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A DECISÃO EM BIOÉTICA

Dr. Alvino Moser,

Ex-UFPR, Professor da UNINTER

CURITIBA
2008
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À GUISA DE INTRODUÇÃO

Ao pensar no que deveria escrever para o início da questão proposta para o título
dessas reflexões, vieram-me à lembrança idéias que palmilharam minha trajetória
intelectual, pequena, mas minha. Não são apenas marcas no caminho percorrido,
mas é o chão sobre o qual andei perambulando. Infelizmente não tinha lâmpada de
Diógenes que iluminasse o meu caminhar. Pois o caminhar é feito pelas decisões, e
nada, nem no, nem na terá, segundo Sartre, podem me indicar a direção a seguir,
pois a decisão só é minha, e ninguém pode fazê-la em meu lugar.

A lembrança trouxe-me à memória Albert Camus, que, em uma de suas numerosas


obras de Djemila. Fala dos ventos em Djemila,1é um lugar para o qual todos os
cominhos conduzem, mas de lá não indicam lugar nenhum para seguir adiante.Isso
simboliza, para mim, a definição do homem lançada por Soren Kierkegaard, ao
tratar da angústia humana. O homem é uma possibilidade. E a possibilidade coloca
o homem, o eu, frente à condição, ocasião ou alternativas desconhecidas. Todas
são possibilidades: possibilidade do sim ou não. Essa possibilidade do
desconhecido de meu decidir é o que se denomina de angústia. A angústia é uma
ameaça, não de algum objeto ou condição conhecida ou percebida; nesse caso a
ameaça provocaria o medo, pois saberia quais as conseqüências do acerto ou do
erro de sua escolha.

A angústia, cujo significado é caminho estreito, situa-se dentro do próprio eu


que é um ser livre. E a liberdade de escolha põe o homem diante do que lhe
ocorrerá e como for sua eleição. Qualquer escolha é possível e na é previsível,
mesmo diante das coações que posam advir, por mais que se esforcem os
psicanalistas, os psicólogos, os biólogos, os neurologistas, os biólogos, os
sociólogos ou os políticos. O que está, naquilo que Mafessoli fala de subterrâneo do
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Albert Camus nasceu em 1913 em Mondovi (Algéria). Foi expulso da Algéria entra no Paris-Soir. Em 1935
foi demitido do comissariado do Partido Comunista. Em 1957 recebe o prêmio Nobel em Literatura com a
obra O Estrangeiro, prefaciado por Jea-Paul Sartre.Morre em acidente de trânsito em 1960, aos 57 anos de
idade. Escreveu Ensaios, obras teatrais, ficando famoso na década do de 1960, década em que se cultivavam os
autores existencialistas.
Djemila ( também Cuicul) é uma cidade situada a 900metros do nível do mar. É patrimônio da humanidade
declarada pela Unesco em 1982. É um exemplo do urbanismo romano, sendo um lugar de encanto para os
turistas que cultivam a história. Djemila é também denominada bela africana.
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ser de massa. (2008). A pessoa está sempre diante do que Becker denomina de
Unbekannte Ich, o eu desconhecido.

Jea-Paul Sartre (1973)lembra isso quando escreve que “o homem é um ser


suspenso à sua liberdade”, mais como o asno de Buridan. E a liberdade é a
possibilidade do sim ou do não. Não existem meias decisões. O homem como vir-a-
ser , como o seu ser, é resultado ou a composição de suas escolhas sejam elas
quais forem, mas não previsíveis. Eis o que gera a angústia.

Mas o que seve, na contemporaneidade, nas discussões dos livros, das


aulas, nas conversas, nos debates da mídia e nos livros,? Vê-se que o homem se
encurralou tanto no travestimento do ser em ter que não tem mais saída, senão
perder ou ganhar. Mas soe que a maioria perde e uma minoria de “privilegiados”,
mais iguais do os outros todos iguais, essa maioria sai sempre vencedora. E os
homens, na maioria são os homens de ferro segundo Hesíodo que já nascem com
as cãs brancas, por que não vivem, apenas envelhecem, e os que deveriam dirigir
não são os sábios, os homens de ouro, que tem a sabedoria. Mas os que decidem
são os homens de prata, os tiranos, não importa a forma de tirania, se econômico-
financeira, são tiranos , homens de prata, que são eternos adolescentes que jamais
chegam a ser adultos, pois apenas pensem nas sua classes privilegiadas. Socorrem
os bancos que esmagaram seus clientes com juros escorchantes para se banharem
na espuma que criaram, multiplicando, nessa engenharia, que são poucos, e os
adolescentes (tradução de kidults) de prata e os homens de ferro, existem os heróis,
que são aqueles que tentam impor a justiça, sobre a violência, a dikê sobre a hybris.
São esses os s homens de bronze, que não tem infância, por que são heróis que
morrem lutando. Entre eles estão alguns que procuram fugir das imposições sócio-
econômicas e lembram ao mundo que ainda há esperanças.

Diante desses indivíduos que vemos nas ruas, nos ônibus, nos aeroportos,
nos shoppings, uma massa que parece ser feita de apêndices de celulares ou de
outros aparatos mais sofisticados em banda larga ou em G3, o homem se procura,
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em tudo, como o disse Heráclito: Procurei-me em todas as coisas,

Essa procura, no entanto, se faz cada vez mais difícil. Basta lembrarmo-nos
de Milan Kundera, no seu romance A INSUSTENTÁVEL LEVEZADO SER: Não há
ensaio para a vida, a vida se vive a cada segundo de cada vez, envelhecemos no
segundo segundo de nosso existir, por mais que queiramos disfarçar por colágenos,
plásticas ou bótox. O homem, em geral parece mais um ser lusco-fusco-
lantejoulesco que procura o brilho fugaz das purpurinas coloridas ter mais e, saber
mais, e poder mais. No entanto, lembra Luc Ferry em APRENDER A VIVER, é
necessário “esperar um pouco menos e amar muito mais. Esperar menos por que a
esperança é ilusão: nunca saberemos tudo. E´frustração porque nunca satisfaremos
nossos desejos. E´impotência porque nunca seremos capazes de dirigir e comandar
e ter o poder sobre tudo.

Lembro-me de Jaime Balmes que dizia já há muitos anos atrás no século


XVII, se não me falha a memória (quem fala de Balmes?), a pessoa humana é o
único ser que sabe se enganar a si mesmo.

Alguém disse que homem é ao a pessoa que marco um encontro como outra
pessoa, e quando chega ao lugar do marcado, a pessoa vira a esquina. Assim é o
homem, sempre uma passo atrás e uma passo à frente de si mesmo, nunca está
satisfeito consigo mesmo, pois se procura onde não deve descobrir-se.

Diante disso é que me proponho essa reflexões sobre A DECISÃO EM BIOÉTICA,


como disse Jacques Testard, é preciso que homens pensem. Que a humanidade
toda se ponha aa mesa para o diálogo, antes que seja tarde de mais. Pois as
escolhas Aa engenharia Bioética, como no caso dos transgênicos, põe-nos à gente
de uma situação de risco. E uma situação de risco acontece quando não se podem
prever as conseqüências do que se s escolhas feitas.

Espero que o leitor seja benevolente e, talvez, encontre algum elemento para
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refletir sobre o tema, cujas reflexões foram escritas há mais dez anos.

SUMÁRIO

1 OS PRINCÍPIOS DE DECISÃO.............................................................................. 1
1.1 AS INCERTEZAS................................................................................................. 2
1.2 DECISÃO BIOÉTICA, RACIONALIDADE E HERMENÊUTICA........................ 4
2 A DECISÃO EM BIOÉTICA....................................................................................13
2.1 A INCERTEZA DO PRINCÍPIO DE BENEFICÊNCIA...........................................14
2.2 AS DIFICULDADES DA AUTONOMIA..................................................................17
2.3 A JUSTIÇA NO DESAFIO.....................................................................................18
2.4 A DIMENSÃO ÉTICA NA RELAÇÃO MÉDICO/PACIENTE..................................20
2.4.1 Sujeito-unidade-holismo....................................................................................20
2.4.2 Exigências da medicina em mutação................................................................21
2.4.3 As pressões do futuro........................................................................................22
2.5 A DIFÍCIL EXPERIÊNCIA DA DECISÃO BIOÉTICA.............................................24
2.5.1 Os momentos do conflito na decisão................................................................24
2.5.1.1 Os princípios...................................................................................................24
2.5.1.2 A norma ética..................................................................................................25
2.6 A AÇÃO NA SITUAÇÃO: A SABEDORIA PRÁTICA..............................................27
3 A DECISÃO BIOÉTICA NOS QUADROS DA MUTAÇÃO ATUAL.........................30
3.1 AS FASES DA DECISÃO......................................................................................32
3.2 A DELIBERAÇÃO SEGUNDO ARISTÓTELES Ética, VI, I..............................36
3.3 DELIBERAÇÃO ÉTICA E A DECISÃO PRUDENTE.............................................37
3.4 REFERÊNCIAS PARA A ANÁLISE DO PARA UMA TOMADA DE DECISÃO
EM BIOÉTICA.......................................................................................................38
3.4.1 Ponto de vista sistemático.................................................................................39
3.4.2 A questão dos princípios....................................................................................40
3.4.3 Referências fundamentais.................................................................................41
3.4.4 As mutações num referencial de c. pinto de oliveira (1987).............................42
4 A CRIATIVIDADE NA DECISÃO BIOÉTICA...........................................................43
4.1 FINALIZAÇÃO A PRIORI......................................................................................47
4.2 A INVENÇÃO DAS NORMAS DE AÇÃO.............................................................48
5 OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA NA PERSPECTIVA FILOSÓFICA OU
PENÚLTIMA...........................................................................................................50
5.1 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO BIOÉTICA..................................................51
5.2 O FUNDAMENTO NA ÉTICA DA DISCUSSÃO...................................................56
5.2.1 Apel: uma fundamentação na sociedade de comunicação...............................57
5.2.2 Habermas: ética e pragmática universal...........................................................60
5.3 DA DISCUSSÃO AO FUNDAMENTO DA DECISÃO............................................62
5.3.1 A fundamentação...............................................................................................65
5.3.2 Habermas: a ética da discussão........................................................................69
6 CONCLUSÃO CONSEQUÊNCIAS PEDAGÓGICAS PROFESSORES..............73
REFERÊNCIAS......................................................................................................76
1 OS PRINCÍPIOS DE DECISÃO

A ação racional segue-se a uma decisão após deliberação feita a partir de

princípios. A racionalidade se dá quando a decisão se baseia em considerações

objetivas, justificadas e que podem responder pelo acerto da escolha. A ação

humana se decide em vistas de fins e metas que, em última análise, visam o bem

sob certos aspectos pelo menos. A decisão que se orienta especificamente em vista

do BEM é a decisão ética.

Mas os princípios foram formulados diferentemente através da história. Na

Antigüidade os homens se guiavam pela harmonia e equilíbrio universais, como se

nota em Heráclito: "tudo é um" (e outros fragmentos 1,2) e em ANAXIMANDRO

(1973), para apenas citarmos dois. Há subjacente nas atitudes dos antigos, uma

visão cósmica, a tal ponto que os desequilíbrios vitais eram tidos como urna quebra

da harmonia total. Por outro lado, tal postura holística auxiliava a entender as

limitações das interações humanas que, localizadas num determinado ponto

espaço-temporal, não podiam ter o domínio da visão de conjunto ou total da

realidade.

Por outro lado, esta postura sempre presente, impunha limites éticos em

nome da harmonia total, às ações e intervenções humanas em geral, e médicas em

particular. Há urna unidade em ética e perícia que não podem ser separadas, pois a

eficácia exige que se levem em conta parâmetros de bondade.


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O princípio do Corpus Hippocraticum, fazer o bem e não causar o mal,

tendo em vista o "melhor" para o paciente era transpassado, traçado e estruturado

em conceitos éticos: "o melhor", antes de tudo era o BEM, o BEM global da

harmonia cósmica. As decisões eram antes de tudo dominadas pela virtude, ou

procurava-se ser virtuoso em todos os atos da vida.

Mas os avanços técnicos atuais, a aparição do BRAVE NEW WORLD, cujas

descobertas a cada instante estão sendo superadas por outras mais novas e

espetaculares, colocam em novos termos a relação entre filosofia, ética e as

ciências que tratam da vida (Biologia, Genética, Ecologia, Medicina). A nova

Linguagem não apresenta apenas expressões novas como: transplante de órgãos,

fecundação in vitro, mãe de aluguel, reanimação, irradiação, amniocentese,

clonagens, mapa genômico, psicofarmacologia; não só apresentam termos novos

como também colocam problemas éticos novos e faz surgir a Bioética como estudo

interdisciplinar.

"A Bioética é, pois, o complemento necessário da biociência; ao passo que


esta se baseia no princípio das ciências naturais e na avaliação dos riscos, a
Bioética descansa nos princípios morais formulados durante o desenrolar da
história da Ética Geral e profissionalizante e em sua aplicação tradicionalista"
(SASS, p. 394).

1.1 AS INCERTEZAS

Surge uma nova constelação de incertezas que impedem a aplicação da

regra do racionalismo cartesiano: "É verdadeiro tudo o que percebo clara e

distintamente".(DESCARTES, 1963). Não é fácil dirigir-se por aquilo que Aristóteles


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denomina a penetração ou clarividência (ARISTÓTELES,Ética a Nicômaco, 1 VI,

cap. 9, 1967).

Seguir as regras cartesianas, dividir o complexo em partes simples, não é

fácil diante da complexidade das situações e de todos os elementos envolvidos:

pacientes/médicos/sociedade/recursos/técnicas/valores.

HANS-MARTIN SASS afirma que a medicina e as biociências, em geral

acrescentam nós, é hoje urna hermenêutica, urna interpretação. Não urna simples

interpretação como acontece com as humanidades, mas as ações são

determinadas pelos resultados "dos procedimentos hermenêuticos entrelaçados de

forma dialética a interpretação com a interação, a quantificação com a manipulação

e a teoria com a prática". (SASS, p. 393)

Desta forma, o diagnóstico não estabelece nem leis, nem explicações, e

apenas "uma declaração singular temporal". As biociências quando estão diante de

conflitos não se limitam ao domínio apenas das ciências naturais. Há algo de

existencial que as transpassam e determinam a conspiração de seus dados. Os

seres vivos, sobretudo quando nos referimos aos seres que possuem sensibilidade,

e muito mais quando possuem consciência, são rodeados por um mundo semântico,

por um halo de valores que são tão determinantes, ou até mais, que os dados que

as ciências podem coletar.

Numa decisão bioética há que se considerar os valores relativos ao campo

em que se vai operar. No caso humano há os valores dos pacientes que

determinam outro diagnóstico ao lado daquele que é propiciado pelos dados

filosóficos. Há os valores dos cientistas que, em equipe, não constituem um quadro

axiológico homogênio. Existem, ainda, em jogo a axiologia sócio-política do meio

social-comunitário que é atingido direta ou indiretamente pelas ações "temporais",

"reversíveis", "flexíveis", "reorientáveis" das ações em Biociência. A ação bioética é


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antes de tudo uma administração de conflitos hermenêuticos, éticos e

políticos, e até religiosos, além dos sócio-econômicos e técnicos.

Há, pois, numa palavra, a geração de um mundo de incertezas a cada vez

que as cortinas se abrem e mostram novos horizontes ou novas possibilidades. A

cada novo horizonte instala-se a exigência da revisão dos valores humanísticos

tradicionais pois um novo mundo cria um novo homem, tendo em vista que o

homem é mundaneidade (VON USLAAR - 1974). As se afastar o horizonte da

técnica, alarga-se e expande-se a transcendência humana: criam-se novos limites

no mundo, logo, cria-se uma nova ética, lembrando WITTGENSTEIN (1973).

Ora, diante de tal expansão dos horizontes e da geração de novos mundos

ou de mundos com novos limites, o homem busca apoio para solucionar sua

incertezas. Os apoios que aparecem são a fé, a racionalidade e a experiência. A fé

é o apelo à palavra revelada própria da religião, que não cabe nas pretensões deste

trabalho.

Viu-se que a experiência ou a ciência informa o que sabemos mas não impõe

limites, de per si, ao poder. É este realmente o problema. Resta, pois, a

racionalidade; não, porém, a racionalidade cartesiana. SASS apela para uma

dimensão hermenêutica. Mas o que significa a racionalidade na decisão ética, é o

que constitui o tema das reflexões a seguir.

1.2 DECISÃO BIOÉTICA, RACIONALIDADE E HERMENÊUTICA

Não podemos deixar de considerar, nas páginas presentes, o artigo "A

ÉTICA E A DINÂMICA DA RAZÃO", de Jean LADRIÉRE.*

*
Conferência pronunciada no Rio de Janeiro, em 1992, e publicada no Boletim da Associação dos
Professores de Filosofia. Rio de Janeiro, 1992.
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"A prioridade da existência do ser o acolhimento que toma significativa a


doação e, por sua própria iniciativa, dela pronunciar a significação, eis sem
dúvida o que é o pensamento reflexivo, no qual a existência se tenta dizer a
si mesma, chama-se de razão".

Nesta conceituação não há o conceito da razão instrumental: não é algo que

o homem possua para realizar algo. Trata-se de uma dimensão da existência que

surge a partir de si mesma, que tem, como natureza, em si mesma o principio do

seu existir ou do seu ser. A existência, antes de tudo é vivida "como recepção de si

mesma". A existência não é um predicado, algo que me seja atribuído - eu existo

por mim mesmo, sou eu recebendo-me a mim mesmo, recebendo-me

constantemente a partir daquilo que eu sirvo da fonte daquilo que é; do ser. Neste

receber-se como existente, torno-me presente e manifesto-me aos outros.

Mas é o homem que existe e que se acolhe a si mesmo, pois os animais e os

demais seres existem como manifestação e são tanto mais existentes quanto mais

se acolhem na hierarquia do mineral ao animal. O ser humano é antes de tudo

acolhimento de si, não é um en soi mas um pour-soi (SARTRE - 1973), não um em

si mas para si. Esse acolhimento é, em primeiro lugar, consciência; consciência

como presença a si mesmo e como presença ao outro e ao mundo. E nesse surgir

da presença o homem pronuncia a significação. Pronunciar a significação é

desdobrar, é desenrolar o manto semântico que o envolve, sendo a um tempo

reconhecimento e atribuição de sentido.

Esta pronúncia que se segue ao acolhimento da consciência do seu existir é

o que constitui propriamente o ato reflexivo, volta sobre si mesmo, distância de si

mesmo, aproximação de seu ser, manifestação consciente de si mesmo e do

encontro no mundo. E na reflexão o homem procura se dizer a si mesmo como

existência, como acolhimento, como doação, como encontro, como separação,


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como aproximação: eis o ato próprio de que se denomina "razão". Logo, a razão é

essencialmente hermenêutica, pois que pronuncia o seu ser no seu encontro na

manifestação de acolhimento, numa doação a si mesma no encontro no mundo.

Contudo, a razão não é simples acolhimento ou reconhecimento passivo,

flexível e deixado ao mundo da fantasia e da sucessão aleatória de fatos e

fenômenos. A razão é a descoberta de um universo em que existem leis. "Este

universo tem sua leis, das quais o implacável rigor está em contraste total com a

contingência, a flexibilidade, o curso caprichoso do mundo visível". (LADRIÈRE,

loc.cit.)

A razão encontra, então, o seu lugar próprio, que é o puro inteligível, tal como

HERÁCLITO (1973) o afirma: "Tudo é um", pois na contemplação como teoria

começa a forjar um projeto de existência. Vale dizer que a razão se é dada no inicio,

não é dada como saber de si mesma, mas toma-se progressivamente pela sua

operação através da história.

O exterior é a própria projeção da razão. De um lado, a razão é constituição e

auto-constituição no seu poder de acolhimento e de doação reflexiva. Não apenas

olhar transparente colocado fora da existência: é o existente se pondo a si mesmo,

constituindo-se e esperando um projeto. A partir do momento que descobre seu

poder autoconstituinte:

"Sua iniciativa, desde então, não é mais o simples emprego expontâneo de si


mesmo, comandado pelo desejo obscuro, não claro para ele mesmo, de seu
próprio acontecer, mas o operar de um projeto expressamente colocado
como tal e assumido na visão lúcida do que ele implica e na vontade resoluta
de doravante suportar o seu constrangimento". (LADRIÈRE, p. 15)

Trata-se de instaurar um mundo segundo a razão: em primeiro lugar, em que

tudo é um, em que possam reinar o inteligível puro. A instauração de um mundo


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segundo a razão, no entanto, não é pura contemplação; trata-se da constituição de

uma nova forma de vida, onde se devem considerar os atos ou as ações, e onde a

razão vai encontrar a ética.

A razão pretende implantar um mundo que satisfaça na existência às

exigências do inteligível: referimo-nos ao mundo do existente e circunstancial, à

felicidade, que não é o mundo das formas. Parece que é no mundo das formas que

a razão tem o seu reino e o seu domínio. No mundo da vida, no cotidiano a razão

procura se tomar sabedoria. Aqui deverá reinar a harmonia evitando as ilusões ou

"as aparências enganadoras de um mundo livre das eventualidades de um devir

errático".

A vida segundo a razão é a vida na verdade, isenta das paixões, dos

interesses cegos e das forças obscuras da vida. É, na realidade, o choque entre a

"raison" e "coração", entre o espírito "de géométrie" e o espírito de "finesse".

(PASCAL - 1973). A instalação e a realização do projeto de uma vida justa, encontra

no próprio interior do homem o conflito, uma luta: o saber e o querer. A razão indica

os justos princípios, a verdade à existência vivida. Mas esta é histórica e

circunstancial. À inteligibilidade racional cabe elaborar um modelo inspirador que

consiste em elevar o acolhimento da existência à sua plena expansão, sem auto-

contradições, e no pleno desdobramento de sua possibilidades. É preciso, para isso,

uma visão que contemple o universal e o global, que vai além do simples domínio

operatório.

Há, então, na Ética uma fratura essencial, própria da separação de uma

estrutura existencial dada que se efetiva nos atos concretos. A vida não é apenas

uma conjuntura de relações que se possa racionalmente interrelacionar com suas

seqüências operacionais. Há algo mais transcendente, sem eliminar (mas exigindo-

a) a razão: é a orientação para um telos. Acolher a existência é, antes de tudo,


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reconhecer o seu "telos", a sua finalidade, que designa uma realidade a vir, mas

que já está presente no próprio vir-a-ser como steresis, isto é, como privação que

exige ser preenchida. A "privação de" é aqui "exigência de", como finalidade a que

se deve orientar intencionalmente a existência.(ARISTÓTELES, Física, l. VII, 1967)

Desse telos surge o desejo, que a transforma em historicidade, que é a

existência em primeira pessoa. Desse modo estamos conjugando razão, ética e

hermenêutica. Ler a intencionalidade, pressentir no presente a gestação do futuro

como telos, é interpretar a realidade. A interpretação fundamentada na decisão

ética, fundamentada a decisão do dever-ser. O dever-ser, o ético, é a própria

dimensão do ser como vir-a-ser, do ser como telos do ser como intencionalidade. É

preciso uma hermenêutica, pois é um eu que promove o seu vir-a-ser a partir do

telos* do seu ser, donde se faz necessária a interpretação que exige o uso da

razão.

"A existência se descobre a si mesma em sua pura emergência. Trata-se


para ela de se reapropriar desta emergência e de ter acesso assim a um
modo de ser segundo o qual, ao ratificar a condição que a confia a si mesma,
ela faria da recepção passiva de si mesma a assunção resoluta do seu ser,
consoante a qual, neste sentido, tomaria ela própria coincidente com a
doação da qual ela se recebe e assim se receberia em definitivo a si mesma”.
(LADRIÈRE, p. 21)

O que aqui se denomina interpretação é a deliberação que precede a decisão

no caso em Bioética. A ação pode interromper o caminhar do vir-a-ser, dar-lhe uma

outra trajetória, projetá-la em outros horizontes. O telos é um já presente, com

privação que pulsa no vir-a-ser, que a razão descobre e acolhe.

Mas o telos com privação não se manifesta apenas diante da razão; é um

pulsar, é um desejo que se dá numa conjuntura ou numa conjunção de

circunstâncias ou é a privação de um ser em situação. É donde surge, de um lado a


*
Telos: finalidade, fim, meta
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ambivalência, a polissemia e, de outro lado, a possibilidade do equívoco e do

engano. Dicotomia e antítese que explicam a dificuldade da decisão certa ou justa.

A razão procura mostrar ou ler a verdadeira natureza do ser, mas as circunstâncias

e a vontade suscitam outros desejos, pois o homem é um ser histórico cuja

existência se dá no tempo.

"O dever-ser que habita a razão a coloca além de toda a particularidade e


neste sentido existe o poder do ato, sempre circunscrito pela situação e a
existência mesma, que é um querer". (LADRIÈRE, p. 22)

É o pulsar, segundo Descartes (5ème Meditation, 1958), entre dois extremos:

a inteligência que é a de um ser finito e limitado, ao presente, ao particular, ao

circunstancial, e a vontade que habita o , e essa fratura, inteligência/vontade, dá-lhe

um desequilíbrio. As decisões bioéticas, como qualquer decisão, estão circunscritas

pela situação. Ora, a situação indica aqui um espaço, um horizonte, um halo de

polivalente semanticidade, de sentidos que são ora convergentes, ora divergentes,

vindos de um vir-a-ser, de um DASEIN que não sabe ler o seu caminho pois que

(1935), é um mistério jogado entre o querer SER e o querer TER, entre o agora e o

sempre, entre o fugaz e o eterno, entre o lantejoulesco brilho do instante e o brilho

perene de uma luz inalterável.

KIERKEGAARD (1973) descreveu esse oscilar existencial entre o estágio

estético que vive o instante e o estágio ético que procura o permanente, entre o

TEMOR e TREMOR próprio de sua angústia. A dificuldade da decisão ética radica,

pois, na própria constituição do homem, na sua própria razão. Na mesma razão,

pois, há conflitos de racionalidades da racionalidade científica que apresenta

novos mundos e a racionalidade ontológica que aspira a eudemomia (felicidade)

do ser, a harmonia universal. A decisão balança sempre entre o que se sabe e o


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que se pode. A razão se descobre ao se constituir e ao realizar a vida ética que não

constitui uma indicação indisfarçável: não é verdadeira a afirmação socrática de que

"só comete o mal o ignorante".

O saber científico é exatamente o banir da ignorância, mas quem indica o

caminho a tomar? Os existencialistas desmistificam a lucidez da razão mostrando

que o homem não é um ignorante, mas uma decisão entre vários saberes. Não há

no céu nem na terra, dirá SARTRE quem indique ao homem qual decisão tomar E

deixado ao seu destino no conflito das necessidades para decidir, pagando por seus

erros e sendo premiado por seus acertos e escolhas (1973).

É o conflito entre ética e razão. A ética que procura a realização do telos, o

pleno e esplendoroso advento do ser e a razão que faz a leitura do existente

singular, do ser que é eu e que decide numa situação cujos limites não são

definíveis em sua total dimensão.

"Esta interpretação das relações entre ética e razão choca-se no entanto com
uma dificuldade maior. O ato é o fato de uma iniciativa singular, ele é o traço
pontual do ato profundo de recuperar a existência. Mas em sua concretude
ela é sempre necessariamente interação. E qualquer que seja o tipo de
objetividade que ela institui, ela é sempre mediata ou imediatamente, dirigida
a outro. Mas pode ser para um outro singular ou para um outro generalizado,
por intermédio da instituição. O valor da instituição é sua capacidade de dar
já, no sistema das relações humanas que ela instaura, uma antecipação, tão
limitada que seja, da comunidade autêntica, e a comunidade autêntica,
segundo a fórmula célebre, é uma comunidade fundada sobre o
reconhecimento mútuo das pessoas. A relação com a instituição tem valor na
medida em que é relação mediatizada com o outro". (LADRIÈRE, op. cit., p.
22).

A existência, a minha existência é acolhida, mas por outro lado não me é

dada já constituída. Ela se faz na história, ela é história. É preciso recuperar a

existência na biografia individual. A existência é minha e como tal depende de

minhas decisões e de minhas escolhas que determinam os atos que a constituem


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na sua concretude singular. Eis aqui o domínio ou a exigência ética: que a

existência na sua trajetória histórica singular se projete segundo os ditames do ser

que a razão procura ler. Mas a minha existência se dá no ENCONTRO:

INSTITUIÇÃO, NATUREZA E HERMENÊUTICA.

O homem é história, encarnação e como tal é encontro. "Se o tu não precede

o eu, pelo menos acompanha o nós (MOUNIER, 1958). "As causalidades que a

determinam são múltiplas. Na constituição da consciência o eu se dá numa relação

com o tu. Há, pois, a mediação do alter-ego na constituição do ego. A razão nos

apresenta essa mediação da alteridade como algo do abstrato, mas na existência

concreta essa mediação não é universal, mas singular e determinada. Há, pois,

duas exigências: a de nível abstrato e universal, anônimo e estrutural, e a exigência

do outro que se manifesta como acolhimento, reconhecimento e exigência. Nesse

jogo as decisões não são fáceis, nem lineares.

"O homem ao nascer das mãos do Arquiteto Supremo nasce perfeito; a


sociedade o corrompe". (ROUSSEAU, 1973)

A solicitação e o estímulo concreto de um outro-eu que me recebe e me

acolhe são muito mais fortes do que a sobredeterminação da razão que Descartes,

por exemplo, superestimava. A decisão, no caso a decisão ética, eminentemente

hermenêutica pois que é uma interpretação, necessita um exame fenomenológico

de sua auto-determinação. O que me faz decidir? A motivação e a causalidade do

ato livre, da liberdade que se auto-determina não é apenas um ato de auto-

imposição que será imposto por uma boa vontade que se dirige pelo dever, segundo

o quer KANT (1971).

Portanto, a fenomenologia da decisão se dá na ambigüidade. Poderá a

descrição ser feita no quadro behaviorista estímulo-resposta, seja na perspectiva


12

sócio-interecionista, seja no âmbito da psicanálise. São descrições que nem sempre

são concordes para os cientistas, e o são muito menos para o eu situado que

decide. Nesse aspecto vale a consideração socrática da ignorância. E, tais

ponderações nos introduzem nas considerações da akrasia. Ovídio já dizia: Vídeo

meliora proboque sed deteriora sequor (Vejo as coisas melhores e as aprovo,

porém, faço as piores), que mostra a decisão e um excesso em relação à razão,

mas não a suprime, exige-a. (akrasia= ter o desejo de fazer algo, e não fazê-lo, ou

fazer o contrário).

A volição privilegia uma racionalidade ou outra: há sempre uma seqüência de

"razões", não porém formais, mas razões que são claras apenas ao sujeito. A

decisão é solitária e é decisão quando e consciente e motivada. E, isto nos introduz

no tema da intenção, motivo e causa, em parte já vistas anteriormente no conceito

de telos e de eschaton, finalidade final da existência, o que nos leva a considerar a

situação de decisão bioética.


2 A DECISÃO EM BIOÉTICA

Por que um estudo especial da decisão bioética, se toda decisão pode ser

confinada nos quadros de teoria dos jogos?

Toda decisão é solitária implicando a responsabilidade. Contudo, no caso da

vida humana, há um excesso de responsabilidade, (quando falamos em excesso de

responsabilidade, entendemos que os sujeitos responsáveis por seu serviço não

têm os recursos ou a competências para dominar todas as exigências de tal serviço,

de tal caso), querendo com isto dizer que essas decisões se revestem de uma

amplitude antes desconhecida.

É comum seguir-se, nas decisões, os exemplos do passado. Entretanto, algo

de novo surge quando se trata da responsabilidade pela vida, que mais do que

nunca está a cargo do homem. Não há mais o referencial da divindade e do

sagrado. Parece que nada determina os limites das decisões, nada impedindo ao

homem o poder reestruturar sua vida. As decisões sobre a vida trazem a carga

sobre os seres vivos e conscientes que deseja permanecer, que não querem

morrer.

Decidir da vida de alguém, mesmo que se julgue que seja melhor para o que

sofre eis a questão. Pois não significa que o doente aceite esse "melhor': Donde o

"excesso" de responsabilidade.

No caso da biomedicina que é o mais comum, cotidiano, discussões se fazem

em tomo do preceito hipocrático, do princípio de beneficência: fazer o bem, evitar o


14

mal. A autoridade médica não é mais indiscutível. Estudam-se e apontam-se os

direitos do paciente, inaugurados por um gesto de confiança. Embora sua formação

lhe confira a competência, o médico deve responder por seus atos tanto ao

paciente, como a todos os que o rodeiam: ninguém, em princípio vai contestá-lo,

mas exige-se que dê explicações sobre suas decisões. Três fatores se

entrecruzaram para formar o excesso de responsabilidade: a incerteza da

beneficência, as dificuldades da autonomia e o problema da justiça.

2.1 A INCERTEZA DO PRINCÍPIO DE BENEFICÊNCIA

As decisões com o poder de suas intervenções geram conflitos no que

podem oferecer e no que se espera delas. As novas drogas medicinais e os

recursos tecnológicos conferem uma força de intervenção que, as vezes, deverá

fazer tremer os que os aplicam. Se o homem, ministro da natureza, apenas pode

conjugar e compor as suas forças (BACON, 1973), o curso da natureza se seguirá,

mas a conjunção veio da ação humana e as seqüelas e os efeitos colaterais são

imprevistos e imprevisíveis. Donde se segue que aquilo que parece bom ao médico,

poderá não o ser para o paciente. Assim essa incerteza do bem esperado pode ser

considerada em três aspectos.

O doente, ao qual se pede o consentimento para a intervenção, está em

condições de extrema vulnerabilidade: situação também das pessoas de sua família,

tanto pela especialidade do caso, como pela ignorância.

Mas a vulnerabilidade é provocada pela "crise do sofrimento", que derruba

qualquer tentativa de objetivação dos serviços. O doente passa a ser egocêntrico;

na defesa de sua integridade, é impossível para ele ver as coisas de modo


15

realístico, (assim como para sua família), e o apelo vem do profundo de sua

personalidade resultante de uma experiência global de quem vê bruscamente o seu-

ser-no-mundo completamente transtornado.

Do mesmo modo, é muito difícil ou quase impossível aos que prestam serviço

ao doente tomarem distância e examinar o caso de modo neutro. Há um excesso do

apelo que transborda o campo de objetividade, assim como a percepção do mesmo

cria um excesso de subjetividade que toma difícil o atendimento do serviço objetiva

e realisticamente. Isso vai criar problemas éticos, pois a experiência do sofrimento

deve estar presente na reflexão bioética.

A dificuldade para atender o juramento hipocrático bonum facere

(beneficência) (fazer o bem) ainda pode ser vista do lado da reciprocidade que é

exercida, no caso da doença e da dor, a partir de uma situação assimétrica. Pois a

reciprocidade exige que "se faça o outro o que se deseja para si mesmo", mas como

isto é possível numa situação tão desigual? Nestas reflexões seguimos as idéias

expressas por Paul Ricoeur (1993).

Há, primeiramente, assimetria entre o atendente, (enfermeiro, médico,

assistente) e o paciente. Os atendentes superam o paciente em conhecimento e

poder. Foram chamados a ajudar e isto lhes confere uma superioridade, acrescida

pela desestabilização da doença. Pode ser reduzida, diz Ricoeur, pela solicitude do

atendimento, pela sua empatia. Mas a redução da assimetria só se consegue

plenamente quando o atendimento é gratuito, como no caso de congregações

religiosas, e, os conhecido de todos, da Irmã Tereza de Calcutá e da Irmã Dulce de

Salvador. Com serviços pagos, há o perigo da "funcionarilização" dos serviços.

Em segundo lugar, a assimetria se exerce pelo paciente sobre o atendimento.

Como o afirma CADORÉ "’o doente‘ apela para a humanidade do médico, de tal
16

modo que este não pode se subtrair à exigência de extrair os esforços das suas

próprias reservas de generosidade". (1993)

Não se trata apenas de vivência das situações de modo psicológico, como é

estudado na empatia por ROGERS, (1974). É uma vivência em que a dimensão

moral dos que tratam da saúde é posta em questão. Não há apenas a exigência

técnica ou social ou política, mas a dimensão moral do paciente e dos atendentes.

Também os doentes, no mais extremo de sua fragilidade, poderão experimentar e

vivenciar sua estrutura moral ou sua dimensão ética, o que exige uma tomada de

decisão autônoma, assumindo-se neste novo modo de ser-no-mundo. E os

atendentes deverão assumir o máximo de seu poder do saber racional, colocando-

se no compasso de sintonia com o outro que é doente, mas que, é ele e não um

outro doente.

Há, enfim, um outro aspecto que é a dimensão social e política do

atendimento, sobretudo quando os recursos são escassos e quando o médico, e

demais atendentes profissionais, precisam do apoio financeiro para o próprio

sustento. (Exigindo recursos que os doentes não possuem). Há um excesso de

responsabilidade ética que é excedida pela dimensão econômica e política. São

considerações que tomam cada vez mais complexos as reflexões no campo da

bioética. O atendente não escolhe a situação; é escolhido por esta, para decidir na

confluência de tantas circunstâncias, que vão além de sua responsabilidade e

ultrapassam sua autonomia.


17

2.2 AS DIFICULDADES DA AUTONOMIA

Trata-se aqui da decisão do médico ou do pesquisador em ciências

biomédicas. Em geral, pensa-se que a atuação médica se dá num quadro de uma

"micro-decisão": isto é, a decisão é tomada no processo de mútua confiança entre o

médico e o paciente, numa situação perfeitamente limitada, especialmente definida.

No entanto, acontece que os processos das ciências e das técnicas da

medicina não são dominadas nem pelo médico, nem pela equipe. Então, a decisão

é baseada em argumentos que não cobrem todas as alternativas, nem todas as

seqüelas de uma determinada conduta; está-se diante de uma macro-decisão.

Como afirma POINCARÉ (1978): embora uma certa causa determine efeitos

conhecidos, à medida em que os efeitos vão se sucedendo não há mais

probabilidade de prever as conseqüências, após uma certo seguimento de efeitos. E

isto vale muito mais na interação tratamento médico e organismo.

Contudo, há que haver uma decisão em que o médico fará a síntese das

argumentações congruentes ou divergentes. Há assim uma dimensão ética. Não é

necessário chegar até o leito do doente, para se dar conta desse fato. Basta

considerar o que acontece na medicina preventiva, como, por exemplo acontece na

campanha de prevenção da AIDS, onde não há nenhuma segurança a respeito da

moralidade daqueles a quem a campanha se dirige: (se é preciso usar a camisinha

nas relações eventuais e acidentais, a massa ignorante pode receber a mensagem

como um estímulo a ter relações sexuais extemporâneas, desde que tome as

precauções devidas). E as situações poderiam ser multiplicadas.

Assim, "o atendente médico, o que trata da saúde vai muitas vezes perceber

como aquele que coloca o paciente em situações éticas impossíveis, descobrindo

além do mais que não possui outros meios para indicar vias de resolução da
18

dificuldade a não ser do que apelar para a autonomia das pessoas, muitas vezes

impotentes em face da situação inédita". (1993, p. 105)

Considera-se, portanto, que a decisão bioética excede tanto a autonomia do

médico, como autonomia do doente que deve dar seu consentimento informado. O

excesso da responsabilidade biomédica ainda vai ser mostrado pelo excesso do

referencial coletivo em que as ações se processam, o que traz à luz o problema da

justiça.

2.3 A JUSTIÇA NO DESAFIO

Embora a decisão é deixada ao médico, esperando que cumpra o seu dever

profissional, contando com sua capacidade ética, eis que as decisões cada vez mais

se recobrem de dimensão jurídica. Antes de mais nada, o médico ou profissional da

saúde é um cidadão que tem deveres para com os outros cidadãos e para com as

diversas instituições. São questões que excedem o modo normal de considerar a

responsabilidade.

Consideremos apenas três casos, que em geral, são vistos superficialmente.

a) As declarações ou certificados de saúde, base para as licenças, Em geral,

o médico baseia-se no seu direito do segredo profissional, é o que se denomina

confidencialidade. Embora, o paciente escolha um médico de sua confiança, este

certificado sai da confidencialidade, pois é obrigado pôr o código internacional das

doenças (CDI) quando não é chamado para explicações ulteriores por equipes de

firmas ou de instituições. Ora, o doente tem "direito a que se respeite sua

privacidade, conforme o tipo de doença, haja vista o caso da AIDS, de certos

microcirurgias e outros. Mas a confidencialidade se estende e o caso toma-se


19

público. Por outro lado, o médico deveria portar-se de acordo com seus deveres e

responder perante a lei, pois o certificado pode causar prejuízos até ao Estado,

(considerem-se as fraudes contra o INSS). A justiça que exige bases legais

confronta-se com a Ética. O que fazer então?. Tudo seria fácil se não houvesse os

desvios de médicos já acontecidos.

b) O segundo exemplo, é o caso de médicos que prestam serviços seja para

convênios, seja para órgãos públicos. Há um descaso, pois, apenas encaminham os

doentes e acontecem erros médicos em que a responsabilidade se dilui. É o que

Bruno CADORÉ (1993) chama de conjunção de responsabilidades.

c) E nesse caso há a pressa em atender ao horário, passando 20 ou mais

pacientes em 40 ou 60 minutos. São casos que ferem a justiça mais comesinha.

Não nos referimos à participação no estabelecimento de uma política de

saúde que no nosso país, é simplesmente desastrosa. Tão fácil estabelecer um

cupão básico para cada cidadão... Há países que empregam mais de 600 a 1000

dólares por ano por habitante. No Brasil não chega a 40 dólares ano/habitante.

Milagres seriam feitos se o governo aplica-se 300 dólares por ano por pessoa, o que

daria uma soma de 45 bilhões de dólares que nem é 10% do PIB do Brasil. O

problema seria a dificuldade de fiscalização, a máquina institucional deveria ser

enxugada. Se a soma parecer importante, observamos que o país é feito por seus

cidadãos que pagam os impostos e a saúde é direito de todos.

Não fazemos referências às mutações humanas provocadas pela engenharia

genética nem á possibilidade de programar cidadãos futuros, que trazem grandes

problemas ético-jurídicos.

Diante destas dimensões excessivas responsabilidade, é necessário um


esforço para definir do melhor modo possível os campos da responsabilidade
(logo da decisão, o grifo é nosso). Isto exige que sejam claramente
20

designadas as conjunções da relação dos cuidados da saúde. Com efeito, se


pode dizer que, do ponto de vista ético, que é por causa de sua capacidade
de responsabilidade que o homem se toma sujeito de direito. O
comprometimento das pessoas-sempre irrecusável, não é no entanto
convocado a ser perfeito e deve, na reflexão que fazemos, levar em conta
uma certa "opacidade" de relação impessoal. Objetivar as tecituras da
relação de cuidado permite designar esta distância que revela o "sempre" em
"vir-a-se" do sujeito normal, mas também o desaliena de uma ilusão de
perfeição pondo-o sob sua livre responsabilidade (CADORÉ, 199, p.109)

2.4 A DIMENSÃO ÉTICA NA RELAÇÃO MÉDICO/PACIENTE

A relação médico/paciente, em geral não suscitava, tradicionalmente,

nenhuma consideração especial por parte dos médicos e muita menos dos que

tratavam da Deontologia médica. Considerava-se apenas o caso do ponto de vista

da competência médica e das relações humanas, nada envolvendo além dos

deveres morais considerados normais. Mas esta relação complica-se cada vez mais,

como veremos, pelas novas exigências vindas do apelo em favor da unidade da

pessoa, da medicina em mutação e do futuro.

2.4.1 Sujeito-unidade-global.

O doente que se dirige ao médico pede ser tratado como ele é, isto é, uma

unidade global, e não apenas um como doente. No entanto, o médico por sua

profissionalização encontra dificuldades para essa amplidão de ponto de vista.

Como tratar cada um como um sujeito específico? Não possuí condições seja de

tempo, seja psicológicas para isso. O homem não é um organismo doente, como

"apenas não é uma boca aberta" (afirma Vitório Bonacin em sua dissertação).

(1994)
21

Não existem todas as condições, nem o médico pode saber até que ponto há

uma somatização, mas a exigência existe e requer, portanto, mais cuidados éticos

nas decisões. A medida em que o médico trata do paciente criam-se mais relação,

ou melhor, aprofundam-se as relações. O que nos leva a sublimar que, embora se

tome cada vez mais forte, é preciso que o médico não esqueça que o primeiro

serviço, que deve oferecer aos seus clientes/pacientes é a competência das suas

intervenções.

2.4.2 Exigências da medicina em mutação

A exigência do sujeito em ser tratado como unidade holística, a saber, como

corpo, realidade bio-psico-sócio-econômica e cultural haja vista, política, coloca o

médico diante de exigências inéditas que dificultam até para definir o que seja a

saúde. Por exemplo, uma pessoa pode apresentar sintomas físicos e, de fato, isto

apenas pode ser um modo pelo qual se manifesta seu desequilíbrio na sociedade, a

rejeição que sofre.

Para ENGELHARDT(1998) há a possibilidade de reprogramação da natureza

e da criação de novas formas de vida, tanto como no modo de viver. Pode-se “curar”

a dor da rejeição por meio de drogas. E, se é isso possível, poderá ser feito? Disso

surge a necessidade de uma interdisciplinariedade para as tomadas de decisão.

"Deste ponto de vista, é necessário salientar que, se a Bioética é uma


atividade interdisciplinar, ela convida ao mesmo tempo a pensar
interdisciplinarmente atuante quando se estabelece um serviço de saúde.
Tomar teoricamente um recuo em relação a uma medicalização excessiva da
cultura não poderia ser satisfeita se deixassem no final das contas, os atores
biomédicos responderem unicamente eles ás exigências que lhe são feitas,
sob o pretexto da saúde. (...) hoje o exercido da medicina exige a
22

colaboração de mais atores e exige a justa repartição das competências


sócio-políticas específicas" (CADORÉ, 1994,p.112)

2.4.3 As pressões do futuro

O século XXI será ético, ou não existirá afirma Jaques Testard (1991),

indicando que o futuro será regido pela dimensão ética como constituinte

fundamental da existência humana. Essa dimensão é a reciprocidade, pois toma-se

cada vez mais fácil o desaparecimento do homem. Há cada vez mais pessoas com

dificuldades psico-sociais e compete ao médico um papel pedagógico. Pergunta-se,

então, como pode ele ser formado para isso, diante da enorme soma de

conhecimentos que lhe são exigidos, assim como na experiência da prática diária é

cada vez mais solicitado.

Há dois casos a considerar. a) a medicina no países desenvolvidos que

fazem pesquisas e novos tratamentos. As pessoas vivem mais tempo o que põe

novas exigências para a gerontomedicina. b) a medicina no terceiro mundo onde as

exigências básicas podem ser esquecidas pelas pesquisas de ponta.

Tudo isto cria dificuldades para que se possa elaborar um discurso crítico

mais conforme á dimensão humana. As pesquisas médicas e científicas enfrentam o

problema de uma exigência moral de coerência entre as necessidades dos

pacientes em sua realidade e o atendimento que lhes é realmente oferecido.

A essas exigências pode a medicina responder com três mediações, de

acordo com Bruno Cadoré (1994, p.113 e ss). É preciso que o médico consiga que

as pessoas se tratem por si mesmas o que pode suscitar pressões em três direções.
23

a
1 - o tratamento é, sem dúvida, uma relação humana entre médico e

paciente, mas é também uma relação técnica. Então é preciso que não se

menospreze as pessoas às expensas da técnica.


a
2 - por causa de sua competência o médico não pode sobrepor-se aos

direitos da pessoa. Pode aconselhar diante das técnicas, mas ao paciente compete

certas decisões, como no caso do controle de natalidade.

Por outro lado, os pacientes podem desejar uma saúde irracional,

injustificável em suas condições. Então, o médico precisa exercer sua função

pedagógica de esclarecimento, o que é um novo aspecto da exigência ética.

3ª- Enfim, a decisão médica esbarra sempre na questão da justiça social da

qual já se tratou. No caso dos pacientes pobres surge a pergunta: se não se pode

ter uma medicina menos tecnológica e tão eficiente como a outra? A pergunta se

põe, por que na Inglaterra os gastos com a saúde pessoa/ano são

aproximadamente de 80, usso não significa que a medicina inglesa, mais

pedagógica, seja menos eficiente.

Numa palavra, poderíamos resumir o que se disse até aqui da situação da

decisão em Bioética, afirmando que a medicina reveste novas dimensões éticas

porque cada vez mais é questão de pedagogia e de justiça social.

Diante disso é preciso examinar melhor aos fundamentos de uma

argumentação ética que baseia a discussão. Ultimamente, a argumentação bioética

deverá considerar os argumentos de Hans Jonas, (heurística do medo) e a ética da

discussão de APPEL e HABERMAS.

2.5 A DIFÍCIL EXPERIÊNCIA DA DECISÃO BIOÉTICA


24

Como salientamos várias vezes, a decisão bioética não se reduz a uma

simples decisão que tomamos em casos do cotidiano. A decisão bioética, como toda

a decisão normal, processa-se numa tensão entre o que se pode e o que se deve

fazer. Paul RICOEUR (1993) descreve a situação da decisão como se dando entre

dois pólos: o pólo dos princípios que motivam nossas escolhas, que é o fim que

temos em vista, no caso é o ponto de vista ético; o outro polo é a dimensão

deontológica, do dever, a saber das normas. Há pois, segundo RICOEUR três

momentos que ele focaliza na dimensão da reciprocidade, como a situação do eu-

com-o-outro no mundo: princípios, normas e situação, momentos que geram os

conflitos da decisão. Aliás, o termo decisão, etimologicamente significa que há um

corte, uma discução, logo a resolução de um conflito.

2.5.1 Os momentos do conflito na decisão

2.5.1.1 Os princípios

A imposição ética, insistimos, mais uma vez, é uma auto-imposição, do

contrário não seria ética. A aceitação dos princípios éticos, a determinação dos fins

é optativo. Resulta, portanto, de uma capacidade de escolha racional, escolha por

si mesmo. É uma escolha livre que é determinada por uma capacidade criativa. Do

contrário seríamos manipuláveis pelos mais diversos fatores.

a) Ora a decisão bioética se dá no quadro de uma reciprocidade, pois decide-

se com e para o outro. Gera-se, então, o conflito da solitude, do zelo frente a

reciprocidade. A reciprocidade não se dá na igualdade, nunca, e visa precisamente

reduzir ou eliminar a desigualdade. Mas o outro como o eu são insubstituíveis, por


25

essência e por definição. Donde, a ética da reciprocidade entra em conflito com a

desigualdade cuja eliminação deseja, mas não consegue.

b) O conflito aparece também no quadro institucional que procura definir o

papel e a função de cada um. Como sou livre se atuo de acordo com a instituição

cujas normas me são adversas?

A instituição põe normas de modo distributivo e fixa-se por "normas de

justiça", havendo uma tensão entre o legal e o legítimo. Quem dita as normas? Na

biomedicina é o conflito de justiça e a distribuição dos recursos, sendo um princípio

desta, que todos possam ter igual acesso aos serviços. E, este acesso está fora do

alcance do médico, pois os dados já estão lançados, e a sorte não é a mesma para

todos. Há, pois, o conflito da ação biomédica que se move entre os processos de

respeito à instituição e as exigências da justiça que, na ética, não é aquela

promulgada e exigida.

2.5.1.2 A norma ética

O conflito pois se situa entre a universalização, a autonomia, o respeito e a

desigualdade.

a) Desde KANT aceita-se, de modo indiscutível que uma decisão moral é

uma decisão racional; e a racionalidade exige a universalizalidade de norma: "Age

unicamente segundo a máxima que faz que tu possas querer ao mesmo tempo que

ela se tome uma lei universal" (1971).

Mas como podem pacientes e médicos a partir de seus pontos de vista

chegar à mesma universalidade? Os sujeitos não são tão racionais como KANT os

supõe. Há a situação de cada um que é o encontro de sua biografia de sua

educação, de sua natureza e de sua própria história. A universalizibilidade se é uma


26

regra, é um desideratum que não surge do simples calcular, nem de reduções, por

mais profundas que sejam.

b) Agir de modo que o outro jamais seja um meio, mas um fim. É o respeito

pelo outro, pela sua autonomia. Violência é precisamente não levar em conta a

autonomia, tanto nas micro-decisões como nas macro-decisões (considerem se os

conflitos entre repúblicas e etnias).

Para evitar a violência considera-se a dignidade da pessoa humana: noção

que corre o risco de se tomar cada vez mais vazia ou, o que é mais desastroso,

pode-se travestiro o ser em ter.

c) Finalmente os conflitos das condições de igualdade de aplicação das

normas que foram tratadas por John RAWLS (1981) sob o tema da fairness e de

equidade (que visa reestabelecer a igualdade que nas sociedades reais não existe).

Segundo a interpretação de Ricoeur:

"Cada pessoa deve ter um direito igual ao amplo sistema das liberdades de
base, igual para todos e que seja compatível com o próprio sujeito e com os
outros (igualdade na cidadania). As desigualdades sociais e econômicas
devem ser organizadas de modo que, ao mesmo tempo: a)se possa esperar
que sejam vantajosas para todos; b) sejam atribuídas as posições e as
funções abertas para todos. Trata-se pois de maximizar a parte minimal: "é o
mais justo a repartição desigual tal que o aumento de vantagens dos mais
favorecidos seja compensada pela diminuição das desvantagens dos mais
desfavorecidos". (RICOEUR, 1992, p. 264).

Supor e exigir o princípio de equidade é algo, que ninguém põe em dúvida.

Mas a questão é, e eis aqui o conflito, saber se, de fato, isto é posto em prática, se

as regras são uma desfiguração da realidade. Foi pelo princípio de igualdade que se

quis impor uma doutrina a grupos culturais diversos, igualdade que destruiu obras

milenares de cultura como no caso dos astecas, maias e incas, por exemplo. O

mesmo se dá no conceito de justiça para a saúde e intervenções biológicas.


27

2.6 A AÇÃO NA SITUAÇÃO: A SABEDORIA PRÁTICA

A sabedoria prática já foi tratada por ARISTÓTELES, como veremos mais

adiante, sob o nome de phronesis que é mais uma sabedoria prudencial. Nesta

seção trataremos da sabedoria resultante da prática diária, que é correspondente ao

bom senso, fruto de uma prática refletida e avaliada no dia a dia. A decisão põe em

confronto o saber do bom senso, a sabedoria prática que sabe como as coisas

acontecem na realidade, como as pessoas reagem as intervenções médicas, e os

novos saberes, fruto das pesquisas em casos determinados e cujas variáveis foram

previamente controladas.

Há autores que ilustram esse conflito de saberes lembrando a tragédia da

mitologia grega. Mas a vida não é um teatro e as circunstâncias são outras. O

recurso á mitologia parece-nos mais a exigência de um ego que se quer

ornamentado por conhecimentos e informações que poucos dominam para, com

isso, - se é que conseguem - afirmar a sua superioridade olímpica; o que nos parece

inútil e alienante. Nem tão pouco se conseguirá um tratamento mais adequado

citando autores e pesquisas. É necessário ter os pés no chão, e é onde a tentação

pode ocorrer, de querer mostrar-se sábio. A decisão se processa, pois, num espaço

que se situa entre o saber teórico e o caso prático. Os procedimentos que se devem

adotar, nem sempre são concordes com as novas pesquisas. Os conflitos se

revestem de diversas dimensões.

a) THÉVENOT (1992) trata com muita propriedade o fato de que a ética se

move entre o universalismo ou a universalizabilidade e o particular. O particular é o

situado, o qualitativo com sua especificidade. As normas técnicas e éticas são


28

elaboradas por especialista para não especialistas. A doença possui características

que podem ser comuns mas que no seu aparecimento apresentam-se de modos

diferentes.

Há também o conflito dos recursos para a saúde à qual todos têm direito.

Mas a realidade é bem outra. A desigualdade é produzida a cada dia na população

mundial.

Esse conflito situa-se também no confronto justiça contra injustiça. Desde

Platão a justiça era a virtude das virtudes (1994). Não foi por acaso o sucesso da

obra de John RAWLS (1981). Como hierarquizar as reivindicações vindas de cada

lado?

b) Na prática do dia a dia, o médico encontra-se em tensão entre, de um lado,

a solicitude versus respeito. Como se poderá atender ao pedido que o doente faz

para que morra e o direito à vida? Do mesmo modo o caso da procriação a que

todos tem direito e as exigências da eugenia. O ponto de vista de Jacques MONOD

(1982) aconselhando a esterilização das pessoas que possam transmitir deficiências

hereditárias graves, constitui uma questão muito séria porque supõe o princípio da

heterointervenção na vida das pessoas. Princípio esse que levou a todos os

demandos do nazismo.

Paul RICOEUR analisa o exemplo da medicina num contexto de tortura "no

qual o ato medicinal que poderia concretizar a busca do bem se compromete

gravemente com a mentira e atinge os direitos fundamentais", resume CADORÉ

(loc. cit.,1994).
3 A DECISÃO BIOÉTICA NOS QUADROS DA MUTAÇÃO ATUAL

Não são apenas as tecnologias, os saberes que estão em mutação. O próprio

conceito e a prática de Ética também sofrem o impacto da transformação do mundo

e está em mutação. Há já quem trata da possibilidade de os computadores (e os

animais) se tornarem pessoas com os direitos morais conseqüentes.

Donde se faz necessário refletir sobre a prudência como Aristóteles (1967).

Trataremos das referências sistemáticas para a análise da decisão, assim como dos

princípios, das referências fundamentais e os aspectos complementares do

conhecimento racional.

Vimos o que é uma decisão Bioética. Pode-se afirmar que se trata de uma

decisão bidimensional. Há a questão ética e a questão científica, ou biológica. A

Ética impõe limites à ação em quanto esta significa tudo o que se pode fazer ou

realizar, determinados por uma decisão livre. Não há imposição de limites físicos ou

de outros meios de côa, a Ética é de imposição ou de auto-imposição livre de

voluntária. Imposição que fica estritamente limitada, no que se refere à sua

característica ou ao seu aspecto ético, ao império da primeira pessoa. "Ninguém

pode decidir em meu lugar" e a decisão tomada tem que ser aceita e assumida em

primeira pessoa. Há, assim, uma solidão radical nessa decisão, como SARTRE o

fez notar em sua conferência: O existencialismo é um humanismo (1973).

Quando se fala em primeira pessoa, tanto pode se entender a pessoa no singular

como no plural, como acontece nas decisões de comissões ou de colegiados.


30

Em seguida, há a questão dos limites - isto é, em relação ao bem e ao mal,

que são limites de "consciência", constituindo uma ordem invisível a reger o visível.

Se houvesse uma concordância universal sobre o que é o bem ou o que é o mal

não haveria razão de discutir o tema. As divergências surgem de muitas fontes:

1) da sensação base das crenças e das opiniões; 2) dos conhecimentos

científicos: aqui tem-se o problema de HUME (1973): como inferir o dever-ser

(ought) daquilo que é? 3) Enfim, para resumir todos outros, usamos a palavra

coração ou aspecto emotivo, em que envolvemos interesses, ideologias, poder e

outros; 4) Não se deve omitir o aspecto religioso, como o faz notar, entre outros,

KIERKEGAARD (1973).

Se considerarmos a segunda dimensão, dimensão bioética, a bioética toma-

se dramática. São decisões que envolvem a vida tanto no seu aparecimento, como

na sua manutenção, como na sua extinção (morte). As questões bioéticas não são

teóricas apenas; envolvem casos. Há três modos de considerar as questões

bioéticas, onde a pergunta é "pode-se fazer o que se sabe?":

1) o casuismo que consiste em aplicar regras racionais e gerais aos

casos particulares. O essencial é salvaguardar os princípios, tendo em vista que o

"caso" apenas acrescenta o circunstancial e o particular, que, enfim de contas, não

seria substantivo.

2) o proceduralismo, em que se parte do "caso concreto" que vai

fornecer os cursos de ação e dos procedimentos. O caso não é algo de

circunstancial ou de ocasional, mas é o ponto de partida, passando em primeiro

lugar.

3) finalmente, o decisionismo que separa de um lado, o ponto de vista e

as análises e soluções propostas pela ciência, deixando de outro lado as decisões

éticas a uma outra instância decisória. Procura-se manter uma "certa neutralidade"
31

do cientista, como o pretende POPPER (1978) em sua discussão frente aos

representantes da Escola de FRANKFURT.

Esses três modos de considerar a questão bioética determinam os diferentes

métodos de decidir e de proceder que não serão consideradas no âmbito das

reflexões que seguem.

Diante dessa simples e rápidas pinceladas percebe-se a grande

complexidade da decisão bioética que a transforma em problema. Sem dúvida, ao

analisarmos as, esse modo será abraçado apenas a titulo de fio condutor das

considerações para introduzir a questão da prudência. Os métodos de decisão

próprios de certas escolas serão estudados em outros artigos de modo mais

adequado e mais detalhados.

3.1 AS FASES DA DECISÃO

A descrição das fases de decisão mostrarão também a complexidade da

questão ética em geral e da Bioética, em particular.

A decisão surge quando o homem pretende agir, isto é, quando se propõe a

alcançar certos fins. A decisão é a determinação do fim a atingir, assim como a

fixação dos atos a fazer e da maneira que se deve operar. Numa palavra, decidir

é o ato de escolher meios e fins, e a determinação de pôr em ato tais meios.

A decisão pode ser estruturada de um ponto de vista genético

(encadeamento dos atos e operações), psicológica (a dimensão interior da

decisão), cronológica (simples descrição dos atos envolvidos), segundo se

apresentam na sucessão temporal ou lógica (em que se estudam as relações

necessárias ou causais).
32

Na decisão há que se considerar as etapas da deliberação, que são a fase

da investigação; o ato do julgamento acerca do que foi encontrado; e finalmente o

ato do tomada de decisão propriamente dita (imperativa).

Segundo ARISTÓTELES, (Ethica a Nicom. VI, 2,1967) a ação é determinada

de três modos: sensação, pensamento e tendência que intervém nas três fases da

decisão, que passaremos a descrever.

1) DELIBERAÇÃO. É o ato que precede a decisão. São as discussões que

precedem das escolhas. No caso das decisões pessoais, a deliberação designa a

reflexão sobre todos os fins e objetivos que se quer alcançar, ou considerar as

possíveis alternativas de um modo de agir, de estratégias, de procedimento ou de

métodos e técnicas para buscar um determinado fim.

"Uma escolha deliberada é uma tendência acompanhada de reflexão; é


necessário em conseqüência que a razão seja justa e que a tendência seja
reta, se a escolha é deliberada é boa, e é necessário que haja conformidade
entre o que afirma a razão e o que persegue a tendência". (Ethica a Nicom.
VI. 2. 1967).

A deliberação, continua Aristóteles, pode ser perturbada pela dor e pelo

prazer que alheiam o homem e o turvam no seu ato de reflexão, impedindo-o de ver

imediata e claramente os princípios e as metas da razão. Como o dirá PASCAL

(1973), é a interferência do coração, isto é, de toda a dimensão emocional do

homem, de suas paixões, como vimos acima.

Do mesmo modo, quando S. Agostinho, no capítulo XII do De Magistro

(1973), fala da possibilidade do erro apesar da iluminação divina, lembra que isso se

deve à incapacidade em que alguns se encontram de poderem ver a totalidade das

questões. Em continuação, Descartes explica a desproporção entre a vontade que

quer o infinito e a limitação da inteligência como causas dos erros humanos(5ème


33

Médtiation, 1953). Poder-se-ia continuar, mas essas indicações mostram o ajuste da

observação aristotélica quando invoca a possibilidade do alheamento da razão.

Essas considerações levam a que se detalhem, em Bioética, vários métodos

para decidir o que procuram evitar os erros e conseguir os melhores acertos.

Portanto, não basta confiar "cegamente" na razão, nem acusar Aristóteles de

racionalismo. Para a escolha virtuosa é preciso que a reflexão seja acompanhada

de disposições morais ( ARISTÓTELES,VI,1).

A escolha deliberada precisa do real conhecimento das circunstâncias

particulares e de todos os interesses que estão em confronto. Seguir a "reta razão"

conforme o dizem Aristóteles e 5 Tomás de Aquino, não é um ato que se processe

de modo lógico e necessário, mas é uma norma ideal que indica, antes de mais

nada, um programa, que exige que se evitem a precipitação e o preconceito

(Descartes,1978), o que se consegue após exercícios de ascese interior, ainda mais

quando estão em jogo os bens humanos que são de categorias diversas e que

podem entrar em conflito.

Tentaram-se estabelecer regras, desde a De Vita beata de Sêneca ( ) até o

Traité des Passionss de l'âme (1958) assim como as lições de Espinosa na Ética

(1973).

2) Considera-se agora a 2a fase que precede a decisão: é julgar a parte dos

dados que se encontram na 1a fase, como os mesmos períodos de alheamento e

perturbação da razão. Trata-se de julgar em termos do bem ou da bondade da

ação. Esse julgamento depende da consideração que se faz da ação pondo-a em

relação com os fins propostos.

É o ato próprio da razão, que no caso da Ética não é simples, pois as

interferências emocionais, psíquicas, ideológicas e outras constituem um anteparo à

visão clara e distinta da realidade. O julgamento é sobre a que é útil a cada um, e
34

útil a si. Ora, adverte ARISTÓTELES (I. VI, cap. 8), (1967) não se chega a isso

apenas pela lógica e pelo estudo; é necessário a experiência de vida, o que nos leva

a situações complicadas.

Sobretudo, se tal situação se torna mais complexa no caso da Bioética.

Nesse caso, as decisões são sobre a vida do paciente: tanto sua manutenção ou

extinção, como o modo de subsistência. A vida é, sem dúvida, o bem mais precioso

de que o homem é dotado. Há problema na decisão quando a manutenção de uma

vida exige a supressão de outra ou exige uma interferência que diminua a

intensidade da vida de outrem.

Se não existissem tais conflitos, a decisão não seria bioética, mas puramente

técnica. Há conflito quando os recursos (de quaisquer tipos) aplicados na solução de

determinados casos, venham a faltar para a solução de determinados outros casos.

Aqui se tem uma questão ética e não apenas técnica ou econômica, pois

trata-se de julgar sobre o bem ou bens resultantes.

A norma formal de julgamento é, em geral, essa: “Fazer a ação que produza

as maiores e melhores conseqüências”. Mas, então, podemos nos questionar

melhores para quem? Ou melhores para quê?

3.2 A DELIBERAÇÃO SEGUNDO ARISTÓTELES Ética, VI. I

Distingue-se o fato de examinar e de deliberar. Como também entre

deliberação, ciência e opinião.

1- A deliberação não é uma simples investigação, um simples exame,

que pode ser apenas teórico. A deliberação, como se viu, precede

uma decisão que comanda uma ação. Deliberar consiste em


35

examinar quais as possíveis estratégias para a ação, quais os

roteiros ou quais os caminhos a seguir ou os meios de adotar.

Exige, pois, não apenas um exame, mas também uma certa

avaliação: qual a melhor ação a escolher.

2- Na deliberação há a busca e reflexão, mas não se confunde com a

ciência: não se delibera sobre o que se conhece.Ciência é

conhecimento pelas causas, ao passo que a deliberação vai além:

privilegia-se uma certa ação. Este privilégio implica o conhecimento

ou a ciência, mas vai além. É um ponderar.

3- Distingue-se também da sagacidade, pois este é um "achado feliz", algo

que se dá sem o exame deliberativo: uma espécie de intuição que não é fruto do

deliberar que exige um longo tempo antes da execução. A sagacidade produz

"acasos venturosos", sem apelo a raciocínios, sendo instantâneo (Descartes, 1958).

4- A opinião reta não se confunde com a deliberação, pois "a retidão de

opinião é a verdade", ao passo que a deliberação se dá à luz do bem e do mal, isto

é, se produz sob oo.

Não há uma busca na opinião, não procura retificar. Ao passo que "o homem

que delibera, tanto quando sua deliberação é satisfatória se não o é, busca alguma

coisa e calcula". A deliberação é, assim, um ato da inteligência que reflete. Mas não

é uma afirmação, como acontece na ciência e na opinião, com características e

conseqüências diversas.

3.3 DELIBERAÇÃO ÉTICA E A DECISÃO PRUDENTE


36

Nas deliberações éticas é preciso levar em conta o que Aristóteles denomina

de retidão, para distingui-la das deliberações dos homens maus. A deliberação boa

"consiste num acordo exato ao que concerne nossos interesses, entre o fim, os

meios e as circunstâncias". Há, portanto, necessidade de um exame acurado do

curso possível das ações em relação a um fim particular a que deve estar

subordinado à finalidade mesma da vida humana: o cumprimento das exigências da

natureza. Essa realização das necessidades e potências de natureza humana

constitui o bem do homem, conforme está explicado no livro I da Ética a Nicômaco

(1967).

E, Aristóteles sintetiza a deliberação e a decisão ética com essas palavras:

"São prudentes (logo virtuosas ou éticas) as pessoas que se caracterizam por

sua capacidade de se determinar sabiamente; uma deliberação sábia é a retidão do

juízo de acordo com a utilidade e com referência a algum fim", no caso o bem do

próprio homem (1967).

A seguir para estudar a decisão (ética) prudente, a Ética a Nicômaco examina

a clarividência, a sensatez e a habilidade que são condições necessárias para

uma decisão virtuosa, que muito importarão para os casos de bioética.

6- A CLARIVIDÊNCIA ou penetração indica as qualidades do espírito atento e

alerta, próprio das inteligências que são aptas para o estudo, que não pode ser

confundido com a apreensão e a compreensão. No caso dramático das decisões

bioéticas é necessário que haja clarividência pois esta se ocupa de questões em

que possa haver dúvidas.

A penetração se caracteriza pela sua dimensão crítica. Ora, a crítica consiste

na capacidade de ponderação, de avaliação, de aquilatar a ação a tomar em relação

à composição entre fins, meio e circunstâncias, para achar o justo caminho ou a

justa decisão.
37

2. A sensatez é o conhecimento da dimensão de realidade. Dirige-se pela,

possibilidade de realizar o que foi proposto. Não se trata de ir atrás de fantasias ou

de buscar o impossível.

3. Finalmente, a habilidade supõe a capacidade de realizar o que foi

decidido. A habilidade é a faculdade de operacionalizar técnicas, estratégias e

procedimentos.

Ora, essas reflexões nos conduzem a propor vários quadros para análise de

uma decisão ética apresentados por CADORÉ (1994).

3.4 REFERÊNCIAS PARA A ANÁLISE DO PARA UMA TOMADA DE DECISÃO EM


BIOÉTICA

Insistir que a decisão seja racional, humana, prudente é ainda ficar no

aspecto formal. A esse respeito, para trazer a análise mais coloca à realidade,

CADORÉ propõe alguns referenciais ou quadros de análise.


38

3.4.1 Ponto de vista sistemático

A escolha pode ser vista segundo os eixos do quadrado:

(CADORÉ, 1994, p.142 )

Cada decisão bioética, cada decisão biomédica põe em jogo cada um dos

pilares citados. A decisão escolhe os meios (mediação) baseados nas informações

técnico-científicas (tecnociência), que exige apoios diversos (administração) e que é

dosada pela cultura. Veja-se o exemplo da transfusão de sangue, que é um meio

tecnocientífico aprovado, para uma testemunha de Jeová ou num hospital mantido

por essa seita (cultura e administração). Uma decisão que não põe problema algum
39

para outras pessoas ou outras culturas. O cruzamento das quatro linhas de

consideração complicam o quadro decisional, sobretudo em Ética.

3.4.2 A questão dos princípios

Há aqui também um espaço estruturado com diferentes composições de

forças. A simples consideração do diagrama sugerido pelo autor que nos inspira nos

mostra as dificuldades e é, por outro lado, um modo pedagógico didático para

examinar a questão.

(CADORÉ, 1994,P.143)

Cada pólo determina o estilo das diferentes teorias morais que configuram a

ação bioética.
40

3.4.3 Referências fundamentais

Pólos referenciais que conduzem à possibilidade de universalizabilidade das

normas e valores podem também ser vistos de acordo com os quatro pilares a

seguir visualizados.

(CADORÉ, 1994, p.143).

Os princípios hipocráticos: beneficência e de não fazer o mal (não

maleficência) não podem ser deixados a cargo nem da perspicácia; nem da

sagacidade como o desejava Descartes. É preciso que se tenham em mente as

dificuldades que o mesmo racionalista aponta na regra XII (Regulale ad

directionem ingenii) (1958).

Por conseguinte a decisão bioética se dá numa trama e na conjuntura de

várias linhas de orientação, conflitos que surgirão mais claros quando comparamos

os três referenciais até agora apresentados.


41

3.4.4 As mutações num referencial de C.Pinto de Oliveira (1987)

Há o problema da unificação do sujeito moral diante das mutições que o

seguinte quadro permitirá analisar em relação à decisão bioética.

conhecimento racional afetividade sujeito livre e responsável


conformidade insatisfação coerência
contraste realização de si fratura

(CADORÉ, 1994, p.145.)


4 A CRIATIVIDADE NA DECISÃO BIOÉTICA

Por isso, por várias vezes, como o vimos no início, o Prof. Jean LADRIÉRE

fala de uma inventividade das normas, de uma criatividade. É uma conquista

sempre em novos patamares. A pessoa humana se faz pelas suas escolhas, dado

que o homem é antes uma existência que se realiza no tempo pelo uso de sua

liberdade. Empregar a liberdade é a dimensão específica dos atos morais.

Observamos, na introdução, que há uma doação da existência que faz que

sejamos sempre nós mesmos como designando o que nos é próprio. Ricoeur

denomina este aspecto de mesmidade. Mas há no sujeito uma ipseidade (de

ipsum = eu mesmo) que indica a permanência é a manutenção do próprio sujeito

através do tempo, que é uma conquista. Ser o mesmo e ser na sua ipseidade são

as definições da identidade. A manutenção do próprio sujeito como primeira pessoa

exige uma instância de consciência, que a princípio não existe de modo tão claro

nos animais.

Ora, perguntar-se-á como pode a decisão bioética, como toda decisão ética

aliás, pôr em questão essa identidade? É o fato de voltar atrás em suas decisões; é

a constatação de que sempre, a todo o momento, somos uma possibilidade de auto-

realização ou de auto-recusa. A Ética surge quando aparecem os limites que me

determinam como eu mesmo, como sujeito próprio na decisão: "procurei-me em

todas as coisas" (HERÁCLITO) (1973); "tomar-me o que sou" (LAO TSÉ). "A

eticidade introduz", diz RICOEUR, "uma intriga na identidade do sujeito".


43

"A dialética consiste no fato que segundo a linha da concordância, o


personagem tira sua singularidade da unidade de sua vida considerada como
a totalidade temporal ela própria singular que a distingue de toda outra
qualquer. Segundo a linha de discordância, esta totalidade temporal está
ameaçada pelo efeito de ruptura dos acontecimentos imprevisíveis que a
pontuam (...); a síntese concordância-discordância faz que a contingência do
evento contribua para a necessidade de certa forma retroativa da história de
uma vida, à qual a identidade da pessoa se iguala. (...) E a identidade da
história que faz a identidade do personagem". (RICOEUR, 1993 p. 175).

Uma decisão muda uma vida, às vezes, tanto diante do próprio sujeito, como

em relação com os outros. As vezes a decisão ética pode gerar e gera muitas vezes

a angústia. É quando surge a fratura entre o ser que o sujeito é e o que desejará

ser. Se as escolhas não mudam o passado, podem mudar o futuro.

A identidade é fundamental nas decisões bioéticas que envolvem a

reciprocidade, como por exemplo acontece no respeito ou desrespeito das leis de

trânsito: um conta com o outro, como nos casos em que se depende de decisões

bioéticas e biomédicas. O médico precisa pensar sobre a possibilidade da

versatilidade e para manter-se o que é preciso um estado de eticidade e de

moralidade. Disso conclui Bruno CADORÉ:

"Vê-se, pois, a dinâmica da experiência ética está intimamente ligada aquela


do dever da identidade da pessoa enquanto sujeito moral, o que nos situa na
encruzilhada de duas problemáticas: aquela da pessoa em sua identidade
para o qual tratar-se-á de definir o estatuto de sua dignidade (levando em
conta a pluridimensionalidade constitutiva da pessoa); aquela também da
história, isto é, da afirmação progressiva de cada uma das pessoas na
instauração estruturando uma sociedade ao serviço da qual precisam se
ordenar a relação de tratamento e a pesquisa biomédica." ( 1994 p. 148).

A criatividade e a conquista da identidade se reveste, sem dúvida alguma de

uma dimensão social: "Se o tu não precede, pelo menos acompanha a nós", e o

nós é constituído de duas identidades recíprocas: o eu e o alter-ego (o tu). Por

acaso a decisão ética, como uma certa criação de si mesmo, se dá em três pólos: a
44

corporalidade, a comunicação e a interioridade. A corporalidade indica o pólo de

manifestação do próprio eu: pelo como eu me apareço a mim, ao outro e ao mundo.

Pela dimensão do ser-com-o-outro posso me comunicar e receber a comunicação

do outro que possibilita levar em conta a dimensão da reciprocidade na decisão. E a

interioridade marca a solidão inarredável de toda decisão humana (toda decisão é

solitária) e recebe a luminosidade, bruxoleante muitas vezes, da consciência que se

assume como um sujeito em si mesmo e que não pode ser substituído por outro:

ego ipse et non alius (eu mesmo e não outro).

Por essas três dimensões pode, então, a pessoa humana tomar uma decisão

ética: é o auto-compromisso diante de si e dos outros, que vai gerar a

responsabilidade. Lembramos mais uma vez que a responsabilidade ética não é a

responsabilidade civil. Nesta última pode o outro ou a sociedade impor-me censuras

e sanções caso as decisões não estejam de acordo com as normas legais. Pela

responsabilidade ética só eu, como sujeito, respondo por mim mesmo: eu me julgo

ligado ou determinado por mim mesmo, a partir de minha decisão, a realizar a ação

que eu mesmo me determinei.

No comportamento em que o homem se põe em questão, em que trata de

impor ao seu ser um dever ser individual como coletivamente, o homem se arrisca

e se põe em jogo, atesta-se a si mesmo ao impor sua marca no que o rodeia, no

seu UMWELT. A ação forja suas máximas nas circunstâncias próprias de seu

exercício, a ação se põe como ética, como humana, na invenção axiológica. Ora,

toda invenção axiológica (norma, valores) constitui um momento de ruptura,

emergência de algo novo. Mas esta criação não é gratuita, pois que a norma se

impõe à ação a partir de um desenvolvimento autônomo que bane toda gratuidade,

a partir de uma lógica interna que exclui o arbitrário. A arbitrariedade é própria da

violência e da infantilidade irracional.


45

Há um caminhar, um vir-a-ser das normas, mas ligadas retrospectivamente

como a manifestação de uma necessidade.

Existe, portanto, uma vida das normas. Quando as circunstâncias exteriores

pressionam, o campo da intenção axiológica se restringe, limitando-se ás relações

inter-humanas mais imediatas. Quando as possibilidades de intervenção sobre o

meio exterior aumentam o campo de invenção se alarga no mesmo instante. É o

que distingue a época do desenvolvimento tecnológico e econômico atual; o homem

fixa cada vez mais livremente suas relações com o meio e o modo como entende

assumir suas vidas. Ao passo que aqueles que ficam marginalizados, fora do

progresso desenvolvimentista, vivendo em condições sub-humanas, lutam

desesperadamente para sobreviver, quando não lhes resta como único recurso

senão o apelo a meios de revolta e ao recurso a soluções violentas: não que sejam

necessárias ou desejadas, mas o ser acuado contra a parede procura, a qualquer

preço, escapar.

O que importa para o homem é o modo como valoriza sua vida, como a

transforma e lhe dá um sentido. Está-se em regime de abundância, tanto pode se e

dedicar à cultura, como às diversões inúteis e supérfluas. Em regime de penúria,

procura trabalhar para dele sair, nesse caso, porém, as coações, não o deixam livre

e suas ações são imprevisíveis: heróicas, resignadas, conformistas, revoltadas ou

anárquicas.

Parece que aquilo que poderia definir o que determina a vida como exigência

que ultrapassa ao mesmo tempo em que a recolhe: pode ser designado pelo termo

de HARMONIA. Seria, primeiramente, um equilíbrio, um funcionamento feliz, uma

acomodação adequada da vida a seus condicionamentos, uma disposição judiciosa

do meio externo para seus fins. Designaria também um estilo de vida em que tudo é

consoante, em que o si se sente em comunhão íntima com o mundo e se


46

experimenta levado por uma irrupção incessante que o impregna com o sentimento

da alegria.

4.1 FINALIZAÇÃO A PRIORI

Parece que devemos recorrer a um a priori que se impõe à ação. Mas que a

priori? Idéias inatas, intuição? Os métodos a priori não possibilitam um acordo

intersubjetivo. E tais posturas ficam apenas no abstrato, havendo convergência de

visão, mas não há acordo na ação.

Parece-nos, a esta altura, que a ética se dirige pelos seguintes critérios:

1- Coerência e consistência na determinação das metas, propiciando o

acordo racional.

2- A intersubjetividade, de modo que todos possam participar da ação, e

que não haja um corte entre as elites hegemônicas e as maiorias marginalizadas.

Não que se pretenda uma identidade, pois a civilização da identidade é tão

discriminadora quanto a classista. Por isso há outros princípios.

3- O princípio de reciprocidade, em que se porá em prática a regra de ouro:

"que não se faça aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo". E aqui,

mais do que a justiça, imperará o amor "A plenitude da lei é o amor". Não o amor

romântico, mas aquele que consiste na promoção do outro.

4- O homem somente se encontrará na medida em que passar pelo outro,

como se dizia em outra parte. Somente assim será possível.

4.2 AINVENÇÃO DAS NORMA,

Não se pode negar totalmente o apriorismo, pois não se pode recorrer, em

Ética, às proposições de fato fornecidas pela ciência ou observação. Mas não


47

podemos cair no puro subjetivismo. Contudo, é preciso distinguir dois

momentos na manipulação das normas: o momento de propositura e o

momento da justificativa das normas (objetivo próprio de Ética).

O erro das posturas das doutrinas a priori é considerar a natureza como já

dada e acessível, pronta para a reflexão que retiraria dela seu conteúdo. A Ética do

desenvolvimento consiste em examinar como este contribui á realização do homem

e se produz de acordo com as normas.

A experiência histórica nos mostra (e a ciência também) que a natureza

humana é uma perpétua invenção de si mesma, que não cessa de se antecipar a si

mesma e de criar um futuro sempre imprevisto. Não é a priori, na solidão da

reflexão, que ela pode se descobrir, mas somente depois, quando se engajou em

sua atividade criadora, mormente no desenvolvimento que realiza. Enigma para si

mesma, ela não pode se desvendar senão por meio daquilo que manifesta de si,

isto é, por meio de suas obras. A ação é auto-reveladora, porque é somente pondo-

se à prova que revela seus poderes: não no sentido em que o autor toma aparentes

potencialidades escondidas, mas num sentido mais forte que determina seu futuro

afetando-se a si próprio de um modo irreversível. A ação não é apenas uma

pedagogia, é verdadeiramente uma criação.

Para melhor situar a dimensão de criatividade da decisão ética e conseqüente

responsabilidade, CADORÉ apresenta um quadro muito pertinente e elucidativo

para nossas considerações. A meditação a partir desta sugestão, encerra essas

considerações sobre o caráter existencial das decisões para nos introduzir na

questão dos fundamentos.


48

Ver xerox

(CADORÉ, 1994, p.153).


5 OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA NA PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Por fundamento da Ética entendemos o que se quer dizer, analogicamente,

por fundamento na construção. Trata-se pois da base do edifício, aquilo sobre o

qual o mesmo repousa. O que importa, no momento, é que o fundamento seja

suficientemente sólido e resistente para que a construção não desmorone e seja

estável. Portanto, quando passamos à Ética, fundamento é a sustentação e razão

última da construção desse saber.

Fundamentar é, pois, lançar as bases do saber para que seja aceito de modo

necessário pela inteligência. Há vários exemplos de fundamentação em filosofia.

Como ou porque um determinado saber merece crédito? Pergunta-se

Habermas (1973) para as ciências. Para a Ética a pergunta apenas será posta a

partir do momento em que há o encontro de posturas divergentes ou contraditórias,

segundo o demonstra Eric WEIL (1969 ). Como a palavra ethos, o diz, cada homem

sente-se em casa (metáfora) e não contesta o que faz muitas vezes do mesmo

modo. É o hábito que constitui uma segunda natureza, uma casa (habitare), o que

elimina a discussão ou a crítica, haja vista a própria reflexão até quando a própria

postura é contestada ou colocada em questão por um outro ponto de vista ou outro

modo de ser ou de agir. Dá-se, nesse momento a suspensão do que se denomina

dogmatismo axiológico ingênuo. Há a perda da certeza, de um saber que não era

discutido, de um modo de ser que jamais era posto em dúvida, de uma maneira de

agir que nunca se pensou ser apenas uma entre outras. Com a perda da certeza

nasce a reflexão sobre a busca da fundamentação. Surge o questionamento


50

específico da filosofia: qual a garantia do saber ético quais as suas credenciais para

que seja aceito pelo homem e que não leve para algo que o desvie de sua

trajetória?

Portanto, é uma busca de impacto existencial, tão profunda como a

preocupação heraclítica: "Não é preciso que o homem se entregue a conhecer

muitas coisas, à polimatheia, mas que aprenda apenas o que é necessário".

(HERÁCLITO, Fragmentos, 1973)

Nada mais necessário do que saber o que se deve fazer. Essa questão é

parte e respondida por grandes filósofos, embora importe que cada qual a ponha e

responda por si mesmo.

5.1 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO BIOÉTICA

Mas acontece que há um pluralismo vivido tanto no campo cultural, como

sobretudo no campo ético. O pluralismo é um dos aspectos fundamentais das

considerações da pós-modernidade, na qual observamos que se dá o seguinte

acordo: "Você tem razão, mas não diga que também eu não tenha", pois toda vista

parte ou supõe um ponto de vista. A racionalidade se dá no fato de que todos

podemos compreender as razões e os pontos de vista de uns e dos outros. É o que

subjaz ao que se denomina hoje "Ética da discussão”, exposta por K. OTTO APEL e

Jürgen HABERMAS, à que voltaremos mais adiante.

Há diversos modos de fundamentar a Ética hoje em dia, seja pelo

essencialismo ou pelo comunitarismo. O essencialismo também poderia ser

chamado de imanentismo em oposição às Éticas transcendentais. O fundamento

das Éticas transcendentais se baseia numa realidade que transcendo o homem, o


51

segredo, sendo este o ponto de vista Emmanuel LEVINAS (1991) que se apóia na

Bíblia. A ética é uma abertura ao Infinito como o Outro que me convoca.

"Longe desta questão de crer que está no coração da reflexão (démarche) de


HEIDEGGER, Lévinas nos repete que a Ética tem precedência (é primeira),
que a nudez da face apela para o código ético, mas desvela também, no
mesmo movimento, o infinito inscrito diante de mim, nesta absoluta derelição
da face, ao mesmo tempo vulnerável, ameaçado e sagrado, impondo-me,
pelo menos por direito, a proibição da violência” (RUSS, 1994).

A perspectiva essencialista se fundamenta no do ser do homem sendo a

Ética o que lembra ao homem a volta ao seu ser que esqueceu. Trata-se de restituir

o ser ao ente, isto é, tomar-nos os seres a que fomos destinados e de cujo centro

nos desviamos em nossa trajetória errática que não mais ouve o apelo do ser que

somos. É sobretudo o desvio da técnica que tenta uma reconstrução do homem.

É apenas na perspectiva do ser, no horizonte do ser, que o ente do homem

se toma possível.

Há, enfim, o conjunto das Éticas que se fundam na comunidade humana

sendo pautadas pela reciprocidade e comunicação.

As Éticas imanentistas buscam o bem do homem a partir deste mundo.

Constroem uma visão totalmente liberada de qualquer esperança: nada há a

esperar; não se criam ilusões, é preciso que aproveite da vida com alegria. A Ética

designaria então esta escolha, desesperada e alegre, de uma sabedoria bem

terrestre, ligado a um conatus pleno, sem culpa, sem tristeza, estranha a toda ilusão

como ao significado.

Apenas citamos quatro estilos de fazer ética na contemporaneidade: como é

fundamentar a decisão num mundo de tantas divergências? Contudo, parece a

todos que à Ética compete a unificação de um conhecimento atomizado e

fragmentado, no qual o homem mal se pode reconhecer nesse caleidoscópio


52

apenas mostrando uma faceta do seu ser? Como recompor o homem, que se perde

pela dissolução e pela diluição? (Na afirmação da BAUDRILLARD ( ).

Eis, pois, que a Ética precisa fundamentar sua decisão por uma

argumentação sólida.

A questão do fundamento da Bioética se põe portanto em três patamares:

a) a legitimação que deve ser racional e universal, cujo exemplo maior é a

obra de KANT (1971).

b) regulamentação que esta se dá no plano particular dos casos.

c) decisão que resulta de uma intenção que procura a efetivação para

conseqüente avaliação.

I. Para Tristam ENGELHARDT (1998 ), as controvérsias em Bioética, como

em qualquer outra situação podem ser resolvidas de três modos:

1) Pela força como é o caso das leis ou das normas positivas, que em

princípio favorecem os privilegiados.

2) Pode-se apelar para um sentimento comum: mesma religião, mesma fé,

mesma cultura e mesmos laços de afetividade e laços étnicos.

3) Ou à moda de KANT: apelar para a racionalidade, para a Lógica: a

universalizibilidade da norma.

Para ENGELHARDT as tentativas para fundamentar a Moral em razões

abstratas e vazias falharam. É preciso estabelecer uma hierarquia moral de bens e

de vantagens. Contudo não devemos confundir essa fundamentação com o

utilitarismo ou o consequêncialismo comum. KANT falha porque é preciso definir o

que é uma pessoa racional. Para isso é preciso uma instância avaliadora; essa

precisaria de outra que avaliasse a racionalidade da segunda; e assim criaríamos

uma regressão ao infinito.


53

Do mesmo modo os utilitaristas afirmam que uma ação é moral quando dela

resultam os melhores efeitos ou conseqüências para o maior número de pessoas.

Essa maioria não pode ser posta de modo racional, pela Lógica, se não cairíamos

na mesma regressão que denunciamos no caso anterior.

Por isso, Engelhardt propõe que se funde a ação Bioética, como a Moral em

geral, numa hierarquia moral de bens e de vantagens. Isso supõe um observador

ideal que deva possuir o senso moral, o conhecimento suficiente para estabelecer a

hierarquia. Do mesmo modo, que nos casos do utilitarismo e do racionalismo, pode-

se criticar a escolha do observador ideal.

De toda forma, parece que o autor acima citado supõe uma Bioética ou Moral

fundadas na liberdade, igualdade e prosperidade. Contudo, em sua atitude

fundacionalista "pragmática", diríamos, indica os pressupostos para que se possa

impor uma ordem ou uma norma.

1) É necessário que se saiba o que é correto: não basta que uma autoridade

em exercício o promulgue; é necessário que todos o saibam e aceitem.

2) Há uma autoridade legitimamente estabelecida (isto é, pela comunidade

esclarecida e universal) para agir contra o protesto de quem não aceita.

3) Tal coerção precisa provocar mais benefícios do que efeitos colaterais

prejudiciais.

Mas de onde vem a autoridade legítima? Esta não pode ser imposta, por isso

propõe uma negociação, portanto funda a moral na convenção. A negociação parte

das pessoas conscientes como elas são. Traça limites e emprega uma

argumentação racional. Avaliam-se os benefícios e os prejuízos que, em Bioética é

o prazer e o bem estar contra a dor. Em seguida, as pessoas consentem ou não.

Logo, com esse ponto de vista podemos examinar os diferentes sistemas de

Ética na perspectiva comunitária. Há que se respeitar o pluralismo na sociedade na


54

qual há disposição para resolver os impasses racionais e os que surgem nas

negociações pacificas. Mister se faz que se tenha em mente que o que vale para

uma sociedade ou comunidade restrita, não vale para uma comunidade mais ampla

e pluralista (aqui estamos considerando casos em que a decisão bioética não se

refere simplesmente aos casos médicos, mas situações mais amplas, como a

eugenia, a fecundação in vitro, a clonagem...). Há, na base, parece-nos uma

reafirmação do princípio da tolerância, quando as ações são restritas a casos

específicos.

Engelhardt salienta que o fundamento supõe o princípio de reciprocidade,

tendo sempre em conta que a Bioética deve situar-se entre uma Moral secular e as

crenças particulares em tensão, e levar em conta a autonomia e o benefício.

Contudo, o princípio de reciprocidade valeria se as condições de negociação

fossem ideais, mas esse ideal não existe.

Logo, em síntese, em Bioética, Engelhardt coloca como fundamentos:

1) Cada caso é um caso e é este que determina os procedimentos e as

normas que devem ser seguidas.

2) É necessária uma negociação livre e pacífica em que se respeite o

princípio de reciprocidade.

3) O consentimento livre e informado. Somente as pessoas se interrogam

sobre ética ou moral; só elas podem negociar Logo, é necessário procurar o

consentimento das pessoas, pois somente ela sobe o que melhor ela convém (o que

é um pressuposto do liberalismo). O princípio e a maximalização da vida com a

minimização da dor. A autoridade deve propor um projeto comum e não para dar

resposta gerais pois o livre consentimento e a negociação pacífica são as condições

da ação moral.
55

4) Outra base da ética (logo da Bioética) é a justiça que, como vimos acima,

cria conflitos.

5) Enfim há também, antes de qualquer outra indicação, estabelece-se a

primazia da pessoa.

O convencionalismo da livre negociação, por mais que ENGELHARDT a

queira como um fundamento último, sempre nos levará ao conflito como já foi

assinalado. Basta que se considere, a título de exemplo, como pode um doente ou

uma pessoa envolvida num caso ser livre para consentir.

Por isso passamos a analisar os fundamentos a partir da Ética da discussão.

5.2 O FUNDAMENTO NA ÉTICA DA DISCUSSÃO

1) Um princípio novo: A ATIVIDADE DA COMUNICAÇÃO.

A partir dos estudos de Austin (1972 ) e do 2 o Wittgensten (Investigações

filosóficas) (1973) insiste-se no fato que a comunicação é a nova forma de

estabelecer a necessidade, que ética não é mais procurada no pensamento, mas na

imagem e na Filosofia como na Ética. É preciso, porém, dissipar a neblina que

obscura o entendimento do mundo, mundo que é feito por uma linguagem não

analisada tão claramente.

Baseado nessas proposições, HABERMAS (1986) propõe que o princípio

primeiro que deve orientar a Ética é a racionalidade comunicacional pelo qual os

sujeitos envolvidos numa ação (e é o caso da ação bioética, procuram o acordo.

Para isso é necessário que a análise do caso ético passe por uma pesquisa

hermenêutica da linguagem e que se estabeleçam, como o veremos a seguir, as

condições para um diálogo autêntico e libertador).


56

Realizar uma pesquisa ética consiste em tomar como base do trabalho dos

signos lingüísticos. O título da obra de HABERMAS é sugestivo "Consciência

moral e teoria do agir comunicativo" (1989 )

Como pode esse princípio de comunicação fundar a ética? É o que vermos,

tanto na perspectiva de Karl Otto APEL (1987), como no ponto de vista de

HABERMAS.

5.2.1 Apel: uma fundamentação na sociedade de comunicação

Desde sua obra de 1967: L'apriori de la comunauté comunicationelle

etiles fondements de l"éthique , Karl Otto APEL insiste na necessidade de uma

ética, para uma sociedade em que se fala de natureza e que está na iminência de

destruir o homem e até o próprio planeta.

"Todo aquele que refletir sobre a relação que tem entre si ciência e ética na
sociedade industrial moderna no momento de sua planetarizacão, se
encontra a meu ver, frente a uma situação paradoxal. De um lado, a
necessidade de uma ética universal, isto é susceptível comprometer a
sociedade na sua totalidade, nunca foi tão urgente como nos nossos dias,
quando ao mesmo tempo aos sistemas, através das descobertas
tecnológicas da ciência, ao estabelecimento, em escala planetária, de uma
sociedade unificada. Mas por outro lado a tarefa da filosofia para fundar na
razão uma ética universal nunca foi tão árdua, haja visto das esperada do
que nesta época científica "(APEL, 1987, p 43).

Faz eco portanto a Jacques Monod (1982) que escreveu que o homem de

hoje souffre do mal da l'ãme (Sofre do mal da alma) e constrói a chamada ética da

objetividade. Ora, a ciência considerada empiricamente, tanto por Monod, como

pelos analíticos, Wittgenstéin, Schlick, Hare (e tantos outros). Não chega a fundar a

ética: as decisões éticas são da esfera da subjetividade, como o salientam os


57

existencialistas. Os analíticos apenas descrevem o discurso ético: elucidá-lo não é

fundá-lo:

"A filosofia analítica e o existencialismo, longe de se contradizerem na sua


função ideológica, antes se completam. Confrontam-se mutuamente por uma
espécie de desvios do trabalho, um reconhecendo o outro, respectivamente,
o domínio do conhecimento científico objetivo e aquele das decisões éticas
subjetivas" (op.cit, p.54)

A ambos Apel responde apelando ao que resolveu denominar de sociedade

ideal de comunicação. Esta é exigida pela ciência, pois tanto o princípio da

comunicação, como a próprio argumentação lógica supõem agir do mesmo modo, e

esta suposição é uma exigência ética: acertar normas é uma postura ética.

"Mesmo o pensador que de fato, é solitário só pode explicitar e submeter sua


argumentação para exame, se atender à condição de ser capaz de
interiorizar uma discussão de uma comunidade potencial de argumentação
no "diálogo" - crítico - da alma consigo mesma (Platão). Verifica-se assim que
a validade do pensamentos solitário depende da justificação dos enunciados
lingüísticos na comunidade efetiva da argumentação" (op.cit. p.93).

Logo, o pressuposto de uma sociedade ou de uma comunidade ideal de

argumentação nos remete às normas éticas, que exigem o reconhecimento das

pessoas com seus problemas nas suas situações concretas, que é o caso da

relação bioética e nas ciências biomédicas. Por que há a necessidade da ética

universal ou de um imperativo categórico? O imperativo categórico seria da forma:

"para que tu passas dialogar é preciso que entres de acordo com as regras da

comunicação". Se o pensamento, não pode dialogar.

A ética do diálogo exige a compreensão da linguagem e é um pressuposto de

qualquer ciência, pois toda justificação, seja baseada nas formas empíricas, seja

baseada na lógica, supõe que se aceitem as regras estabelecidas. Onde a


58

necessidade de compreender o sentido da situação bioética como o significado das

palavras:

"Segundo nossa abordagem heurística é nesse nível de compreensão


intersubjetiva do sentido e da validade dos enunciados (....) que unem que a
ética é pressuposta" (idem, ibidem, p. 95).

Assim, para Apel a idéia de uma sociedade ideal de comunicação constitui

o fundamento último da ética. Quais as conseqüências para a decisão bioética?

Primeiro, trata-se de reconhecer e de oferecer condições para que se estabeleça a

sociedade ideal de comunicação. É preciso que haja condições de diálogos para

que desapareçam tantas as diferenças como as desigualdades dos poderes.

Em seguida, pergunta-se como se poderia dizer que a obtenção das normas

de comunicação seriam um fundamento ético? Embora Apel diga que até o diabo

deve se submeter às regras argumentativas se ele quiser se integrar na

comunidade, há sempre a condição de sinceridade que é subjetiva. Se, por outro,

supomos, como parece ser o caso, que as normas de comunidade são um a priori

para o diálogo que elas existam e que precisam ser reconhecidas, cai-se, de nov, na

fundamentação kantiana: a ética pressupõe o a priori da racionalidade e a boa

vontade de todos os homens. A boa vontade é a vontade de reconhecer, aceitar e

de cumprir o dever que não se deve impor a mim apenas, mas categoricamente

(isto é, sem depender de hipótese alguma) a todos os homens racionais.

Contudo, Popper, na comunicação Lógica e ciências sociais (1978), afirma

que a ética é decisória, isto é, cada pessoa decide conforme seu conhecimento,

avaliação da situação e seus desejos. A isto, sob a influência de Karl Otto Apel,

Habermas vai responder pelo que se denomina de pragmática universal.


59

5.2.2 Habermas: ética e a pragmática universal

Várias são as obras desse autor sobre Ética e Moral (não confundir as

duas):moral é o fruto último de um procedimento argumentativo, e a ética relaciona-

se com as escolhas lógicas: HABERMAS,1989,1987,1988,1992).

Toda a discussão sobre ética e moral, em Habermas, pressupõe o linguitic

turn, a reviravolta lingüística:

"Aquele que quer considerar qualquer coisa do ponto de vista moral não deve
se deixar extrair do contexto intersubjetivo dos participantes na comunicação
que se comprometem em relações interpessoais".

A ignorância da situação mediatizada pela linguagem, assim como o

desconhecimento da perspectiva dos que participam na comunicação não levará a

uma visão imparcial e universal.

Mas é necessário que um trabalho hermenêutico seja feito para que se abram

universalmente as perspectivas dos participantes individuais (declaração universal

das perspectivas).

Em primeiro lugar, afasta a possibilidade do positivismo fundar a ética, do

mesmo modo que expurga, do seu discurso filosófico, a metafísica, pois somos os

"sem terra" da metafísica. Afasta o positivismo porque este elimina o sujeito: há o

factual e o objetivo. E a Metafísica não resiste à analítica.

A Ética pois deve ser fundada pela mediação da linguagem e dos signos,

exercendo assim estabilidade pela consulta. Há O princípio dialógico funda o

acordo entre os sujeitos e guia a teoria da ética. A atividade racional, portanto, que

preside a atividade comunicacional, é entendida numa comunidade mútua e


60

recíproca dos participantes ao diálogo. No diálogo, fundamenta-se o argumento da

responsabilidade dos interlocutores.

Como pode essa atividade fundar uma ética? Fundará a ética porque, sendo

essencialmente normativa (como já salientou APEL) parte do pressuposto que o

outro é uma pessoa, logo livra e autônomo (com seus limites) que não pode ser

tratado como objeto. Estabelece-se assim o reino da ética, pois pressupor que todo

homem é pessoa, é situar-se na universalização.

"Antes mesmo de entrar em qualquer tipo de argumentação, qualquer que


seja, portanto, também no discurso cotidiano, desde que se aceite falar,
devemos pressupor mutuamente que somos pessoas responsáveis”.

Para apenas dar um exemplo, se você diz qualquer coisa de obscuro e se

você age de um modo um tanto mais curioso, tenho o direito de perguntar-lhe: "O

que é você que você faz?" e "o que é que você disse?" pressupondo que você

poderia me dar uma explicação sincera que eu tenho ou não razão"

(BAERMANS,1992,p.27/28) "Ser resolutamente modernos".

A empresa de Habermas é, sem dúvida, inter-relacional, observa Jacqueline

Russ (op cit. p. 67), pois representa, pergunta se a passagem de uma norma

universalizável a uma norma ética particular é evidente. Não parece sê-lo: uma

questão é o estabelecimento de regras éticas de um discurso ou de um diálogo,

outra é estabelecer a eticidade do discurso. Dizer que as pessoas não são objetos e

que são responsáveis parece um a priori (que nos mesmos não negamos), mas daí

concluir que se as condições do diálogo exigem a reciprocidade, supõe-se a

condição de sinceridade e essa condição é subjetiva.

"Toda norma válida deve (...) satisfazer a condição segunda a qual: as


conseqüências os efeitos secundários que (de maneira previsível, provém do
61

fato de que a norma foi universalmente observada na intenção de satisfazer


os interesses de cada um podem ser aceitos por todas as pessoas
concernidas" (Habermas, 1987 p. 86-87).

A partir da pragmática universal (pragmática é a ciências que estuda as

regras de uso de linguagem), as situações bioéticas e biomédicas se resolverão

no ,mo o propõe CADORÉ cujas idéias passaremos a expor de modo sintético.

5.3 DA DISCUSSÃO AO FUNDAMENTO DA DECISÃO

A discussão ética visa, sem dúvida, um consenso para a discussão, isto é,

um acordo. E, o acordo pode dar-se sobre a legitimação das normas (é o caso do

fundamento). Parece ser um fato aceito o esquecimento da questão dos

fundamentos. A discussão bioética e biomédica visam, antes de tudo, as normas.

Há uma "precedência", diz CADORÉ, em relação ás questões de legitimação e é "no

nível da transação ética e prática das normas que se procuram resultados visíveis e

imediatos" (1994 p. 165). Donde, o interesse mais pela descrição das normas e dos

processos pragmáticos de decisão do que pelas questões da verdade das bases de

legitimação.

Como não há fundamentação filosófica, a conseqüência é a necessidade de

regulamentações sucessivas segundo os contextos. Efetivamente, procede-se

primeiro divulgando as práticas e, em seguida, colher as opiniões para futuras

decisões. Não há dúvidas de que a vulgarização pode "produzir a opinião", somente

em países subdesenvolvidos.

Não há realmente, muitas vezes, o respeito ao imperativo categórico de

HABERMAS.
62

Mas há dois momentos, assim mesmo, nos casos da Bioética. Na fase de

argumentação sobre as práticas, há elucidações que surgem e esclarecem melhor a

situação de decisões, para estabelecer certas normas: fecundação in vitro,

fecundações em mãe de aluguel, banco de espermas, eutanásia e outros casos. Por

outro lado, essa argumentação pode estabelecer luzes sobre as questões dos

fundamentos da decisão, pois é preciso que a decisão seja fundamentada.

Conclui, então CADORÉ:

"Parece que a trama (enjeu) de discussão é, além de fazer uma escolha, é


aquela de escolher em que perspectiva se desejará que as determinações
dadas a esta ação precisa que se trate de por em perigo o futuro comum da
humanidade. É a razão pela qual nos parece que a modalidade da discussão
na qual se elabora a empresa (démarche) bioética constitui o espaço maior
de um desafio pedagógico." (CADORÉ 1994, p. 170).

Então, quais as perguntas feitas numa ética da discussão?

Em toda comunicação veremos o que se pretende é que o locutor transmite

são ouvinte uma mensagem, há um falar e um ouvir. Para que haja autenticidade

nesse diálogo é preciso que critérios de validade sejam satisfeitos: é necessário que

haja um significado, um acordo sobre a verdade, a correção e a sinceridade,

condições cuja análise estão fora da pretensão destas reflexões. Por outro lado,

além do eu que se comunica e o tu que ouve, é necessário um terceiro elemento:

um ele que seja o testemunho dessa comunicação. O eu e o tu e o ele podem ser

considerados no quadro mais amplo tornando, então, a discussão pública,

portanto,situa-se no quadro social.

A discussão pressupõe que os interlocutores queiram dar validade à norma

sobre a qual chegarão a um consenso. É preciso articular a discussão com a

vontade de por em prática o que foi estabelecido de modo consensual: "O recurso à

análise ética do discurso pode auxiliar na medida do alcance deste assunto, pois
63

que os elementos fundamentais no quadro teórico da discussão põem a questão do

novo, e a questão do fundamento da ação em sociedade" questões:

1) A ética da discussão é apenas um simples método para criticar a norma?

2) Procura-se um consenso, mas o que vai fundamentar esse consenso?

3) Como passar de uma ética de convicção a uma ética deo tomar as

decisões para implementa-las e realiza-las?

4) Como é que essa responsabilidade de convicção pode ser assumida de

modo solidário?

"Finalmente, dizer que é preciso preparar os cidadãos para entrar no debate


bioético, é dizer que os progressos da biomedicina exigem deles a
necessidade de uma reflexão sobre os fundamentos de seu viver juntos. Ora,
este é um dos objetos maiores de discussão para o qual se procura formular
uma ética: trata-se, para os interlocutores, de pôr em questão, juntos, numa
mesma exigência de visão da verdade”.(CADORÉ, 194 p. 175.)

5.3.1 A fundamentação

A ética da discussão parte do fato de que o homem tem em mente, como

finalidade, como telos, a felicidade. Coloca em primeiro lugar a justiça e não

entende que possa haver justiça diferente. Logo, não promete a felicidade pois

justiça e felicidade não se sobrepõem. Não é a mesma coisa do que o princípio

categórico de KANT, pois a ética da discussão não faz totalmente abstração dos fins

como o citado pensador o fez. Por sua vez, APEL discorda de HABERMAS, pois,

para este autor os homens entram em discussão animados por um impulso que os

introduz a busca do um fundamento último. Mas esta referência não é uma

convicção porque pleiteia uma ética de responsabilidade que entra em tensão

dialética com uma convicção. Portanto, refuta ele qualquer ética moral
64

"Renuncia (a ética de discussão) pelo fato mesmo a toda contribuição


substancial própria. Seu objeto limitando-se a por em evidência um
procedimento de formação de vontade, cede o lugar às pessoas sinceras
desde o momento em que para elas o dever de encontrar uma resposta às
suas questões político-morais" (APEL, 1988; p. 154-165).

À primeira vista, essa discussão pode parecer estratosférica. Para que tudo

isso, poderão perguntar os médicos? Precisamos de soluções, de decisões, não de

elucubrações.

Mas APEL previa a relação do princípio de discussão em relação à ação:

"Será que da ética da discussão não decorre nenhum princípio que sirva para
a ação individual? Mas simplesmente um princípio (um critério de julgamento)
destinado a legitimar publicamente as normas?” (1988 p. 160)

É preciso que encontrar um meio para avaliar as suas conseqüências. Isto

exige que se tenha em conta,e se ponha em prática, o princípio de Universalização,

antes formulada por Habermas;

"Age unicamente segundo a máxima da qual possa presumir em pensamento


que ela permita, numa discussão real, se uma tal discussão pudesse ser feita
entre todas as pessoas envolvidas, que essas aceitem sem coações as
conseqüências e os efeitos secundários que, de modo previsível, provém do
fato que a máxima foi universalmente observada no desígnio de satisfazer os
interesses de qualquer um"(op. cit. p. 161).

Para Apel, portanto o único princípio não leva em consideração "o problema,

da passagem da aplicação de uma ética convencional (circunscrita), no sentido da

"moral/social substancial e espontânea", à aplicação de uma ética da discussão se

não enquanto ela constitui o estágio superior da ética da razão ao mesmo tempo

universalista e pós-convencional" (Op. cit.. 161).


65

As observações de Apel põem de outra forma e em outros termos, a distância

que existe entre as possibilidade, sempre novas, da tecnociência e a possibilidade

de discutir eticamente os problemas. Em geral na tecnologia a decisão é feita

unicamente e exclusivamente em termos conseqüencialistas, as seqëncias dos

efeitos são previsíveis em termo, como pode ser outro diferente do que foi previsto

no correr do tempo, na medida em que afastam da decisão inicial. Ou, em outros

tempos, a sucessão prevista do tempo de agora, por circunstâncias futuras não

determinadas, não pode ser prevista. Nem tudo o que se decide num acordo seguirá

o curso pressuposto, desde que se leve em conta a sucessão temporal.

Os princípios universais, porque universais, são formais e toda a problemática

reside na contingência humana. É preciso que não se dê a prioridade lógica à

tecnociência. Por isso Aristóteles resolveu o problema da relação entre prática e

criação (poiesis) pela sabedoria prática, phronesis, que considera meios --> fins

--> fins últimos. A discussão ética deve fugir do egoísmo meios-fins fundada em

cálculos sobre convicções religiosas e outras simpatias. Exige-se sempre a

racionalidade que impõe limites democráticos à ação.

A ética da discussão deve-se desenvolver em ética da responsabilidade, sob

pena de ser um simples exercício argumentativo. Portanto, o princípio de

universalização (U) deve ser completado por um principio supletivo (S) que é

teleológico, isto é que estabelece os fins (telos) que pode ser assim formulados:

"O telos que é preciso pressupor aqui não resulta de uma concepção

substancial da vida boa (nem de uma filosofia especulativa da história que seria o

seu contra peso, nem enfim de uma utopia: vai concomitante com o

reconhecimento-confratatualmente anticipativo - do principio ético da discussão e

constitui portanto o princípio supletivo (S) destinado a completar o princípio (U) da

fundação das normas. O conteúdo da significação telelógico do princípio supletivo


66

(S) corresponde à máxima formal que prescreve para contribuir, segundo os

critérios que impõem as condições circunstanciais, para que sejam reunidas as

condições da aplicação do (U) e portanto a fazerem do princípio (S) um princípio

supérfluo. (op. cit. p. 164).

Portanto, para o princípio S, também se exige o consenso e, assim chega-se

à fundação última da ética. Contudo, pode parecer, repetimos, mais uma vez, que

essa discussão está longe dos casos concretos da biomedicina ética e da ética

clínica.

A essa preocupação Bruno CADORÉ responde com os argumentos que

resumiremos em parte.

A discussão dos casos clínica que são confrontados com a perspectiva

fundacional tem como efeito permitir aos pacientes, envolvidos no caso, o aceitento

de sua autonomia, guardando suas capacidades de iniciativa de constituição de sua

história.

Ao discutir um caso, ao mesmo tempo tem-se um alcance sobre o que junto

se pensa desejável promover para a soberania da própria humanidade.

Há a referência a uma comunidade comunicação, que enfrenta dificuldades

para tomar decisões práticas fora de qualquer perspectiva que não considere a

humanidade toda. Quer-se preservar a autonomia àá questão do fundamento.

Enfim, as intervenções biológicas, genéticas e biomédicas a que fim conduzem a

humanidade? Não adianta querer discutir a fundamentação da ética fora da

teleologia, pois a ética e moral visam à ação humana, pelo menos é o objetivo da

decisão (decide-se para agir). Ora, a ação se faz em vista de um fim. Não seriam

pelos fins sobre os quais se devem fundar as decisões bioéticas e as biomédicas?

Qual é o fim de uma nação? Da tecnociência biológica? Qual é o fim da medicina?

O que quer o paciente do seu médico?


67

Todas essa questões se exigem uma resposta técnica, pragmática, exigem

uma argumentação fundada ética e universalmente.

5.3.2 Habermas: a ética da discussão

Considerando com Freud, num outro contexto afirma HABERMAS:

"Sabe-se que uma vida teve êxito se sua finalidade não se decide segundo
os critérios da conversão normativa - mesmo se os critérios instuitivos,
dificilmente explicáveis, de uma vida, digamos-lo antes de um modo
negativo: não falha, não variam de modo totalmente independente dos
critérios morais. Desde Aristóteles a filosofia trata da relação entre felicidade
e justiça sob o título de bem. Ao exemplo das histórias da vida, as formas de
vida se cristalizam em tomo de identidades particulares (...) a substância de
uma maneira de viver não pode nunca justificar-se do ponto de vista
universalista." (HABERMS, 1992, p. 47).

O que quer dizer, que racionalizar uma vida não significa tornar o envolvido

mais feliz ou menos feliz por isto. A vida possui algo de idiossincrásico, próprio a

cada um, e não é o racional que faz a felicidade do homem. Porque o sujeito

humano multidimensional como o diz Freud e não possui uma idealidade modelar

que pretende determinar sua forma. E algo que se faz por bosquejos aproximativos

de uma aspiração que está lá no seu interior, mas que não foi escolha sua.

"Como no caso da aplicação, uma moral universalista que não quer ficar
suspensa no ar das boas intenções é reenviada a um meio favorável e eficaz
do ponto de vista da socialização. Ela é remetida a modelos de socialização e
a processos de aprendizagem que fornecem o desenvolvimento do eu dos
membros das jovens gerações, e conduzem os processos de individuação
além dos limites de uma identidade tradicional, que está ligada a papéis
sociais determinados" (Op..cit, p. 44).
68

Habermas procura, dessa forma, responder às questões e objeções de Hegel

à moral Kantiana: contra o formalismo, contra o universalismo abstrato. contra a

impotência do querer puro e contra o terrorismo da pura convicção, pela ética de

discussão, lançada por Karl Otto APEL.

Como vimos essa ética se baseia nos princípios da discussão (D) e no

princípio da universalização (U) da aceitação dos efeitos como conseqüência da

decisão. Mas não quer ficar na pura abstração, dando razão ao princípio que Hegel

exige da moral, que seria determinada pela tendência ao Absoluto.è preciso que se

aceitem que são próprias da ética; caso contrário o que restaria da liberdade

human? Mas afirma claramente que a pretensão da teoria moral precisa ser bem

mais modesta.

O conflito da moral não dispõe de um acesso privilegiado às verdades morais,

sobretudo em relação às grandes causas político-morais de nossa própria

existência - em relação à fome e à miséria do Terceiro Mundo; em relação à tortura

e às perpétuas ofensas à dignidade humana cometidas pelos Estados de injustiça:

em relação ao desemprego crescente e das disparidades na distribuição das

riquezas sociais, isto tanto nas nações industriais ocidentais, como nas

emergente.Enfim as discussões e os acordos internacionais não eliminam o risco

auto-destruidor da vida no planeta, levando em conta a competição atômica.Sempre

haverá situações de fato provocantes Diante disso as concepções filosóficas sejam

talvez uma decepção. Mas isto também pode ser um estímulo (um aiguilln) ,pois, a

filosofia não dispensa ninguém de sua responsabilidade própria. Nem tão pouco o

filósofo, aliás, que como todos os outros homens, enfrenta problemas práticos e

morais de uma grande complexidade. Mas já seria muito se fizessem, em primeiro

lugar, uma imagem clara de sua própria situação. Para isso as ciências históricas e

sociais podem contribuir melhor que a filosofia.


69

Deixe-me concluir por uma frase de HORKNHEIMER datada de 1933 (p.

175):

"Para ultrapassar o caráter utópico de concepção kantiana de uma

constituição perfeita, temos muita necessidade da teoria materialista da sociedade"

(op.cit, p. 37)

Sem endossarmos o final que pleiteia como solução que se adote o

materialismo, as proposições de Habermas parecem-nos um julgamento seguro do

que se passa na sociedade global em que vivemos.Insistimos naquilo que Hans

Jonas : o respeito pela vida, como um imperativo categórico A todos os que tem

filhos e discípulos estas idéias devem levar a pensar a responsabilidade pela

miséria,pelo desemprego, pela insegurança e pela pobreza crescentes.

Mas há utros aspectos que poderão orientar a decisão bioética. Ter em

mente as quatro situações referidas já é algo importante, pois essas situações

determinam o que antes denominamos de relação bioética paciente/médico. O

paciente pode ser pobre, faminto, desempregado, assustado e o médico também

podem sentir-se cada vez mais empurrado para a marginalização na vida social.

Logo, a ética da discussão parte da situação histórico-social já dada:

"A ética da discussão não pode pôr-se na perspectiva de uma teleologia


objetiva e, em particular não pode pleitear uma violência que suprimiria a
universalidade da sucessão dos acontecimentos históricos. Como podemos
nos satisfazer com o princípio fundamental da ética da discussão que exige,
a cada vez mais o consentimento de todos; se não estamos em condições
de reparar a injustiça e a dor que gerações anteriores sofreram por nós - ao
menos poderemos nos por em condições de prometer um equivalente da
força redetora Juízo final? Não é obsceno o fato de que os beneficiários,
nascidos após, com conseqüência de normas que podem parecer
justificadas à luz do seu futuro presumido, esperam de modo póstumo um
assentimento contratual da parte dos mortos desenterrados? (....) Na
piedade em relação ao animal maltratado, na dor à vista da biótipos
destruídos, nos acordos e pareceres que não podem ser seriamente
considerados , em última análise, antropocêntrica" (op.cit. p: 31).
70

A Filosofia Moral, o filósofo de moral esclarece o ponto de vista teórico

estabelece as exigências em função em vista do ser que o homem é, mas a decisão

cabe a cada um toma-la por si próprio. Há quatro grandes fardos que

sobrecarregam de maneira moral e política nossa existência: a fome e a miséria do

terceiro mundo que mata quotidianamente mais do que a guerra; as ofensas à

dignidade humana e a tortura (Bósnia, Techechenia ...); o aumento crescente do

desemprego que algumas empresas (banco...) alardeiam como feitos; e, enfim, o

risco da própria autodestruição da humanidade pelo pode destruidor da energia

atômica tornamos a repetir. A esses fardos e a essas responsabilidades, tanto os

donos do poder do primeiro mundo como os seus jovens são cegos, pois se

instalam no individualismo que fecha o homem num circulo de egocêntrico tecido

pela insensibilidade; isto,se não ousam acusar os pobres de preguiçosos e cheios

de outros vícios.

Sem dúvida, o filósofo moral não possui o poder de decisão mas atua como

um aguilhão, pois não dispensa ninguém, nem o próprio filósofo da reflexão sobre a

situação real, apelando para o auxílio das informações das crônicas históricas e

sociais. Se Horkheimer julgava que para sanar tais problemas a (filosofia) postula

que a moral formalista de Kant não basta, e que era preciso recorrer ao

materialismo dialético (1933, p. 175), pois este quer o engajamento político (não

apenas contemplar o mundo, mas transformá-lo), cremos nós.etretanto é preciso

recorrer a uma instância superior e, por exemplo implementar as bem-aventuranças

no mundo ao seguir os passos dos grandes benfeitores da humanidade como

GHANDI, por exemplo. Pois o materialismo apela para á violência que leva à

destruição e ao ódio, durante o seu domínio e após depois (como está acontecendo

após a queda do muro de Berlim e o desmoronamento do bloco soviético).


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Haverá que se ter sempre em mente que a influência da Ética se exerce

sobre aqueles que lhes são sensíveis e que não é o efeito de um raciocínio lógico.

Mas, então, o que é uma forma de vida racional"?


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

no filme “O Ponto de Mutação” a cientista norueguesa, Sônia (Liv ULLMAN)

comenta com o poeta e com o senador americano que, durante seu curso

universitário, nenhum professor pôs a questão da ética da ciência. Discutiam sobre

as conseqüências das descobertas atômicas e dos desastres ecológicos. É

geralmente o que acontece.:

1º Parece que a questão ética seria da competência exclusiva dos filósofos.

Não é nossa opinião. Tratar dos limites da ação humana cabe a todos os seres

conscientes. Há trabalhos sobre esse assunto que não são tão recentes e que não

foram somente escritos por filósofos. Citaremos apenas alguns: A árvore do

conhecimento, dos geneticistas MATURANA e VARELA (1995); A

responsabilidade do cientista do físico BRONOWSKI (1987); A ciência em ação

de Claude CHRÉHEM (1994),A construção da ciência de Gerard FOUREZ (1994).

É, pois uma obrigação de todos,se quisermos que o gênero humano

sobreviva, como o afirma TESTARD.

2o. Diante de tais considerações, pergunta-se,o que se deve fazer? Em

primeiro lugar não há receitas. Não há técnicas. Mais do que nunca soa a posição

socrática: Homem conhece-te a ti mesmo!.Como o s clássicos diziam: Agnosce,

homine, dignitatem tuam( Reconhece, ó homem, a tua dignidade)..

Não há uma solução mágica para os males da humanidade, como o mostra

bem, a histórica universal que, para Popper, “é uma narração dos crimes

internacionaisS (1985).
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3o. Convém não esquecer, e aqui cito de memória, o que dizia Erich Fromm

em A PSICANÁLISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: Embora o futuro pareça

ameaçador e frustrante, jamais se esqueça que o homem tem o poder do sim e o

poder do não.

E lembro de Pascal que dizia: O homem é um caniço que os ventos e as

tempestades dobram; dobram, mas não arrancar dele o que lhe pertence: O

HOMEM É SIM, UM CANIÇO, MS É UM CANIÇO QUE PENSA.


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