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RESUMO

As circunstâncias da morte do funcionário público Joaquim Soares da Cunha são cercadas de mistérios e
de versões desencontradas. A família declara que ele morreu de forma decente, mas esconde alguns
vexames dos últimos momentos de vida do finado. Já os amigos são capazes de jurar que a morte de
Joaquim se deu mesmo no mar, como era seu desejo.
Durante quase toda a sua vida, Joaquim foi funcionário público exemplar, contando com o respeito dos
colegas e da família. Aos cinquenta anos, porém, por motivo desconhecido, despediu-se da família com
palavras ofensivas e passou a viver na rua. Foram dez anos se  entregando constantemente à bebida em
companhia dos malandros e das prostitutas de Salvador, na Bahia. A esposa Otacília não resistiu ao drama
familiar e morreu. A filha Vanda e seu marido, Leonardo, passaram a suportar a existência daquele
parente incômodo.
Certa ocasião, o dono do botequim frequentado por ele, querendo pregar-lhe uma peça, ao invés da
cachaça de sempre encheu um copo com água e ofereceu a ele. Joaquim entornou o líquido e, ao perceber
a enganação, lançou o berro que fez surgir seu apelido: Quincas Berro d’Água.  
Joaquim morreu aos sessenta anos de idade. Ao saber, Vanda passou a tomar providências para o velório
e o enterro do pai. A única coisa que ela não conseguiu arranjar ao seu modo foi o sorriso que o morto
estampava no rosto, que nem sequer os funcionários da funerária conseguiram eliminar. 
O velório foi realizado no mesmo cômodo minúsculo que tinha servido de moradia a Quincas nos últimos
anos. Desse modo, a família mantinha distância desse parente incômodo. Vanda permaneceu ao lado do
corpo do pai durante boa parte da noite em que transcorreu o velório. O sorriso no rosto do morto parecia
retomar as ofensas dirigidas à família quando de sua partida de casa.  
A notícia da morte de Quincas chegou aos ouvidos de seus companheiros de boêmia: Curió, Negro
Pastinha, Cabo Martim e Pé-de-Vento. Sabedores do desejo do amigo de ter no mar seu último momento,
dirigiram-se ao local do velório dispostos a fazer cumprir essa vontade. Cansados, os parentes acabaram
por se recolher, deixando o defunto sob a guarda dos amigos.
A vigilância foi regada a muita cachaça. Em certa altura da noite, resolveram levar o amigo para um
passeio. Retiraram o morto do caixão e se foram. Passaram pelos lugares frequentados por Quincas em
vida e terminaram a noite no barco de Mestre Manuel. Decidiram então cumprir a vontade do morto,
oferecendo-lhe uma festa em alto mar.
Repentinamente, despencou um terrível temporal. O mar revolto lançava a embarcação de um lado para o
outro. Em um desses balanços, Quincas acabou caindo na água. Desse modo, teve sua segunda morte e o
cumprimento de sua vontade. Segundo a lenda, antes de se lançar ao mar ele teria pronunciado os
seguintes versos: “– Me enterro como entender / na hora que resolver. / Podem guardar seu caixão / pra
melhor ocasião. /Não vou deixar me prender / em cova rasa no chão”.

CONTEXTO
Sobre o autor
Jorge Amado é o representante baiano do chamado neorrealismo nordestino, tendência dominante na
literatura brasileira dos anos 1930. Além disso, alinha-se ao realismo socialista, vertente que registrava o
real a partir de uma perspectiva ideologicamente comprometida com o marxismo. Em 1958, com a
publicação de uma de suas obras mais famosas, Gabriela, cravo e canela, imprimiu um novo rumo à sua
carreira, que passou a explorar mais fortemente a sensualidade e o humor. Desse filão faz parte a
novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água.
Importância do livro              
Por vezes, o esforço dos escritores da geração de 1930 em retratar a realidade de maneira crítica acabava
por restringir o espaço da fantasia e da imaginação. Sem abrir mão da perspectiva sociológica, Jorge
Amado reservou espaço para o absurdo em algumas de suas narrativas. É o que ocorre em A Morte e a
Morte de Quincas Berro d’Água. Como um bom contador de histórias, o narrador desenvolve seu enredo
surpreendente, preocupando-se menos em ser verdadeiro e mais em ser verossímil.
Contexto histórico
A década de 1950 é a época do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, período de particular
efervescência cultural. O otimismo dominante na vida social e política brasileira, depois do término da
ditadura Vargas em 1945, talvez tenha contribuído para a criação do clima fantástico e cômico da
narrativa de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água.

ANÁLISE
É possível inserir A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água na tradição da sátira menipéia,
caracterizada pelo contato entre o mundo dos mortos e o dos vivos. De fato, essas duas dimensões
dividem aqui o espaço por si só místico da cidade de Salvador. Tudo na narrativa é concebido sob o
estigma do duplo, a começar pelo próprio protagonista, que merece duas formas de tratamento distintas:
Joaquim Soares da Cunha, funcionário público exemplar e pai de família respeitável, entrega-se à vida
boêmia e passa a ser chamado de Quincas Berro d’Água.  
Duas faces da sociedade estão representadas. De um lado, o universo da ordem estabelecida, com o
devido enquadramento dos indivíduos em instituições sociais respeitáveis, como a família, o casamento e
o trabalho. Esse universo mata Quincas duas vezes: a primeira, quando a filha Vanda cria para os filhos
uma versão imaginosa, para explicar o afastamento familiar do pai boêmio; e a segunda, quando, na
tentativa de dar solenidade ao seu velório, veste-o de forma condizente com a imagem respeitável que
tentavam imprimir a ele. Com isso, mata-se o boêmio e tenta impor o universo da ordem. No entanto, a
desordem levanta Quincas até do túmulo.
De outro lado, o universo da desordem, a que Quincas se entrega ao rejeitar a lógica perversa que o
envolvia, segundo a qual o casamento, a família e o trabalho deveriam ser sustentados mesmo que
conduzissem à infelicidade. Quincas recusa essa lógica até o fim e mesmo além do fim. O sorriso
escancarado que exibe em seu caixão faz lembrar o preceito latino que diz ridendo castigat mores, isto é,
rindo, ele faz a crítica das normas sociais. E ao fazê-la, mostra que, de certa forma, estas estão mais
caquéticas do que ele. 
Quincas encontra cúmplices na representação do universo libertário: são seus amigos de boêmia, cujos
nomes revelam a mesma duplicidade do protagonista. Com efeito, os apelidos Curió, Negro Pastinha,
Cabo Martim e Pé-de-Vento escondem identidades sociais certamente tão convencionais quanto a de
Joaquim Soares da Cunha. Quando trocam as roupas do morto, resgatam suas vestes de boêmio,
devolvendo-lhe a identidade e, com ela, não a vida, mas a morte, a verdadeira morte de Quincas Berro
d’Água.
A narrativa de Jorge Amado está incluída em um volume chamado Os velhos marinheiros. Nada mais
apropriado: isto era justamente o que Quincas desejava ser. Se não o conseguiu em vida, afogado nas
convenções, alcançou na morte, navegando livre pelo mar. 

AUTOR

Jorge Amado
10 de Agosto de 1913
06 de Agosto de 2001 (87 anos)

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