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poder tem somente equivalente nas forças militares, daí o fascínio que
o cinema tem pelas origens dos vírus em seu potencial para se
transformarem em armas biológicas. No filme Inferno, dirigido por
Ron Howard (2016) e ambientado na Itália, Robert Langdon desperta
em uma cama de hospital sem conseguir lembrar o que aconteceu e
encontra em um bolso secreto de seu paletó um cilindro com o
símbolo de risco biológico. Ele o abre e vê uma projeção do Inferno
de Sandro Botticelli, e embaixo, a inscrição “a verdade só pode ser
vislumbrada através dos olhos da morte”. A procura pelos significados
o leva a um cientista radical que desenvolve um vírus que mata boa
parte da população da terra, que é instalado abaixo da Santa Sofia, em
Istambul. Chegando lá, descobre que o balão que contem a praga,
feito de material hidrossolúvel, já se desfez semana antes, e assim, que
praga está espalhada pelo mundo, já que o local é visitado por muitos
turistas. A revelação é que seu criador nunca quis ver a praga liberta,
mas contê-la, e o medo era justamente de que caísse nas mãos de
governos interessados em criar armas de destruição em massa.
Não existe guerra sem preparação para ela, sem logística, diz
Virilio. São três as fases da inteligência militar: tática, estratégia e
logística. A tática é a arte da caça; a estratégia é a política, o governo da
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Virilio diz que, nos anos 80, que a Segunda Guerra Mundial não
havia terminado porque, com a Paz Total, ela continua por outros
meios. Ele pensa na Guerra Fria, na dissuasão, nas guerras entre
estados, como a do Irã e Iraque, e nos tumultos públicos em diversos
países. Para Virilio “ou a guerra é nuclear ou não é nada”. Hoje,
sabemos que ela pode ser outra coisa como uma guerra contra um
vírus, a guerra sanitária, que cria a classe sanitário-militar. Ao invés da
guerra terrorista de que fala Virilio, o novo terrorismo emerge dos
vírus porque eles estão por todo o lugar: os casos irão estourar na
primeira quinzena de abril, e as autoridades dizem isso
sucessivamente com o passar do tempo, e por isso o imperativo “não
saia de casa”. O vírus coloca uma questão para todos: “agora, o que
vocês irão fazer?”. Aqueles que ainda teimam em ir às ruas não se
reconhecem em guerra, como se ficar em casa fosse transformar cada
um de nós em prisioneiro de guerra. Por isso a arte da dissuasão é o
convencimento, nosso autoisolamento é um ato de guerra sem a
guerra tradicional. Não somos reféns, escolhemos o isolamento social
como forma de participar da máquina de guerra contra o vírus. Não
devemos recusar o isolamento, ao contrário, é nossa forma de
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elemento nesta relação, a natureza, que retorna como nos relatos dos
navegantes da época de Thomas Hobbes que falam do Novo Mundo,
do estado de natureza, de liberdade absoluta, lugares sem homem,
sem soberanos e sem sujeitos e que vivem num estado de anarquia e
de guerra. Não é notável que essa nova natureza retorne sob a forma
de um vírus desconhecido e mortal, detentor da liberdade absoluta de
expansão porque é um vírus global, que reestabelece não para si, mas
para o mundo o estado de anarquia no sistema hospitalar, que é
incapaz de dar conta de seus mortos, e de guerra sanitária nos
estados?
O vírus quer que o ser retorne ao nada, a morte. Para devolver este
desafio, só o isolamento absoluto mata o vírus. Um mínimo de
circulação dá oxigênio ao vírus, que depois retira do cidadão, nos
casos graves de pneumonia, o ar que mata suas vítimas. A questão não
é conciliar combate ao vírus e atividade econômica “isso não
depende”, não há opção entre “uma” e “outra”, mas entre “uma” ou
“outra”. Não há opção.
O pais está mais uma vez dividido graças a seu presidente. Dois
campos fazem parte da guerra, já que o capital deseja que exista
apenas um campo, o seu. Daí o apelo ao retorno às ruas, como nas
guerras onde partidos buscam uma paz militar. Se voltarmos às ruas
estaremos fora da guerra, e sem ela, não seremos nada. Não se luta
contra um vírus e um verme ao mesmo tempo tornou-se uma frase
que circula nas redes sociais “eles (os vermes) devem ser afastados
para aclarar o alvo”, o que também significa que a mentira só pode ser
vencida pela verdade, que junta todos “nós somos nós e nossos
irmãos”, diz Tiqqun.
Não temos como negar o vírus e sua natureza. Como das coisas
vivas e inertes, o vírus faz parte da unidade da matéria do mundo, ou
aquilo que Coccia chama de panteísmo. Para o autor, estamos em
transformação, estamos em metamorfose, mas não devemos temê-la,
ao contrário. Hábitos vieram para ficar e, provavelmente, a
transformação – se houver – nos comportamentos será certo tipo de
vacina para novas pandemias: