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INFÂNCIA: DESAFIO DE TODOS, TODOS OS DIAS

Sandra Mara Corazza/ UFRGS


Palestra:
Crianças, jovens e adultos: desafios para a educação popular nos dias de hoje
Encontro Nacional de Pesquisadores(as) em Educação e Culturas Populares (ENPECPOP)
Universidade Federal de Uberlândia
(UFU)
Uberlândia, MG, 17 de setembro de 2011.

1. Direito de ser criança


Qualquer criança tem o direito de ser criança. Mas, em todo o mundo, elas estão
sendo apressadas a crescer, forçadas a amadurecer cada vez mais rápido, e a assumir
responsabilidades, cada vez com menos idade. Não prejudique o desenvolvimento
normal da criança (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente 
POA/RS).
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Um terço da população brasileira tem entre zero e 14 anos. Destes 50 milhões,
15 pertencem à classe média urbana e gastam quase 50 bilhões de reais por ano, o que
equivale a 10% do PIB do País. São responsáveis pelo consumo de 80% dos iogurtes e
40% dos refrigerantes vendidos, e movimentam, só no setor de brinquedos, 650 milhões
de reais por ano.
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O mineiro Bruno Augusto Barbosa, de 11 anos, desde os sete compra roupas e
acessórios sozinho. Gasta 250 reais por mês com perfumes franceses, Cds, cinema e
lanches. É tão sabido em matéria de consumo, que os pais consultam o filho sobre
decisões deles próprios:  “É um menino maduro”, afirmam.
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A carioca Camila Barcelos, 9 anos, é modelo, pratica ginástica olímpica, esqui
aquático, informática, balé e natação. Acha que o esporte é a melhor maneira de deixar
o corpo sarado.
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De suas casas-ninho, as crianças acessam tele-comidas, tele-farmácia, tele-
encontros, tele-papo, tele-turma, tele-sexo, tele-namoro, terminais de bancos. Passam,
em média, 5 horas por dia diante da TV, navegando na internet, ou em jogos
eletrônicos: mais do que o tempo em que ficam na escola.
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André, 10 anos, aluno de uma 3ª série em São Paulo, descobriu o sexo. Ele
conta:  “A TV ensina os truques. A escola só enrola. Acho que o sexo tem de descobrir
por você mesmo, se não, não dá. Tem de ser na TV, na vida. Foi assim: quando eu tinha
5 anos, vi um filme, que na época achei esquisito. Um homem chegava perto de uma
mulher com os seios de fora na piscina e falava:  ‘Quero te comer’. Não entendi nada.
Como assim, ‘comer’? Com garfo e faca? Foi superestranho, animal! Fiquei perturbado.
Armazenei aquelas cenas na cabeça. Nunca tinha visto nada parecido. Perguntei à
professora: ela disse um monte de baboseiras. Perguntei ao meu pai: ele disse algumas
verdades, só algumas; depois, veio com um papo de sementinhas se juntando. Então,
resolvi aprender por conta própria: fui na banca de jornais da esquina, olhei revistas,
perguntei para amigos mais velhos. Fui ficando expert. Hoje, não tenho mais dúvidas
sobre sexo. Sou um homem resolvido. Agora é só fazer. Já tenho as manhas. Sei do que
uma mulher gosta”.
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Segundo a revista Nova Escola, dos 7 aos 11 anos, a criança encontra-se no
período operatório concreto da evolução de seu raciocínio. É capaz de relacionar
diferentes aspectos e abstrair dados da realidade. Embora ainda dependa bastante do
mundo concreto para chegar à abstração.
2. Proteção integral às pessoas em desenvolvimento
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, [que assegura]
(...) todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (Art.
3º  Estatuto da criança e do adolescente, Lei Federal 8.069/1990).
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Conforme relatório do Banco Mundial, 51% da renda brasileira é concentrada
por 10% da população e os 20% mais pobres ficam com 2%. Dezoito milhões de
crianças vivem em famílias, com renda inferior a um quarto do salário mínimo: 65% das
crianças são pobres. Em cada grupo de 1.000 nascidas vivas, 67 morrem com menos de
cinco anos. Em cada 10 brasileiros que sofrem agressões físicas, dois têm menos de 15
anos. Cinco crianças são assassinadas a cada dia no Brasil.
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Na fronteira do Brasil com a Argentina, os homens que seduzem suas filhas


recebem o nome de “cruzeira”: uma serpente peçonhenta, a qual, acredita-se, mal espera
os filhotes abrirem os olhos e os devora. À beira do rio Uruguai, mãe e filha unem-se
pela mesma história. A mãe foi violentada aos 9 anos pelo pai. Na cidade, todos sabiam
que o bolicheiro criava as filhas para o próprio leito, mas calavam-se, diante do ditado:
“O lar de um homem é o seu castelo”. A mãe conta que, quando tinha 12 anos, sentiu
uma coisa se mexendo na barriga:  “Achei que era uma lombriga, mas era um bebê de
meu pai”. Mais tarde, casou com um changueiro (biscateiro na fronteira). Ele também é
um “cruzeira”. Quando a primogênita completou 9 anos, o pai a engravidou.
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Ana Meire, 12 anos, está nas ruas de Manaus desde os 8. Já aprendeu os truques
da profissão: não entra no motel ou no carro sem receber o dinheiro antes, que é
guardado por uma amiga. Quando chegou, caminhava para a boate, sem saber que ia
para a prostituição forçada. Se não dormisse com homens, não teria alimento e ficaria
presa no quarto. Os homens uivavam à passagem do lote de garotas. Gritavam:  “Carne
fresca, minha gente”! “Vou te chupar todinha”! Uma prostituta que assistia ao desfile
berrou:  “Chegou mais muié pra ser ralada”!
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Conforme pesquisa da agência de propaganda Standard, entre 11 e 13 anos, a
criança pode oscilar em ser uma mulherzinha ou um homenzinho, ou em ser um
moleque. A menina apresenta características sexuais precoces, embora esteja voltada
para o lado mais romântico da relação com o sexo oposto.
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Na região de Butiá e Arroio dos Ratos, RS, Alexsandro Rodrigues, 10 anos,
trabalha 11 horas por dia. Empilha um metro quadrado de acácia no chão, o equivalente
a 600 quilos. Ao final do dia, os empreiteiros de extração da madeira pagam-lhe os R$
2,70 correspondentes a seu trabalho.
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J.S., 15 anos, interno num instituto para infratores do Rio de Janeiro, começou a
vender drogas para realizar um sonho: ter um tênis de marca. Ele diz que começou, aos
7 anos, como olheiro, depois foi fogueteiro, e, antes de ser internado, era avião de
maconha e cocaína. Queria chegar a soldado, para fazer a segurança dos pontos. Os
traficantes eram seus amigos:  “Eles me davam balas e brinquedos. Gostei quando me
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chamaram para trabalhar. Isso não é trabalho para qualquer um, não. Tem que ter
responsabilidade, apanhar da polícia e agüentar sem abrir o bico”.
3. E assim foi...
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As Leis de Rômulo  legislação romana mais antiga, vigente até o Período
Imperial  impuseram aos pais o dever de criar todos os filhos homens, mas só a
primeira filha mulher. Na cidade, existia a Coluna Lactaria, destinada à exposição de
crianças. Eram abandonadas ali, em grande número, as meninas e também meninos
ilegítimos, deformados, ou cujo nascimento fora acompanhado de maus presságios.
Poucas eram recolhidas por estranhos, para serem criadas como escravas. A maioria das
crianças era deixada dentro de cestas, para morrer, expostas à intempérie, à fome, ou
eram devoradas por cachorros e porcos.
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Na Terra de Santa Cruz, em 1554, a Companhia de Jesus privilegiou as crianças
indígenas como o papel blanco, para inscrever o seu processo civilizatório. Crianças das
tribos tupis e tamoios, mestiças e mamelucas eram castigadas com palmatória, açoitadas
no tronco, e sofriam privação alimentar: para evitar os pecados que o “Demônio, seu
pai, lhes ensinava”, afirmava Nóbrega.
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Por um levantamento do século XVI, de trinta casos de infanticídio, ocorridos na
Inglaterra, encontram-se as seguintes causas de mortes: estranguladas; sufocadas;
golpeadas; degoladas; desnucadas; asfixiadas com almofada; atiradas contra o pilar da
cama; no forno; em um paiol; afogadas, em balsa e em poço; enterradas em buraco;
encerradas em um baú e depois enterradas em um monte de esterco.
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No Rio de Janeiro, na sessão de 18 de junho de 1846, a Academia Imperial de
Medicina discutiu a questão:  “A que atribuir a grande mortandade de crianças nos 6
primeiros anos de vida”? Foram encontradas as seguintes causas: hábito de mergulhar as
crianças em água quente; modo de cortar o cordão umbilical e empregar sobre ele
substâncias irritantes; compressão da cabeça pelas parteiras; impropriedade da
alimentação; vestuário apertado; vermes intestinais; maus costumes das amas-de-leite,
que transmitiam sífilis e escrófulas.
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Uma das justificativas para assustar as crianças era a de que elas eram menos
corajosas que os adultos. Portanto, deveriam ter o seu espírito fortalecido. O inferno,
fantasmas, bruxas, demônios, monstros, animais, cadáveres foram presentificados às
crianças, para incutir-lhes o terror de que seriam raptadas, comidas, picadas, e teriam
chupados seus olhos, sangue, cérebro, medula dos ossos.
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Dentre os castigos corporais ministrados aos infantis, era costume cortar ou
espetar as plantas dos pés, dar-lhes pescoçadas, beliscões, puxões de orelhas, tapas na
boca e pauladas na cabeça. Os instrumentos mais usados eram chicotes de vários tipos,
incluídos os de 9 pontas, paus, bastões de ferro e madeira, feixes de varas, instrumentos
escolares, com destaque para a palmatória. Um mestre-escola alemão, de início do
século XIX, calculou que, em toda a sua vida profissional, tinha dado: 911.527 golpes
com a palmatória, 124.000 chicotadas, 136.715 bofetadas, e 1.115.800 cascudos.
4. Oh, que saudades!
MEUS OITO ANOS
(Casimiro de Abreu -1837-1860)
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
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Nessa risonha manhã!


Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

5. A infância nunca existiu


Se a infância foi inventada  segundo Phillipe Ariès e outros historiadores, e se a
infância atual vem sendo des-inventada, com o advento das novas tecnologias de
comunicação, segundo Neil Postman e outros analistas do chamado “desaparecimento
da infância” , os fragmentos que apresento dessa história-de-horror, que é a da
infância, talvez sejam suficientes para demonstrar a minha tese. Tese, que afirma que a
infância nunca foi verdadeiramente assumida, efetivada, praticada, como uma idade,
etapa, ou identidade específicas. Em outras palavras, defendo que nunca existiu, de fato,
em nossas práticas culturais, sociais e mesmo subjetivas, a tal aurora de nossas vidas...
E que, por isso, não poderia acabar o que nem começou.
6. Natimorta
O motivo é simples: se percorrermos a história da infantilização, no Ocidente,
veremos que, com os infantis, tivemos nós, adultos e adultas, sempre, uma relação ao
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modo de gangorra. Se, de um lado, elegemos a infância como o período que contém a
chave explicativa para o que somos, pensamos, sentimos; de outro, fazemos de tudo
para que os infantis deixem de ser infantis. Para que se tornem, cada vez mais acelerada
e precocemente, em tudo semelhantes a nós.
Quando a gangorra se inclina para a negação dos infantis, nos alarmamos que
possam prostituir-se, roubar, matar. E choramos o fim-da-infância, esquecendo que
somos justamente nós que não suportamos nenhuma diferença e nenhum dos diferentes,
dentre eles, os infantis. Quando a gangorra pende para a infância feliz, providenciamos
que as crianças peçam esmolas, funcionem como aviõezinhos das drogas, trabalhem nas
fábricas-lares de calçados, no sisal, nas pedreiras. Ou, o que dá no mesmo: as
transformamos em ocupados mini-executivos, com lotadas agendas eletrônicas e
celulares, ou em pequenas top models, lolitas e mini-madames.
O que aconteceu, na história da infantilidade (cf. S.M.Corazza, História da
infância sem fim, Unijuí, 2000), é que, pelas condições de proveniência e de emergência
do infantil, ele especificou-se, constituído por estratégias que subordinaram a sua
identidade. Que a distribuíram junto a outras individualidades, também nascidas débeis,
secundárias, insignificantes, anormais: as dos loucos, pobres, doentes, mulheres, negros,
velhos, criminosos, feiticeiras, homossexuais, marginais, deficientes, prostitutas.
Ou seja, quando a cultura ocidental partejou o ser infantil, este não nasceu nada
bem. Porque nasceu junto a todas as outras espécies de infantis-infames, cuja forma
predominante de sujeição  de ser feito sujeito, de se reconhecer como um sujeito  foi
a de estar submetido, pelo controle e pela dependência, ao Sujeito-Modelo, ao Sujeito-
Padrão, que é o Adulto.
Por não aceitar a sua especificidade, é que, no mesmo momento em que inventa
o infantil, o Ocidente burguês, capitalista, liberal, também cria mecanismos para
desfazer essa sua diferença, para torná-lo igual ao Sujeito-Verdadeiro. Sujeito que,
obviamente, não é um indivíduo, mas um lugar discursivo, que cumpre a função de um
referente estável, e funda o endereçamento de cada um dos indivíduos temporais.
Impaciente e incomodado com a condição infantil, irritado com a sua
infantilidade, exasperado com o seu infantilismo, esse Sujeito-Verdadeiro sempre se
relacionou com o infantil, na direção de que deixasse de ser esse pequeno-outro:  “Tão
infantil, coitadinho”! Por isso, é que fabricou tantos mecanismos disciplinares,
tecnologias de Estado, técnicas de governo e de regulação médicas, morais, religiosas,
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novas instituições e saberes, como a Família, a Escola, a Pedagogia, a Psicologia: para


corrigir, reparar, endireitar, consertar o corpo-alma infantil recém-nascido.
A partir da junção entre identidade-dependente e necessidade-de-adultização, o
infantil foi criado como uma identidade natimorta, isto é: como uma identidade que
nasceu morta, ou que, vindo à luz com sinais de vida, logo morreu. Uma morte tão
explícita, que o prometido Mundo Infantil da Modernidade, por efeitos da própria
identidade que o habitava, acabou se produzindo como um Mundo Adulto.
Assim, não deve surpreender que a figura do infantil-adulto de hoje, que nos
causa tanto pânico, seja apenas o atual episódio de uma série de submissões,
dominações e insuportabilidades da diferença infantil, bem mais antigas do que nós.
Não é de espantar que o infantil venha sendo, há séculos, adultizado, justamente pelo
tipo de subjetivação que lhe objetivou como um sujeito carente, primitivo, secundário,
incompetente, ignorante, incapaz, irracional, amoral.
Na história da infantilidade, podemos falar, sim, do fim-da-infância. Porém,
apenas como a combinação presente das duplas forças de infantilização e adultização,
que reveste, neste tempo de agora, a forma-infantil de alto valor moral, e faz com que
prossigamos falando de uma infância, mesmo que perdida, a ser incessantemente
produzida.
7. Vontade de infantil?
Falta, ainda, indagar: se essa tese, que formulo, faz algum sentido, se a infância
nasceu e logo morreu, se nossas práticas culturais criaram um ser natimorto, então,
como explicar a insaciável vontade-de-infantil, expressa em tantas leis, pactos,
associações, programas, conferências internacionais, horror diante do fim-de-infância?
Por que uma subjetividade desse tipo requer ainda tantos investimentos sociais? Qual o
lucro extraído do trabalho de infantilização? Qual a taxa de mais-valia que tiramos de
uma infância-sem-fim?
De novo, é simples. Quando a família conjugal, religiosos, legisladores,
educadores da Modernidade inventam a subjetividade infantil, nela depositam uma
fonte inesgotável de sua verdade. Pode ser pensado que, ao se olhar no espelho, com o
infantil, o adulto, ao mesmo tempo, o subjetiva e exibe aí os seus próprios ideais. De um
modo, que o infantil acede à sua identidade, por meio dos índices da imagem e da
descrição adultas.
Claro que, por razões óticas, esses índices são exteriores e simetricamente
invertidos. Mas, neles, o infantil amarra o nó de sua servidão imaginária, fantasiando tal
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identidade ortopédica de unidade plena. Por meio da imagem e da palavra adultas,


conquista sua identidade, e a assume como própria, dizendo:  Onde o Grande era, Eu-
Pequeno hei de vir.
Então, quando se procura, o infantil encontra-se em alguma coisa radicalmente
outra: a forma pré-existente do que ele não é, mas que não lhe deixa outra possibilidade
senão a de crer que é. Aí, se reconhece e a um só tempo se perde: nas formas
identificatórias, pelas quais é visto e falado pelo Sujeito-Verdadeiro. É possível
continuar esse jogo especular, e problematizar a fascinação dual exercida sobre o
Adulto, perguntando:  Por que, diabos, o Grande tem necessidade de se olhar no
espelho, cara-a-cara com o Pequeno?
Ora, porque os espelhos integram a ética da Modernidade, que radica na
exclusão da alteridade, obcecada como foi pelo tema do Duplo. Uma ética de ação sobre
ações, que efetua o Mesmo, sempre a conquistar o seu oposto. Nas fronteiras da
transcendência e da finitude, o Adulto inventa o Natimorto. Reduplicando-se no
espelho, resiste à sua própria aniquilação, como solo de uma certa espécie histórica de
saber.
Olhando os infantis, os adultos se afirmam como a Mesmidade, a quem todas as
Outridades devem assemelhar-se. É por isso que precisam dos infantis: para acessar a si
mesmos, pelo enigma do que são e não são; para conhecer melhor, por contraste, a sua
essência; para determinar e fixar o perfil de sua normalidade. O infantil acaba sendo,
nessa operação, um documento vivo, uma mina de ouro de informações para o Sujeito-
Verdadeiro.
Quando, no espelho, o Modelo encara o Simulacro, fortalece suas formas e
forças. Quando o Grande vê o Pequeno não tem dúvida alguma sobre a sua própria
grandeza. Quando reconhece a dependência infantil, não questiona a supremacia de sua
autonomia e livre-arbítrio. Quando constata a irracionalidade, não duvida da justeza de
sua Razão. Quando escuta o balbucio da linguagem minoritária, comprova a maioridade
da sua. Ao se deparar com a mestiçagem infantil, recupera a univocidade de sua adultez.
É dessas relações com os pequenos-duplos, que extraímos o seu valor-de-uso.
Incrementamos as funções sociais, que determinam o seu valor-de-troca. Revigoramos
as forças produtivas da cultura, pelas quais se desenvolve o trabalho do dispositivo de
poder-saber-verdade, que deve infantilizar sem cessar.
Mesmo que nossas práticas contemporâneas neguem, cada vez mais cedo, o
infantil, e chorem a incapacidade que tem nosso tempo de infantilizar mais e melhor, é
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preciso continuar infantilizando, para não perder, mesmo que seja no negativo, a
segurança da própria identidade adulta. É preciso continuar instrumentalizando os
infantis, para deles extrair um excedente de valor.
Já que, da identidade infantil, depende que, ao se olhar, o Grande se renove e
acredite que ainda vive, para além de seu fim. É por isso, que necessitamos de uma
infância-sem-fim, para não desaparecer, como os sujeitos mais queridos, perfeitos e
completos da Modernidade: educados, racionais, autônomos, centrados, unitários.
8. Los Niños
Agora, atenção! Existem coisas diferentes acontecendo, que independem do que
nós, adultos, queremos, ambicionamos, desejamos em relação à infância. Por efeitos de
todas as práticas sociais, de tantos séculos, os infantis já não são mais os mesmos. O
momento presente da história da infantilidade aponta para o advento de um novo modo
de ser infantil. Para mim, os significantes da infância contemporânea são  por mais
estranho que possa parecer  El Niño e La Niña.
Afinal, elas são as crianças mais mal-educadas de hoje. Não sabem ler, nunca
foram à Escola. Não são tiranizadas pela cultura midiática, não assistem televisão, nem
têm computador. Não precisam resolver nenhum complexo de Édipo, não têm pai nem
mãe. Não são expropriadas, nem violentadas. Parece até que não brincam.
O Menino Jesus inaugurou o sentimento ocidental de infância. Quatrocentos
anos depois, esse doce Menino se transforma em uma mancha vermelha sobre o
Pacífico. No século XVIII, tal fenômeno foi batizado com o nome de El Niño, num
misto de reverência e temor àquele jesuzinho.
El Niño é tão terrível e monstruoso, que uma de suas últimas estrepolias é
desacelerar a rotação da Terra. Ele faz com que, no último ano, cada dia de nossas vidas
sofra um acréscimo de 6 décimos de milésimo de segundo. La Niña é sua irmã. Para
falar dela é preciso antes saber quem é El Niño, porque ela não existe sem ele. Há quem
a chame de Anti-El Niño. A Menina resfria as águas do oceano, trazendo mais secas e
inundações, só que em regiões trocadas do Planeta.
Esses “Meninos” são duas faces de um mesmo fenômeno. Sua previsão, uma
questão de vida ou morte. Nosso grande desafio é conhecê-los melhor, controlar suas
condutas, governá-los mais eficazmente: tal como os adultos modernos fizeram com os
infantis que estavam fabricando.
Los Niños são os infantis de hoje. São eles que demarcam a fratura de nossa
infantilidade, rompendo a prisão do reflexo adulto, o modo moderno de ser infantil.
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Encerram o ciclo de problematizações e práticas, iniciado com a inocência daquele


menino-morto. Seus furores e flagelos entram em nossos conhecimentos, ainda não
tornados razoáveis, científicos, estudáveis, analisáveis, vigiáveis, puníveis.
O dispositivo de infantilidade criou um excesso de identificação, levando os
adultos a perder uma de suas figuras de objetivação. Provocou o esfacelamento de uma
imagem de seu Eu, a confusão de suas representações. Pois, se acontece do infantil ficar
colado a nós, como é que vamos decifrar este Pequeno-Outro, para, na imagem invertida
do espelho, compreender quem somos?
Los Niños estão desiquilibrando as relações conhecidas. Dissipando-se nas
névoas de uma infância reinventada. Realizando uma experiência-limite, sem funções
transcendentais. Desgarrando-se de si e de nós, de modo a se subjetivarem como
sujeitos-outros. Mostrando a miséria daquele infantil, que nos foi tão familiar, e
apontando que, nas atuais condições históricas, são sujeitos diferentes, a própria
diferença. Apontando que não basta dar o pão da infância a quem tem fome dela, mas
que é necessário deixar de produzir este tipo de fome.
Isso constitui uma ruptura de sentidos e de práticas, que nos obriga a procurar
outros focos de auto-referenciação. Que indica a complexificação de nossa
subjetividade, a ser feita de ritmos e orquestrações inusitadas. Condição precária, sem
dúvida, porque vê-se ameaçada pelas linhas de força reativas, que, em tom apocalíptico,
lutam para preservar a infância moderna, como subalterna, inconveniente, discrepante,
desajustada. Que pretendem escorá-la, ainda, na armadura nostálgica do Princípio de
Identidade Universal.
Minha conclusão é irreversível: o bom infante desfaleceu, acabou, morreu. Ele é
uma figura de areia, entre uma maré vazante e outra montante. Uma composição, que só
aparece entre duas outras: a de um passado que o ignorava, a de um futuro que não o
reconhecerá mais. A partir disso, é preciso perguntar:  O que faremos nós, sem este
infante? Ou:  O que faremos com o que fizemos da infância?
Para começar, assumir a nossa responsabilidade ética nesse infanticídio
histórico. Depois, aproveitar a compreensão e o sentimento dessa responsabilidade para
interromper a subida da ladeira, de sempre mais infância, de sempre mais verdade do
infantil, à qual tantos séculos nos fadaram. Promover diferentes práticas de liberdade, ao
redor dos modos pelos quais fomos subjetivados como infantis, e novas formas de luta
contra a modelização adulto-infantil, que nos ligou a nós próprios, e nos submeteu ao
olhar e à palavra do Sujeito-Verdadeiro.
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Aí, então, transformar, profundamente, nossas relações com os infantis.


Modificar nossos modos de olhar e de dizer a infância, para conseguir olhá-la com
outros óculos e dizê-la com outras linguagens. E, acima de tudo, nos empenhar em
inventar, de A a Z, diferentes modos de vida com os atuais 400 milhões de crianças do
mundo. Pode ser que, assim, consigamos construir uma nova aurora de nossas vidas. A
qual, talvez, não necessite mais ser tão chorada. E da qual, quem sabe, não sintamos
tantas saudades assim.
Bibliografia
CORAZZA, Sandra Mara Corazza. Infância e educação: Era uma vez, quer que
conte outra vez? Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
_____. Uma vida de professora. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2005.
_____. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte, MG:
Autêntica, 2006.
_____. História da infância sem fim. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2007.
_____. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre,
RS: UFRGS e Sulina, 2008.
_____ (org.). Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura. Porto
Alegre: Sulina, 2010.
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