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Aula sobre o trágico na obra de Nietzsche

Pós-graduação da UFMG
Curso da Prof. Dra. Virgínia Figueiredo
Maio de 2000
Autora: Luzia Gontijo Rodrigues

Falar do trágico na obra de Friedrich Nietzsche é obrigatoriamente falar de Dioniso e


do dionisíaco. Nietzsche irá se defrontar pela primeira vez com estes conceitos no
período em que era professor na Universidade de Basel, no início de sua vida
produtiva, no início da década de 1870. Nessa universidade ele lecionou filologia
clássica de 1869 a 1879, quando, por razões de saúde, será licenciado e passará a
viver, até o colapso de janeiro de 1889, uma vida errante, sem pátria, e sempre
vivendo sozinho em pensões e pequenos hotéis. Será ali, em suas aulas e escritos
preparatórios para estas e para conferências sobre temas clássicos, que Nietzsche,
pela primeira vez, falará sobre a questão do trágico.

Deve ser notado aqui que a formação de Nietzsche se deu na filologia e não na
filosofia e que ele nunca freqüentou academicamente o universo desta última. Seus
estudos se centravam, nesse momento, no mundo grego, na cultura e literatura
gregas, suas maiores paixões. Quando ele publica sua primeira obra O nascimento da
tragédia (GT) ele revela bem, já aí, do que se tratava o seu interesse e nos dá as
pistas para aquilo que será o cerne de sua reflexão filosófica dos próximos 18 anos.

Um breve histórico dessa obra nos dará elementos para começar a entender o que
Nietzsche considerava a sua “questão do trágico”. A obra será publicada pela primeira
vez nos últimos dias de 1871 e tem sua origem em três ensaios escritos para
conferências proferidas por ele durante o ano de 1870, intitulados: “O drama musical
grego”; “Sócrates e a tragédia”; “A visão dionisíaca do mundo”. O livro foi publicado
com o título O nascimento da tragédia no espírito da música e ganhará, ainda durante
a vida de Nietzsche, duas outras edições, sendo que a última destas, a de 1886,
contará não apenas com o acréscimo do precioso Ensaio de autocrítica (Versuch einer
Selbstkritik) como também com uma sugestiva mudança do título. Nietzsche revelaria
com isto o foco de seu interesse nesse momento de maturidade da sua reflexão
filosófica (a década de 1880) ao re-intitular a obra O nascimento da tragédia, ou
helenismo e o pessimismo (Die Geburt der Tragödie, oder: Griechenthum und
Pessimismus, observe-se que algumas traduções, inclusive a muito confiável de
Sanchez Pascual, para a Alianza, traduzem como “Grécia e Pessimismo”, ou
“Grecidade e Pessimismo” ).

Se analisamos inicialmente apenas os títulos ligados ao texto de O nascimento da


tragédia, já teremos alguns indícios da interpretação de Nietzsche para a questão do
trágico. Estariam aí fundidos o significado de Sócrates para a cultura grega, da música
e de Dioniso e, por último mas não de menor importância, a problemática do
pessimismo ou, traduzindo para os termos da obra de maturidade de Nietzsche, a
problemática do niilismo. Percebemos também aqui um pouco do que significava o
termo “filologia” para ele. Naquele Ensaio de autocrítica escrito em 1886 para ser
anexado a GT, Nietzsche irá lamentar ter então obscurecido e estragado com fórmulas
schonpehaurianas os seus “pressentimentos” dionisíacos (dionysische Ahnungen, §
6). Ele acrescentará em relação a este “dionisíaco”:
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“(...) ocultava-se sob o peso e o mal-humor dialético do alemão, inclusive sob


os maus-modos do wagneriano, um espírito que sentia necessidades novas,
carentes ainda de nome (...) ao lado das quais estava escrito o nome Dioniso
como um signo de interrogação (...) Que lástima que o que eu tinha então a
dizer não me atrevi a dizê-lo como poeta: (...) Ou ao menos como filólogo –
pois todavia hoje, para o filólogo está quase tudo por descobrir e desenterrar
(entdecken, ausgraben)” (VS § 3)

Um ano mais tarde Nietzsche retomará essa questão, agora em sua Genealogia da
Moral (GM). Aqui o termo “filologia” confunde-se com “genealogia” assim como com
“psicologia”, por ex. quando ele se refere à tarefa de sua investigação filosófica,
afirmando que “o objetivo é percorrer a imensa, longínqua, recôndita região da moral –
da moral que realmente houve, que realmente viveu – com novas perguntas, com
novos olhos: isto não significa, pergunta ele, praticamente descobrir (entdecken) essa
região?...(...)”(GM, Prólogo § 7, aqui na tradução de Paulo César Souza). Quer dizer,
segundo o que acredito, uma das tarefas mais importantes de sua reflexão filosófica
seria aquela associada a uma “filologia”, ou “psicologia” da moral, tarefa esta que já se
encontrava no cerne de NT. No entanto, é preciso colocar ao lado dessa minha
afirmação uma interrogação: por quê a investigação genealógica/psicológica da moral
teria sido tão fundamental para ele? Espero que ao final possamos ter ao menos
pistas para uma resposta a tal questão.

Mas retomando a questão da “filologia”, em uma nota de sua tradução de Para além
do bem e do mal (JGB) Paulo César Souza chama atenção para o fato de que o termo
“filologia” significaria, no contexto da cultura alemã na qual Nietzsche se formou, não
apenas o estudos de línguas e textos clássicos, mas também, através destes, de
todas as manifestações espirituais de um povo. E acrescenta ainda “nos textos de
Nietzsche, ‘filologia’ denota sobretudo a arte de ler bem, com rigor e vagar, precisão e
paciência”(nota 57 de JGB da edição brasileira, 1992). Remeto também ao texto de
Foucault, “Nietzsche, Freud e Marx – Theatrum Philosoficum”, no qual ele fala da
técnica interpretativa nietzscheana comparando-a a um movimento de “uma
escavação sem fim”. A cultura seria, então, o texto a ser “escavado”, interpretado, não
porque aí se busque uma verdade originária, mas sim porque a tarefa desse “tipo” de
filólogo-filósofo é a de expor o próprio fato de que aquela – a cultura – é constituída de
“significados” e não de “fatos”.

Isso tudo que disse até agora foi apenas para localizar O nascimento da tragédia e a
questão do dionisíaco no contexto desta “escavação” filosófico-psicológica de
Nietzsche, ou “genealógica” para utilizarmos um termo muito apreciado por ele.
Observo ainda que Nietzsche se refere a ele próprio de forma recorrente como
“psicólogo”, assim como por diversas vezes lamenta que não existam mais psicólogos
entre os filósofos (cf. por ex. o Prólogo a GM § 3).

“Sim, o que é o dionisíaco?” Pergunta Nietzsche logo no início do § 4 de seu Ensaio


de autocrítica, referindo-se a GT e afirmando que nesta sua obra havia uma resposta
para esta “pergunta psicológica tão difícil” como é a questão da tragédia entre os
gregos, e acrescenta, talvez para nossa surpresa: “uma questão fundamental é a
relação do grego com a dor”. Nietzsche opera aqui um tipo de interpretação muito
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típica de sua reflexão filosófica, ao estabelecer uma conexão entre o que usualmente
tratamos como “questões estéticas”, ou artísticas, e a psicologia do humano. Cito:

“(...) de onde procederia (...) o desejo do feio, a boa e rigorosa Vontade,


própria do heleno primitivo, de pessimismo, de mito trágico, de dar imagem a
todas as coisas terríveis, malvadas, enigmáticas, aniquiladoras, funestas que
há no fundo da existência – de onde procederia então a tragédia? (woher
müsste dann die Tagödie stammen?) (EA § 4)

Chamo atenção aqui para o fato de Nietzsche utilizar duas vezes um verbo conectado
com sua concepção de “genealogia”: procederia/proceder= stammen (aus), o qual
remete a Herkunft, um dos termos utilizados por ele em sua Genealogia da Moral, no
sentido de procedência, proveniência. Sobre isso há também um texto de Foucault,
intitulado Nietzsche, a genealogia, a história.

Retomando aquela citação, Nietzsche lança aqui uma hipótese, a qual, pode-se
afirmar, deve ser lida como o eixo não apenas dessa sua primeira obra mas também
de sua reflexão filosófica como um todo. Retomo-o, citando:

“Existem, por acaso, (...) neuroses da saúde? (...) Para que aponta aquela
síntese de deus e bode que se dá no sátiro? Em razão de que vivência de si
mesmo, para satisfazer a que impulso, precisou o grego pensar-se como um
entusiasta dionisíaco e homem originário? (=primitivo, segundo Sanches
Pascual, Alianza = Urmensch) (...) E se os gregos tiveram, precisamente em
meio à riqueza de sua juventude, a vontade do trágico (der Wille zum
Tragischen) e foram pessimistas? (...) E se, por outro lado e ao contrário, os
gregos se tornaram precisamente nos tempos de dissolução e debilidade
cada vez mais otimista, mais superficiais, mais comediantes, também mais
ansiosos de lógica e de logicização do mundo, quer dizer, ‘mais joviais’ e
‘mais científicos’?” (EA § 4)

Vamos fazer uma breve análise e tradução das questões que se ocultam sob aquela
pergunta colocada e sob a “resposta” por ele dada. Para começar, e em primeiro lugar,
N. deixa claro na pergunta feita a “descrição” do que para ele se constituiria como o
“trágico-dionisíaco”. Este estaria associado a um tipo de pessimismo – e é preciso
enfatizar este “um tipo” por razões que mencionarei mais à frente – o qual ele batizará
Pessimismus der Stärke (pessimismo da força, cf. EA § 1). Este poderia ser descrito
como a capacidade e a vontade de ver, viver e representar aquilo que ele chama “o
caráter terrível e enigmático da existência” (der furchtbare und fragwürdige Charakter
des Daseins; cf., por ex. a série de frag. de 1888 sobre GT, de 14 [14] a 17 [3] KSA
XIII). É preciso observar que estaria implícita neste “pessimismo da força” a definição
de um tipo de homem, e de cultura, claro, que seria capaz de uma “vontade de arte”
(Wille zur Kunst), justamente por ser aquele tipo que viveria e afirmaria a existência
em toda sua dimensão trágica. Mas atenção, esta “Vontade de arte” não se restringe,
para Nietzsche, aos limites do que convencionamos a chamar de “arte” (pintura,
escultura, literatura etc.). Aquela expressaria a própria constituição do humano
(Mensch) enquanto “constituição criadora” e poderia ser qualificada, se aqui se
tratasse de uma metafísica, de uma espécie de “ser” do homem.
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Em segundo lugar, com sua “resposta” àquela pergunta, N. associa essa Wille zum
Tragischen/Vontade do trágico com uma espécie de superabundância de vida, de
saúde. Mais ainda, ele associará aquela a um momento que, historicamente,
coincidiria com o período anterior a Sócrates, ou pelo menos, ao apogeu da filosofia
socrático-platônica, e, portanto, com o momento dos chamados, por ele, “filósofos
trágicos” (cf. A filosofia na época trágica dos gregos, texto de 1873, portanto
contemporâneo de GT). Eu sei que nesse trecho citado acima do Ensaio de autocrítica
ele não diz explicitamente que a época do trágico e esta “vontade de trágico”
coincidiria como o período dos chamados filósofos “pré-socráticos”. Mas isso está
implícito para os conhecedores do texto de GT e aqueles familiarizados com as
críticas de N. a Sócrates/Platão. Mas isso ficará também um pouco mais claro na
afirmação seguinte onde ele pergunta (não é uma “pergunta”, está claro, é
evidentemente uma hipótese lançada por ele) se não teria sido exatamente nos
tempos de sua “dissolução” quando os gregos se tornaram mais ansiosos de lógica,
mais “científicos”.

Esta é, sem dúvida, uma das teses mais polêmicas do livro e uma das que lhe
renderam a fama de “irracionalista”. Nietzsche defende aqui que Sócrates, e o que
historicamente se considera o apogeu da filosofia grega, representaria,
simultaneamente, o início de uma “lógica da ciência” e, ao mesmo tempo, o fim, a
decadência, a dissolução. Mas decadência e fim de quê? Daquilo que para Nietzsche
seria o apogeu de uma cultura, a capacidade de transformar em representação, em
ilusão, em arte, a experiência com o núcleo mais profundo e enigmático da vida. E o
que significaria para ele aquele “cientificismo” e aquela “vontade de lógica”? Significa a
necessidade cada vez maior – a qual será expressa pela e na filosofia – de explicar e
traduzir racionalmente aquela experiência; significa uma necessidade crescente de
constructos teóricos para definirem, por ex., as experiências estética e ética com o
mundo.

Um dos exemplos mais significativos, para Nietzsche, desse processo de


“racionalização” que acometeria a arte seria aquele oferecido pelo último dos trágicos
– Eurípedes – o responsável, segundo N., pela absorção, pela arte trágica, de
elementos do cotidiano de uma burguesia emergente, assim como de uma lógica
discursiva e dedutiva, que matam os elementos dionisíacos da tragédia grega.
Segundo Nietzsche , Eurípedes não teria entendido o caráter obscuro e enigmático
das peças dos 2 grandes mestres, Ésquilo e Sófocles, as quais, carregariam uma
ambigüidade no tratamento dos personagens e nas soluções dos problemas éticos (cf.
GT § 11). Assim, sem compreender a tragédia, Eurípedes, segundo N., teria se
proposto a reformular o drama e, nesse momento, teria encontrado um outro
espectador que também não compreendia aqueles grandes escritores trágicos:
Sócrates. Teria sido a partir desse encontro entre uma inadequação estética de um
artista inconformado e uma proposta filosófica centrada na questão de um
racionalismo moral, que teria chegado ao fim o gênero trágico grego e teria surgido a
chamada “comédia ática”. Segundo Nietzsche, Eurípedes teria levado à cena uma
tradução da tese socrática “tudo tem que ser consciente para ser bom”, pela qual “tudo
tem que ser inteligível para ser belo” (cf. GT § 12). [Quanto à relação
Eurípedes/Sócrates, cf. nota 26, na pag. 77 do meu livro]
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É preciso aqui atentar para o fato de que Nietzsche, como todo grande pensador, se
apropria de determinados personagens históricos assim como de conceitos, para
afirmar sua própria filosofia. O Sócrates de Nietzsche é o representante de uma
“tendência” na cultura grega, e ocidental seja dito, para o Iluminismo (Aufklärung),
tendência esta caracterizada por ele como a presença de um “elemento otimista” na
essência do pensar e do existir, que “uma vez infiltrado na tragédia, (teria) de encobrir
pouco a pouco as regiões dionisíacas desta e empurrá-las necessariamente à auto-
aniquilação (...)” (NT § 14). Nietzsche identifica este “influxo otimista” com o momento
do surgimento da dialética socrática a qual teria, segundo ele, entronizado o “tipo
teórico” de homem (Mensch). Este “tipo” seria aquele que “goza e se satisfaz” com o
afastamento do “véu de Maya” que encobriria a realidade profunda e enigmática da
vida. Esse “tipo” não apenas teria aí sua satisfação, mas também encontraria nesse
“desvelamento” a sua mais alta meta, já que ele acreditaria que “seguindo o fio da
causalidade o pensar chega(ria) até os abismos mais profundos do ser e que o pensar
(seria) capaz não só de conhecer , mas também de corrigir o ser” (GT § 15). Esse
seria para Nietzsche o “espírito” que teria fundado a ciência, ou o “instinto de ciência”,
o qual deve ser lido como uma “vontade de verdade” e que se oporia tanto àquela
“vontade de ilusão” apolínea quanto a uma “vontade de trágico” dionisíaca. (cf.
Roberto Machado Nietzsche e a verdade).
[Sobre essa expressão “véu de Maya” é preciso observar que ela é utilizada por
Nietzsche em GT, como sinônima da expressão “véu de aparência e ilusão”. Essas
expressões estão todas ligadas à figura paradigmática de Apolo, o qual é associado
por Nietzsche aos poderes estéticos da aparência, da ilusão e da imposição de limites.
Ou seja, na sua interpretação, ele simbolizaria todos os feitos humanos que
celebrariam a vitória do “princípio de individuação” sobre o princípio indeterminado e
selvagem da Natureza. Remeto aqui a uma imagem de Homero que traduziria bem
essa concepção de Nietzsche da vitória do apolíneo da cultura sobre a barbárie da
Natureza, aquela muito conhecida passagem da chegada de Ulisses e de seus
companheiros ao país dos soberbos Ciclopes e seu embate com o Ciclope solitário, no
Canto IX da Odisseia]

Voltando àquele “pessimismo trágico”, o qual Nietzsche identifica com o dionisíaco e


considera como o núcleo da tragédia grega, gostaria de citar uma imagem utilizada por
ele no GT para descrever essa experiência grega. Segundo ele o mito grego traduziria
a presença, na cultura, da experiência do homem com aquele “caráter terrível e
enigmático da existência”. Essa imagem fala da lenda de Sileno:

“Uma velha lenda conta que durante muito tempo o rei Midas havia tentado
caçar no bosque o sábio Sileno, acompanhante de Dioniso, sem poder
alcançá-lo. Quando por fim esse cai em suas mãos, o rei lhe pergunta o que
seria o melhor e preferível para o homem. Rígido e imóvel se cala o demônio,
até que, forçado pelo rei, acaba pronunciando estas palavras, em meio a
uma risada estridente: ‘Estirpe miserável de um dia, filhos do azar e da fadiga,
por que me forças a dizer-lhe o que para você é muito mais vantajoso não
ouvir? O melhor de tudo é totalmente inalcançável para você: não haver
nascido, não ser, ser nada. E o melhor em segundo lugar é para você –
morrer logo” (GT § 3)
A questão implícita aqui na leitura que Nietzsche faz do fenômeno trágico grego é
aquela de como seria possível ao homem viver, conhecendo e experenciando a
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verdade profunda da vida, se ele não lançasse mão do artifício da “ilusão”, da


“mentira”, da “arte”? Vejam bem, estes três termos são sinônimos para ele e estão
associados, à época de GT, aos poderes apolíneos da cultura. E onde ficaria a
tragédia grega em relação a estes “poderes apolíneos” se, pelo que já vimos, ela traria
em sua essência a verdade dionisíaca, o “pessimismo dionisíaco”? Ora, segundo N.
estaria aí o núcleo da grande inventividade grega “pré-socrática”: essa cultura teria
sido capaz de “dominar” suas tendências dionisíacas, de circunscrevê-las, dentro de
um círculo mágico apolíneo ao inaugurar esse gênero artístico intitulado a tragédia
ática. Esta seria, para Nietzsche, a grande vitória dessa cultura – ter promovido o
enlace entre Apolo e Dioniso – e o que a distinguiria das outras suas
contemporâneas, as quais também conheciam o fenômeno do dionisíaco. Aquela
experiência humana descrita imageticamente pelo mito de Sileno seria conhecida de
todas as culturas asiáticas e do oriente médio, como bem atestam mitos e narrativas
religiosos, tais como a bela poesia do Eclesiastes, na cultura judaica, ou a figura de
Prometeu acorrentado, na cultura grega.

Nietzsche menciona, por ex., as festividades ligadas ao deus Dioniso celebradas por
diversas culturas asiáticas e do oriente, as quais estariam sempre associadas ao
consumo do vinho ou de bebida narcótica e ao rompimento de todos os limites
impostos pela cultura, como por ex. o tabu do incesto. Nessas festividades, como
lembra Nietzsche, o indivíduo vivencia a ruptura de todos os constrangimentos sociais
e dos próprios contornos da consciência, e pode se aproximar, perigosamente, do que
seria o “fundo indiferenciado” primordial da Natureza. o grande risco dessas vivências
orgiásticas, segundo Nietzsche, seria aquele da Náusea. Cito:

“O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das barreiras e limites


habituais da existência, contém, com efeito, enquanto dura, um elemento
letárgico, no qual submergem todas as vivências pessoais do passado. Ficam
desse modo separados entre si, por esse abismo de esquecimento, o mundo
da realidade cotidiana e o mundo da realidade dionisíaca. No entanto, tão
logo a primeira volte a penetrar na consciência, é sentida enquanto náusea;
um estado de ânimo ascético, negador da vontade, é o fruto de tais estados.
Nesse sentido o homem dionisíaco se parece a Hamlet: ambos viram uma
vez verdadeiramente a essência das coisas, conheceram, e sentem náusea
de agir, posto que sua ação não pode modificar em nada a essência eterna
das coisas (...) O conhecimento mata o agir, para agir é preciso achar-se
envolto pelo véu da ilusão (...) Consciente da verdade intuída, agora o
homem vê em todas as partes unicamente o espantoso ou absurdo do ser
(...)” (NT § 7)

Para Nietzsche, o grego “conheceu e sentiu os horrores e espantos da existência (e)


para poder viver teve de colocar diante de si as resplandecentes figuras oníricas dos
Olímpicos. Aquela enorme desconfiança frente aos poderes titânicos da natureza,
aquela Moira que reinava desapiedada sobre todos os conhecimentos, aquele abutre
do grande amigo dos homens, Prometeu, aquele destino horroroso do sábio Édipo,
aquela maldição da estirpe dos Átridas, que compele Orestes a assassinar sua mãe,
em suma, toda aquela filosofia do deus dos bosques (...) foi superada constantemente,
uma e outra vez, pelos gregos (...) Para poder viver os gregos tiveram que criar, por
uma necessidade fundíssima, esses deuses (...) Aquele povo tão excitável em seus
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sentimentos, tão impetuoso em seus desejos, tão excepcionalmente capacitado para o


sofrimento, de que outro modo poderia ter suportado a existência (...)? O mesmo
instinto que da vida à arte, como um complemento e uma consumação da existência
destinados a induzir a seguir vivendo, foi o que fez surgir também o mundo olímpico
(...) vivendo-a eles mesmos é como os deuses justificam a vida humana (...)” (GT § 3)

Nessa passagem Nietzsche nos oferece uma pista par entendermos melhor o que ele
diz ser aquela “Vontade de arte” (Wille zur Kunst) a qual, segundo ele, expressaria a
própria constituição do ser humano (Mensch) enquanto artista. Como vimos, ele
associa aqui a “criação” da religião olímpica àquele poder de ilusão e arte descrito por
ele como um Künstler-Vermögen des Menschen em um frag. de 1888 onde ele retoma
GT. Para Nietzsche, não apenas a arte no sentido estrito deste termo, mas também
“criações culturais” tais como a religião, a ciência e a filosofia mesmo, atestariam essa
Wille zur Kunst. Vou citar de forma parcial e fragmentária, e numa tradução caseira
precária, este frag. 17 [3], porque considero-o um dos textos mais importantes escritos
por Nietzsche sobre o trágico. Aqui ele retoma GT, segundo os organizadores e
comentadores da edição critica das obras de Nietzsche, Giorgio Colli e Mazzino
Montinari, com a intenção de escrever um ensaio sobre arte (cf. nota da ed. francesa
Gallimard, vol XIV). O frag. começa com uma lacuna de um par de palavras e então
segue a firmação, que conseguimos contextualizar, preenchendo a lacuna inicial, se
confrontamos esse frag. com outros da mesma época e sobre a mesma temática:

(...) Nesse livro estas (provavelmente a Ciência e a Moral) são consideradas apenas
como diferentes formas de mentira (Lüge)
Com sua ajuda/com a ajuda destas a vida se torna acreditável (wird geglaubt = torna-
se confiável; acredita-se na vida )
A vida tem (soll) de inspirar confiança: a tarefa, assim colocada, é monstruosa. Para
solucioná-la, o homem precisa (muss) ser, já por Natureza, mentiroso (Lügner), ele
precisa ser mais do que tudo artista (Künstler)
(...) metafísica, religião, moral, ciência – todas produtos (Ausgeburt) de sua vontade de
arte (Wille zur Kunst), de mentira, de fuga da ‘verdade’, de negação da ‘verdade’
O poder mesmo, graças ao qual ele viola (vergewaltigen) a Realidade através da
mentira, este poder-artístico (Künstler-Vermögen) do homem por excelência – ele o
tem em comum com tudo que é
(...)
A arte e nada senão a arte! Ela é a grande possibilitadora/propiciadora (Ermöglicherin)
da vida, a grande sedutora para a vida, o grande estimulante da vida
A arte como única contra-força superior (überlegene Gegenkraft) contra toda vontade
de negação da vida, como aquilo/o anti-cristão, anti-budista, ainti-niilista por
excelência
Vê-se que nesse livro (...)
(...) é concebido um estado supremo/mais alto de afirmação da existência, do qual
mesmo a maior dor não pode ser subtraída: o estado trágico-dionisíaco (abgerechnet
werdem kann ... aus = afastada/excluída) frag. 17 [3] KSA XIII

Chegando a esse ponto, deixo aqui em aberto para discutirmos as afirmações desse
fragmento em relação com aquilo que já foi dito sobre o trágico-dionisíaca em GT.
Gostaria apenas de ainda aproveitar esse frag. para trazer de volta a questão sobre a
necessidade, e o sentido, para a reflexão nietzscheana, de uma “genealogia” ou
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“psicologia” da moral, como deixei em suspenso no início. Por quê a moral seria para
ele um alvo central em sua análise crítica da cultura? O que ela carregaria de tão
perigoso, ao ver de Nietzsche, se ela também seria uma forma de “mentira”, de “arte”,
um produto daquele “poder-artístico do homem” exaltado por ele?

O fragmento citado já nos deu uma pista ao afirmar que a arte é a “única ‘contra-força’”
contra a negação da vida; também ao dizer, logo a seguir, que a arte seria “o anti-
cristão” e “anti-niilista” por excelência. Quando Nietzsche aponta para os perigos da
moral e afirma ser necessário uma “psicologia”, uma análise genealógica desta que
denuncie sua gênese niilista, Nietzsche está querendo dizer a “moral cristã”, e está
claramente contrapondo esta ao universo ético-estético grego. A moral que Nietzsche
classificaria como um “fenômeno” niilista é a moral cristã. Se retomarmos, com esse
olhar, a leitura dos textos onde ele trata da “questão grega” ou da tragédia,
perceberemos o quão estaria aí subliminar – nem sempre eles são nomeados – a
crítica ao cristianismo e à moral cristã.

As análises nietzscheanas dos clássicos, e principalmente a temática da tragédia


grega e do dionisíaco, são sempre empregadas como um contraste para uma reflexão
cujo alvo é a problemática do humano, da individuação humana. Essas análises são
empregadas para fundamentar uma crítica da tradição socrático-cristã, a qual,
segundo ele, recusaria, negaria a conexão entre o processo de individuação e o
sofrimento trágico. A moral cristã, que “colonizou” e formou (conformou) o modo de
pensar e de viver do ocidente, nega essa conexão inerente à existência e pretende
oferecer uma solução escapista para o problema do sofrimento trágico ao encará-lo
como apenas uma circunstância da “ausência de Deus”, ou do “afastamento” do
homem em relação ao divino.

O cristianismo representaria, assim, historica e psicologicamente a demanda humana


e da cultura por segurança, sem o risco do enfrentamento trágico; ainda, a crença de
que é possível construir um aparato de proteção em relação àquele caráter terrível e
enigmático da vida. Nietzsche não ignora que essa demanda seja uma demanda
legítima. o que ele critica é a solução de conformismo e abdicação do indivíduo, e de
enfraquecimento dos poderes do indivíduo, imposto pela “solução” oferecida pela
moral cristã. O perigo que ele denuncia estar aí oculto seria aquele do niilismo, já que
a abdicação das forças e potências do indivíduo (em nome de um “sedativo”; de uma
anestesia para a dor) conduziria inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, a uma
derrota desse homem “enfraquecido” no inevitável embate com o caráter absurdo,
enigmático e terrível da existência. Impotente ante esse absurdo, colhido de surpresa
e incapaz de se utilizar das “armas naturais” oferecidas pelo “poder criador”, ele é
presa fácil de uma “vontade de nada”, de uma negação da existência.

Eis o trágico do trágico: esse caráter absurdo e enigmático da existência irromperá


sempre, indiferente a todo aparato oferecido pela moral cristã ou por qualquer outra
interpretação moral da existência, indiferente ao fato de que se negue sua verdade. E
nesse momento, o homem que se depara com esse “horror dionisíaco” é aquele
“domesticado” pelo cristianismo, enfraquecido e desarmado, despreparado para a luta
e para o criar, acostumado a delegar poderes, impotente = sem os poderes/sem a
força criadora/ transformadora da “arte”. Esse é o homem moderno, conformado e
conformista, acostumado a sua TV e aos confortos de seu controle remoto...esse é o
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homem que não conhece mais o risco, a aventura, a “grande coragem”, nem é mais
capaz da “grande paixão” [ cf. frag. 14 [61] KSA XIII, onde Nietzsche fala da “grande
Ambição”, e também do “grande estilo” o qual se identificaria com a “grande paixão”/
der grosse Stil; die grosse Leidenschaft; die grosse Ambition / todos estão por ele
associados a um “tipo” de artista que ele denomina “die grosse Künstler” ou “o
ambicioso do grande estilo”/ solche Ambitiöse des grossen Stils]

Este é o “homem do eterno meio”, este “homem manso, o incuravelmente medíocre e


insosso” (GM I § 11) . Este homem, definido por Nietzsche como “o animal doente”,
teria sido aquele que um dia “também ousou, inovou, resistiu, desafiou o destino mais
que todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo, o
insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a natureza e os
deuses (...)”, como pode ser que este seja “o mais longa e profundamente enfermo
entre todos os animais enfermos?” (GM III § 13)

A morte da tragédia grega e a história daquilo que ela teria simbolizado confundem-se,
nas mãos de Nietzsche, com a narrativa desse “drama” humano chamado “niilismo”.

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