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Olha para baixo, aonde repousa o braço direito. É uma mesa bonita, não
muito enfeitada e perfeitamente circular, fixa ao chão da área exterior do Café.
Um cardápio azul repousa na extremidade oposta a qual o rapaz está sentado,
mas ele não se dá ao trabalho de ir buscá-lo. Já sabe o que quer, e está
esperando apenas algum atendente se aproximar para que ele possa
casualmente pedir um pequeno café amargo.
O rapaz já havia tido um momento desses com alguém? Acha que não,
seus relacionamentos nunca haviam sido fluídos daquela maneira, com apenas
os dois e uma paixão ardente movendo o relacionamento para frente. Sempre
havia algo a mais.
Um bocado de violência.
Ossos do ofício, tinha um apartamento para manter desde que saíra das
rédeas dos pais. Então, vamos manter as aparências e perguntar ao amigo de
cabelos castanhos o que ele quer para o dia. Ele está sentado, observando a
paisagem de Paris mas provavelmente sem se importar, ela percebe pelo seu
olhar vazio. Não está lá, não em mente.
Ela pergunta o que ele vai querer. Ele se ajeita na cadeira, endireitado a
postura e tirando o queixo da mão, e demora um pouco para responder. Mas
pede um café, escuro e amargo. Sua pronúncia é sofrível, com um sotaque
alemão fortíssimo.
Ela pergunta se ele tomaria ali ou levaria consigo. Mais uma vez, com o
mesmo sotaque deutsch responde que iria tomar ali mesmo. Fala
pausadamente, visivelmente leigo na fluência em francês. Simpática a isso,
sorri e vai atender ao pedido dele.
O rapaz espera na mesa, repousando mais uma vez a cabeça sobre a
mão. A garçonete é bonita, muito bonita, apesar do uniforme daquele café ser
uma merda completa. Ele acha que um bom uniforme deve realçar as boas
características das atendentes – e acredite, aquela lá tinha de sobra – ao invés
de escondê-los debaixo de um vestido porco. Atrairia mais clientela.
Enquanto espera pelo seu café amargo, muda-se de mesa. Quer ter
mais um vislumbre da garçonete. Senta-se na mesa – que ela chamaria de
Mesa Sete – e observa o interior do estabelecimento.
Ela está quase indo embora, talvez relaxar um pouco enquanto outro
cliente não aparece a porta, mas pensa duas vezes. Ele a está encarando,
aqueles olhos claros e límpidos a estudam. Ela responde ao olhar, meio
constrangida, e pergunta se está tudo bem.
Ele, se tocando do que estava fazendo, se desculpa e diz que está tudo
perfeito. Pede perdão mais uma vez, e se coloca a olhar o café, nitidamente
envergonhado. Ela sorri, fazendo a óbvia pergunta de se ele não era das
redondezas.
A esta ele responde com mais uma negativa, voltando a sorrir. Diz, do
mesmo jeito pausado e não muito seguro, de que era alemão – constatação
óbvia a esta altura do campeonato. Diz que nascera em Calw, uma cidade no
sudoeste da Alemanha, mas que atualmente mora em Berlim. Em um
apartamento, diz, com um colega.
Ele não parece mais tão reservado agora, ela constata quando ele
pergunta a sua versão. Sempre morara em Paris, nascera lá e provavelmente
morreria lá, ela diz, parecendo não muito contente com a perspectiva. Não
vinha de uma família rica e resolveu tomar as rédeas da situação, arranjara um
apartamento nas redondezas e trabalhava para se sustentar. Talvez tentasse
uma faculdade quando estivesse em condições melhores. Até lá, só levar a
vida em frente.
Ele recebe a isso ouvindo de bom grado. Não entende uma frase ou
outra, francês é um idioma por demais aviadado para que se captasse o
sentido total da coisa – ao menos na opinião do rapaz.
Ela topa.
É noite, não muito depois das sete da noite, como constataria o rapaz se
ele se desse ao trabalho de checar o relógio que levava no pulso. E foi o que
ele fez, para ver se estava no horário. Ele está caminhando pela Rua
Deparcieux, um nome que ele não conseguiria pronunciar de modo
convincente se tivesse por acaso tentado. Mas não está prestando atenção no
nome das ruas, apenas em sua companhia no momento.
Pensa nos cabelos claros e os olhos cinzentos que deixara para trás na
Alemanha. Aquele par de olhos que o acompanhou durante boa parte da sua
vida em Berlim, não muito depois de se juntar à Universidade. Sempre tivera
com esta pessoa uma relação conturbada, brigas recorrentes desde o dia em
que se conheceram, mas sempre houvera algo mais.
Sempre houvera amor. Não era exatamente como a paixão ardente do
casal que entrelaçava mãos no Café L’Amour – casal este que agora dá mais
um beijo ardente, ambos nus dentro do quarto do homem, a quilômetros dali –
mas sempre houvera aquela química, apesar das brigas.
Esfriar a cabeça.
Ambos sabem disso. Então por que demoram? São dois jovens na noite
de Paris, dois jovens frustrados romanticamente, só querendo um pouco mais
de carinho.
Então, que tal esquecer os problemas que deixa para trás um pouco?
Por que não aproveitar o momento?
Ele olha para a francesa ao seu lado, seus cabelos castanhos reluzindo
à luz dos postes. Sorri, e o rosto dela volta-se para seu lado, revelando mais
uma vez os límpidos olhos verdes.
Ela vira-se para ele, sua mão ainda sobre o ombro coberto por tecido. O
verde encontra o azul, e podem ver mais uma vez que o que está prestes a
acontecer é certo. Nenhuma palavra é trocada, há apenas a aproximação. As
faces se unem, os lábios se tocam. Um beijo casto, envergonhado, de quem
ainda não sabe o que vai acontecer.
A noite havia caído sobre Paris anteriormente, e com ela veio a diversão.
Eles se uniram sob a luz da lua, juntaram corpos na Rua de Nome
Impronunciável, e lá suas bocas se tocaram pela primeira vez. Dirigiram-se ao
apartamento da moça, e lá fizeram amor pela primeira vez – no mesmo dia em
que se conheceram.
Apenas agora pensa em tudo o que fizera e o que pode ter significado.
Seu romance na Alemanha em nada era parecido com aquele que acabara de
conhecer, e também distinto era o ato de ambos. Em sua terra, agia de modo
mais agressivo, mais violento e talvez mais cruel. Será que havia sido isso que
o afastara de seu desejo de cabelos claros? Acha que não, pois sempre sentiu
que a violência fora consensual.
Ambos gostavam.
Com a francesa, era algo mais suave. Não sentia toda a adrenalina,
sentia-se porém mais seguro. Algo mais carnal, entretanto, um ato com menos
significado.
Até lá, o rapaz sai e fecha a porta sem barulho. Vai embora sem acordar
a moça que dorme do lado direito da cama, depois de tanto tempo sem
ninguém com quem dividir o móvel. Agora, está mais uma vez sozinha. Foi
uma boa noite, sem dúvida.
Talvez, um pouco mais. Talvez mais uma vez ou duas – ele, afinal de
contas, era bom nisso – mas não deveria deixar-se levar pelo charme do rapaz.
Não, não gosta mais de manter laços afetivos desde que seu noivo a traíra com
a madrinha
mas parece que ele entende tudo. Deve estar acostumado com isso, ela
pensa. Ele tem cara de cara que seduz as universitárias e tem sexo casual com
elas uma vez por semana.
Ele faz uma expressão triste – não de todo convincente, mais frustrada –
e diz que sente muito. Um pedido não sincero para uma notícia não sincera.
Ela diz que está tudo bem, e volta para dentro sem dirigir mais uma vez a
palavra. Não de todo convencido, o rapaz sente vontade de pedir outra vez,
mas não.
Não ainda.
Toma o café em goles longos, mas rápidos. A borra fica no fundo e ele
não se importa, deixa o café na mesa e vai pagar o que tomou. Não demora,
paga tudo e, dando mais uma olhada na garçonete – meu Deus, como aquele
uniforme é horroroso – ele sai do Café L’Amour, para andar por Paris.
Ele deixa o café e anda pelas ruas. É começo da tarde ainda, ele sabe
disso mesmo em consultar seu relógio de pulso ou o relógio que pendia na
parede do café, mas o sol em seu raiar já indica o horário do dia e isto é o
suficiente para um rapaz como ele.
E mais uma vez, aquele rosto coberto pelos cabelos lisos e louros volta
a encará-lo em sua mente. Volta a ser absorvido por aqueles olhos cinzentos,
normalmente sérios, Geralmente bravos mas sempre cheios de amor. Ele pode
perceber só pelos olhos que apenas o seu bem era querido, que as brigas
eram todas apenas fantasias. Eles se dão bem, eles se dão muitíssimo bem, e
isso é perceptível. Sentimentos vêm a tona quando se beijam, e o rapaz pode
perceber que não é mecânico – é sincero, mais sincero do que qualquer sexo
que a francesa pôde lhe proporcionar.
Ele pensa na francesa. Estaria ela o evitando? Talvez ela realmente não
queira nada com ele. Será que ela quer? Será que ela gosta dele?
Mas, acima de todas as perguntas, será que ele gosta dela? Ainda está
o rapaz encantado pelos olhos cinzentos que agora o fitam em sua mente?
Ele sente vontade de voltar. Olhar mais uma vez para aqueles olhos,
brincar mais uma vez com aqueles cabelos, beijar mais uma vez aqueles
lábios. Só sentir mais uma vez o gosto do amor, o amor que sempre
compartilharam e que foi afastado por erros que não vinham ao caso.
Hesita. Talvez não. Por mais que ele queira ouvir a sua voz, será que a
própria voz era desejada pelo outro lado da linha?
O rapaz não sabe dizer. Pensa na francesa. Pensa em olhos verdes.
Agora em cinzentos. Não sabe o que fazer.
Deve voltar para Berlim mais cedo? Deve esperar a garçonete se ajeitar
com ele?
Entretanto, ela diz, devagar, que não estava de acordo com toda aquela
intimidade. Apenas carnal, não emocional. Se sentia como uma prostituta
falando aquilo – só o sexo, afinal de contas, nada mais. Sem emoção.
Superficial.
Ela não está pronta, diz. Balela. Ela não quer. O rapaz percebe isto em
seus olhos. Estes olhos nunca estariam prontos.
Ela não quer se envolver. Não quer, não quer ser machucada mais uma
vez como sabe que iria acontecer. Prefere deixá-lo ir agora, sem se envolver,
sem sofrer demais.
(ou não)
Com certeza?
Ela o vê fechando a porta. Ela não vai vê-lo no dia seguinte, observando
entediado a Torre Eiffel. Talvez veja o casal da paixão ardente – na verdade
não, eles viajaram para a Itália havia dois dias, mas ela não sabia disso – mas
não verá o alemão. Sabe disso.
Será tarde, não muito depois das quatro horas, o rapaz irá constatar
quando checar o relógio gigantesco que pende do teto. Não poderá confiar no
seu relógio de pulso devido ao fuso horário ajustado para a França, porque
estará na Alemanha, muito bem, obrigado. Estará de volta a Berlim, mas não
estará pensando no horário – apenas nos olhos.
Porque sim, ele telefona, no final das contas. Ele telefona e ouve, aquela
voz rouca, aquela voz a qual tanto já ouvira sussurrar, gritar, gemer. Ama
aquela voz, nunca deixou de amar e tem certeza disso. Quer uma reconciliação
com a pessoa dona daquela voz, dona daqueles olhos e daquele cabelo que
tanto infestam seus pensamentos.
Chega de dúvidas.