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Referência para citações: LIEBEL, Vinícius. Charges. In: RODRIGUES, R. (org.).

Possibilidades de Pesquisa em História. 1ed. São Paulo: Contexto, 2017. p. 83-114.

Conteúdos:

Introdução, p. 83

1 – A Mensagem e o Conteúdo: Humor e Violência, p. 90

2 – O Ofício do Historiador: Análise de Charges, p. 99

2.1 – Interpretando uma Imagem, p. 101

3 – Conclusões, p. 111
Charges

Vinícius Liebel1

A compreensão do lugar das charges nas pesquisas históricas está


intrinsicamente vinculada à sua inserção, na modernidade, no aparato da imprensa e da
formação de opinião. A análise e interpretação de temas contemporâneos, em especial
aqueles de caráter político, têm, frequentemente, a imprensa como fonte primária ou
secundária. O uso de textos jornalísticos nos estudos históricos é um dos expedientes
mais utilizados tanto em pesquisas acadêmicas quanto em sala de aula. Relatos sobre
problemas sociais, acontecimentos políticos ou eventos significativos veiculados na
grande mídia são corriqueiramente tomados como fontes legítimas, sustentando análises
e apoiando teorias sobre os mais diferentes temas. Entretanto, a análise da própria mídia
costuma ser menos efusiva. São poucos os trabalhos históricos sobre a mídia em geral
ou mesmo sobre veículos específicos. Dentre as dificuldades que se apresentam ao
historiador, Jean-Noël Jeanneney lista:

O primeiro é a diversidade extrema dos objetos de estudo e sua dispersão. No caso da


imprensa escrita, deve ser construído todo um repertório dos jornais que, na França, no
decurso de um século, contam-se aos milhares. No audiovisual, durante muito tempo
pareceu que a atenção podia se concentrar numa dezena de empresas, mas eis que a
“explosão” das rádios privadas, acompanhada de um rápido desenvolvimento das rádios
descentralizadas de serviço público, e em seguida a multiplicação dos canais de
televisão, o desenvolvimento – mesmo lento – do cabo, a chegada dos satélites, eis que
tudo isso aumentou enormemente, também neste caso, a amplitude da pesquisa
necessária. (Jeanneney, 2003: 213)

O campo de estudo sobre o tema abarca uma produção que tende a crescer ainda
mais com a demanda pela compreensão da especificidade da imprensa, sua atuação na
sociedade e as modificações por que tem passado. No campo dos estudos históricos

1
Pós-doutorando no PPG-História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Historiador, doutor em
Ciência Política pela Freie Universität Berlin (FU-Berlin) com apoio do Deutscher Akademischer
Austauschdienst (DAAD). Desenvolveu pesquisa de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo
(USP), com o apoio da Fapesp, no período de 2012-14 e na PUCRS, com apoio da Capes, entre 2014 e
2017. É pesquisador associado do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF) e do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (NIEJ-UFRJ). Suas pesquisas se concentram nas áreas da
História Cultual do Político, em particular na análise de fontes visuais, e da História Contemporânea.
Entre seus temas de pesquisa, além de teorias e metodologias de análise de imagens, destacam-se os
partidos e ideologias conservadores e autoritários, a violência política, o totalitarismo, o antissemitismo, a
história contemporânea europeia, particularmente da Alemanha, a democracia, a resistência (violenta e
não violenta) e as relações entre imprensa, cultura e poder.
políticos, em especial, o papel da imprensa nos diferentes períodos da história tem sido
cada vez mais questionado. Nesse aspecto, estudam-se diferentes questões estruturais,
como a utilização da imprensa por governos autoritários, o lugar da imprensa em
regimes democráticos, a censura e a ação política dos órgãos de imprensa. Jornais,
revistas e a mídia audiovisual são analisados enquanto atores ativos na arena pública,
evidenciando sua condição de formadores de opinião pública2.
É nesse aspecto que uma História Cultural do Político vem a elevar os veículos
de comunicação não apenas à condição de objetos privilegiados de análise por sua
qualidade de formadores de opinião pública, mas principalmente de elementos
característicos de grupos sociais e, enquanto tais, formadores e difusores de
representações e visões de mundo. Lida-se, assim, com valores, habitus e visões de
mundo que acabam por refletir, mas também ajudam a formatar, a cultura política de um
grupo social ancorado diretamente a um ou a um conjunto de veículos de comunicação.
O produto desses meios se torna, dessa forma, representativo de um segmento ou grupo
social, o qual tem no jornal, revista ou programa um norte para se situar na lógica
composta de sua própria realidade, mas que é, enquanto sua base de recepção (e de
consumo), produtora da linha que guia sua mensagem.
Neste produto complexo que é o veículo de comunicação, em particular o jornal,
vários elementos se mesclam até o resultado final. O trabalho do jornalista, o produtor
de textos, se encontra com o do fotógrafo, do colunista, do pesquisador. Textos e
imagens de diferentes matizes se mesclam para que diferentes interesses sejam
contemplados. A Política, em especial, costuma ter destaque, principalmente em jornais
de grande circulação. Nesse segmento, o trabalho de reportagem costuma ser
acompanhado dos textos dos chamados formadores de opinião, dos colunistas, que
escrevem com a função de comentar, de forma aprofundada, um determinado
acontecimento ou tema. Escritos dessa natureza, ainda mais do que aqueles de
reportagem, podem ser considerados produtos de um determinado meio ou grupo social
relacionado ao jornal. É neles que surgem as nuances da opinião, para além da
(presumida) retidão da reportagem, e se evidenciam as estruturas de pensamento e de
2
O tema da formação da opinião pública através da mídia é complexo e envolve uma série de elementos,
como a relação do veículo com seu público, com patrocinadores e advertisers, bem como o número de
atores envolvidos na empresa. Walter Lippmann (2008: 258) argumenta que quanto maior o número de
leitores, mais independente um jornal será por não depender do capital externo para sua sobrevivência.
Ainda, quanto maior o número de anunciantes em um veículo, menor a influência que eles podem exercer
sobre sua linha editorial. Nessa equação, o papel político-social que a publicação se outorga, a linha
editorial adotada, o nicho de mercado (ou grupo social a que a mídia se vincula), tudo isso influencia, em
maior ou menor grau, o papel do veículo na formação da opinião pública.
ação das quais os jornais dão prova. Ainda que os autores sejam vozes renomadas
dentro do jornal, e que os profissionais da notícia prezem pela independência, não há
dúvidas de que seus textos se adequam à linha redacional geral do veículo. Essa
conformidade se refere não apenas a uma relação hierárquica entre patrão e empregado,
mas também a um reconhecimento do ambiente, do habitus normativo que prevalece na
redação3, levando o jornalista a um comportamento que se assemelha a uma autocensura
constante e espontânea (Accardo, 1995: 42).
Tais reflexões são válidas igualmente para o trabalho do chargista, que apresenta
opiniões e julgamentos em forma de pilhéria. Dessa forma, seu trabalho acaba por se
assemelhar ao do colunista, refletindo uma visão de mundo acerca do retratado. Mas ao
usar o artifício do humor, o chargista acaba tendo uma liberdade que nem sempre os
outros profissionais da redação podem ter. O humor aliado à imagem abre
possibilidades que o texto escrito não tem, possibilitando um ataque, uma crítica ou uma
ironia em um nível mais sutil do que as palavras podem alcançar. Com essa
característica, a imagem da charge acaba por se mostrar um espelho mais direto da visão
de mundo dominante no veículo de comunicação. O lugar da produção da charge, dessa
forma, se mostra central na determinação de sua mensagem. E é a partir dessa premissa
que ela se torna uma fonte legítima para o entendimento da dinâmica do grupo produtor
e receptor de sua mensagem.
Ao pensarmos o ato de produção da charge como uma ação política no meio
onde ela é difundida, abre-se a questão da sua autoria. Como já argumentado, apesar de
ter sua liberdade profissional, o chargista, assim como o jornalista e o colunista, está
sujeito ao habitus normativo da redação, ou seja, está inserido em uma estrutura de ação
e pensamento bastante específica e que ditará o teor geral da imagem. Dentro dessa
estrutura, entretanto, ainda é possível distinguir o papel do chargista em mais um nível.
Quando analisamos o caso dos fotógrafos como contraponto, fica mais fácil visualizar
tal especificidade. Tomando as reflexões de Ralf Bohnsack (2010; 2011) acerca da
produção da imagem fotográfica, percebemos que, na composição final da imagem
fotográfica, ocorre a justaposição da ação de dois elementos produtores da imagem. Tal

3
Accardo (1995) fala de uma relação entre níveis estruturais (o mercado, o mercado de trabalho, etc.) e
um nível pessoal que se refere ao jornalista e seu background cultural e educacional. Ao analisar o
trabalho profissional de jornalistas, o sociólogo aponta para um campo de tensão entre esses dois níveis
de compreensão e experiências; é nessa tensão que existe o que se pode chamar de liberdade de produção
desses profissionais. Tal liberdade, entretanto, está sempre vinculada ao habitus ligado à profissão (o que
Mannhein chamaria de Standortverbundenheitshabitus), e esse habitus profissional acaba tendendo, de
forma geral, à posição das grandes estruturas dirigentes.
diferenciação se refere ao produtor retratador da imagem (o fotógrafo) e o produtor
retratado (o objeto do retrato) e seus respectivos habitus. Bohnsack toma os dois
produtores como elementos ativos nessa ação, denominando-os produtor da imagem que
retrata e produtor da imagem que é retratado (abbildende und abgebildende
Bildproduzenten). De fato, reconhece-se o papel de ambos na composição da imagem,
sendo o habitus do produtor retratado prontamente reconhecido por ser o captado,
enquanto o habitus do produtor/fotógrafo se revela nas escolhas feitas durante e após o
ato da produção da imagem. O ângulo da tomada, a posição da câmera, a decisão do
momento a ser fotografado, tudo isso revela a visão do fotógrafo e as estruturas mentais
e sociais nas quais está inserido. Como o autor ainda salienta, os habitus dos produtores
podem estar em harmonia ou em conflito, mas ambos são reconhecíveis. Se aplicarmos
a mesma lógica para a análise das charges, veremos que a lógica não se aplica.
O papel do retratado no caso das charges deixa de ser “objetivo”, ou seja, não é
realizado por um modelo real e presente no momento de produção, e passa a ser um
papel “subjetivo”. A diferença entre a objetividade e a subjetividade neste tipo de
representação se faz clara, especialmente na comparação com a produção de uma
fotografia. No caso do modelo objetivo, a interação entre o produtor retratado e o
retratador ocorre como resultado de uma equação que envolve as estruturas mentais de
ambos, bem como seus modos de agir e de interagir, ou seja, seus habitus. Como as
reflexões de Bohnsack apontam, tais estruturas não precisam ser compartilhadas, sendo
o resultado final um produto da somatória de ambos. Seja um retrato renascentista ou
uma fotografia contemporânea, o produto final é um reflexo das estruturas mentais e de
ação de ambas as partes.
Quando pensamos o modelo subjetivo, por sua vez, notamos que o papel do
produtor retratado se transforma. Seu lugar deixa de ser físico e passa a ser
essencialmente imaginário, ainda que sua representação conte com elementos
provenientes do mundo das experiências. Isso porque o produtor representado não
interage com o produtor retratador no momento da produção da imagem, transformando
a imagem em uma interpretação sobre o personagem, sobre o momento ou o tema
retratado. É, portanto, uma opinião. Na construção pictórica da charge, a criatividade e,
principalmente, as estruturas mentais do produtor retratador, ou seja, do chargista,
assumem posição central. O retratado pode, em verdade, sequer existir no plano real;
pode ser um personagem imaginário, alegórico ou representativo de uma personalidade
ou de um grupo social. O importante aqui é o fato de que o retratado é uma criação
pessoal do chargista (enquanto membro de seu grupo social e/ou profissional), e nos
casos em que esse processo é baseado em elementos reais, as características intrínsecas
a essa criação, ou seja, a essa representação são também baseadas na percepção do
chargista sobre esses elementos.
Ao tratarmos do caso específico da charge, a relação dessa característica
subjetiva da imagem reforça o caráter político e passional de sua mensagem. O chargista
se apropria de uma personalidade pública ou de um fato politicamente relevante e os
apresenta em suas próprias cores. Através dessa representação crítica e/ou humorística,
o desenhista apresenta seu julgamento ou seu elogio, sendo este o objetivo último da
charge. No processo de criação, o papel do retratado pode ainda ser considerado uma
mescla entre subjetivo e objetivo, visto que muitas vezes o personagem retratado existe
e tem, portanto, uma presença também no plano da realidade. Não havendo uma
interação imediata, as experiências com o objeto de representação deixam de ser
guiadas pelos sentidos exteriores, ou seja, a visão, o tato e a audição, e passam a ser
guiadas pelas faculdades interiores, no caso, pela imaginação. Através dela

Julgamos objetos que não estão mais presentes... e que não mais nos afetam diretamente.
Ainda assim, quando o objeto é removido de nossos sentidos exteriores, passa a ser objeto
para nossos sentidos interiores. Quando representamos para nós mesmos algo ausente,
fechamos, por assim dizer, aqueles sentidos pelos quais os objetos nos são dados em sua
objetividade. O sentido do gosto é como se nos sentíssemos a nós mesmos, é como um
sentido interior... Essa operação de imaginação prepara o objeto para a ”operação de
reflexão”. E essa operação de reflexão é a real atividade de julgar algo. (Arendt, 2012: 523)

Neste cruzamento entre realidade e ficção, entre verdade e opinião, encontramos


a estrutura sobre a qual a memória será construída. Isso porque a própria historicidade
da charge se equilibra sobre esses pontos. Um exame detido da charge revela que sua
caracterização enquanto fonte de pesquisa para os historiadores não prescinde dessas
considerações, em especial quando seu caráter lúdico se mescla com o julgamento
político que a opinião revela. É preciso compreender que, enquanto artefato de um
grupo social bastante específico e limitado (ainda que esse limite seja traçado pelo
alcance do jornal no qual o desenho foi publicado), a charge aponta para uma tomada de
posição frente a um contexto, ou seja, frente a uma realidade política e social. É dessa
forma que ela se apresenta como uma ação política, demarcando sua mensagem em um
ponto da linha do tempo e que, muitas vezes, está a este tempo incondicionalmente
atrelado. Mas apesar de se remeter ao tempo presente, a publicação de uma charge é
também uma tentativa de gravar sua mensagem nas areias do tempo. A composição de
imagem, chiste e opinião busca resistir e se sobrepor às demais opiniões semelhantes,
ou seja, se pretende dominante ou, ao menos, relevante. Por essa busca por sua própria
longevidade, a charge acaba sendo também o primeiro agente de sua própria memória.
Trata-se aqui não apenas da charge enquanto um artefato histórico propriamente
dito, ou seja, enquanto uma marca na história. De fato, são raras as ocorrências nas
quais as charges assumem um papel protagonista nas narrativas. O maior exemplo de tal
protagonismo na história talvez seja o caso de Daumier e sua caricatura do rei Louis-
Philippe, que eternizou a alcunha de rei-pera (Fig. 01). A memória que a charge produz
e evoca é muito mais atrelada ao entendimento do everyday life, do cotidiano do leitor e
do produtor da charge, bem como do contexto político no qual estão inseridos. É o seu
caráter de registro, de documento, que a torna uma peça no quebra-cabeça da dita
memória coletiva4 e também da memória desviante, subterrânea (Pollack, 1989). É o
que compreendeu Baudelaire quando, sobre o mesmo Daumier, escreveu: “Ninguém
como ele conheceu e amou (à maneira dos artistas) o burguês, este último vestígio da
Idade Média, esta ruína gótica cuja vida é tão dura, este tipo ao mesmo tempo tão banal
e tão excêntrico.” (Baudelaire, 1924: 14).
Não foi o rei-pera que chamou a atenção de Baudelaire, mas a inserção e a visão
de Daumier sobre um grupo social do qual o chargista era não apenas observador, mas
seu cronista. A obra do chargista atua, de forma bastante particular, na (re)construção de
impressões e de recordações, na construção da memória, ou, como Halbwachs (2003:
29) descreveu, no recomeço de uma mesma experiência por muitas pessoas. A partir
desse princípio, é possível afirmar que a charge e seu discurso humorístico podem agir
como a liga que une um círculo em torno de um julgamento político, círculo que
demarca, por fim, uma comunidade de experiências.

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É preciso frisar que esta “dita memória coletiva” é compreendida aqui como uma construção, fruto de
um jogo de forças com evidentes violências simbólicas e físicas. Em meio a esse jogo, a charge pode se
mostrar relevante em múltiplos campos, como uma evidência do discurso dominante e vencedor ou como
um artefato que registra a voz dissidente e silenciada. Ela demonstra, por sua própria existência, um
resquício de ideia e de julgamento, um resquício que registra, de alguma forma, uma comunidade de
sentido e de experiência.
Legenda imagem 1: Publicada em 1834 no jornal satírico La Caricature, a
imagem do rei Louis-Philippe com a face em formato de pera ganhou
centralidade no debate político francês de sua época, sendo utilizada pelos
republicanos em sua luta contra a monarquia. A imagem, seu desenhista e o
editor do jornal foram perseguidos judicialmente pelo monarca, mas o resultado
do processo foi de vitória para Daumier.

1. A Mensagem e o Conteúdo: Humor e Violência

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