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Essa crise apontada por Kirsch já havia sido indicada em nosso capítulo anterior,
pois insere-se em um dos fatores da crise geral da psiquiatria apontada por Nikolas
Rose (2018). Se articulamos essas duas considerações ao que vimos no caso da
entrada da depressão no Japão, há motivos para acreditar que a própria indústria já
tinha algum tipo de ciência em relação a funcionamentos análogos. Algo que pode ser
visto no modo como se respondeu ao fato de que os estudos iniciais com a população
local não funcionaram: não se tratou de produzir um novo medicamento ou qualquer
coisa do tipo; fez-se uma campanha de marketing, com o intuito de mobilizar elementos
simbólicos que poderiam interferir tanto na aceitação, quanto na eficácia das drogas.
Retomando os dois casos apresentados e a análise crítica a partir da
consideração do placebo, as possibilidades de cruzamento entre elementos simbólicos
e a criação de sintomas e novos transtornos ganha corpo. A pergunta feita anteriormente
sobre a depressão, por exemplo, ganha ainda mais força: a depressão existiria no Japão
mesmo não sendo reconhecida, ou passaria a existir a partir da implementação de
novas narrativas? A resposta parece tender à segunda opção, mas vejamos como isso
pode ser compreendido teoricamente.
Vê-se, portanto, que Hacking está propondo uma definição que diz respeito à
interação com os sentidos produzidos, e não simplesmente com ações. Ele afirma, por
exemplo, que os quarks são indiferentes, pois não respondem à classificação; isso não
quer dizer que sejam passivos. Da mesma maneira que o plutônio interage com outros
elementos, mas não com a classificação. São elementos indiferentes ao sentido, e não
à ação (ibidem, p.105). Os tipos interativos são aqueles que se modificam a partir dos
sentidos produzidos na categorização, especificamente em relação àquilo que está
sendo categorizado. E essa interação produz modalidades de retroação, que podem
funcionar na confirmação e estabelecimento de formas de experiência que gozarão de
forte presença e reconhecimento social. Mas também podem produzir a inadequação
de certas categorias que se tornam obsoletas como efeito da própria categorização.
Dessa maneira, os tipos interativos complexificam o próprio processo de
categorização, criando o que o autor descreve como um efeito de looping, em que a
classificação modifica seu objeto. Como apontado, isso pode ocorrer a ponto de tornar
a categoria inadequada ao estado atual: “o que era sabido sobre pessoas de um tipo
pode se tornar falso porque pessoas desse tipo mudaram em virtude de como foram
classificadas, o que elas acreditam sobre elas mesmas, ou por causa de como elas
foram tratadas assim como classificadas” (ibidem, p.104, tradução nossa).
Entretanto, os efeitos de invenção e estabelecimento de formas de experiência
são do maior interesse de Hacking, tendo um papel central na explicação da existência
daquilo que ele nomeia como psicopatologias transientes (existentes somente em um
lugar e momento específico). Essa ideia é mobilizada em seu livro sobre Múltipla
personalidade e as ciências da memória (1995/2000) sob o nome de “efeito feedback”,
numa tentativa de explicação de como eventos ligados à categorização científica
produzem novas formas de ser:
Essa discussão nos é central, uma vez que condensa, a nosso ver, uma grande
potencialidade das proposições de Hacking, mas também apresenta um equívoco de
análise. Isso fica particularmente claro em relação à depressão, em que o autor parece
não reconhecer o efeito retroativo que o próprio entendimento da depressão enquanto
um objeto biológico — e, portanto, indiferente — pode causar. Não se trata, contudo, de
uma posição ingênua, uma vez que traz elementos como a pressão de certo
entendimento biológico da patologia por parte de empresas que querem vender
medicamentos. Mostra-se, assim, uma discussão absolutamente atual e que toca
diretamente a proposta deste livro, uma vez que o estabelecimento de um entendimento
específico de verdade (entendido aqui como a definição da causalidade biológica como
a causa por excelência) tem efeitos não somente epistemológicos, mas também
ontológicos e políticos.
Por outro lado, Hacking afirma sua discordância, nesse momento, tanto do
construcionismo social quanto de designações rígidas para psicopatologias (ibidem, p.
122), indicando que essas questões seriam mais bem encaminhadas a partir de um
modo de entendimento dinâmico, e não semântico. Isso significa que, mesmo que
sustente um privilégio em relação à causalidade biológica, ele não deixa de reconhecer
a importância daquilo que também se mostra enquanto interativo. Afirma, em linhas
gerais, a necessidade de tomar os problemas indicados enquanto processos, em que
categorização e experiência modificam-se mutuamente, e não em tentativas estanques
de definição causal. Trata-se de um posicionamento que pode ser entendido enquanto
uma relação dialética entre verdade e saber, especialmente se tomarmos os efeitos
ontológicos dos discursos do conhecimento enquanto efeitos de verdade sobre os
indivíduos. A dinâmica da classificação deve ser tomada, assim, como elemento central.
Vê-se, dessa maneira, que há diversos instrumentos conceituais capazes de
auxiliar na discussão sobre a produção de subjetividades, sofrimento e sintomas. Nesse
sentido, parece haver uma disputa pelo tipo de racionalidade que pode organizar o
campo, disputa essa que incide diretamente na aceitação ou negação do papel do efeito
retroativo da classificação. Hacking localiza com clareza o que estaria em jogo nessa
diferença: tipos indiferentes são mais estáveis que tipos interativos. Pensando-se num
mercado farmacológico, essa estabilidade se traduz em possibilidades mais claras de
produção e consumo de medicamentos, pois legitima um tipo de intervenção mais geral.
Além disso, há uma aproximação forçada entre a estabilidade biológica e o caráter
necessário daquilo que é afirmado sobre o objeto, como se não fosse possível afirmar
algo distinto. Ponto em que reconhecemos como a ciência pode ser usada enquanto
argumento de autoridade em campanhas de marketing. Isso coloca em questão o real
papel do conhecimento científico nesse processo: embora seja mobilizado enquanto
algo com maior peso, só ele basta? Como isso circula socialmente, como se dissemina?
Há, assim, uma confluência entre as teorias sobre causação, aquilo que é
apresentado como inevitável e modos de subjetivação. Como continua o autor, “uma
teoria aparentemente inocente sobre causação (que poderia, em termos de fato
empírico, ser verdadeira ou falsa) torna-se formativa e regulatória” (ibidem, p.108). Para
investigar isso, o autor toma como referência a arqueologia foucaultiana, afirmando que
“às vezes há mutações bastante nítidas nos sistemas de pensamento e que essas
redistribuições de ideias estabelecem o que mais tarde parece inevitável,
inquestionável, necessário” (ibidem, p.12). A múltipla personalidade, na segunda
metade do século XX, demonstra como essa inevitabilidade é construída, tanto por sua
especificidade contextual quanto pela possibilidade de rastreamento de suas “origens”,
que podem ser reconhecidas em outro momento e local específicos: na França, entre
1874 e 1886. Embora Hacking também dê grande importância para diversos elementos
culturais, é preciso notar a centralidade de seu interesse sobre os efeitos que o
pensamento científico produz nesse sentido. Algo retomado algum tempo depois,
quando se debruçando sobre os casos de fuga: