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UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO – UNIVASF

CAMPUS CIÊNCIAS AGRÁRIAS – CCA


COLEGIADO DE ENGENHARIA AGRONÔMICA – CEAGRO
AGROECOLOGIA (AGRO0026) – Prof. Izaias da Silva Lima Neto
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Telefone: (87) 2101-4833 / e-mail: ceagro@univasf.edu.br

CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO


Izaias da Silva Lima Neto

1 INTRODUÇÃO

O Brasil é o país de maior diversidade biológica do mundo. São mais de 200 mil espécies já
registradas em seus biomas (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa) e na
Zona Costeira e Marinha. Estima-se que este número possa chegar a mais de 1 milhão e oitocentas
mil espécies (BRASIL, 2010). Além da ampla biodiversidade o Brasil conta com uma
sociodiversidade expressiva, representada por comunidades indígenas (mais de 220 etnias indígenas
de norte a sul do território nacional) e por populações locais não indígenas (como quilombolas,
caiçaras, seringueiros, entre outros). Estas comunidades detêm importantes conhecimentos
tradicionais, individuais ou coletivos, com valor atual ou potencial, associados ao patrimônio
genético (elementos da biodiversidade). Em um contexto mais aplicado, há consenso de que
conhecimento tradicional associado é aquele que facilita ou possibilita o acesso ao patrimônio
genético e doravante será designado pela sigla CTA.
O CTA, historicamente, tem sido utilizado de forma injusta. Todavia, uma nova cultura no uso
deste importante componente foi definida após a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), a
qual reconheceu a soberania nacional sobre a biodiversidade, estabeleceu o objetivo da repartição
de benefícios, decorrente do uso dos recursos genéticos e reconheceu os direitos das comunidades
indígenas e locais sobre seus conhecimentos. No Brasil, o tema é regulado pela Medida Provisória
2.186-16/01 que estabeleceu o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), o qual
instituiu regras para o acesso ao CTA e para a repartição justa e eqüitativa de benefícios.
Nesse sentido, o objetivo desse artigo é esclarecer os conceitos básicos trazidos pela legislação,
a fim de auxiliar os atuais e potenciais usuários do sistema com informações necessárias para o
desenvolvimento de suas atividades de forma legal. Em complemento, visa-se apresentar dados
relacionados ao valor do CTA no PIB da Amazônia e na indústria farmacêutica, bem como estudos
de caso do uso de conhecimento tradicional associado de forma legal e ilegal e suas implicações.

2 CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO - CTA

De acordo com a medida provisória (MP) nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, a qual


estabelece normas legais para regular o acesso aos recursos genéticos e conhecimento tradicional
associado no território brasileiro, o CTA é definido como informação ou prática, individual ou
coletiva, de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada
ao patrimônio genético.
A condição “tradicional” no conhecimento não diz respeito à sua antiguidade, mas ao modo
como ele é adquirido e usado, já que muitos desses conhecimentos são de fato recentes, mas é um
conhecimento compartilhado seja por especialização local, seja por livre circulação de idéias e
informações.
O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) esclarece as diferenças entre
conhecimento tradicional e conhecimento tradicional associado. Este último refere-se aos
conhecimentos associados ao uso das plantas, ao uso das sementes, às utilidades dos animais. Por
exemplo, o conhecimento de como se faz determinada rede ou renda é conhecimento tradicional,
mas não é conhecimento tradicional associado. Porém, as informações sobre qual planta fornece a
melhor fibra para fazer a rede, ou qual planta fornece o melhor corante para a renda, são
conhecimentos tradicionais associados, pois são relacionados ao uso das plantas. Além do
conhecimento sobre o uso de uma planta ou animal (para que serve e como é usado) outras
informações também têm valor, como: quais as plantas vizinhas, qual é a melhor época para coletá-
las, como armazená-las, entre outras. Todas essas informações fazem parte do conhecimento
tradicional associado.
Verifica-se, portanto, que de uma forma generalizada o CTA é interpretado como um corpo de
conhecimento construído por um grupo de pessoas através de sua vivência em contato próximo com
a natureza por várias gerações. O conhecimento passa de geração a geração, dos mais velhos aos
mais novos, sendo que, na maioria das vezes, a transmissão desses saberes é oral, é contando
estórias (BRASIL, 2010).
Segundo Aguilar (2007), o conhecimento tradicional no sentido mais amplo é compartilhado
por vários povos e está em constantes elaborações, reelaborações e adaptação de novas tecnologias
por esses povos. Ele inclui um sistema da classificação, um conjunto de observações empíricas
sobre o ambiente local e um sistema de auto-manejo que governa o uso dos recursos (PNUMA,
2001; citado por REZENDE; RIBEIRO, 2005).
Em um contexto mais aplicado, há consenso de que conhecimento tradicional associado é
aquele que facilita ou possibilita o acesso ao patrimônio genético. Desse modo, informações sobre o
uso de plantas tem sido considerado conhecimento tradicional associado, enquanto que informações
sobre a mitologia não necessariamente envolve conhecimento tradicional associado (BRASIL,
2005).
Para delimitar o conteúdo dos detentores desses referidos “conhecimentos tradicionais”, evoca-
se a noção dos grupos humanos culturalmente diferenciados, conforme descrito por Diegues e
Arruda (2001) que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada,
com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza,
caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção refere-se
tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos
particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos. Desta forma, como
provedores do CTA são considerados as comunidades indígenas (estas com cerca de 220 povos,
mais de 180 línguas, aproximadamente 370 mil indivíduos, milhares de aldeias em 627 terras
indígenas, de norte a sul do território nacional) e as populações locais não indígenas, como caiçaras,
jangadeiros, caboclos ribeirinhos amazônicos, sertanejos (vaqueiros), caipiras, açorianos, varjeiros
(ribeirinhos não-amazônicos), pantaneiros, quilombolas, pastoreio (campeiro), pescadores,
babaçueiros, sitiantes e praieiros (DIEGUES; ARRUDA, 2001), os quais detêm o conhecimento ou
prática individual ou coletiva, associada ao patrimônio genético e o disponibilizam para terceiros,
mediante anuência prévia (BRASIL, 2005).
O que vem acontecendo há muitos anos é que os CTA’s estão despertando interesse de
multinacionais, pois, através do conhecimento destes sobre a biodiversidade, pesquisas em várias
áreas do conhecimento científico vem sendo realizadas e tomadas como novas, por meio de
patenteamento de novos produtos (FAISTEL; MELO, 2008).
Na indústria farmacêutica encontra-se o maior potencial de uso da biodiversidade e do
Conhecimento Tradicional Associado à Biodiversidade (CTA), na qual se concentra o maior
número de agentes interessados na realização da bioprospecção (PEREIRA; LIMA, 2008). A
competitividade no setor de fármacos depende basicamente da diferenciação de produtos, mas as
pesquisas para o desenvolvimento de novos produtos têm um custo elevado. Assim, o uso do CTA
atua como um “filtro” através do qual ocorre a inovação, seja na localização de novas plantas, seja
na sugestão de sua atividade farmacológica dos recursos da biodiversidade (REZENDE; RIBEIRO,

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2007; citados por PEREIRA; LIMA, 2008). Este conhecimento é considerado atalho para as
empresas de biotecnologia, possibilitando economizar em até 400% em tempo de pesquisa, além de
milhões de dólares em gastos com equipamentos, testes, materiais de pesquisa e salários das equipes
de profissionais envolvidos.
Destaca-se ainda que cerca de 70% das drogas derivadas de plantas foram desenvolvidos com
base no CTA. Mas, o retorno financeiro para esses povos que auxiliaram as indústrias farmacêuticas
nas descobertas de plantas medicinais é estimado em menos de 0,0001% dos lucros do setor.
(AZEVEDO, 2003; LAPA 2001; citados por PEREIRA; LIMA, 2008).
De fato, o que se tem observado é que raramente os benefícios, gerados a partir da exploração
econômica dos produtos desenvolvidos com base nestes conhecimentos, são compartilhados com as
comunidades. Esses conhecimentos têm sido pouco valorizados e não têm recebido a atenção
necessária à sua preservação. A Convenção sobre Diversidade Biológica estabeleceu um marco na
alteração deste quadro ao reconhecer que os conhecimentos tradicionais são relevantes à
conservação da biodiversidade (artigo 8j). No Brasil, a implementação do artigo 8j da Convenção
sobre Diversidade Biológica tem se dado por meio da aplicação da legislação em vigor, a Medida
Provisória (MP) 2.186-16/01. Essa legislação reconhece que o conhecimento tradicional associado é
parte do patrimônio cultural brasileiro e estabelece direitos às comunidades indígenas e locais
(BRASIL, 2010).
Em termos internacionais, a regulamentação está inserida no conflito entre os interesses
comerciais dos países desenvolvidos, e os interesses de preservação e de uso sustentável dos países
em desenvolvimento, que são os grandes detentores de biodiversidade e CTA. Estes interesses
divergentes de certa forma estão representados em dois acordos internacionais: o Tratado sobre os
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), no âmbito da Organização
Mundial do Comércio (OMC) e a Convenção de Diversidade Biológica (CDB) (PEREIRA; LIMA,
2008). A criação de um regime jurídico de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade visa evitar sua apropriação e utilização indevida por terceiros. Ademais, visa
também dar maior segurança jurídica às relações entre os interessados em acessar recursos
genéticos e conhecimentos tradicionais associados (bioprospectores ou pesquisadores acadêmicos) e
os detentores de tais recursos e conhecimentos, estabelecendo os parâmetros e critérios jurídicos a
serem observados nessas relações e acordos.

3 ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO

Trata-se da obtenção de informação sobre conhecimento ou prática individual ou coletiva,


associada ao patrimônio genético, de comunidade indígena ou de comunidade local, para fins de
pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico, visando sua aplicação
industrial ou de outra natureza (BRASIL, 2005). No Brasil a instituição responsável pelo acesso ao
CTA é o CGEN, órgão de caráter deliberativo e normativo criado pela MP 2.186-16 no âmbito do
Ministério do Meio Ambiente, sendo integrado por representantes de diversos Ministérios com
direito a voto e representantes da sociedade civil, com direito a voz.
O direito das comunidades indígenas e locais de decidirem sobre o repasse de seus
conhecimentos tradicionais (uso de plantas, animais ou outro componente da biodiversidade) para
empresas ou instituições de pesquisa é assegurado pela CDB – Convenção sobre Diversidade
Biológica e pela Medida Provisória nº 2186-16/01. Os procedimentos legais para acesso ao CTA,
segundo informações disponibilizadas pelo CGEN (BRASIL, 2010) são apresentados a seguir:
- O acesso ocorre quando alguém de fora da comunidade (que pode ser de uma universidade,
uma empresa, uma ONG, ou mesmo do governo) quer saber sobre os conhecimentos tradicionais
associados das comunidades e aplicá-los em uma pesquisa ou na elaboração de produtos.
- A MP regula o acesso aos conhecimentos tradicionais associados e ao patrimônio genético
para três finalidades: pesquisa científica (aquela pesquisa que não tem potencial de uso econômico);

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bioprospecção (atividade exploratória em componente de patrimônio genético com potencial de uso
comercial) e desenvolvimento tecnológico (elaboração de um produto para ser comercializado).
- O acesso aos conhecimentos tradicionais associados também pode ocorrer sem que haja
contato direto com as comunidades, por exemplo, quando se consulta um banco de dados onde
estão registradas informações que foram, em algum momento, fornecidas por comunidades
indígenas e locais.
- Uma das primeiras coisas que o interessado tem que fazer é obter a anuência, isto é, a
concordância das comunidades que irão passar as informações que fazem parte do conhecimento
tradicional associado. Isto é chamado pela MP de “anuência prévia”. As Resoluções do CGEN nº
05, 06, 09 e 12 estabelecem o que os pesquisadores devem fazer quando vão consultar as
comunidades. Assim, primeiro o interessado deve conversar com as comunidades e conseguir a
anuência prévia; só depois é que o CGEN pode dar a autorização. E só após ter recebido a
autorização é que o interessado pode voltar à comunidade, para então acessar os conhecimentos
tradicionais associados. Quando a pesquisa tiver possibilidade de gerar algum produto explorável
economicamente, a repartição de benefícios deve ser combinada com a comunidade antes da
pesquisa começar, antes do CGEN autorizar. Esta combinação deve ser escrita na forma de um
contrato. Assim, para permitir o acesso, a comunidade deve estar ciente de como será usado o seu
conhecimento e com que finalidade.
- É importante lembrar que a MP prevê que apenas instituições brasileiras de pesquisa e
desenvolvimento podem ter autorização do Governo. Assim, estrangeiros só podem acessar
patrimônio genético ou conhecimentos tradicionais associados se estiverem trabalhando junto com
instituições brasileiras, sendo que estas deverão coordenar o projeto.

4 REPARTIÇÃO JUSTA E EQÜITATIVA DE BENEFÍCIOS

Se o acesso ao conhecimento tradicional associado for autorizado pela comunidade e se esse


conhecimento fizer parte ou ajudar na elaboração de algum produto que venha a ser comercializado,
então essa comunidade tem direito a receber benefícios. Assim, a criação de um produto com
potencial de exploração econômica, a partir do conhecimento, deve render benefícios (que
constarão num contrato) para a comunidade, como a capacitação de recursos humanos, a
recuperação de áreas degradadas ou o apoio para a formulação de projetos. Há dúvidas, no entanto,
sobre como proceder para repartir esses benefícios quando mais de uma comunidade for detentora
do conhecimento usado.
A MP estabelece, no art. 24, que os benefícios (tais como os lucros ganhos a partir da venda de
produtos, ou da exploração de patentes) que foram desenvolvidos a partir do patrimônio genético de
plantas e animais e/ou do conhecimento tradicional associado, fornecidos pelas comunidades,
devem ser repartidos de maneira justa. Por exemplo, uma instituição fez um sabonete a partir de
uma planta, que primeiro foi coletada na área da comunidade; mas para fazer esse sabonete, a
instituição precisou não só da planta, como também do conhecimento tradicional associado da
comunidade. Depois disso, ela vendeu esse sabonete. O lucro que ela teve com a venda desse
sabonete deverá ser dividido de maneira justa entre todos os que participaram do processo e que
devem, portanto, ter assinado o contrato (BRASIL, 2010). Vale salientar que os benefícios não se
restringem às formas econômicas, mas há de abranger uma retribuição técnica, biotecnológica,
científica, social, cultural ou qualquer outra.

5 SANÇÕES ADMINISTRATIVAS

- O Art. 8º do Capítulo III da MP estabelece que utilizar o conhecimento tradicional associado,


sem a autorização daqueles que detêm esse conhecimento (as comunidades), é um ato ilegal. Além
da autorização da comunidade para usar o conhecimento tradicional associado, o pesquisador deve

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ter a autorização do Governo Federal, que é representado pelo CGEN – Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético. Todavia, essa lei não impede as trocas de conhecimento entre as comunidades
nem que a sua utilização pelas comunidades seja realizada, afinal essa é uma das formas de produzir
e manter o conhecimento.
- O art. 26 trata do que ocorre se alguém colocar um produto no mercado, baseado em
patrimônio genético ou em conhecimento tradicional associado, sem autorização de acesso, ou seja,
de forma ilegal, devendo pagar uma indenização (uma quantia em dinheiro), que será, no mínimo,
de 20% do faturamento bruto obtido com a comercialização de produtos e ainda poderá sofrer
outras penalidades.

6 VALOR DO CTA

6.1 No PIB da Amazônia

O CTA relacionado às plantas nativas da Amazônia tem imenso valor para os povos indígenas e
comunidades tradicionais porque garante sua segurança alimentar, oferece uma ampla variedade de
plantas medicinais, de produtos para transformar em ferramentas, bem como outros produtos
tecnológicos, artesanato e construção, e, ainda, oferece alguns produtos para comercializar nos
mercados locais e regionais. Todavia, segundo estimativas realizadas por Clement (2007) a
biodiversidade amazônica contribuiu com R$ 8,9 bilhões ao PIB da Amazônia ou 7,8%, o que
representa 0,57% do PIB do país. Isto é muito pouco, especialmente considerando que a região
representa 60% do Brasil, que mais de 17% dos ecossistemas da Amazônia foram derrubados para
gerar estes parcos resultados econômicos, e que 12% da população brasileira vive na Amazônia.
Partindo do pressuposto que as sociedades indígenas dependiam da biodiversidade amazônica e
americana para sobrevivência, a questão é: quantas espécies foram usadas? Isto é uma medida de
valor, embora diferente do PIB (CLEMENT, 2007). De acordo com este mesmo autor existem três
tipos de conhecimento tradicional associado à biodiversidade: o conhecimento sobre usos de
espécies, os recursos genéticos agrícolas, e o conhecimento sobre a criação e manejo de
ecossistemas, cujo estudo é chamado de etnoecologia. Cada um desses conhecimentos tem suas
pressuposições culturais e suas práticas associadas. Agora, quanto eles valem?
Na Amazônia existem ao redor de 20.000 espécies de plantas superiores, das quais os povos
indígenas encontraram uso para pelo menos 3.500 espécies (CLEMENT, 2007). Todas estas 3.500
espécies foram usadas porque alguém fez um investimento para saber como usá-las, onde encontrá-
las, como prepará-las e, às vezes, como manejá-las. Da mesma forma, apenas 83 espécies foram
domesticadas, o que exigiu investimentos muito mais intensivos na seleção, propagação, manejo e
cultivo de algumas populações de cada espécie, ou seja, receberam investimento por parte das
comunidades indígenas ou locais, tornando-se conhecimento tradicional associado. Respondendo ao
questionamento de quanto vale o conhecimento tradicional associado à biodiversidade amazônica,
considerando apenas plantas agrícolas e produtos florestais não-madeireiros, ambos ligados à
agricultura tradicional, Clement (2007) estima que esse valor represente menos que 2,8% do PIB da
Amazônia ou 0,2% do PIB brasileiro.

6.2 Na indústria farmacêutica

O grande problema da indústria farmacêutica são os altos custos financeiros e o longo tempo
necessário para desenvolver uma droga: US$ 231 milhões a US$ 500 milhões, em pesquisas que
levam cerca de 6 a 15 anos (KATE; LAIRD, 1999; citados por RODRIGUES et al., 2007), e as
chances de que um produto seja desenvolvido a partir de uma amostra de recurso genético é baixa,
entre: 1/5.000 a 1/10.000. Empresas como a Shamam Pharmaceuticals e The Body Shop
constataram que, com acesso a tal conhecimento, custos de pesquisa e desenvolvimento poderiam
ser cortados em até 40%. Considerando o elevado custo do desenvolvimento de um único remédio

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novo, o acesso ao CTA representa economias não desprezíveis. Assim, os garimpeiros da
biodiversidade não estão apenas à procura de genes; estão também à procura da informação
existente nas comunidades indígenas e locais. (POSEY, 2002; citado por FAISTEL; MELO, 2008).
De acordo com Rodrigues et al. (2007), com base no vasto conhecimento popular já existente
para o uso de muitas plantas medicinais, estima-se que os custos para o desenvolvimento de um
fitomedicamento não devem ultrapassar 2 a 3 % daquele previsto para o desenvolvimento de um
novo medicamento sintético.
Outro ponto importante é que mais da metade das empresas entrevistadas por Kate e Laird
(1999), citados por Rodrigues et al. (2007), utilizam-se de conhecimento tradicional. Entretanto,
80% de todas as empresas que usam conhecimento etnobotânico acessam-no por meio de literatura
e base de dados. Este fato tem implicações significativas para a repartição de benefícios e sugere
que publicações acadêmicas e inclusão de conhecimento tradicional em bases de dados, mais do que
coletas em campo por empresas, são as rotas mais comuns pelas quais o conhecimento tradicional
deixa a comunidade e vai para o laboratório comercial. Daí a necessidade de incluir a origem do
CTA em todas as publicações e divulgações realizadas, para permitir a futura repartição de
benefícios de forma justa.

7 ESTUDOS DE CASO

Como estratégia a investigação de plantas medicinais, o estudo etnofarmacológico consiste em


combinar informações adquiridas junto a usuários da flora medicinal, comunidades e especialistas
tradicionais, com estudos químicos e farmacológicos (ELISABETSKY, 2003).
A empresa Natura do Brasil, que comercializa produtos de beleza e perfumes, gera valor para as
comunidades fornecedoras de ativos da biodiversidade, que recebem recursos de quatro diferentes
maneiras: pelo fornecimento de matéria-prima; pela repartição de benefícios pelo acesso ao
patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado; pelo uso de imagem; e em fundos e
convênios para promover o desenvolvimento sustentável.
Todavia, nem sempre o acesso ao CTA se dá de forma justa. Infelizmente, há vários casos em
trâmites judiciais, nos quais o acesso ao CTA para o desenvolvimento de produtos e/ou processos
com finalidade comercial não resultou em benefícios para o seu detentor. Neste sentido, é notória e
vale ser destacada a repercussão obtida no caso envolvendo a empresa de cosméticos Natura versus
as vendedoras de ervas do mercado de Belém, chamadas de “cheirosas do Ver-o-Peso”. Neste caso,
três essências aromáticas oriundas do Pará foram transformadas em perfume e comercializadas até
na Europa, sendo que hoje fazem sucesso nos salões da elite européia - a priprioca, o breu branco e
o cumaru. A Natura é acusada por seis vendedoras de ervas medicinais do mercado Ver-o-Peso, em
Belém, de enganá-las, gravando com elas longas entrevistas filmadas onde aparecem revelando seus
segredos de manipulação das essências. Em 2006, após discussões jurídicas, a Natura reconheceu a
propriedade do conhecimento tradicional associado às vendedoras de ervas do mercado Ver-o-Peso,
tornando-se a primeira empresa brasileira a fechar acordos de remuneração do conhecimento
tradicional difuso (informações sobre a priprioca teriam sido colhidas em vários lugares, inclusive
na literatura e em centros de pesquisa), estabelecendo parcerias pioneiras com a Associação das
Ervateiras do Mercado do Ver-o-Peso e a Associação de Produtores de Boa Vista, de Acará, ambas
no Pará (NATURA, 2006). Em 2007, foi celebrado um convênio de capacitação profissional no
valor de R$ 560 mil com a Associação das Ervateiras do Mercado do Ver-o-Peso, com o objetivo de
aprimorar o processo de manipulação de ervas, o que simboliza uma forma de repartir os benefícios
obtidos com o uso do CTA.
Para um melhor entendimento da repartição de benefícios em casos como este, o governo deve
enviar em breve ao Congresso um projeto de lei que, entre outros, propõe a criação de um fundo
comum que receberia os recursos da repartição de benefícios de conhecimentos difusos para
posterior investimento no bem comum de todas as comunidades.

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Vargas e Almeida (2006) citam vários produtos desenvolvidos a partir da utilização de saberes
próprios de comunidades tradicionais brasileiras. Entre muitos outros exemplos, o caso da Andiroba
(Carapa guianensis aubi) usada pelos povos da Amazônia como repelente a insetos, contra a febre e
como cicatrizante, cujo extrato foi patenteado pela Rocher Yves Vegetales na Europa, nos EUA e
no Japão para a produção de cosméticos e remédios; o caso da Ayahusca (Banisteriopsis caapi),
cipó alucinógeno utilizado há séculos em práticas xamanísticas de tribos amazônicas que vêm sendo
difundidas e aclimatadas mais recentemente entre seitas de “homens brancos” do campo e da
cidade, cujo princípio ativo foi patenteado pela empresa americana International Plant Medicine
Corp.; ou ainda, o do curare, mistura de ervas e outros elementos utilizada há muito como veneno
de caça por diversas tribos amazônicas, cujos principais compostos foram isolados e patenteados na
década de 40 por laboratórios dos EUA, visando a produção de relaxantes musculares e anestésicos
cirúrgicos.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As informações e análises apresentadas no presente artigo, mesmo que de forma limitada,


evidencia a importância do CTA para a valorização e preservação da biodiversidade, a qual mostra-
se estreitamente interdependente da sociodiversidade brasileira. Entretanto, no âmbito legal do
acesso ao CTA, observa-se que o CGEN, por meio de notas técnicas, deliberações e resoluções,
tenta minimizar problemas na verdade advindos da ausência do processo legislativo no Congresso, e
que são originários da própria Medida Provisória, que após 16 edições não conseguiu se tornar
funcional. Por meio deste órgão consultas públicas são realizadas no intuito de se aproximar de um
consenso no que diz respeito ao CTA, mas é preciso mais discussão envolvendo um maior número
de atores que efetivamente possam contribuir para elaboração de procedimentos funcionais quando
se trata do CTA brasileiro. Isso porque, enquanto esse processo tramita de forma lenta a degradação
da biodiversidade e perda de conhecimento tradicional a ela associado se dá de forma mais intensa.
É imprescindível conhecer para que se possa preservar e, nesse contexto, as comunidades indígenas
e populações locais dos mais diversos biomas brasileiros terão o seu papel de guardiões do
patrimônio genético nacional potencializados se o seu saber (CTA) for reconhecido e valorizado.
Assim, ter-se-á a fixação destes povos de forma mais sustentável em seus habitats. Para tanto, além
da existência de motivação e de uma legislação funcional é preciso mais investimento na área da
produção científica e tecnológica, englobando capital humano suficiente para dar suporte à
demanda que a mega-diversidade do Brasil exige.

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9 LITERATURA CITADA

AGUILAR, R.A.S. Reflexões sobre a proteção jurídica aos recursos fitogenéticos e o


conhecimento tradicional associado indígena Guarani Mbyá. 2007. 38f. Monografia (Graduação
em Engenharia Florestal) – UFRRJ, Seropédica, 2007.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente; Secretaria de Biodiversidade e Florestas. Calendário


informativo: patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Brasília, DF, 2010. Disponível em: <
http://www.mma.gov.br/estruturas/222/_publicacao/222_publicacao16092009014213.pdf>. Acesso
em: 08 abr. 2010.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente; Departamento do Patrimônio Genético. Regras para o


acesso legal ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado. Brasília, DF, 2005.
Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/pdf/ministerio/pas.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2010.

CLEMENT, C.R. Um pote de ouro no fim do arco-íris? O valor da biodiversidade e do


conhecimento tradicional associado, e as mazelas da lei de acesso: uma visão e proposta a partir da
Amazônia. Amazônia: Ciência & Desenvolvimento, Belém, v.3, n.5, p.177-198, 2007.

DIEGUES, A.C.; ARRUDA, R.S.V. (org.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no


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ELISABETSKY, E. Etnofarmacologia. Ciência e Cultura, Campinas, v. 55, n. 3, p.35-36, 2003.


Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v55n3/a21v55n3.pdf>.

FAISTEL, F.; MELO, C. K. Biopirataria: ameaça a biodiversidade e a sustentabilidade. Revista


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PEREIRA, A.M.; LIMA, D.A.L.L. Acordos de bioprospecção e conhecimentos tradicionais: as


lições de casos nacionais e internacionais. In: IV ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS. Anais...
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REZENDE, E.A.; RIBEIRO, M.T.F. Conhecimento tradicional, plantas medicinais e propriedade


intelectual: biopirataria ou bioprospecção?. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, v.7, n.3,
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RODRIGUES, C.R.B.; OLIVEIRA, I.L.; KOVALESKI, J.L. Conhecimento tradicional


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VARGAS, M.C.; ALMEIDA, M.F. Biodiversidade, conhecimento tradicional e direitos de


propriedade intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada. Teoria &
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