Você está na página 1de 94

josé juva

Recife, 2012
abre-caminho

Não sei qual a cor da casa


de josé juva, no bairro do
janga. Sei que ele aprecia
estar dentro e distante:
metade interior, metade
região metropolitana de
recife. Nossa comunicação
se dá por certas afinidades,
entre elas a poesia, a
música e todas as formas
de xamanismo já incluídas
em ambas.

Poeta de coisas que são.


Poeta de coisas que
sonham. E tudo que está
vivo sonha. Não há nisso
a ilusão do romantismo,
aquela terrível idealização
enganadora. O que
existe é abertura pra
transformar. Na realidade
concreta, a linguagem
penetrando e fecundando,
como sonho que se insinua
nas entrelinhas, esquecido
após o despertar.

Poeta de tempos e ciclos,


que observa e aguarda
paciente. Cultivou ao
longo dos anos os poemas,
que se beijam num contato
íntimo com a vida. Não há
neles a rebeldia fácil que
às vezes restringe poetas
jovens a leitores jovens.
O que chama atenção é a
visão – a visão abrangente
de águia que deixou o
totem pra poder voar. Há
um salto pra compreensão.
Textos de palavras nuas,
agora vivem soltos, livres
pra sair sem pedir licença.
Podem ressoar com a força
de um trilhão de neurônios
espalhados pelo mundo.
Passo a bola.

josé juva entra no jogo e


começa a declamar para o
infinito.

Germano Rabello
poeta e desenhista
casa amarela, 2012.
tenho dito
que a carne cobre o espaço
cumpre os dias e passa

o eterno da passagem
é sua pele.

11
12

o corpo
não canta

o corpo
não encontra
canção

o corpo não

nu

sem voz

em vão.
a fala vegetal de meus ossos
e a estrela bailarina
se confundem
no teu colo

e deus serve um manjar proibido


depois da anunciação.

13
14

meus ossos caem


no cio das coisas
e a pálpebra imensa da chuva
é um espelho delicado
em tuas mãos.
palavra-partilha
assobio na saída

ponte: dicção de peixe-duplo

árvora
pra fruto
tudo se esparramando
no chão

“se come as frutas que caem do céu


primeiro” visse?

devir

aondeanda: debanda: deandada :


adada

doida (várias)

porodegata?

15
16

queda

preso
às rudes amarras
da gravidade

cai do alto
meu corpo

dois minutos.

sonhar o pássaro
que eu nunca serei.
amenidades

tempo de sol tempo de chuva


tempo de sol de chuva
tem sol em chuva
de sol

e só chuva
ssssssss chuva

chuva
caindo lá fora

(bom pra dormir).

17
18

a fêmea

seu cio
será céu?

os anjos não sabem.


brincam de luz.
vim ferir abismos
pernas suspensas no
temporal

vim ferir abismos


as dobras da fala
a navalha, os cristais

vim ferir abismos

minha raiva
é quase
quasar.
19
20

deixo na boca
a sugestão da tempestade

lúcido como uma navalha


só ponta

anoto
os haicais
da chuva

e recolho
o horizonte
do antebraço

estendido sobre o cais.


perdido
entre não ter asas
e não saber nadar

21
22

coisas da pele

a fresta
a farpa

ver com o corpo


o corpo iluminado

azul somente.
estar nu
nu como um dente

estar coisa
cio S/A

estarestar

estar éter.

23
24

eu quero o verde de todos séculos.

tragam rosa
colher na boca e outros poemas
o silêncio dos minerais azuis
e o abraço cego
do poeta aproximado

acendam um lampião
e risquem a minha cabeça
no chão da linguagem iluminada

bebam o vinho sangue


essa palavra doce
que escorre cedo
pela foice da lembrança

durmam longe da noite


na véspera do abismo

eu ficarei no incêndio.
a primavera me assusta
com seu perfume
inesperado e novo

minha alma não sapateia

eu preciso
abandonar o velho corpo
e tocar fogo em minha cabeça
para acordar
o século e atrair
os leopardos.

25
26

a imensidão e depois

o elogio das curvas


e do sem-fim

a pele de água, lua porosa


caindo dos edifícios

o punhal vermelho vivo, ágil


ensaiando sulcos e descobertas

a pálpebra do inverno
aquecendo nossa memória

o objeto esquecido
derrubando calendários

a garganta azul
escondendo a palavra:

palavra.
atiro contra o céu
o peito aberto
o sangue a
gengiva e
todo medo

é sobre
os escombros que
caminho

toda ruína
é imagem.

27
28

não ilumino a noite com


todos os fogos o fogo.

a cabeça pousa
numa pedra:

a rebelião.

esse silêncio
que resiste e
se aninha no
ventre:

a rebelião.

desrumo
atravessado
de inícios.

não.
e o cheiro do sol
cobre
de ouro
meus olhos.

e a órbita do breu
é breve
e escorre
por meus poros.

29
30

estamos
no Monte da Aranha
e vemos o mundo.

acima do tempo
nossos avós
se divertem.

debaixo do rio
nossas crianças
invertem
o curso
das águas
com sorrisos.

a terra é uma benção

e estamos
dentro de sua respiração.
ouço
o que roço

/ ruído
/ palavra
/ barulho

todo som
tem pele.

31
32

põe as auroras
sobre a mesa
enquanto toma
um café amargo

devolve a luz
que o horizonte
deixou embaixo
dos lençóis

apaga a palavra (rejuvenesce)


escrita dentro
da terra
e mergulha
na garganta
das passagens

apodrece e
cria os musgos
que não sabem
de teu rosto
trago os abismos
no peito e você
se encosta em mim

queimamos nosso tempo


com os sorrisos
e nos sujamos

nas nuvens

somos raros
como um afeto
sem memória

e dançamos

l e n t a m e n t e.

33
34

com espinhos
deixo o corpo aberto
num rumo sem rumo

na presença do silêncio
rabisco um conto

e tiro
os passarinhos do bolso
pra pintar o vento

a noite inteira
a noite inteira
a noite inteira

e vôo.
repouso num galho,
sem sonho.

cansado de céu e vôo,


sigo a pé.

árvore, raiz e solo.


é do sentido da terra que retiro
auroras.

ponho o zênite sob meu pés.


desaprendo canções e histórias.

no território das asas


escrevo as fronteiras
que atravesso.

35
36

escavo
a consciência do poema
para construir bússolas

como um clarão

o poema
pode acontecer
amo
as
coisas que
se apartam

e vão pra longe.

amo

as palavras

que se afogam
no banheiro do apartamento.

amo

os dias
que são quentes

e ficam fora do quarto.

amo
37
38

osmeuspassos
no corredor e na cozinha

amo

os jardins
fora de casa

e amo

as janelas

amo sobretudo
as janelas.
fico quieto
e risco
o céu

discreto
(com as
mãos no
bolso)

depois
apago
deus

ou
cubro
com um desenho.

39
40

a médula
o verão

a moeda
o inverno

a mudança
o outono

a moça

a primavera.
você tem olhos pequenos e
me deixa perto de seu coração
como se colasse uns pedaços meus
junto de você.

mas eu não entendo


nada sobre você e eu.

você tem olhinhos.

41
42

encosto
meu ouvido
em teu ouvido

pois
também quero
ouvir a noite

e os grilos
que ficam
lá dentro.
eu não quero
nada
que seja limpo. esse teu sorriso
e o céu branco como o teu olho.

não quero.
essa infância
estúpida como dentes
guardados. eu não quero

e não tenho
medo.

mordo.

43
44
meus ossos crescem e eu
fico velho. essa barba
esse rosto essa pele tudo
está dançando dentro da gravidade.

a palavra rio está gasta


como a garganta.

invento os sóis dessa hora


como se fosse um novo ano
e eu continuasse caminhando
pelas ruas de minha vertigem.

longos pássaros pousam


em meus olhos.

o espelho e o escuro
se trancam
nos bolsos de minha mente.

45
46

renovo
os segredos da infância
e escondo num livro

meu corpo
essa fuga abençoada
o vôo

e todos os soluços.
Water - 29.10.91

ruminando
o líquido
e essas voltas
pela cidade

dentro da vértebra
andando como
um sopro
à noite

caminhando
com a cabeça
violenta
e o espírito

47
48

a água

(essa sede)

cruzando
as ruas
livremente

n ossos corpos
delicados

como a noite/açúcar
e esse som sujo
colado em
nossosolhos

nossas mentes
rolando sobre a grama
(essa água): o mar.
as maçãs
estão me fazendo sorrir
e as mensagens vêm pela garrafa

e vão rio abaixo

falam das idéias


noturnas e do outro lado

leio tudo como se fosse um rei

e as maçãs
me fazem sorrir

eu não me encontro só

e olho o oriente
e o horizonte

com um grande aceno


pedindo socorro.

49
50

riscar meu peito, o medo


esse gato sem olhos
o azul dessa hora
o silêncio confortável
e as ruas as ruas as ruas

riscar meu peito, a dor


essa planta estranha
o fogo das esquinas
o ruído sem plumas
e os pés os pés os pés

riscar meu peito, a estrada


essa vértebra doce
o depois da noite
o horizonte de foices
e as bocas as bocas as bocas

riscar meu peito, o diamante


o espelho atrasado
o relógio sem alma e os rostos sérios, sérios
eu espero que você me ache
antes da chuva. estou vagando
lentamente pelas ruas do teu sonho.

você tem fogo?

joga teu nome sobre os muros


dos novos dias. tu é doce
e o riso que se move. como
eu gosto de ouvir e cheirar tua pele.

o rádio que deixo dormir


dentro de mim.

como esse sol.


a imagem desse sol.
51
52

algo
que ninguém sabe
nem sente

algo
que não se
move

algo
que nega
o céu

algo
que é noturno
e palavra

algo
que seja.
nublado
como esses dias

o azul do chumbo
esse cinza

meus olhos
caminhando
contra o horizonte

mirando
a origem
da noite

vigiando
lentamente
a manhã

lentos
abertos como os poros.

53
54

posso ouvir a terra


se movendo como uma criança enorme

e vejo os teus dedos


brincando com o céu.
criando umas frutas novas.

elas permanecem lá
(eu posso ver por algum tempo.)

antes do susto.
permaneço
no ar

limpo
feito
o fogo

desses dias.

como
um anjo
sem asas.

55
56

samambaias e os ciclos solares


sobre meu ego.

saudades eletrônicas
e a atividade. pequena memória de
esgrimas.

meu grande amor


rasgando camisas debaixo do céu

e esses uivos essa sede


a saliva

os nomes doces
da noite.
desconcerto e piedade

alguns sussuros por esta noite

e um aceno

algo sereno para o passado

a sabedoria doce dos pássaros

novas mãos caminhando por mim

assobios.

57
58

morrer lentamente
como uma grande estrela agonizante

dentro do tempo.

cair friamente
no esquecimento do século

e dormir.
vejo mulheres chorando violinos
e alguns sapos

breves soluços sagrados do ventre

a maternidade é uma ilha.

59
60

a música possível
da medula

elétrica e doce
como uma grande chuva
sem memória

incinerando
os pensamentos mais leves.
o sol esquartejado
sobre os ombros de meu amor
e a faca lúcida
em sua pele.

cruel
como os lindos olhos
do passado

devastando o sossego.

61
62

dizem que dona maria de lourdes


fica ausente como uma noite sem grande mistério.

cigarras e enormes mosquitos pendurados na janela


e os cabelos no vendaval de um sorriso.

lourdes acende um cigarro

solta a fumaça
como num eterno adeus.
o sabor delicado
do grito

esse sussuro sem vértebra


adentrando o oco da alma

no escuro.

63
64

o gato
sobre o
muro

como um
senhor

olhando
pra mim
e meus
sonhos

calmo
como quem tem
um cigarro
na mão.
oh meu amor

você espalhou
alguns
segredos
pelas ruas

oh meu amor

você escondeu
cinco
canções
sobre mim.

65
66

chove:

o meu rosto

se assombra

e faz um rio.

II

sobre o chão

espalho

meu corpo

feito um deus.
III

o corpo de lua

no jardim.

eu dormia,

junto à árvore.

IV

você fez sol

(a noite passada)

no abraço

que inventamos.

67
68

materno

coração tranquilo

aninho meu filho

na nuvem da voz.
desço ao profundo

de seu mundo

sob os lençóis.

crio uma esfera

de novas eras para nós.

refazendo a manhã

sou a tecelã

dos sons.

II

agora

o menino dorme

sobre minha canção.


69
70

familiar

tarde fugia o azul

negra noite caía

chovia lá fora

mamãe tocava piano

e a gente era feliz.


guardar as pernas pro ar
e a cabeça na lua

deitar fora a gravata e o rosto sério


fazer do escritório lembrança

de andança pelo mundo


inventar meu jardim

uma palavra
que traduza meu sorriso de criança
e o arco-íris: viagem.

71
72

diante do mar

ao contrário das ondas

quieto

em meu silêncio

aninham-se idéias e violetas


a tarde me atravessa

pelos olhos

e vai repousar

nas mãos agéis do oceano

II

sentado

sem canção

amanheço durante dias.

73
74

nascer o ser
.
romper manhã
.
ave
.
andar com fé
ao léu
.
palavras
.
palavras não salvam
.
poiesis
.
um demiurgo
aguando as plantas
.
eu vi
.
um vôo
.
verei o sol
.
não-só
.
o corpo
.
a mente
.
o manto
.
um navajo
deixou mãe
.
o rio lavava
para longe
.
Campo Vasto

75
76

me aproximo da morte

com a velha faca do sol

atravesso

através

do avesso

e nunca saio do outro lado


acabo.
o pó a voz
o doce e lento
lampejo da memória

o corpo a cor
o leve e louco
mergulho da alma

o mesmo a outra
o vivo e antilúcido
terreno da carcaça

o toque a luz
o belo e sujo
descanso nas estrelas.

77
78

polara
estrela branca do absurdo
menor de teus olhos

polara
coisa viva, cavalo-asa
no gozo
extremo da palavra

polara
brasa nova
calçada-temporal
da aurora

polara
breve, deitada
nas bordas
do insano.
circulo
o
círculo
e fico
no
circo
lou
co
e só
no oco.

79
80

quis escrever
outra canção
com açúcar
e afago

ficou acordado
a noite toda

registrando assobios
num caderninho
verde

e desenhos
no antebraço
descendo
lentamente
sobre
as cabeças
assustadas

dormindo
em aquários.

81
82

acalanto para o sono

do espírito igual
os corpos em luz

e a mãe afetuosa
nos põe a ninar
no ninho

embalados por sua voz


descansando em nossos rostos
dormimos

para habitar outro rio

o ventre comum
dos irmãos
coberto pelo manto
de seu canto.
poente

o sol
como se sangrasse
se despede
do mundo dos homens

em vermelho
pendurado no azul celeste

um soluço breve

ocidente.

83
84

a poesia

alumbramento do mundo
visão
ou perene aurora

como fosse a primeira vez

a poesia é o soluço dos olhos.


do sono

o sono me transfigura
volto a ser um enigma
retorno ao clarão do útero
telúrico

feliz fosse criança

jogando o verde dos olhos


nas copas das árvores
rolo nos pés do mundo
sobre a grama

a dança primeira.

85
86

para uma classificação das flores

a Vermelha que me apareceu


na gaveta com teu nome Azul
que surgiu nos cabelos Verdes
que me deste no outono Negra
que queimou minha mão
Amarela que deixou ao sol nove
almas Violetas que dormiam
comigo no asfalto Cinza que
fechou meus olhos Laranjas
que rodopiaram como águias
Brancas que velozes fugiram
num sonho Aurora.
adeus sou
adeus sol
adeus soul

aceno distante

e vou.

87
josé juva
(Olinda - PE, 1984) – poeta,
pousa-tigres e mamífero.
Formado em jornalismo e
mestre em teoria da literatura
pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Ainda
por lá, atualmente pesquisa
as relações entre a poesia, o
mundo natural e o sagrado
para o doutoramento. Realizou
alguns vídeos experimentais,
performances e intervenções
urbanas com o coletivo casa de
marimbondo. Este ano, publicou
o ensaio deixe a visão chegar:
a poética xamânica de Roberto
Piva, pela editora multifoco.
Guarda poemas por aqui:
josejuva.blogspot.com

89
Este trabalho foi licenciado
com uma licença Creative
Commons - Atribuição - Não-
Comercial - SemDerivados
3.0 Não Adaptada
escritos de
JOSÉ JUVA

coordenação editorial
tratamento de imagens
projeto & produção gráfica
Camilo Maia

revisão
JOSÉ JUVA

ilustrações
fotografias em alto contraste de riscos
abstratos feitos sobre areia de praia
JOSÉ JUVA

capa
Tom Green - of this world 1

Fale com o autor


jose.juva@hotmail.com
josejuva.blogspot.com

Livrinho de Papel Finíssimo Editora


livrinhoeditora.blogspot.com
livrinhoeditora@gmail.com

Primeira Edição
Recife, dezembro de 2012
tiragem limitada de 200 exemplares
Este livro foi
composto com a
tipografia Rockwell nos
corpos 7 a 11, impresso a
laser digital sobre papel
Sulfite de gramatura 75 e
capa em Colorplus
de gramatura 180
93

Você também pode gostar