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Ano Novo, Novo Você?

O Fascínio do Transumanismo JACOB SHATZER

Estamos todos acostumados com a narrativa do ano novo. Faça algumas resoluções.
Reinvente-se — ou pelo menos melhore em uma ou duas áreas. Mas mesmo os mais
entusiastas entre nós sabem que não devem se deixar levar pelo entusiasmo. Algumas coisas
é possível mudar, mas outras nunca mudam. Ir à academia? Pode ser que sim. Dizer
“obrigado” mais vezes? Claro, mas onde fica a linha de demarcação? O que é que não muda?

Por um lado, esta deve ser uma pergunta fácil. Vivemos em uma cultura que categoriza mais e
mais coisas como” mutáveis”. Não só temos habilidades crescentes para mudar as coisas em
nós mesmos, mas nossa cultura defende o direito — e até mesmo a necessidade — de mudar
para seguir nossos corações. Portanto, não é fácil encontrar a linha de demarcação em nossa
cultura mais ampla. E, se formos honestos, os cristãos também estão perdendo a visão disso.
Não o estamos fazendo intencionalmente; está acontecendo devagar. Nós simplesmente
assimilamos esta narrativa mais ampla — não apenas a “Narrativa do Ano Novo, mas a
“História do Construa-se a Si Mesmo”. Você pode ser o que você quiser ser. Você deve ser fiel
a si mesmo.

Esta narrativa de autoconstrução se conecta a várias ideias iluministas e a sensibilidades do


passado, mas não para por aí. Também se conecta a visões transumanistas do futuro, visões
que afirmam que não deve haver limite para o “auto-aperfeiçoamento” — não importando como
definimos “auto” ou “aperfeiçoamento”. Isso pode parecer surpreendente a princípio — como
saltamos tanto até as visões de ficção científica de humanos desencarnados e robôs
poderosos? Mas o transumanismo não se trata apenas de versões “extremas” do futuro; trata-
se de infinitas possibilidades, muitas das quais já estão disponíveis. E o transumanismo não é
apenas colocar nossas mentes em computadores e viver imortalmente em um mundo digital; é
uma visão do que significa ser humano em relação à tecnologia. Claro, essa visão pode levar a
várias conclusões. De fato, muitos de nós podem se surpreender com o grau com que já
concordamos com os transumanistas. Mas estou me adiantando. Vamos entender melhor o
transumanismo.

Na raiz, o transumanismo é o compromisso em utilizar qualquer coisa ao nosso alcance para


avançar para o próximo estágio da evolução humana. Se os humanos têm a capacidade de ter
maior controle, por que não deveríamos fazê-lo? Por que não devemos mudar da maneira que
queremos? O transumanismo inevitavelmente se move em direção ao pós-humanismo —
aquele estágio em que nos movemos para além do humano. Uma maneira de distinguir os dois
é pensar no transumanismo como um compromisso com um processo, e o pós-humanismo
como uma visão de futuro. Eles são relacionados e inseparáveis, mas ainda assim
distinguíveis.

Podemos seguir o transumanismo através de três etapas. Vamos pensar nisso como um
progresso (ou digressão?) para cada vez mais longe do corpo humano e cada vez mais
próximos dos cenários de ficção científica que temos tanta certeza estarem ainda distantes.
Vou explicar brevemente cada movimento e depois responder a duas perguntas: (1) Por que
isto é um problema hoje? e (2) Por que isto é um problema para os cristãos?

Etapa 1: Liberdade Morfológica


O primeiro elemento vital do transumanismo é a liberdade morfológica. Em seu sentido mais
básico, esta é a liberdade de tirar proveito de qualquer tecnologia para mudar a si mesmo da
maneira que desejar. Não estamos falando de terapia básica aqui: não estamos buscando o
transumanismo se estivermos usando óculos ou fazendo uma cirurgia reparadora para
substituir um dente perdido. Estamos falando de aperfeiçoamento: ações para adicionar ou
alterar o que está dentro da normalidade da vida humana. (Embora note bem: alguns
transumanistas se recusam a reconhecer qualquer senso de “normativo”, tornando assim
impossível esta distinção e tornando mais difícil distinguir entre liberdade morfológica
transumanista e óculos cotidianos.)

Para os transumanistas, a liberdade morfológica é um direito, ponto final. A lógica é assim:


todos têm nāo só o direito à vida mas também o direito à busca da felicidade. A felicidade só
pode ser definida através da autodeterminação e da autoconstrução. Tanto a sobrevivência
quanto a felicidade exigem o direito à liberdade. Portanto, o direito de modificar o corpo segue-
se logicamente. (Para um exemplo deste argumento, consulte Sandberg, pp. 56–60.)

Por que isto é um problema hoje?


O direito de autocriação é fundamentalmente um produto do individualismo iluminista, mas
nossa imersão na tecnologia digital nos deu muito mais oportunidades de complacência com
esta fantasia, de que somos os criadores de nós mesmos. Um exemplo óbvio é a realidade
virtual. Versões populares tal como a Second Life começam dando-lhe a escolha de sua forma:
qual vai ser a sua aparência? Faça sua escolha. Em outro nível, as mídias sociais funcionam
desta maneira, incentivando-nos a transmitir partes escolhidas de nós mesmos de maneiras
selecionadas. Não é muito difícil concluir que podemos modificar nosso corpo físico da maneira
que acharmos melhor.

Por que isto é um problema para os cristãos?


Por um lado, a liberdade não é um problema. Os cristãos creem em um Deus que livremente
nos criou à sua imagem e nos deu a liberdade de criatura, para o nosso florescimento e a sua
glória. O problema não é a liberdade no sentido de liberdade morfológica, mas o
comprometimento total com a autodeterminação. Os cristãos creem que a verdadeira felicidade
é encontrada em Deus, não na autocriação. Qualquer liberdade que exercemos em relação a
nossos corpos, portanto, deve ser orientada para este objetivo principal — desenvolvermo-nos
estando numa relação com Deus. A liberdade morfológica é construída sobre uma perspectiva
de obter controle ao invés de obedecer ao chamado de Deus.

A liberdade morfológica talvez não lhe pareça demasiadamente assustadora. Mas, ao darmos o
próximo passo na lógica transumanista, as coisas podem ficar um pouco menos estáveis.

Etapa 2: Realidade Aumentada


O segundo elemento é o híbrido ou o ciborgue. Se temos o direito à liberdade morfológica, e
podemos tirar proveito de qualquer tecnologia que desejarmos, então que tal começarmos a
nos fundir com a tecnologia? Isto leva à “realidade aumentada”, na qual a conexão tecnológica
faz uma mediação da realidade e muda aquela realidade. Estamos acostumados a ouvir sobre
realidade aumentada em conexão com o Google Glass, Pokemon Go e outros aplicativos
baseados em smartphones, mas é mais ampla do que isto.

Para os transumanistas, a realidade aumentada é uma maneira de buscar a expansão da vida


através da cibernética, fundindo a pessoa com a máquina. Isto pode acontecer com uma
integração mínima — tal como olhar através de óculos especiais ou de um smartphone — mas
se expande muito além. Laura Beloff usa o termo “híbridonauta” para a pessoa que vive em
realidade aumentada, com elementos incorporados no corpo e controlados artificialmente,
permitindo diferentes interações com o ambiente (85). Este estado pode ser alcançado de
várias maneiras, mas os resultados são semelhantes: o mundo da pessoa é alterado e seu
comportamento também.

Pode parecer que estamos falando apenas sobre o uso de ferramentas, mesmo que estas
ferramentas sejam particularmente invasivas. Os próprios transumanistas notam essa conexão,
mas argumentam a favor de uma diferença. Estudiosos tal como Andy Clark enfatizam uma
certa visão do ser humano que compele a esta visão da realidade aumentada. Segundo Clark,
os seres humanos estão essencialmente abertos a uma reestruturação profunda e
transformadora, que pode ser facilitada pela realidade aumentada (113). Em outras palavras, o
que significa ser humano está em aberto e é mutável. Este aumento da realidade não é apenas
algo que ligamos e desligamos; é algo que nos alterará profundamente. Segundo os
transumanistas, temos direito a esta transformação de nossa visão de mundo e de vida.

A realidade aumentada inclui uma ampla variedade de processos. Trata-se da interface entre o
biológico e o mecânico, o que obviamente pode tomar várias formas. Por exemplo, cientistas
estão estudando o efeito em macacos. Eles incorporam chips em seus cérebros que lhes
permitem mover um braço robótico com seus pensamentos. Isso altera a maneira como eles se
envolvem com a realidade ao seu redor, a maneira como pensam sobre si mesmos e o modo
como se comportam em seu mundo (Clark, 118). A fusão de macaco e máquina altera o
macaco profundamente.

A realidade aumentada não envolve apenas o que podemos fazer, mas também como
enxergamos. Alguns transumanistas estão promovendo a ideia de filtros de realidade. Um
deles colocou desta maneira:

Os filtros de realidade podem ajudá-lo a filtrar todos os sinais vindos do mundo da mesma
forma que o seu aplicativo de e-mail favorito filtra suas mensagens, com base nas suas
preferências declaradas ou nos conselhos de seus colegas. Com estes filtros, você pode optar
por ver apenas os objetos que merecem sua atenção e remover completamente os sons e
imagens inúteis e irritantes (tais como anúncios) da sua visualização. (141)
Neste exemplo, o mundo em que uma pessoa habita muda radicalmente.

Por que isto é um problema hoje?


Interfaces homem-máquina que levam à implantação de chips no cérebro para controlar braços
robóticos não fazem parte do nosso cotidiano. Tal tipo de coisa nos parece tão distante. Mas
quando consideramos a realidade aumentada em geral — especialmente a maneira como ela
muda aquilo que vemos — sua praticidade entra em foco. Está acontecendo agora. A
tecnologia que se veste, tal como relógios e óculos, oferece um grau de realidade aumentada
filtrando nossas experiências. E acessórios básicos nos conectam com a tecnologia da
informação de maneiras mais imersivas. Óculos inteligentes nos imergem ainda mais
profundamente, “aumentando” a realidade com outras informações e talvez filtrando nossas
experiências. A realidade virtual, especialmente à medida que a engrenagem da realidade
virtual se torna mais comum, fornece um movimento ainda mais imersivo. Nossa experiência
com jogos de realidade virtual nos deixará mais interessados e abertos à realidade aumentada
em nossas vidas cotidianas.

Por que isto é um problema para os cristãos?


A realidade aumentada é inofensiva em alguns aspectos, mas potencialmente prejudicial em
outros. O que acontece se a nossa realidade aumentada “filtra” aspectos do nosso mundo com
os quais devemos nos engajar? Alguns estudiosos temem que filtros de realidade sejam
usados para evitar indivíduos, classes de pessoas ou lugares que preferiríamos não enxergar.
Em outras palavras, a realidade aumentada poderia ser usada para criar uma realidade que
exclui alguns dos próximos que somos chamados a amar e a servir.

Além disso, a realidade aumentada promove ainda mais a visão de apego ao controle e
domínio sobre nossos mundos, em vez de viver fielmente diante de Deus, que está no controle
e que nos chama para servir. Considere as palavras do futurista secular Yuval Noah Harari:

Dispositivos como o Google Glass e jogos como Pokémon Go são projetados para apagar a
distinção entre online e offline, mesclando-os em uma única realidade aumentada. Em um nível
ainda mais profundo, os sensores biométricos e as interfaces diretas entre o cérebro e o
computador, visam corroer a fronteira entre máquinas eletrônicas e corpos orgânicos e,
literalmente, deixá-los sob nossa pele. Uma vez que os gigantes da tecnologia tenham um
entendimento maior sobre o corpo humano, eles podem acabar manipulando nossos corpos
inteiros da mesma forma que manipulam nossos olhos, dedos e cartões de crédito. É possível
que venhamos a sentir falta dos bons e velhos tempos quando o online estava separado do
offline. (92)

A erosão da distinção entre online e offline pode prometer grandes possibilidades, mas trará
limitações que devem preocupar os cristãos, especialmente quando se trata da desigualdade e
de viver humildemente como seres limitados no serviço a Deus.
Agora, passamos do transumanismo como um direito à liberdade morfológica, a um uso
potencial dessa liberdade: fundirmo-nos com as máquinas. Mas e o próximo passo, o passo da
ficção científica, o passo de deixar completamente o biológico?

Etapa 3: Upload da Mente


Este é o cenário de ficção científica (correntemente e talvez para sempre) de fazer o upload de
sua consciência para um computador e viver imortalmente na máquina. Este é o cenário que as
pessoas geralmente imaginam quando pensam em transumanismo. É certamente uma parte do
futuro potencial para o qual os transumanistas apontam. Não é a primeira parcela ou a parcela
dominante, mas ainda vale a pena considerar.

Transumanistas discordam sobre como o upload da mente pode ser alcançado. Alguns
apontam para a dificuldade de mover a consciência para um computador: embora algum dia
possamos ser capazes de transferir todos os dados de um cérebro biológico para um
computador, de que maneira teríamos mais do que uma cópia naquele ponto? Como poderia a
consciência ser transferida e se tornar imortal? Outros observam que já estamos colocando
muito de nossos “cérebros” online, ao colocarmos muito de nós nas mídias sociais. Martine
Rothblatt explicita algumas das possibilidades:

A tecnologia da informação (TI) está cada vez mais capaz de replicar e criar seus níveis mais
altos: as emoções e insights. Isto é chamado de consciência cibernética. Embora ainda esteja
em sua infância, a consciência cibernética está aumentando rapidamente em sofisticação e
complexidade. Paralelamente a este crescimento está o desenvolvimento de um software
poderoso, porém acessível, chamado mindware, que ativará um arquivo digital de seus
pensamentos, memórias, sentimentos e opiniões — um arquivo mental — e operará em um
gêmeo tecnológico, ou um clone mental. (3)

Para Rothblatt, já avançamos bastante no caminho de criar seres que existem — digitalmente,
mas independentemente — e que merecem direitos e outras considerações. De acordo com
ela, cada vez que publicamos algo nas mídias sociais, estaremos indo em direção à criação de
clones mentais.

Esta terceira etapa é reconhecidamente difícil para absorvermos ou compreendermos. Para os


nossos propósitos, podemos simplesmente ressaltar esta ideia de passar do biológico para o
digital — deixando nossos corpos para trás, por um “corpo” mais durável, seja ela alcançada da
maneira que for.

Por que isto é um problema hoje?


Como mencionado acima, já estamos nos acostumando a colocar muito de nós no reino digital.
Se Rothblatt estiver correta, o uso da mídia social está se movendo na direção da imortalidade
digital. Todos os dados que geramos são capazes de ser reunidos de uma forma que serve
como um representante marcante de nós — impressionante o suficiente para alguns chamarem
de “clone”.
Mesmo que não nos ofereçamos voluntariamente para nos inserirmos em um computador,
estamos colocando muito de nós mesmos no formato através daquilo que compartilhamos e do
que fazemos.

Por que isso é um problema para os cristãos?


Com esta terceira etapa, estamos mais claramente em uma área onde os cristãos se sentem
desconfortáveis. Como seguidores de Cristo, adoramos um Deus que se fez carne, que se
tornou uma pessoa para redimir a humanidade. A salvação para os cristãos não é uma fuga do
biológico para o digital, pois Deus redimiu o biológico em Cristo.

Poucos cristãos hoje optariam por este aspecto do transumanismo. Eu confio que poucos em
seu pequeno grupo queiram criar um clone mental ou fazer o upload de sua consciência para
um computador. Mas, como vimos nestas três etapas da lógica transumanista, não estamos tão
longe disso quanto poderíamos pensar, dado nossos diferentes graus de aceitação da
liberdade morfológica e da realidade aumentada. Em outras palavras, podemos estar mais a
caminho dessa visão da existência — devido à nossa aceitação de outras práticas e ideias —
do que gostaríamos de admitir.

Quem é Você?

Ano Novo, Você Novo.

Mas quem é você? E quanto de “novo” você pode alcançar de forma razoável e fiel?

Ao analisar seu novo ano e, em espírito de oração considerar o autodesenvolvimento,


considere a história da qual faz parte.

Você está buscando “progresso” ou semelhança a Cristo?

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