local; como não possuem
farinha de mandioca e o açaí represen-
renda suficiente para comprá-los, mui-
tam os alimentos campeões da dieta
tas vezes os quilombolas passam até
alimentar da região. De acordo com
mesmo privações alimentares ou op-
a autora, esses alimentos muitas vezes
tam por comprar alimentos mais bara-
representam a única opção para famí-
tos o que, geralmente, significa que
lias de baixa renda. O peixe é uma boa
os mesmos são pouco nutritivos e de
fonte de proteína e cálcio, e o açaí é
má qualidade. Exemplo é o consumo
riquíssimo em ferro e outras vitami-
frequente de suco artificial, dos mais
nas, e a farinha de mandioca fornece
variados sabores, principalmente por
grande quantidade de calorias.
crianças. Tais sucos têm como base de
composição açúcar e corante, sem ne- Porém na comunidade a pesca se en-
nhum valor nutritivo adicionado. contra ameaçada pela falta de peixes
no rio Itá e nos igarapés próximos.
Isso significa que eles se vêem obriga-
QUANDO OS DESENHOS REPRESENTAM dos a comprar peixe de um morador
AS PRÁTICAS ALIMENTARES que os adquire no mercado próximo e
os revende localmente.
Como já foi explicitado anteriormente,
durante o mês de agosto de 2009, acom- A salsicha calabresa foi o segundo
panhada de Marjorie Ruiffel, graduanda alimento mais desenhado. Observa-
em direito na UFPA, no âmbito do proje- mos que se trata de um alimento lar-
to Corpo Presente11 realizamos oficinas, gamente consumido, frito com ovos e
para crianças e adultos, sobre repre- misturado com farinha de mandioca;
sentações identitárias do corpo, saúde era bastante comum ver no prato das
e alimentação – por meio de desenhos, pessoas. É um alimento industrializado
pinturas e aplicação de questionários, em com alta concentração de sódio, mas
Boa Vista do Itá. com preço baixo; uma pequena quan-
tidade alimenta várias pessoas, no en-
A oficina contou com presença de 23
tanto, sem nenhuma segurança alimentar.
crianças, na faixa etária de dois anos aos
12 anos. Solicitamos que elas desenhas- A carne bovina também foi bastante
sem alimentos que consomem cotidiana- desenhada: crua, como bife na frigi-
mente. Os desenhos que serão mostra- deira ou já cozida dentro da panela. É

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Costa, M. S.

o alimento consumido no final de se- droeiro da comunidade, a festa de San-


mana ou em ocasiões especiais. Pode to Antônio.
ser comprada uma vez por semana,
O frango apareceu com menos
quando os quilombolas vão à feira
frequência: cru, assado ou dentro da
vender os produtos ou então compra-
geladeira. É curioso, visto que, como
dos de um marreteiro12 que revende o
mencionado no item sobre atividades
alimento localmente.
econômicas, cerca de dez moradores
A carne de porco não apareceu nos trabalham na empresa Frango Ameri-
desenhos das crianças, mas é um ali- cano, o que significa que compram esse
mento apreciado durante as festas, produto mais barato do que o valor no
casamentos, aniversários, em forma mercado e dessa forma o alimento cir-
de churrasco; no entanto por não dis- cula frequentemente entre as famílias.
porem de espaço suficiente no quin- Durante nossa estada, observamos
tal para criação de porcos, o animal é muitas famílias consumindo frango
comprado em ocasiões festivas, sendo preparado das mais variadas maneiras:
importante alimento para socialização grelhado no carvão, assado de forno,
e reforço de laços de solidariedade lo- cozido com batata. A doação ou troca
cal. Quando participei do aniversário de alimentos entre parentes é corrente,
de uma das antigas moradoras foi o sendo que a circulação de alimentos
prato ofertado em forma de churrasco que não são comprados é ligada direta-
aos convidados; o churrasco de porco mente a relações de parentesco.
é também oferecido na festa do pa-
O pão e ovo foram largamente rep-

Figura 2. Os alimentos, na representação de Lucas Souza, 2009.

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Mandioca é comida de quilombola?

resentados. São alimentos facilmente cima, bastante coloridos, com bolinhas


encontrados na comunidade, visto que pintadas representado confeite. Quando
grande parte dos moradores cria galinhas indagados se comiam frequentemente
para consumo próprio, que porventura bolo, responderam que, quando há
põe ovos. Uma moradora montou uma aniversários, sim. O bolo é considera-
pequena padaria em sua casa, onde do, por elas, um alimento precioso, gos-
ela fabrica pães que são vendidos pela toso e raro, já que a maioria das casas não
manhã ou à tarde. tem forno a gás (Figura 3).
Considerados a base da alimentação do Os moradores cozinham os alimentos
brasileiro, o feijão e o arroz, em geral no fogão a lenha e não têm hábito de
desenhados separados, foram mediana- assar bolos no que eles consideram
mente representados. A maioria de- fogões rudimentares. O bolo é um ali-
senhou o arroz dentro da panela. Porém, mento considerado especial, consumi-
de acordo com nossas observações são do em festas de aniversários de crian-
alimentos consumidos cotidianamente; ças, raramente em festejos de adultos.
muitas vezes, durante o almoço do De acordo com Senra (1996), os re-
dia-a-dia são servidos arroz, farinha de gimes alimentares funcionam como
mandioca e feijão, esse último cozido idiomas de diferenciação; no caso cita-
com pequenos pedaços de carne salgada do, diferenciação interna e geracional,
(charque) para dar gosto. marcando um grupo de idade, o que
significa que o bolo é o alimento do
A maioria dos desenhos fez referência
desejo das crianças, não dos adultos.
ao bolo de aniversário com velas em

Figura 3. Os alimentos, na representação de Tayna dos Santos, 2009.

Amazônica 3 (2): 408-428, 2011 421


Costa, M. S.

NO UNIVERSO DAS FRUTAS carne salgada frita (o famoso charque)


ou peixe frito e farinha de mandioca.
A fruta mais desenhada foi a maçã,
seguida da laranja e da uva. Pro- Durante nossa estada na comunidade,
vavelmente eles consomem laranja; tivemos a oportunidade de ver a pre-
no entanto, a maçã e a uva pensa- paração do suco do açaí em várias oca-
mos que desenharam por verem em siões. Em geral, é consumido como
livros didáticos, visto que, ao menos, refeição principal, no almoço ou jantar
no sábado, quando acompanhamos e circula entre as famílias em troca de
os pais ao mercado, esses alimentos farinha ou um pedaço de carne.
não foram comprados. Com execeção Os produtos industrializados foram
da laranja, as duas outras frutas não po- esporadicamente representados: bom-
dem ser cultivadas na região que não tem bom, pirulito, bebida láctea, iogurte,
clima propício para tal cultivo; tais frutas picolé, sendo que três meninas de-
são cultivadas na região sul do país e che- senharam sorvete. Na construção dos
gam na região norte com preço elevado; hábitos alimentares, de acordo com
são consideradas frutas do natal e con- Mintz (2001) tanto antigos hábitos
sumidas nessa época. Uma ressalva há de quanto novos se misturam para formar
ser feita, as crianças menores desenharam as práticas alimentares de um povo,
uva por acharem mais fácil ou sugeridas sendo que muitas vezes as escolhas
pelas crianças maiores. Pela raridade, são podem ser reduzidas pela dificuldade
frutas desejadas. em aceder ao alimento.
O morango e a banana tiveram rep- Embora os produtos industrializados
resentação mediana. A primeira fruta é façam parte do universo dos alimen-
raramente ofertada, mesmo para com- tos consumidos cotidianamente pelas
pra, visto que, como a uva e a maçã, famílias de Boa Vista, eles ainda não
não pode ser cultivada na região. Al- têm forte presença no que diz respeito
gumas famílias plantam bananeiras ao universo simbólico ou das repre-
nos quintais ou próximo à roça. Dessa sentações dos alimentos das crianças.
forma, na época da safra, a banana faz
parte da dieta alimentar; é uma fruta
consumida periodicamente. A CIVILIZAÇÃO DA MANDIOCA
Esporadicamente foram desenhados: Alguns pesquisadores brasileiros
jaca, manga, açaí, pupunha, anajá, melan- (Mendes 2006) afirmam que Pero Vaz
cia, uxi, abacaxi, coco, ingá (dentro da de Caminha foi um dos primeiros a
casca). Essas frutas podem ser encon- escrever sobre a alimentação no Bra-
tradas na comunidade e são cultivadas sil, na famosa carta destinada ao rei
na roça ou no quintal. de Portugal, em 1500, onde descreve
O açaí é uma fruta bastante consumida que os indígenas não criavam animais,
na safra, na forma de suco espesso, nem lavravam, no entanto consumiam
acompanhado de alimentos como bastante inhame, que havia em grande

422 Amazônica 3 (2): 408-428, 2011


Mandioca é comida de quilombola?

quantidade em solo brasileiro, assim Observamos que a semana inteira do


como sementes e frutos. De acordo grupo familiar é dedicada ao trabalho
com Bezerra (apud Mendes 2006) o para fabricação da farinha. A venda da
inhame descrito por Caminha seria a farinha, goma e tucupi é uma das prin-
mandioca, planta originária da Amazô- cipais fontes de renda das famílias locais.
nia. Segundo estudos multidisciplinares,
Segundo Castro (1965) a farinha de man-
os grupos tupi-guarani teriam sido os
dioca é o alimento básico das populações
responsáveis pela difusão da mandioca
da Amazônia. Em Boa Vista do Itá eles
pela América do Sul (Schaan 2010).
comem farinha de mandioca até mesmo
Dessa forma, para utilizar uma expressão
misturada com o café pela manhã. O pão
emprestada da antropóloga Jane Beltrão,
é um alimento introduzido recentemente
encontra-se assim registrada uma grande
na comunidade.
civilização da mandioca.
Para Albuquerque (apud Mendes 2006)
Foi o que constatamos, ao pedir para as
durante todo o processo de coloniza-
crianças desenharem alimentos obtidos
ção do Brasil, foi a mandioca o principal
por compra, na roça ou no quintal. O ali-
alimento do brasileiro e nas situações de
mento mais representado foi a mandioca
crises alimentares foi a responsável pela
na roça, obviamente porque a farinha é o
sua sobrevivência sendo ainda nos dias
denominador comum da alimentação lo-
de hoje um alimento imprescindível na
cal, é o alimento por excelência que não
alimentação de povos de regiões
pode faltar em nenhum prato.
tropicais do mundo inteiro. Para a au-
A maioria desenhou a mandioca, se- tora “Os múltiplos e variados aspectos
guida da macaxeira (um tipo de man- que apresenta com relação ao cultivo e
dioca), visto que consideram as duas aproveitamento em geral conferem-lhe
diferentes. A maniva (folha da mandioca) importância tanto social e econômica,
também foi lembrada. Milho e melan- como ainda histórica” (Mendes 2006:36).
cia foram representados com menos
Ao estudar um quilombo agrícola
frequência. Uma criança desenhou um
baiano de 1800, Reis (1996) afirma
casal em ação, no caso seus avós, ar-
que esse mantinha importantes rela-
rancando macaxeira e raspando man-
ções econômicas com o mercado re-
dioca (Figura 4). Outra desenhou um
gional por abastecê-lo de farinha de
homem torrando farinha.
mandioca. Esta por sua vez era con-
A representação da mandioca e do fabrico siderada o “pão da terra”, sendo não só
da farinha foi recorrente, visto que, como o alimento mais comum nos lares baianos
mencionado anteriormente, a mandioca como também o das frotas de navios que
é a principal atividade agrícola, cultivada mantinham comércio em África e Portugal.
nas roças. Depois de transformada em Vemos então que, a farinha de mandioca já
farinha, é a base da alimentação dos mo- era importante para sobrevivência tanto dos
radores de Boa Vista e de sua economia, quilombos antigos como dos atuais.
pois serve tanto para o consumo familiar
Segundo Alencastro (apud Santil 2006),
como para a venda.

Amazônica 3 (2): 408-428, 2011 423


Costa, M. S.

que pode se levar em consideração não


só os alimentos consumidos, mas as
condições existentes para que sejam con-
sumidos, como, por exemplo, o acesso a
alimentos capturados localmente, e também
aquisição dos mesmos por via monetária.
Anteriormente se fazia relação entre
alimento adquirido e renda, apenas nos
centros urbanos; no entanto, atualmente,
os meios rurais são também inclusos por
dependerem cada vez mais do mercado e
da aquisição de alimentos pela compra, o
que provoca mudanças nos padrões ali-
mentares das populações rurais.
Figura 4. Parte do processamento da man-
Situação de insegurança alimentar vivida
dioca na visão de Rodrigo Santos, 2009.
pelos habitantes de Boa Vista pode ser
após a introdução da mandioca no con- constatada pelo desenho de Eduarda
tinente africano ela passou a ser cultivada dos Santos, 7 anos, que desenhou uma
em grande escala no Brasil, para ser ex- grande casa de paredes pintadas de verde
portada à África se transformando no ali- e teto vermelho e disse que na casa não
mento principal na dinâmica do comér- havia comida (Figura 5). Durante nossa
cio escravagista, se consitutindo assim em estada em campo observamos que algu-
um dos principais fatores da articulação mas famílias passavam situações de priva-
da economia do Atlântico sul. Se enfanti- ção alimentar, onde a farinha de mandio-
zo a importância da cultura da mandioca ca era o único alimento disponível. Além
na história é para mostrar o quanto ela dessa situação, há outro problema, pois, a
ainda exerce forte papel na economia das maioria das famílias não tem acesso a ali-
comunidades agrícolas da Amazônia. mentos de qualidade nem em quantidade
suficiente para promoção de uma dieta
adequada e saudável.
ALIMENTOS INDUSTRIALIZADOS
NO PRATO DOS QUILOMBOLAS
QUANDO A FOME APERTA, A SALVAÇAO
A maior variação de alimentos desenha- É O CARIBÉ
dos foram os obtidos por compra, como:
mortadela, bolacha, biscoito, café, fei- A situação de privação alimentar que
jão, arroz, carne, frango, calabresa, leite, algumas vezes os habitantes de Boa
abóbora e uva. Vista se vêem obrigados a passar se
assemelha à situação das famílias cea-
Woortman (1978) afirma que os hábitos renses que protagonizaram o docu-
alimentares são construídos a partir de mentário “Garapa”, de José Padilha
diferentes estratégias de consumo sendo (2009). O filme mostra a luta de três

424 Amazônica 3 (2): 408-428, 2011


Mandioca é comida de quilombola?

famílias para obter alimentos cotidi-


anamente e que, embora assistidas pelo
programa Fome Zero ou Bolsa Família
recebendo, em geral, 60 reais mensais,
sofrem de fome crônica ou insegurança
alimentar e quando se vêem sem saída,
sem nenhum alimento para dar às crian-
ças acabam fazendo uma mistura de água
quente com açúcar ou rapadura para ali-
mentá-las, visto que o açúcar é o alimento
mais barato que elas podem comprar.
Em Boa Vista recorrem, quando não têm
nada para comer, não à garapa, mas, ao
caribé, mingau de farinha ralo que tem
como ingredientes: farinha de mandioca,
água e sal, ou então o chibé, mistura de
farinha com água. Se algumas vezes só Figura 5. A casa onde não há comida. De-
têm a farinha para comer é porque esta é senho de Eduarda dos Santos, 2009.
fabricada na própria comunidade.
mercado, produção local de subsistência
Em um relato espontâneo, no entanto
de baixo rendimento, além de que o uni-
com uma voz embargada, uma das
verso de interação energética com o meio
interlocutoras da pesquisa, durante
ambiente que contribui para a sua ali-
o processo de fabricação de farinha,
mentação encontra-se bastante alterado.
quando estávamos reunidas descas-
O fator principal que causa essa situação
cando mandioca contou que em certa
é a falta de terra para plantarem e a não
ocasião quase todas as famílias da co-
titulação das mesmas, causando não só
munidade se viram em uma escassez
insegurança alimentar mas insegurança
de alimentos e como já estavam há
quanto ao futuro.
alguns dias sem nada consumir decidi-
ram fazer um mingau de farinha gigan- A consequência é a redução de parte dos
te em uma grande panela, cozido numa alimentos produzidos ou coletados local-
fogueira no meio da comunidade e as- mente, o que provoca uma grande mu-
sim todos puderam se alimentar. Dife- dança no modo de vida deles e no consu-
rentemente do filme de Padilha, aqui mo dos alimentos, que são cada vez mais
não é o açúcar a caloria mais barata comprados no mercado, efetuando dessa
que se pode adquirir, mas a farinha. forma modificações nas representações e
práticas alimentares cotidianas.
De acordo com Katz e Sureiman
CONCLUSÃO
(2008), a alimentação é um dos meios
O quadro alimentar que se presencia atu- pelo qual se desenvolvem identidades
almente em Boa Vista é: dependência do tanto coletivas como individuais, de

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Costa, M. S.

forma que a alimentação de pessoas 5


Documentos processuais sobre Boa Vis-
de uma dada sociedade pode consti- ta do Itá de 1999 a 2009, arquivados no
tuir um sistema de representações, ITERPA.
saberes e práticas importantes para a 6
Atualmente, o distrito de Caraparu
compreensão dos grupos sociais. Para se caracteriza como importante e popular
os mesmos autores as transformações ponto turístico da cidade tendo um dos bal-
de modelos alimentares são raramente neários mais procurados do município.
estudados a partir de uma perspectiva 7
Sinônimo de quilombo na designação regional.
antropológica. 8
Todo o material citado no presente artigo
foi coletado, em 2009, por Marjorie Ruffeil
e por mim, no quadro dos projetos Corpo
NOTAS Presente: representações de saúde entre quilombo-
1
Cf. Brasil. 1988. Constituição Federal. p. las e políticas públicas e Programa de Políticas
169. Brasília: Senado Federal. Afirmativas para Povos Indígenas e Populações
Tradicionais (PAPIT). Os projetos são coor-
2
Orgão regional responsável pela execução
denados pela professora Jane Felipe Bel-
da política agrária no estado do Pará. Celebra
trão. Ver Costa e Ruffeil (2009).
convênios com Instituto de Colonização e
Reforma Agrária – INCRA, autarquia federal 9
O documentário de Alan Guimarães (2011)
responsável pela emissão de títulos coletivos sobre a comunidade tem como fio condutor
das terras dos descendentes de quilombos. o ciclo de trabalho com a mandioca desde o
momento que os moradores de Boa Vista
3
“Mazagão era o nome do domínio por-
saem pela manhã para trabalhar na roça até o
tuguês, localizado no Norte da África, de
processo final de fabricação da farinha.
1514 até 1769. Este mesmo povo foi des-
locado, segundo os relatos históricos, por 10
O salário mínimo na época era R$ 465,00
volta de 1770, para a Amazônia, no norte (quatrocentos e sessenta e cinco reais).
do Brasil. Ali, a política de ocupação colo- 11
O projeto tem como objetivo investi-
nial do senhor Marquês de Pombal estava
gar práticas alimentares, doenças crônicas,
sendo implementada. Há no Estado do
acesso ao sistema de saúde, histórias e
Amapá, Mazagão Velho, distrito do mu-
memórias, assim como percepções identi-
nicípio de Mazagão, que festeja São Tiago,
tárias quilombolas.
no mês de julho, onde uma encenação
retrata as batalhas entre cristãos e mouros, 12
Designação local para o revendor de produ-
que disputavam na África a hegemonia da tos alimentícios que utiliza uma moto para se
fé no continente africano, sob domínio deslocar pela região vendendo alimentos.
português.” Havia presença francesa no
Marrocos a partir de 1530, no entanto a
França afirma domínio somente no final REFERÊNCIAS
do séc. XIX, quando a região ser torna
um protetorado francês. Conferir : http:// Beraldo, N. A. S. 2006. Saberes e práticas
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setembro de 2009. da comunidade Maçambique, in Prêmio
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4
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php. Acesso em 25/04/2010. nizador – Brasília: Ministério do Desen-

426 Amazônica 3 (2): 408-428, 2011


Mandioca é comida de quilombola?

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