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O vírus é um caçador

Na definição etimológica, vírus vem do latim vírus, veneno ou


toxina e na médica são pequenos agentes infecciosos que apresentam
genoma constituído de uma ou várias moléculas de ácido nucleico
(DNA ou RNA), sob a forma de fita simples ou dupla. A população
dos vírus não se compõe de um único tipo, ao contrário, são divididos
em gêneros e famílias de partículas virais submicroscópicas: há tantos
vírus quanto há famílias de armas e eles podem até serem fabricados
em laboratório a partir de outros vírus.

Vírus são estruturas simples se comparados a células, mas não são


considerados organismos, pois além de não possuírem organelas ou
ribossomos, não apresentam enzimas para a produção de sua própria
energia metabólica. Como são parasitas intracelulares não são
considerados seres vivos, pois dependem de células para se
multiplicarem, precisam de células hospedeiras para se reproduzir e
obter a energia que precisam.

Agente infeccioso com poder de matar, os vírus tem o poder de


fazer irradiar sua força no mundo. Fora das células, são inertes, mas
dentro, sua capacidade de multiplicação deve-se ao fato de que são a
maior diversidade biológica do planeta. Essa capacidade de projetar
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poder tem somente equivalente nas forças militares, daí o fascínio que
o cinema tem pelas origens dos vírus em seu potencial para se
transformarem em armas biológicas. No filme Inferno, dirigido por
Ron Howard (2016) e ambientado na Itália, Robert Langdon desperta
em uma cama de hospital sem conseguir lembrar o que aconteceu e
encontra em um bolso secreto de seu paletó um cilindro com o
símbolo de risco biológico. Ele o abre e vê uma projeção do Inferno
de Sandro Botticelli, e embaixo, a inscrição “a verdade só pode ser
vislumbrada através dos olhos da morte”. A procura pelos significados
o leva a um cientista radical que desenvolve um vírus que mata boa
parte da população da terra, que é instalado abaixo da Santa Sofia, em
Istambul. Chegando lá, descobre que o balão que contem a praga,
feito de material hidrossolúvel, já se desfez semana antes, e assim, que
praga está espalhada pelo mundo, já que o local é visitado por muitos
turistas. A revelação é que seu criador nunca quis ver a praga liberta,
mas contê-la, e o medo era justamente de que caísse nas mãos de
governos interessados em criar armas de destruição em massa.

O vírus é o sonho militar por excelência porque é essa


concretização do seu desejo antigo de aumentar a extensão da morte à
distância. É justamente esse alcance do vírus que é perturbador, e
como arma, tem o poder de ferir, matar e destruir. A única
vulnerabilidade exposta ao vírus letal é a nossa, somos o alvo da
capacidade de matar do vírus, que só age na nossa direção. O vírus
produz essa guerra unilateral, ele não morre, nós é que morremos “o
que podia ainda se apresentar com um combate converte-se em
simples campanha de abate” diz o filósofo Gregóire Chamayou em
Teoria do Drone (Cosac & Naif, 2015) e nesse sentido, como propõe
o autor, se uma Teoria do Drone é possível, uma Teoria do Vírus
também o é, já que ambos são esse tipo de objeto violento não
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identificado e os próprios cientistas reiteram que não tem


conhecimento sobre o coronavírus.

O vírus transforma as áreas em que vivemos no cotidiano em


ambientes inóspitos. O vírus pode se irradiar de cada lugar. Como no
filme Contágio dirigido por Steve Soderbergh (2011), onde vemos em
flashback como surge o paciente zero, as superfícies por onde o vírus
se dissemina e as pessoas que contamina, vemos que frente a um vírus
microscópico não há como ficar protegido. Por isso no trato com vírus
e pandemias, a primeira estratégia é retirar o corpo vulnerável do
ambiente hostil e reorganizar o espaço, e com isso, os fluxos na vida
da cidade. As casas passam a serem redesenhadas e o espaço dividido
nas chamadas zona hostil e zona segura, exatamente como Chamayou
descreve na ação do engenheiro John W. Clark, que pensa as
máquinas autônomas para estabelecer telecomandos que originam os
primeiros batiscafos. Agora, o que é um mecanismo de controle à
distância passa para o interior do lar: a zona hostil é o mundo dos
vírus exterior e a zona segura, o lar. Entre elas, uma zona de transição,
de limpeza, que tem o objetivo de bloquear as intrusões externas.

O mundo exterior ao lar é o espaço hostil que controlamos apenas


por medidas de distanciamento social e higiene porque é o foco de
ameaças potenciais. Pode-se intervir nele em poucos momentos como
a ida ao supermercado, mas não se vive nele como vivemos o dia a
dia. Está fora de questão passear, ficar à toa na rua, isto não é mais
seguro. É o telecomando as avessas (princípio do batiscafo) porque
nós é que somos telecomandados, é o contrário das máquinas que
podem executar tarefas perigosas à distância pelo telecomando. Agora,
pelo auto comando, nós é que somos operados remotamente, temos
nosso comportamento no meio hostil delimitado para evitar o perigo.
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Nessa guerra contra o vírus, o paradigma não é o de dois lutadores


que se enfrentam em igualdade de condições, mas de um caçador que
avança e uma presa que foge ou se esconde. Uma guerra que inverte a
definição de Clausewitz porque não duelamos com o vírus, não o
confrontamos para ganhar, somos um fugitivo tentando evitar a
captura por ele que está por todo o lugar. Somente ganhamos essa luta
se nos isolamos, se fugimos do espaço público. Ao contrário, o vírus
só precisa que mantenhamos nossa vida comum nos parques e nas
aglomerações, pois ele precisa do confronto para ganhar. Para o
homem ganhar, ele precisa fugir.

Nossa relação com o vírus é como um jogo de esconde-esconde


mortal, o vírus nos procura e nós nos escondemos e a única forma de
fazer isso é identificar um inimigo invisível, localizá-lo naquilo que
tocamos, o que exige o trabalho de higienização. Nossa assepsia é
nossa forma de vigilância, de interpretação de nossos gestos possíveis
de contágio. Fazemos um mapa da cidade: praças, shoppings e
aglomerações, grau máximo; rua, grau médio e casa, grau mínimo de
perigo. Trata-se de prevenir a eclosão de ameaças por vírus por
assepsia de seus agentes. Por isso governos impõem medidas de
segurança para seus cidadãos – não sair, não aglomerar, higienizar –
defesa sanitária contra o risco ambiental que o vírus representa, pois o
ele está no ambiente, contamina o Outro e por isso, como não
podemos entrar em guerra com nosso semelhante, podemos nos
prevenir do contágio pelo isolamento. Assim como Chamayou propõe
para o drone uma renovação do olhar, o vírus exige três princípios
para que possa ser combatido.

O primeiro é o da vigília permanente. Se o vírus está no ambiente


circundante vinte e quatro horas por dia, em pessoas ou objetos, isto
exige uma atenção constante, reorganizando a vida pelo olhar atento.
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Somos chamados à vigilância ampla, o que significa o tempo todo:


tocou algo da rua? Lave a mão. Saiu e voltou recentemente? Deixe a
roupa para lavar. Vai falar com o vizinho? Use máscara. A todo o
momento olhamos nosso corpo e nosso entorno com alta resolução,
damos zoom em movimentos de nosso corpo naquilo que tocamos. É
o sonho da onividência.

A segunda é o da vida como um filme. Cada gesto é como um


quadro a quadro cinematográfico. Não apenas uma vigília constante,
mas a elaboração de um roteiro de gestos como se fosse um roteiro de
cinema, com questionamentos e atitudes que são repassados toda vez
que nos movimentamos. Vai sair? Ponha máscara, higienize as mãos,
não toque em nada. É por isso que quando alguém adoece, faz a
pergunta: onde é que me infectei? Como o coreógrafo brasileiro
Carlinhos de Jesus que teve Covid 19, que diz “não saia de casa para
nada, exceto para ir... ao supermercado!” Voilá, só pode ter sido lá
que se infectou. Você repassa milhares de vezes o que faz no dia a dia,
aproximando-se do vírus no espaço e no tempo, para retratar quando
preciso a origem da doença.

A terceira é a mudança do padrão de vida. Todos têm ações


cotidianas repetitivas: o vírus sabe disso e está a nossa espreita. Saímos
para caminhar num determinado horário, vamos ao supermercado
num determinado dia da semana, vemos nossos familiares no final de
semana e por aí afora. Em todos esses momentos, a contaminação do
ambiente está presente pronta para infectá-lo, daí que as políticas de
saneamento tentam interferir em nossos modos de vida. Políticas de
combate ao vírus são políticas de mudança de padrões de vida, daí a
resistência popular, a negação do perigo, a dificuldade de mudar o
padrão de vida para evitar o vírus.
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Com a pandemia, a guerra total contra o terror é substituída pela


guerra total contra o vírus. “Todos juntos contra o vírus” é o mote da
campanha da Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS), afiliada da
Rede Globo e que pode muito bem ser o de uma agência sanitária. A
guerra deixa seus limites espaciais, do mundo inteiro, para tomar o
corpo como campo de batalha “Se a guerra é, em última instância,
definida pelo combate, a caça é definida essencialmente pela
perseguição” (CHAMAYOU: 2015, p. 64). É nesse sentido que o
vírus, esse ser inerte, nos caça: ele se desloca conforme nosso
deslocamento, sua violência resolve-se simplesmente pela nossa
presença, somos nós o hospedeiro e transmissor da doença “Para
escapar a seus perseguidores, a presa procura tornar-se indetectável ou
inacessível”. Essa inacessibilidade física é o isolamento social, o “fique
em casa”, que funciona como nosso esconderijo. Como no seriado O
fugitivo (EUA, 1963-1967), onde o Dr. Richard Kimble, é acusado de
um crime que não cometeu e por isso foge do Tenente Gerard,
fugimos de nosso crime de viver, perseguidos por um vírus, e
ajudamos, como o personagem do seriado de ficção, a outras pessoas
que necessitam de auxílio num momento de necessidade, mesmo que
isso exponha nossa vida, como a identidade de Kimble.

O poder invasivo do vírus está no seu poder de perseguição, que os


médicos chamam de transmissibilidade ou contágio. O contrário é sua
forma de nos perseguir, sua intrusão onde quer que nos escondemos
– pois se não higienizamos nossa casa, inclusive lá ele de nos pode
contaminar. O vírus não conhece nenhuma soberania, a perdemos
sobre nossos corpos e sobre nossas casas simplesmente porque o vírus
chega pelo... ar! Isolamento vertical ou horizontal: não há opção
quando o vírus mostra que atinge vários públicos, que tem o poder de
infecção sobre qualquer faixa etária, lugar ou rua. É preciso monitorar
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tudo, e nos termos do filósofo Byung-Chul Han (2015), isso é o que


cansa.

Todos querem ser invulneráveis ao vírus, imunes a ele e como nos


mitos da invulnerabilidade, somos condenados ao fracasso. Aquiles
era impenetrável como ferro, exceto o calcanhar; Sigfried tinha uma
pele tão dura insensível aos golpes de machado, exceto no ombro
direito e Héracles tinha um corpo invulnerável, exceto nas axilas. São
sempre relatos de que há um ponto fraco “o que esses mitos dizem é
que a invulnerabilidade é, precisamente, um mito” (CHAMAYOU:
2015, p. 87). O mesmo vale para o vírus: frente a um inimigo
indestrutível, é preciso encontrar seu calcanhar. Não é na privação de
nossa presença, no isolamento que tornamos um vírus
invencível...vulnerável? Assim como uma parte do treino dos
combates medievais era conhecer os defeitos das armaduras, para
combater o vírus é preciso conhecer seu modo de funcionamento.

Por isso todos aqueles que convocam para o trabalho, o retorno às


ruas e as aglomerações de ônibus, comportam-se como camicases em
relação ao vírus, jogam-se nele. Esse comportamento é suicida e por
isso esses empresários ficam tão próximos da arma de guerra japonesa
“os camicases são homens da morte certa” (CHAMAYOU: 2015,
p.98). A surpresa com o fato é a mesma que sente Wladimir Zorokin
quando lê um artigo onde diz que os japoneses criam um esquadrão
de pilotos suicidas, “essa arma se revelará como das mais perigosas”,
disse (CHAMAYOU: 2015, p.98). O que transforma todos os que
exigem o retorno à vida comum em camicases é que eles, ao se
exporem, também estão dispostos a morrer. Qual é a arma que
defensores do isolamento possuem e que seja o anticamicase?
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Um argumento para defender é que está em jogo a concepção em


relação à morte, a própria e a de outro. De um lado, o que provoca;
de outro, o daqueles que serão expostos. Quando vemos quem
organiza passeatas para abertura do comércio vemos como se
estivessem dispostos a morrer e glorificar-se com este ato, sacrifício
ignóbil, desprezo pela morte que se opõe ao amor a vida de médicos,
enfermeiros e todos aqueles que se preservam em casa. Pior que o
horror de matar é o horror de morrer ao se expor a própria vida, e
aqueles que incentivam isso, acham que são incapazes de morrer
como suas vítimas.

A guerra contra o vírus é uma guerra assimétrica. Na mitologia, a


imagem da morte é representada por um guerreiro lutando em armas
contra um esqueleto que representa a própria morte, alegoria da luta
perdida, pois “a morte não morre nunca”. O vírus é esse esqueleto a
espreita do combatente, o tempo lhe pertence, dizer que estamos no
platô da infecção é apenas a ilusão que permite o seu retorno logo ali
adiante, pois o vírus, como a morte, não morre nunca. Não há
intocáveis nesse universo, confusão da ética da coragem que substitui a
ética da autopreservação, inversão de valores do que é preciso
combater “o que se chamava covardia torna-se bravura”
(CHAMAYOU: 2015, p. 115). Os que vão as ruas sentem-se
corajosos, valentes, chamam os outros de covardes:

“O coronel Eric Mathewson, emérito piloto de drone, deu sua


interpretação pessoal dessa noção „A bravura, para mim, não é
arriscar a própria vida. A bravura é fazer o que é certo. A bravura
tem a ver com as motivações e os fins que você visa. É fazer o certo
pelas razões certas. É isso, para mim, a bravura‟” (CHAMAYOU:
2015, p. 116).
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Hoje, a bravura militar passou para os combatentes da linha de


frente do vírus. Eles estão dispostos a ficar frente a frente com seu
caçador e sabem que não estão em segurança. Ao contrário,
submetem-se ao mesmo stress pós-traumático de combatentes de
guerra, expõe sua vida psíquica a violência que a imagem dos corpos
mortos impõe, e nesse sentido, sua saúde mental fica vulnerável ao
espetáculo da morte, impossível de evitar pela ignorância que leva
muitos às ruas. O médico, como se sabe, defende a vida, e nesse
sentido, o “escapei do horror de matar alguém” daqueles homens que
em guerra recusam-se a matar, transforma-se no “escapei do horror de
ver alguém morrer” dos médicos de plantão.

Quando em 1973, os jovens engajados no movimento antiguerra


publicam a revista Science for People e forjam o conceito de guerra à
distância para definir uma guerra de máquinas humanas contra o
corpo humano, eles não imaginam que o conceito pode ser útil para
definir uma pandemia. Pois a guerra à distância é a única possível
entre os corpos humanos e ao vírus, só resta escapar para a casa, para
o isolamento, parar de fazer a guerra. Somente a recusa do retorno
imediato à vida cotidiana, do enfrentamento das consequências
econômicas, poupará vidas. O vírus não é invencível, e o poder de
transformação sanitário é social, reside em que amplos segmentos da
população concordem com o isolamento. Não é atender ao chamado
para as ruas, mas exatamente o contrário, que devemos fazer agora.
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A arte da guerra contra vírus

O filósofo e arquiteto Paul Virilio, em sua obra Guerra Pura


(Brasiliense, 1984) assinala que, na Segunda Guerra Mundial, a
Inglaterra prepara com grande antecedência a economia de guerra,
com a criação de armas de ponta – a força aérea – que permite o país
vencer o conflito mundial. Dwight D. Eisenhower, que é o 34º
presidente dos Estados Unidos, é um especialista em economia de
guerra e na preparação de seu financiamento, o que resulta no lugar
que os americanos obtêm no conflito. A definição de economia de
guerra é: capacidade de gerar um Estado dentro do Estado, organizar
a economia da nação para a produção de tudo aquilo que se precisa
para uma guerra. Se a pandemia do coronavírus é uma guerra, o que
estamos fazendo para ter vantagens?

No Brasil, o Ministro da Saúde Luís Henrique Mandetta vive um


contexto político adverso e só sobrevive por 15 meses porque sabe
jogar politicamente e construir uma economia de guerra mínima para
o vírus no país. Como Eisenhower, que tem seu rival em
Montgomery, o ministro tem um rival no próprio presidente, que
sonha em dominar o discurso da guerra enquanto o Ministro da
Saúde emerge como um líder na guerra sanitária. É fascinante
repassar no confinamento as páginas de Guerra Pura para fazer a
atualização da interpretação da inteligência militar definida por Virilio:
se estamos em guerra contra o vírus, exatamente em que lugar está a
guerra que estamos fazendo?

Não existe guerra sem preparação para ela, sem logística, diz
Virilio. São três as fases da inteligência militar: tática, estratégia e
logística. A tática é a arte da caça; a estratégia é a política, o governo da
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cidade e a organização do teatro de operações e a logística é definida


pelo Pentágono entre os anos 1945-1950 “Logística é o procedimento
segundo o qual o potencial de uma nação é transferido para suas
forças armadas, tanto em tempos de paz como de guerra” (VIRILIO:
1984, p.25). Se a logística é, em tempos de guerra, a transferência do
potencial de uma nação para o militar, o que é a logística em tempos
de coronavírus? É a transferência do potencial de uma nação para a
máquina sanitária – militar. E que é ela? O conjunto de instituições
médico-sanitárias que funcionam para o atendimento das vítimas, o
sistema de saúde propriamente dito, organizado de forma militar
“Sem o saber, já somos todos soldados civis”, diz Virilio, que finaliza
“As pessoas não reconhecem a parte militarizada de sua consciência”
(VIRILIO: 1984, p.27).

Isso significa que combater o vírus e fazer a guerra é exatamente a


mesma coisa. No combate a pandemia no Brasil, a inteligência militar
é substituída pela inteligência sanitária e os soldados são substituídos
pelo corpo dos médicos, enfermeiros e infectologistas nesta guerra. É
claro que militares terminam por participar e muito, com a ascensão
no Ministério da Saúde do general Eduardo Pazuello que nomeia
cerca de nove militares para cargos de alto escalão, mas, no front de
batalha, é a classe médica que a substitui, bastando ver que, no lugar
antes destinado ao piloto de guerra a quem se impõe a tarefa do
“aperte o botão e caia fora”, a imposição à classe médica da escolha
impossível entre quem pode viver e quem deve morrer nas filas dos
hospitais. Como diz Virilio “Nessa guerra tudo acontece em alguns
segundos, não temos tempo de reagir”.

O que é inaceitável no governo brasileiro nesta pandemia é não


direcionar os recursos da nação, dos estados e dos municípios para a
guerra ao vírus. O coronavírus é essa surpresa biológica do século
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XXI que vem a ocupar o espaço que é do advento da bomba nuclear


ao final da Primeira Guerra Mundial. O que tem de surpreender
nossos governantes, fazê-los sair de seu lugar de burocratas, é que
depois da arma final surge a epidemia final. É preciso mais logística do
que nunca porque os meios tornaram-se importantes. O certo: uma
empresa de cerveja produz álcool gel. O certo: uma empresa de roupa
feminina produz máscaras. O errado: o governo propõe redução de
salários dos servidores públicos, e com eles os da saúde. O errado: o
governo, em nome da liberdade, permite pequenas reuniões, gente na
rua e abertura de empresas. Você tem uma situação dada de contágio
absoluto que exige mais do que a inteligência de guerra, que se guia
por questões como “onde ponho meus batalhões”, agora a questão é
“onde ponho respiradouros”. Como nas guerras napoleônicas, onde é
preciso alimentar os homens, é preciso saber como manter o sistema
de saúde vivo: a resposta é a quarentena absoluta. Qualquer tecnocrata
que considere a racionalidade econômica, “é preciso pensar nas
empresas”, esquece a dimensão apocalíptica do que vivemos. Para
eles, a previsão de um milhão de mortos no país não lhes afeta. Não é
assim que agem o Presidente da República Jair Bolsonaro e o
Ministro da Economia Paulo Guedes? “É uma gripezinha”, diz um;
“se todos ficarem em casa o país quebra”, diz outro. Virilio diz-se
surpreso com a falta de conhecimento a respeito da destruição nuclear
pelos militares, sua ignorância da experiência dessa destruição,
simplesmente não lhes interessa. Ficamos surpresos hoje com o fato
de que para grande parte da população e para nosso presidente e do
ministro da economia falta conhecimento sobre os efeitos da
pandemia.

A guerra pura contra o vírus é uma guerra permanente. Há pouco


tempo o presidente fez uma pequena festa de aniversário: parece que
a autoridade máxima do país é um dos únicos que não se encontra em
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guerra declarada. É o que se constata da reportagem de Cida Oliveira,


da RBA, publicada pelo jornal eletrônico SUL21 aponta a
recomendação do Banco Mundial para enfrentar a crise do
coronavírus com robustos investimentos em saúde e proteção das
populações mais vulneráveis “O Brasil, porém, não tem seguido o
mesmo exemplo”, diz. Em vez disso, tem se limitado a um
remanejamento orçamentário e grande parte das medidas anunciadas
pelo governo não tratam de novos recursos em economia. São meros
adiantamentos de pagamentos ou adiantamentos de recursos, diz a
reportagem. Já o ministro Paulo Guedes é acusado de não querer
abrir mão da política de austeridade nem neste momento de crise.

Virilio diz que, nos anos 80, que a Segunda Guerra Mundial não
havia terminado porque, com a Paz Total, ela continua por outros
meios. Ele pensa na Guerra Fria, na dissuasão, nas guerras entre
estados, como a do Irã e Iraque, e nos tumultos públicos em diversos
países. Para Virilio “ou a guerra é nuclear ou não é nada”. Hoje,
sabemos que ela pode ser outra coisa como uma guerra contra um
vírus, a guerra sanitária, que cria a classe sanitário-militar. Ao invés da
guerra terrorista de que fala Virilio, o novo terrorismo emerge dos
vírus porque eles estão por todo o lugar: os casos irão estourar na
primeira quinzena de abril, e as autoridades dizem isso
sucessivamente com o passar do tempo, e por isso o imperativo “não
saia de casa”. O vírus coloca uma questão para todos: “agora, o que
vocês irão fazer?”. Aqueles que ainda teimam em ir às ruas não se
reconhecem em guerra, como se ficar em casa fosse transformar cada
um de nós em prisioneiro de guerra. Por isso a arte da dissuasão é o
convencimento, nosso autoisolamento é um ato de guerra sem a
guerra tradicional. Não somos reféns, escolhemos o isolamento social
como forma de participar da máquina de guerra contra o vírus. Não
devemos recusar o isolamento, ao contrário, é nossa forma de
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guerrilha urbana: para enfrentar um vírus terrorista é preciso que a


sociedade se torne terrorista para o vírus, que o prive de nossa
presença para ele, é preciso retirar a única possibilidade de sua
reprodução que somos nós! “Com que direito?” pergunta o
coronavírus incrédulo, a que segue a resposta “com o direito de cada
um de lutar pela sua vida”.

Imagem de pedro_wroclaw por Pixabay

Contribuição para a guerra sanitária em curso

Em 1999, surge na França à publicação Tiqqun, revista de natureza


insurrecionalista com o objetivo de “recriar as condições para outra
comunidade”. O nome da revista advém da tradução afrancesada do
termo hebreu Tikun Olam empregado no judaísmo tradicional e na
tradição da cabala que significa literalmente “arrumar/consertar o
mundo”, mas também pode querer dizer reparação, restituição e
redenção, significando também na concepção judaica “justiça social”.
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A respeito da publicação, o filósofo Giorgio Agamben na


introdução de Contribuição à Guerra em Curso (n-1 edições, 2019)
situa a equipe de Tiqqun na radicalização da herança de Michel
Foucault, o que significa a publicação reúne de estudos que levam ao
extremo a combinação da análise das técnicas de governo e os
processos de subjetivação em relação ao poder “o poder não tem mais
centro, mas é um imenso acúmulo de dispositivos nos quais está
enredado o sujeito, ou antes, como diz Michel Foucault, os processos
de subjetivação” diz (TIQQUN: 2019, p.261) sobre a obra que reúne
os textos principais de duas edições da revista. A grande novidade
proposta pelo grupo, que não quer se identificar, é sua crítica
direcionada ao Estado: a guerra civil permanente é para o grupo algo
instaurado pelo Estado, daí a importância de sua leitura para o Brasil
hoje, conforme demonstro no capítulo quatro, no texto O governo
contrarrevolucionário de Jair Bolsonaro.

Tiqqun refere-se à guerra declarada pelo estado francês contra seus


cidadãos, visível na aplicação de medidas biométricas concebidas para
criminosos para toda a população e na criação de uma carteira de
identidade com dados biométricos, algo também concebido para
criminosos. Diz Tiqqun “portanto, se o Estado nos trata como
criminosos ou terroristas em potência, não devemos nos espantar com
o fato de que quem se recursa a submeter-se ou denuncia esse estado
de coisas seja tratado justamente como terrorista” (TIQQUN: 2019, p.
265).

Se o Estado é capaz de declarar guerra com seu cidadão, a hipótese


sugerida pelo Tiqqun é: o governo Bolsonaro também não declara
guerra sanitária aos cidadãos? Com medidas que vão à contramão das
medidas sanitárias indicadas pelo ministro de saúde Luís Eduardo
Mandetta e autoridades epidemiológicas, pelas sucessivas ações
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cênicas em público, por suas manifestações “é uma gripezinha”, o


presidente também não declara guerra aos cidadãos, desafio que se dá
pela imposição de uma vontade contra todas as medidas restritivas?
Podemos atualizar assim a passagem de Sólon na Constituição de
Atenas e que abre o estudo do Tiqqun, onde temos o seguinte
“Aquele que, na guerra sanitária, não tomar partido, será marcado
pela infâmia e perderá todo o direito a saúde”. Toda a primeira parte
de Contribuição para a guerra civil em curso parte do entendimento
do corpo das formas de vida e nesse sentido, o texto é construído a
partir de afirmações filosóficas inspiradas no pensamento do filósofo
Michel Foucault, mas também do filósofo Gilles Deleuze e do
psicanalista Félix Guattari e que visam redefinir, a partir de uma
metafísica da guerra, a própria guerra civil na história.

A guerra sanitária coloca em jogo nossas formas-de-vida, nosso


principio econômico de coexistência. É um confronto bruto que visa
superar nossos princípios básicos pela imposição da importância do
econômico, que não tem mais nenhum sentido frente à violência do
vírus, sua capacidade de causar morte em escala planetária.
Queríamos uma economia global, conseguimos um vírus global.

A guerra sanitária une uma guerra civil, de todos os cidadãos, com


uma guerra militar, do sistema de saúde do estado organizado de
forma militar. Guerra sanitária que exige, para além da compreensão
da política, que a economia de um país seja canalizada para a ela. Isto
acontece, mas não da forma dirigida pelo estado: empresas se
conscientizam e liberam funcionários, universidades produzem
implementos para médicos e a própria indústria, ao menos nos
Estados Unidos, é convocada a produzir para a guerra sanitária.
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A guerra sanitária é diferente da guerra tradicional porque não tem


início e nem fim que possa ser declarado. Não existe Tratado de
Versalhes para por fim a guerra, por derrota de um dos lados. O vírus
não será derrotado, ele não sai do jogo da guerra, mas a vacina,
quando houver, poupará seus mortos. Os vírus vêm para ficar, H1N1
e todos os outros, incluindo o coronavírus, mostram que o mundo
está se tornando algo perigoso para os corpos como o ser humano está
se tornando para o planeta. Tiqqun afirma que:

“a violência é uma novidade histórica; nós decadentes, somos os


primeiros a conhecer essa coisa curiosa: a violência. As sociedades
tradicionais conheciam o roubo, a blasfêmia, o parricídio, o rapto,
o sacrifício, a afronta e a vingança; já os Estados Modernos, por trás
do dilema da qualificação dos fatos, tendiam a não reconhecer
senão a infração à Lei e a pena que vinha para corrigi-la, é
vitalmente importante reconhecê-la para melhor erradicá-la. Na
realidade, a violência existe para nós como aquilo de que fomos
despossuídos e que hoje devemos nos reapropriar” (TIQQUN:
2019, p.27).

Nos fomos despossuídos do direito à saúde: isolamento é nossa


forma de reapropriação. O vírus assume o lugar de um mal radical e
único, se apresenta em diferentes formas (H1N1, coronavírus) A
guerra, seja militar ou civil, é sempre circunscrita a um lugar, Guerra
Civil na França (1871), Guerra Civil na Espanha (1936–39), diz
Tiqqun. Por isso a superioridade da guerra ao vírus, à pandemia é
nossa guerra global, independente de país. A vitória de um país na
guerra sanitária ainda é reminiscência do tempo em que as guerras
eram entre estados. A guerra sanitária é a exceção ao curso normal da
guerra: como na China, ela pode ser vencida, mas pode voltar, através
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do turismo, dos viajantes de outros países que a reintroduzem onde


havia sido controlada.

Com o isolamento ainda existem comunidades? Sim, porque ainda


que isolados em suas casas, fora da ágora pública, passamos pela
mesma experiência, construímos um pacto, uma decisão coletiva “É
justamente porque não tem acesso a nenhuma comunidade real, e,
portanto, em virtude de sua extrema separação, que o intelectual
ocidental pode forjar para si esse pequeno fetiche para distração, a
comunidade humana” (TIQQUN: 2019, p.30). Para Tiqqun, a
comunidade está nas relações singulares. A comunidade circula, está
nos moradores do prédio que cantam parabéns a você do alto de suas
sacadas, de estudantes na universidade que investigam opções de
auxílio, “certos corpos vão juntos, tendem, inclinam-se um em direção
ao outro; há entre eles comunidade” (TIQQUN: 2019, p.32).

Tiqqun define a experiência da hostilidade como aquela do


confronto de formas de vidas estranhas. Não é exatamente esse o
lugar destinado àqueles que são indiferentes à pandemia, aqueles que
não acreditam nas imagens da tragédia “isso não acontecerá entre
nós”. Diz Tiqqun que “hostil é um nada que exige ser aniquilado, seja
cessando de ser hostil, seja cessando de existir”. É essa exigência de
aniquilação que representam as carreatas pelo país pela abertura do
comércio, pelo retorno à vida comum “a roda da economia não pode
parar”, pessoas que, contra tudo e contra todos, exigem serem
aniquiladas, exatamente como prevê o ex-ministro Ministro da Saúde
Luiz Eduardo Mandetta, serão os primeiros a clamar pelo
atendimento de saúde. Por essa razão, a médica Adriana de Oliveira
Melo, indignada com a abertura do comércio em na cidade de
Campina Grande (PB), sugere às pessoas favoráveis à liberação do
comércio que assinem um termo de renúncia de uso de respiradores,
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caso sejam internados com suspeita de coronavírus, como noticia o


Jornal O Estado de Minas. A hostilidade daqueles que recusam a
realidade mortal do vírus só pode vir da classe capitalista porque ela
está acostumada a ela, à violência das relações contratuais que mantém
e as práticas da redução do Outro a objeto. Não é o que se vê nos
empresários que saem junto de carro com suas máscaras para
reivindicar a abertura do comércio “a gente se compreende”, eles
dizem. Contra a hostilidade, somente a hospitalidade, como no caso
da vizinha que chama a amiga solitária para conviver no mesmo
apartamento durante a pandemia. Se na raiz de “hostil” está a palavra
“inimigo”, na raiz de “hospitaleiro” está a palavra “que recebe o outro
como amigo”.

“O que está em jogo no confronto com o inimigo jamais é sua


existência, mas sua potência. Um inimigo aniquilado não só não
pode reconhecer sua derrota como sempre acaba voltando como
um espectro, mais tarde, como hostis” (TIQQUN: 2019, p.47).

A força dos vírus é sua potência mortal, é sua capacidade de


aniquilamento. Aniquilar o vírus é impossível, ele está aí para ficar,
sob a prisão de nossa resistência adquirida, das vacinas e das formas
de evitar o contágio. O que é assustador é conviver com o espectro de
seu possível retorno futuro, de suas mutações e da produção de
diferença que escapa às vacinas e tratamentos “essa condição redefine
a função do estado. Rousseau pensou poder opor a Hobbes que o
estado de guerra nasce do estado social” (TIQQUN: 2019, p.80),
oposição do mal selvagem ao bom selvagem. Outra definição se
impõe com o coronavírus.

Não estamos preparados para fundar o estado, não sobre uma


ordem social, mas sobre uma ordem sanitária. Introduz-se um terceiro
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elemento nesta relação, a natureza, que retorna como nos relatos dos
navegantes da época de Thomas Hobbes que falam do Novo Mundo,
do estado de natureza, de liberdade absoluta, lugares sem homem,
sem soberanos e sem sujeitos e que vivem num estado de anarquia e
de guerra. Não é notável que essa nova natureza retorne sob a forma
de um vírus desconhecido e mortal, detentor da liberdade absoluta de
expansão porque é um vírus global, que reestabelece não para si, mas
para o mundo o estado de anarquia no sistema hospitalar, que é
incapaz de dar conta de seus mortos, e de guerra sanitária nos
estados?

Pierre Clastres inspira uma interpretação do papel do estado na


guerra sanitária. Ele diz que a sociedade primitiva é uma
multiplicidade de comunidades indivisas que obedecem todas a uma
mesma lógica centrífuga que é garantida por uma coisa comum:

“a guerra como verdade das relações entre as comunidades… a


máquina de guerra é como parte da máquina social, o ser social
primitivo baseia-se inteiramente sobre a guerra, o melhor inimigo
do Estado é a guerra”(TIQQUN: 2019, p.81-82).

Na concepção de Clastres de guerra, trata-se daquela entre


sociedade e Estado. A sociedade nasce para a guerra e, vendo esta
situação como termos contraditórios, já que um nega o Outro, a
guerra impede a existência do Estado e este impede a guerra, significa
que o Estado encarna a luta pela unificação que a guerra divide. O
vírus eleva o patamar das relações entre guerra e Estado porque
introduz um terceiro na relação Estado e sociedade: agora a sociedade
se unifica sob o mando do Estado contra um inimigo estrangeiro, não
se trata mais da guerra de todos contra todos, mas de todos contra um,
o vírus. O Estado deixa de ser uma máquina antiguerreira para se
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transformar no seu contrário, e é nesse sentido que é preciso superar


o pensamento do autor de O Leviatã, de pensar a guerra nem numa
situação de exclusão, sem Estado, nem numa relação de inclusão, nem
um nem outro, mas numa situação de parceria, contra um inimigo
comum.

Pois bem, a guerra!

No dia 15 de janeiro de 1999, o coletivo anarquista Tiqqun publica


o manifesto em que resume seu programa de luta social contra a
desigualdade dos povos. A emergência da pandemia do coronavírus
exige sua atualização. Ela seria mais ou menos a seguinte.

Precisamos retornar aos princípios. Estamos em guerra contra um


vírus mortal. Deriva dessa consciência nossa ação sanitária. Quando
um vírus vem para nos arruinar, devemos lhe impor o mesmo
movimento, privá-lo de nossa presença “não limpamos uma casa que
desmorona”. O equilíbrio entre economia e reclusão está fora de
questão, a impotência da economia não está em discussão, valem as
vidas.

Tudo que colabora para a morte do vírus é bom. O mundo do


vírus-espetáculo não é bom porque nos sobrecarrega de informação.
O mistério da efetividade do vírus está no fato de que ele é um nada
“ativo”, algo microscópico capaz de sobreviver nove dias sob algumas
superfícies, o metal e o plástico, principalmente. O vírus vive de nossa
capacidade de não distinguir o que é prioritário do que é secundário,
de que a vida importa mais do que a economia “a indistinção é seu
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reino, a indiferença seu poder”. Isso satisfaz o vírus: capitalistas


pedindo a volta do comércio, que leva a aglomerações e mata. A
indiferença dos capitalistas para com seus trabalhadores é fonte de
poder do vírus.

O vírus quer que o ser retorne ao nada, a morte. Para devolver este
desafio, só o isolamento absoluto mata o vírus. Um mínimo de
circulação dá oxigênio ao vírus, que depois retira do cidadão, nos
casos graves de pneumonia, o ar que mata suas vítimas. A questão não
é conciliar combate ao vírus e atividade econômica “isso não
depende”, não há opção entre “uma” e “outra”, mas entre “uma” ou
“outra”. Não há opção.

Capitalistas que usam o argumento de que não adianta viver sem


emprego estão no mesmo lugar dos cientistas que defendem
isolamento somente para os casos mais graves, tudo isso são formas da
intolerância em perder a economia. Aqueles que se vangloriam de
salvar a nação com os empregos que oferecem são incapazes de
organizar passeatas fora de seus carros chiques e sem máscaras, pois
eles no fundo, também morrem de medo de... morrer.

O vírus é novo e estamos conhecendo-o, como o estrategista que


busca conhecer o inimigo. Mas nosso desconhecimento não deve
servir de álibi para o Capital, para os empresários medíocres que
apenas se preocupam com seus lucros e o valor de suas ações nas
bolsas. Até agora sabemos que isolamento incrementa a redução do
avanço da morte no tempo, mas que isto é importante porque assim,
o sistema de saúde sobrevive, não morre junto conosco. Precisamos
dele para ter o que deixar para nossos filhos.

O vírus não é nossa primeira catástrofe, ele não suspende o “curso


normal das coisas”. Vamos inverter a questão. É nossa vida ordinária
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que é uma catástrofe, econômica e social, com a desigualdade, a


pobreza e a exclusão social. Seu efeito é que produz o coronavírus, ele
apenas ilumina nossa trágica existência e nos aponta que, nesse
caminho de exploração da riqueza, se expropriamos os habitats, novos
vírus virão.

Toda a história se resume ao momento em que uma sociedade, ao


se expandir como câncer, se vê sitiada pelo mal que ajuda a criar,
forma da natureza retomar o seu controle sobre sua criação, no caso,
nós, a humanidade e o mundo. Pois se agimos como se não fôssemos
filhos de alguém, filiação que exige o respeito à natureza, e se damos
em retorno o se apropriar e retirar riqueza, o fim se torna nosso
destino. Por isso, “é conveniente ter um panteão”, diz Tiqqun, é
conveniente ter veneração pelos ancestrais “a verdade sempre disse a
mesma coisa de mil maneiras”. Quando o filósofo Jean Baudrillard
em sua obra A troca simbólica e a morte fala que as coisas tem essa
capacidade de se “vingar” quando chega a hora, significa que a
natureza é capaz, de tempos em tempos, por todos no mesmo lugar, a
nos confrontar com sua finitude. É como se o vírus chegasse diante e
você e dissesse: “você sabe com quem está falando?”

Alguns acham que não é necessária quarentena intensiva. A esse


respeito, diz Tiqqun “Eles serão punidos por isso. Eles não escapam
da verdade, enquanto a verdade lhes escapa. Eles não a enterram
enquanto ela os enterrará”. Essa é a metafísica crítica de nossos
tempos que auxilia a entender o que está acontecendo com nosso
mundo e incentiva a fazer uma revolta, a de retomar o nosso mundo,
porque “este mundo precisa de verdade, não de consolações”. Quem
acha que devemos voltar à normalidade é a dominação capitalista, que
criticamos, à servidão que ainda paira entre nós, que quer-nos
escravos... “felizes”. Todos querem viver, enquanto esses que fazem
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carreatas no interior de seus carros de luxo só “perseguem os destinos


da morte. Inclusive, eles querem se repousar e deixam filhos”.

Nem o homem e a natureza são mercadorias. A natureza é uma


espécie de segunda alma humana “mais bela e mais legítima que a
primeira, [a que] deveríamos nos dobrar a sua autoridade”. Como o
câncer que faz o homem desmoronar, o vírus também o faz em pouco
tempo “os homens são responsáveis pelo mundo que eles não
criaram”, definição exata para o Capital, esse mundo criado
independente de nossa vontade e que nos organiza e nos impõe
consequências, “daí a guerra”, finaliza Tiqqun.

“Felicidade nunca foi sinônimo de paz”, especialmente em tempos


de coronavírus. Milhares de estudos e artigos tentam compreendê-lo,
dialogar com ele, mas “o inimigo não tem a inteligência das palavras, o
inimigo as pisoteia”. Para voltarmos à felicidade, precisamos defender
uma ideia ofensiva, precisamos da “arte de converter o sofrimento em
força”. Somos sensíveis e por isso sofremos: nada disso, somos
sensíveis e por isso agimos.

Os capitalistas de plantão se associaram ao vírus e insistem na


mesma ladainha: a vida neste tempo é um bem de pouco valor. Todos
morrem. Porque alguns não neste exato momento? Não é o que
defende o presidente da república e empresários nacionais? “É que as
forças de aniquilamento estão engajadas em uma via muito distinta
daquela onde se esperaria encontrá-la”, diz Tiqqun.

Estamos em combate a um vírus mortal e parte da sociedade


comporta-se como jovens imbecis, pessoas torpes, em apelo
incessante a restrição mental “Aqueles que não compreendem hoje já
empregaram toda sua força ontem, justamente para não compreender.
Em seu foro interior, o homem já está ciente do estado do mundo”.
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Estado do mundo do Capital é exatamente esse, no qual uma parcela


é lixo, descartável, pois só a economia importa. Triste.

Estamos vivendo uma nova era. Voltamos ao lar, ao convívio da


família, isso é por meio do medo que o coronavírus provoca, o medo
da morte. Há algo de promissor aí porque “cada novo modo de ser
arruína o modo de ser precedente e só então, sobre as ruínas do
antigo, que o novo começa”. Isto é chamado de as dores do parto.
Exatamente porque está sendo arruinado nosso modo de ser no
mundo que podemos mudar diversas coisas.

Vivemos uma guerra que não foi precedida de nenhuma


declaração. O vírus simplesmente se instalou entre nós para nos
aniquilar, aniquilar “os mais vivos dentre seus filhos”: não é
exatamente a definição de velhice, o vírus não vitima em primeiro
lugar os mais vivos, que não deixam de ser, ao final, os mais sábios e
velhos?

O pais está mais uma vez dividido graças a seu presidente. Dois
campos fazem parte da guerra, já que o capital deseja que exista
apenas um campo, o seu. Daí o apelo ao retorno às ruas, como nas
guerras onde partidos buscam uma paz militar. Se voltarmos às ruas
estaremos fora da guerra, e sem ela, não seremos nada. Não se luta
contra um vírus e um verme ao mesmo tempo tornou-se uma frase
que circula nas redes sociais “eles (os vermes) devem ser afastados
para aclarar o alvo”, o que também significa que a mentira só pode ser
vencida pela verdade, que junta todos “nós somos nós e nossos
irmãos”, diz Tiqqun.

Só sairemos desta guerra se considerarmos os preceitos médicos de


isolamento radical como nossa verdade “a inteligência deve ser tornar
um assunto coletivo”, finaliza Tiqqun.
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A metamorfose que o vírus provoca

Emanuele Coccia é conhecido no Brasil pela publicação do livro A


vida das plantas (CULTURA E BARBÁRIE, 2020) onde faz análises
e comparações entre o mundo animal e o vegetal que chegam, a
inclusive, a cogitar a capacidade das plantas de realizar a revolução. O
autor publicou recentemente também o livro Metamorfoses
(RIVAGES, 2020), ainda não traduzido, onde narra como vê o que é
vivo e sua transcendência. Professor de filosofia da Escola de Estudos
Avançados em Ciências Sociais (EHESS), Coccia é apaixonado por
botânica, entomologia e latim e Metamorfoses é uma definição de seu
plano de trabalho “Este livro afirma a unidade de todos os seres vivos,
presente, futuro e passado, e a unidade dos vivos com toda a matéria
do mundo: é isso que costuma ser chamado de panteísmo”. Essa
habilidade de relatar os vínculos entre as espécies, o mineral, animal e
os... vírus e como estão ligados é que torna suas ideias importantes
num tempo de pandemia.

Coccia se inspira em fontes que combinam biólogos, escritores e


psicanalistas como Charles Darwin, Carl Linné, Donald Irving
Williamson, Samuel Butler e Sándor Ferenczi que lhe permitem
passear por temas tão distintos quanto à origem da alimentação à
análise da transformação da lagarta em borboleta. O autor mistura o
natural com o espiritual e sua inspiração no pensamento de Gaston
Bachelard faz com que sua análise crítica seja repleta de poesia. De
forma profética, já que o livro foi lançado meses antes da pandemia,
afirma:

“Não precisamos nos proteger das doenças. Não precisamos ser


vacinados contra o vírus do tempo. Inútil. Nossa carne nunca vai
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parar de mudar. Devemos estar doentes, muito doentes. Sem


medo de morrer. Somos o futuro. Vivemos rápido. Morremos
frequentemente” (COCCIA: 2020).

Essa aceitação do destino é a mesma característica da vida cotidiana


apontada pelo sociólogo francês Michel Mafessoli.

“Enfrentamos um vírus, não entre em pânico”, afirmação que faz


perceber a crise de uma forma particular. Há algo curioso sobre
esta crise. Como em um conto de fadas, uma pequena criatura
invadiu todas as cidades do mundo. É ainda difícil atribuir a ela o
atributo de “viver” (COCCIA: 2020).

Esse agregado de material genético livre invadiu as praças das


aldeias e metrópoles e, de repente, a paisagem política mudou de
forma total. Sua ideia de vírus é a de um ser limítrofe cujo corpo está
entre a vida e a morte

“é como o mecanismo químico, material e dinâmico de


desenvolvimento e reprodução de todos os seres vivos, mas que
existe fora da estrutura celular, de forma mais anárquica e mais
livre. Um vírus é uma forma de vida que habita o limiar entre a
vida 'química' que caracteriza a matéria e a vida biológica, sem
pertencer a uma mais que a outra” (COCCIA: 2020).

Para Coccia, não há outra forma de reagir, a não ser aprender a


conviver com o vírus, adotar novos hábitos, enfrentar desafios, ceder
sempre do imperativo econômico, pois o vírus veio para se apropriar
do homem “apropriado significa que um vírus contamina, transforma,
metamorfoseia, da mesma maneira que „se apropriar do futuro
significa expor-se a mudanças irreparáveis‟” (COCCIA: 2020).
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Não temos como negar o vírus e sua natureza. Como das coisas
vivas e inertes, o vírus faz parte da unidade da matéria do mundo, ou
aquilo que Coccia chama de panteísmo. Para o autor, estamos em
transformação, estamos em metamorfose, mas não devemos temê-la,
ao contrário. Hábitos vieram para ficar e, provavelmente, a
transformação – se houver – nos comportamentos será certo tipo de
vacina para novas pandemias:

“Metamorfose é a relação de continuidade que liga dois corpos


que nada têm em comum nem no plano anatômico, nem no nível
etológico, nem no o plano ecológico. Pegue o caso mais simples, o
da lagarta e da borboleta. A silhueta deles não tem nada em
comum. O que importa é o ethos ou o estilo de vida deles: um é
um ser que passa a vida comendo como se o mundo fosse um
enorme McDonald's, o outro uma sátira feita para o sexo. Seus
nichos ecológicos também são incompatíveis. E, no entanto, esses
dois corpos, essas duas formas de vida, esses dois mundos são
cruzados por um e outro” (COCCIA: 2020).

Vírus irão retornar em nossa história e quem sabe quantos outros


contatos entre espécies isoladas ainda estão por vir. Para Coccia, a
lição da metamorfose que o vírus nos dá é que não há uma única
forma de renovar e preservar a vida “a vida é o que atravessa e
conectam vários mundos, várias formas éticas, vários corpos.” Estamos
em metamorfose graças ao vírus ou apesar dele, o que significa que
somos obrigados a ver que nossa forma de ser e de existir tem
diferenças em relação ao passado, quando não havia vírus, o presente,
enquanto ele existe, e o futuro, quando poderá voltar.

“Todos os indivíduos da mesma espécie, mas também todas as


espécies (cada uma das quais, como Darwin demonstrou, é a
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metamorfose da outra) são, portanto, a expressão de uma e da


mesma vida. Não somos apenas aliados, não somos uma família:
compartilhamos a mesma carne. A comida é a prova mais óbvia: a
carne de um ser muito distante de nós, do ponto de vista
taxonômico, pode se tornar nossa carne. Desse ponto de vista, toda
metamorfose é simultaneamente individual e coletiva, porque
opera na carne (e na vida) que é comum a todos” (COCCIA:
2020).

Não é notável que Coccia seja capaz de dar essa unidade


exatamente onde surgiu à pandemia, na comida, em nossa carne, o
que mostra as sucessivas metamorfoses, inclusive do vírus, é capaz de
realizar? E não vivemos o vírus como algo que afeta a espécie, isto é,
como algo comum a todos, onde, em todo o mundo, medidas de
cuidado e profilaxia são executadas, previstos e programados?

Coccia não se refere apenas a metamorfose que provoca o vírus em


nós como seres humanos. Ele também sugere que a cidade se
metamorfoseia: o que é a cena de cidades desérticas, imagem que
nunca poderíamos imaginar, reproduzindo-se pelo mundo afora se
não a mutação do espaço como destaca o autor:

“As cidades estavam cansadas, espaços antigos, imaginados para


uma vida que não é nossa há pelo menos dois séculos. Nós desde
então embarcamos em uma estranha experiência global de
monasticismo planetário: a cidade não existe mais e o que resta é
uma colcha de retalhos de casas, apartamentos irregulares, teatros.
Talvez precisemos ficar para sempre livres da ideia da cidade como
o teatro original e principal da política” (COCCIA: 2020).

Não é que as pessoas não serão mais as mesmas depois do


coronavírus, são nossas cidades que não serão como mostra a imagem
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do Papa Francisco em oração solitária na Basílica de São Pedro ou


como o do cantor solitário Andrea Bocelli no Domo de Milão. O
vírus irá impor suas exigências de equilíbrio nas cidades para
arquitetos, urbanistas e planejadores. Fim da grande agricultura
industrial de exportação, necessidade de buscar o que se precisa para
viver mais perto de nós e valorizar a agricultura local:

“Toda a vida que precisamos para viver - trigo e arroz, tomate,


maçãs, vacas, porcos, tudo o que comemos - foi exilado em outro
lugar. E toda a vida que não fazia parte de nossas necessidades foi
mantida ainda mais distante, em espaços chamados florestas,
literalmente no extremo exterior - uma espécie campo de
refugiados para toda a vida que não nos interessa” (COCCIA:
2020).

O coronavírus impõe pensar sobre o lugar onde realmente se vive a


vida humana, se na cidade ou fora dela e o que se precisa para viver,
de onde que virão nossos alimentos, se da floresta, porque “nos
permite lembrar que o espaço que chamamos de cidade é um espaço
que não nos pertence” (COCCIA: 2020). Como é que o coronavírus
surge? Do contato de pessoas com espaços habitadas por outras
espécies, verdadeiras novas cidades biológicas não humanas que,
colocados em contato, permitiram que:

“esse novo vírus chegasse à cidade, como se quisesse nos lembrar


de que o futuro não pode ser desviado. Nenhum distanciamento
social pode nos proteger do nosso tempo: o tempo para reescrever
um novo contrato urbano. O espaço do futuro terá que acomodar
o maior número de espécies” (COCCIA: 2020).

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