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A SEMÂNTICA PROPOSTA POR MICHEL PÊCHEUX: UMA RUPTURA


NAS BASES DA LINGUISTICA
Larissa Scotta

RESUMO º uma parte da Lingúística, tal como a Fonologia, a


Morfologia e a Sintaxe. Afirmando que o sentido
Este trabalho insere-se dentro de uma proposta de escapa as abordagens de uma Lingúística voltada
compreensão da construção epistemológica da essencialmente para a língua, Pécheux (1997a)
Análise de Discurso e tem como objetivo refletir questiona o lugar da Semântica na linguística
sobre a formulação do conceito de “sentido” saussuriana, fundada sobre a dicotomia língua/fala
dentro desse campo de pesquisa. Para isso, e, não obstante, interroga sobre a contradição em
buscamos relacionar o modo como a questão da que se baseava a Linguística, ao não reconhecer
“significação era abordada pela Lingúística sua relação com a filosofia no que concerne à
saussuriana e o deslocamento e consequente questão do sentido.
ruptura teórico-política apresentada por Michel A partir de seus questionamentos, Pêcheux
Pêcheux no final da década de 60. (1997a, 1997b) busca elaborar as bases de uma
teoria materialista da significação, onde o
PALAVRAS-CHAVE: Semântica, Análise de histórico e o político sejam considerados
Discurso, Linguística saussuriana constitutivos dos processos de significação do
dizer. Essa nova proposta vai significar, não
INTRODUÇÃO somente uma nova abordagem dessa
problemática, como também umadiferente forma
Michel Pêcheux escreveu uma vez, citando de conceber a questão da “língua' e da “fala”, tal
Danton, que “não se destrói realmente senão como apresentados por Saussure.
aquilo que se é capaz de substituir”. Essa Sob esse aspecto, buscamos refletir neste
afirmação, que remete à postura doteórico frente trabalho, a respeito do modo como a questão dos
à Semântica tal como esta se desenvolvia na sentidos era abordada pela Linguística saussuriana
Lingúística ao longo do século XX, possibilita-nos e o deslocamento teórico-político apresentado
que ressaltemos o tema sobre o qual buscamos por Pêcheux, visto que entendemos existir
refletir neste trabalho: a formulação do conceito ligações entre essas abordagens que poderiam
de sentido na Análise de Discurso. elucidar alguns aspectos da constituição
Fazendo a relação do que foi enunciado por epistemológica da Análise de Discurso.
Pêcheux com o propósito que olevou a fazer tal
afirmação, podemos entender que, ao propor 1A Lingúística saussuriana e os processos de
uma substituição da forma como a Semântica era significação
pensada na Lingúística, o teórico estava disposto a
apresentar um novo modo de entender o estudo A Lingúística -modema, tal como
dos processos de significação. denominamos hoje, adquiriu status de ciência
Em alguns de seus textos”, escritos na França com Saussure, que estabeleceu a língua como
entre as décadas de 60 e 70, como no artigo La objeto de estudo da Lingúística. A partir da
sémantique et la coupure saussurienne: langue, demarcação efetuada por Saussure, conforme
langage, discours (1971), e emtrechos das obras Pietroforte (2002), desenvolveu-se a dicotomia
Análise Automática do Discurso (1969) e língua/fala, onde língua seria definido como um
Semântica e Discurso (1975), o teórico sistema de elementos, um conjunto social
questiona as evidências fundadoras da Semântica. organizado em que umelemento se define pelos
Até então, a questão do sentido estava demais, e fala seria um dado individual, diferente
atrelada a uma noção sistêmica da língua. Em emcada usuário da língua.
outras palavras, poderíamos afirmar que o sentido Entendemos que o propósito de Saussure
de um termo era dado a partir da diferença dos era o de dar à Linguística legitimidade científica e,
termos dentro do sistema lingúístico. Sob essa por esta razão, ele optou por tratar apenas da
perspectiva, a Semântica era entendida como língua. Segundo seu entendimento, somente a
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língua seria passível de análise e sistematização deslocada na Lingúística saussuriana para uma
rigorosas, o que permitiria à Linguística noção de valor. Sob essa perspectiva, um termo
aproximar-se da formalização das ciências exatas. não significa, mas vale. E vale precisamente
A fala, por ser da ordem do individual e, porque é analisado no interior do sistema
portanto, estar relacionada ao “uso” do sistema lingúístico, onde um termo é relacionado a um
lingúístico, foi posta em segundo plano pelo outro. Conforme estabelece Saussure (2003, p.
linguista. 136), a característica mais exata de um termo “é
Para Saussure (2003), a língua podia ser ser o que os outros não são”.
definida como umsistema de valores constituído É importante ressaltar, todavia, a propósito
não por conteúdos ou produtos de uma vivência da questão que estamos tratando, que para
mas por diferenças puras. Dentro dessa Saussure (2003), a noção de valor se subordina,
concepção, estavam enquadrados os diversos em seu aspecto conceitual, à significação, ao
níveis de estudo da linguagem: fonológico, passo que esta, paradoxalmente, é colocada sob a
morfológico, sintálico e semântico. dependência do valor. Logo, para Saussure, as
Os processos de significação do dizer, tal noções de significação e valor não são
como os outros aspectos linguísticos, eram consideradas de fácil entendimento, mas algo que
explicados segundo o funcionamento do sistema se revela, sob determinados aspectos,
da língua. No Curso de Lingúística Geral (2003, aparentemente contraditório.
p. 134), Saussure ressalta que, a palavra, fazendo De acordo comErnst-Pereira (2003, p. 7),
parte de um sistema, “está revestida não só de
uma significação como também, e sobretudo, de Uma consegiiência séria que decorre dessa
contradição que anula a distinção entre valor é
umvalor” (grifo nosso). significação, subsumindo-os ao sistema é a que
A significação remete à conhecida definição se retere à prática do lingúista. (...) a lingúística
de signo lingúístico, que seria a relação arbitrária a partir de Saussure funda sua tarefa nas
entre uma imagem acústica, que Saussure operações de comutação, de comparações
chamou de significante, e um conceito, que ele regradas, etc, no interior de uma mesma
lingua. O que interessa, então, é o
denominou significado (2003, p. 81). Sob essa funcionamento das línguas em relação a elas
perspectiva, o linguista entende que não há mesmas no quadro de uma lingúística geral
relação entre palavras e coisas. A significação não que é a teoria do funcionamento. Daí a
se dá de forma direta, mas na união de uma importância do princípio da unidade da língua.
É ele que possibilita tal prática.
imagem acústica e um conceito, sendo que esses
dois elementos estão intimamente imbricados e
O princípio de unidade da língua aponta,
um reclama o outro.
em nosso entendimento, para a transparência da
Em seus Escritos de Lingúística Geral,
linguagem e para a exterioridade do sujeito em
Saussure (2004, p. 37) assevera que: “1º: um
relação a ela. Quer dizer, a partir do momento
signo só existe emvirtude de sua significação. 2º:
em que se considerou o fato lingúístico
Uma significação só existe em virtude de seu
isoladamente, a Lingúística saussuriana permitiu,
signo. 32: Signo e significação só existem em
segundo Ernst-Pereira (idem), o desenvolvimento
virtude da diferença dos signos”. Essa diferença,
da concepção idealista de uma língua sem sujeito,
assinalada pelo linguista, aponta para o segundo
logicamente perfeita, constituída de signos,
aspecto de uma palavra: seu valor. Para o
suportes de significação ao dispor de um sujeito
lingúista, portanto, um signo não existe por si só,
universal “situado em toda a parte e em lugar
mas apenas na relação com outros signos. Daí as
nenhum e que pensa por meio de conceitos”
definições saussurianas de que “o valor de
(Pêcheux, 1997b, p.127).
qualquer termo que seja está definido por aquilo
Emoutras palavras, poderíamosafirmar que
que o rodeia” (2003, p.133), de que “o sentido
Saussure apartou o fato lingúístico de sua
das palavras é uma coisa essencialmente negativa”
dimensão sócio-histórica e das implicações de
(2004, p. 73) e de que “o sentido de cada forma,
ordem subjetiva. Sob esse aspecto, a Lingúística
em particular, é a mesma coisa que a diferença
saussuriana teria por corolário o fato de que toda
das formas entre si. Sentido=valor diferente”
unidade lingúística é entendida como parte de
(2004, p. 27). um sistema, onde essas unidades seriam
Podemos entender, a partir dessas
formulações, que a noção de significação é
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explicadas a partir das diferenças existentes entre de atenção, já que é exatamente neste ponto que
os termosdalíngua. Pêcheux interroga a Saussure.
Segundo o teórico (1997a), a Linguística
2 A Semântica proposta por Michel Pêcheux saussuriana, fundada sobre a dicotomia
língua/fala, desenvolveu-se em torno de duas
O corolário saussuriano vai ser posto em exclusões teóricas: a exclusão da fala no
voga, no final da década de 60, por Michel inacessível da ciência lingúística e a exclusão das
Pêcheux, o qual desenvolve uma proposta instituições não-semiológicas do intuito da
teórico-metodológica que acaba “deslocando” a ciência. Essa primeira exclusão, mesmo que
noção de língua saussuriana, ao apresentá-la Saussure não tenha desejado, autorizou
como a base dos processos discursivos, nos quais
estão envolvidos o sujeito e a história (Gregolin, a reaparição triunfal do sujeito falante como
2004). Nesse sentido, a Semântica será pensada a subjetividade em ato; (...) em outros termos,
partir do conceito de discurso” proposto por tudo se passa como se a lingúística científica
(tendo por objeto a língua) liberasse um
Pêcheux, onde não exclusivamente a língua, mas resíduo, que é o conceito filosófico de sujeito
também o histórico e o político, vão constituir os livre, pensado como o avesso indispensável, o
processos de significação do dizer. correlato necessário do sistema
A fim de apresentarmos o caminho (Pêcheux,1997º, p. 71).

percorrido por Pêcheux para se chegar a um novo


De acordo com Flores (1999, p. 43), a
entendimento do objeto de estudo da Semântica,
interpretação de Pêcheux é a de que “se língua
abordaremos a relação de Pêcheux com a teoria
é um sistema com regras universalmente válidas, a
saussuriana a partir da divisão elaborada por
Gadet (et. al, 1997), a qual entende quea leitura fala é um lugar de atividade individual do
sujeito”. Nesse sentido, Pêcheux se contrapõe à
empreendida por Pécheux com relação à
dicotomia porque, em sua opinião, é inadequado
Lingúística saussuriana pode ser percebida em
explicar o funcionamento lingúístico pela
três perspectivas no interior de seu projeto de
referência a um sistema universal de regras, assim
uma “teoria do discurso”: no que concerne à
como é errado pensar um sujeito livre na base de
concepção geral de língua, na reflexão da
toda atividade lingúística.
oposição língua/fala e na noção de valor.
A fim de ilustrar sua crítica, Pêcheux (1997º,
Nesse trabalho, abordaremos com mais
p. 73) apresenta a frase “A terra gira”. Segundo o
destaque a segunda perspectiva, a qual será
teórico, conforme o contexto em que esta frase
apresentada a seguir. Acreditamos ser importante
tenha sido produzida, é possível julgá-la 'normal”
ressaltar, todavia, com relação ao primeiro item,
ou “não”, isto é, caso ela tenha sido enunciada
que Pêcheux compartilha da idéia de Saussure de
anteriormente a Copérnico, possivelmente um
que a língua é um sistema e, como tal, deve ser
lingúista daquela época a consideraria como uma
pensada a partir de seu funcionamento.
relação sintático-semântica, entre sujeito e
Conforme afirma Gregolin (2004, p. 61), “esse
atributo, internamente incompatível. Nesse
caráter sistêmico da linguagem será a base a partir
sentido, Pêcheux (idem) afirma que “nem sempre
do qual serão pensados os processos discursivos”.
Além disso, a terceira perspectiva também vai ter
se pode dizer da frase que ela é normal ou
anômala apenas por sua referência a uma norma
um papel importante na formulação do conceito
universal inscrita na língua”.
de sentido, na medida em que, ao elaborar suas
Esse entendimento de que a oposição entre
primeiras concepções de “sentido”, é o valor
o universal e o individual estabelecida por
saussuriano que Pêcheux vai invocar (Maldidier,
Saussure não se sustenta, vai levar Pêcheux
p. 2003).
(1997º, p. 74) a propor “um nível intermediário
2.1 Da dicotomia língua/ fala ao discurso entre a singularidade individual e a
universalidade”. É nessa região intervalar que se
A segunda perspectiva salientada por Gadet situaria o discurso, o qual deveria ser estudado
(idem), referente à relação entre o corte enquanto um conjunto de mecanismos formais
saussuriano” e a reflexão empreendida por responsáveis pela sua produção (processos de
Pêcheux, constitui-se, para nós, em um ponto produção) e com referência às condições de
muito importante e que necessita um pouco mais produção. Essa proposição vai se relacionar com a
Ti

segunda exclusão teórica efetivada por Saussure, linguagem, faz com que umdiscurso seja o que é:
a exclusão do não-semiológico do campo da o tecido histórico-social que o constitui
ciência linguística. (Maldidier, 2003, p. 23). Com essa perspectiva,
Para Pêcheux (1997a), o conceito de não- Pêcheux instaura a possibilidade de se ir além de
semiológico é um equivoco em Saussure, pois uma análise puramente lingúística do “sentido”,
fundamentado sobre uma relação necessária onde os processos de significação são entendidos
entre meios e fins. A língua, ao contrário, não a partir das diferenças entre os termos, criando
estaria, necessariamente, ligada a um condições para se entender de um outro modoa
determinado fim. Quer dizer, a língua seria um questãodo sentido.
sistema semiológico que epistemologicamente Ão acrescentar a noção de condições de
equivaleria aos demais sistemas semiológicos. produção, além disso, Pêcheux (1997b) vai de
Todavia, pelo termo instituição, Saussure teria encontro à idéia de sujeito decorrente da
separado os sistemas institucionais políticos, atividade individual que é a fala. Em outras
jurídicos, etc. dos demais sistemas semiológicos, palavras, o teórico recusa a liberdade'
ou seja, a língua seria umainstituição semiológica identificada em Saussure. Nesse sentido,
enquanto que o sistema político seria apenas poderíamos afirmar que, nem a noção de sujeito
institucional. O entendimento de Pêcheux, ao concebida a partir do conceito de discurso, nem
contrário, é o de que o estudo do funcionamento o sentido de um termo, serão entendidos por
da língua deveria incluir o não-semiológico como Pêcheux do mesmo modo como o eram na
pertinente ao lingúístico. Com isso, o discurso Linguística saussuriana.
seria definido em relação às condições de
produção. A hipótese apresentada por Pêcheux é 2.2 Por uma outra noção de Semântica
a de que
Essa ruptura empreendida por Pêcheux vai
a umestadocado das condições de produção ligar-se diretamente à área da Lingúística
corresponde uma estrutura definida dos denominada Semântica. Esta, tal como afirmamos
processos de produção dodiscurso a partir da
lingua, o que significa que, se o estado das
anteriormente, era entendida como uma parte
condições é fixado, o conjunto dos discursos dessa disciplina, tal como a Fonologia, a Sintaxe e
possíveis de serem engendrados nessas a Morfologia. Entretanto, para Pêcheux (1997b),
condições manifesta invariantes semântico- diferentemente destas áreas, a Semântica não
retóricas estáveis no conjunto considerado e
poderia ser pensada levando em consideração
que são características do processo de
produção colocado em jogo (Pêcheux,1997a, somente o sistema lingúístico, pois o sentido, seu
p. 79). objeto de estudo, excederia o âmbito da
Linguística fundada sobre a dicotomia língua/fala.
Ao apresentar uma outra forma de conceber Com o intuito de ratificar essa afirmativa,
a linguagem, ou seja, enquanto discurso, Pêcheux Pêcheux sustenta a hipótese de que a Semântica
(1997b) propõe que se entenda de que modo desenvolvida a partir do corte saussuriano é uma
aquilo que consideramos “uma mesmalíngua”, no Semântica fortemente idealista, lançando mão de
sentido lingúístico desse termo, permite algumas evidências que seriam capazes de
funcionamentos de “vocabulário-sintaxe” e de comprová-la. Segundo Flores (1999), à evidência
“raciocínios” antagonistas. Ou seja, seu interesse de que umateoria do significado seria uma teoria
não se restringe, tal como se dava na lingúística lógico-matemática e o conhecimento, uma teoria
saussuriana, em entender a natureza das palavras da formalização das leis que possibilitam o
que utilizamos, nem em apreendê-las dentro do pensamento, Pêcheux soma a evidência de que
funcionamento do sistema lingúístico. Para existem objetos, processos materiais, pessoas que
Pêcheux, o essencial torna-se a compreensão das falam, isto é, sujeitos a comunicar algo, enfim,
“condições”” sob as quais essas palavras se soma a evidência de que as ciências humanas
combinam, na medida em que elas (as condições) falariam de um objeto - o homem -— com a
determinam a significação que adquirem essas linguagem e pela linguagem.
palavras” (Pêcheux apudFavero, 2003). No entendimento de Pêcheux (1997b), esta
A referência às condições de produção evidência de que a linguagem comunica através
designa o entendimento do discurso determinado de palavras com sentidos incontestes,
por um “exterior”, para evocar tudo o que,fora a “informações” sobre coisas e objetos, traduziria
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um modelo abstrato universal produzido pela Lingúística sobre a contradição em que ela se
sociedade capitalista. Para além de um baseava, ao não reconhecer sua relação com a
questionamento da língua enquanto sistema de Filosofia no que concerne à questão da
regras universal, portanto, Pêcheux expõe uma significação. Sua constatação é a de que o que
profunda crítica à lingúística pelo fato desta ter se designamos pelo termo “Semântica” faz parte da
encerrado em seu objeto e ignorar, disciplina Lingúística de maneira distinta da
consequentemente, os aspectos sociais, ou ainda, Fonologia, da Morfologia ou da Sintaxe e constitui
abordá-los como uma psicosociologia que um pontode retorno da Filosofia nessa disciplina
constituiria a reprodução teórica do idealismo
sobre o qual ela se constitui. a maneira pela qual a semântica “tem a ver”
com a Lingúística é a de constituir o ponto em
A dicotomia língua/fala reconduziria a que a autonomia relativa desta última se
Semântica a um substancialismo e a um depara com seus limites; em outras palavras,
subjetivismo porque subjaz a ela a oposição estamos afirmando que, para resolver as
kantiana contingente/necessário através do qual questões que (não) são colocadas no setor da
“semântica”, para dissipar as questões-
se recupera a operação dejuízo de umsujeito. À
bloqueios que sao “respostas-por-antecipação”
língua, liga-se a idéia de sistema, à fala, a de e que impedem qualquer avanço, emsíntese,
criatividade (Flores,1999). Segundo Pêcheux parair além desse ponto limite (...) é que se
(1997b, p.), “Saussure deixou aberta a porta pela apresenta a possibilidade e a necessidade de
qual se infiltraram o formalismo e o subjetivismo; desordenar-reconfigurar a problemática que se
designa ainda hoje pelo termo “semântica”,
essa porta aberta é a concepção saussuriana de permitindo que os conceitos do materialismo
que a idéia só poderia ser, em todoseualcance, histórico e as categorias do materialismo
subjetiva, individual”. Trataria-se, pois, na opinião dialético “tomem posição junto a essa
de Pêcheux, de um empirismo em semântica e, problemática (Pêcheux,1997b, p. 243).

deste modo, justificaria-se a oposição, percebida


em Saussure, da subjetividade como uma Conforme observa Maldidier (2003), o
sistematicidade extralingúística à objetividade, materialismo histórico é a posição explícita de
tambémsistemática, da língua. onde se realiza a intervenção epistemológica
Ao expor sua crítica à Semântica estrutural, contra a dupla ameaça, a do empirismo, “a
percebemos que Pêcheux a situa emdois pontos: problemática subjetivista centrada no indivíduo” e
um primeiro ponto diria respeito ao fato de que a do formalismo que confunde “a língua como
se postula a existência de um cálculo passível de objeto com o campoda linguagem”. Apoiado na
determinar uma combinatória semântica para o teoria da “interpelação ideológica” proposta por
sentido do enunciado e um segundoreferir-se-ia Althusser, bem como em uma teoria do
à teoria da enunciação, enquanto teoria de um “inconsciente”, elaborada por Lacan, Pêcheux
sujeito produtor de sentidos em uma dada (1997b) vai sustentar a hipótese de que o sentido
situação. Conforme constata Flores (1999, p. 51), de uma palavra ou expressão não existe em si
mesmo, ele não é umproduto acabado, resultado
no primeiro caso, a limitação ao sistema de uma possível transparência da língua, mas está
impede que o contexto seja contemplado já sempre emcurso, é movente e se produz dentro
que ele seria exterior a esse sistema. No de uma determinaçãohistórico-social.
segundo caso, a enunciação além de teorizar
sobre o ideal de um “sujeito quefala em uma Sob essa perspectiva, Pêcheux defende a
situação”, atribuindo conteúdos psicológicos tese de que os sujeitos não são nem donosnem a
ao enunciado, também centraliza esse sujeito origem de seus dizeres, pois para umsujeito ter o
na base da enunciação. Na opinião de domínio de seu dizer, deveria existir um sentido
Pêcheux, este contexto teórico em que se
predeterminado por propriedades da língua,
opõe sistema/sujeito é circular, embora
reivindique, em um discurso ideológico, a justamente o que ele queria negar. Os sujeitos
marca do desenvolvimento. não teriam esse domínio porque não são
completos, já feitos, mas constituídos na relação
Pêcheux (1997b) questiona, portanto, as com a língua e a história. Em outras palavras, o
evidências fundadoras da Semântica, objetivando que Pêcheux propõe é deslocamento das noções
a instauração de outra semântica, pensada por ele de linguagem e sujeito, que passam a ser
nos moldes da filosofia marxista. A fim de entendidas a partir de um trabalho com a
justificar essa Semântica, o teórico vai interrogar a ideologia.
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De acordo com Orlandi (2002, p. 53), “a Psicanálise, o desafio maior da Análise de


linguagem não é transparente, os sentidos não são Discurso vai ser o de “construir interpretações,
conteúdos. É no corpo a corpo coma linguagem semjamais neutralizá-las, nem no “qualquer coisa”
que o sujeito (seldiz”. Nesse corpo a corpo que de um discurso sobre o discurso, nem em um
revela a relação constitutiva entre os sujeitos, a espaço lógico estabilizado com pretensão
língua e a ideologia, é que se construiriam os universal” (Pêcheux, 1998, p. 60).
sentidos do que dizemos. Por isso, para Pêcheux
e para a Análise de Discurso pensada porele, não CONCLUSÃO
é possível conceber o sentido como algo pré-
determinado, algo que está descrito no sistema da Expostas algumas noções gerais do que
língua sob um único ponto de vista. A Pêcheux entendeser “uma produção de sentido”
univocidade do sentido não poderia existir pelo baseada na teoria do materialismo histórico e
fato de que “o sentido não é dado mais que o atravessada por umateoria do sujeito de natureza
sujeito. Sentido e sujeito são produzidos na psicanalítica, é possível constatar diferenças
história. Em outras palavras, eles são substanciais entre sua abordagem e a até então
determinados” (Maldidier, 2003, p. 51). vigente na Lingúística saussuriana.
No entendimento de Pêcheux (1997b), A crítica severa à concepção idealista de
todo seu trabalho emrelação à teoria do discurso uma língua semsujeito e logicamente perfeita, tal
é alicerçado no fato de que a questão da como a desenvolvida na Lingúística saussuriana,
constituição do sentido se junta à da constituição bem comoa crítica à fala, entendida por Pêcheux
do sujeito, e isto não lateralmente mas no interior como o avesso indispensável da língua e, por
da própria “tese central”, na figura da interpelação conseguinte, reduto da liberdade individual do
ideológica. Sob esse aspecto, a produção de sujeito, desencadeou a formulação de uma
sentido existiria na medida em que existe um Semântica de caráter materialista que foi de
sujeito em constante “trabalho” com a língua e encontro às noções de processos de significação
coma história. correntes na época.
Podemos perceber que essa posição teórica Por um lado, a proposta 'pechetiana” pode
apresenta uma concepção de sujeito que não é ser entendida como uma importante ruptura
nem aquela do sujeito “inexistente” da língua teórica, pois significou a possibilidade de um
saussuriana, nem a do sujeito “livre” da fala. Para a outro gesto de “leitura” do mundo, menos
Análise de Discurso, conforme destaca Henry idealista por assim dizer e, por outro lado, pode
(1992, p. 188), “o sujeito é sempre e ao mesmo ser concebida como uma declarada ruptura
tempo sujeito da ideologia e sujeito do desejo política, que se fez sentir na crítica ao modelo
inconsciente e isso tem a ver com o fato de que abstrato universal, produzido pela sociedade
nossos corpos são atravessados pela linguagem capitalista.
antes de qualquer cogitação”. É nessa relação dos Em nosso entendimento, ao criticar a
sujeitos com a ideologia e com o inconsciente Semântica desenvolvida até então e,
que os sentidos se (re)produziriam. E por se principalmente, ao propor que o materialismo
(re)produzirem desse modo é queseria possível o histórico tome posição junto a essa problemática,
movimento, a multiplicidade dossentidos. Pêcheux rompe com o postulado saussuriano de
Considerada uma primeira etapa” da análise puramente lingúística do “sentido”, onde
consolidação de um novo campo de pesquisa da os processos de significação são entendidos a
linguagem, o da Análise de Discurso surgida na partir das diferenças entre os termos, instaurando
França, a Semântica materialista proposta por a possibilidade de se pensar na exterioridade
Pêcheux no final da década de 60 e início de 70 como constitutiva dos processos de significação.
não vai parar de ser aprofundada. Conceitos Ao estabelecer que as palavras mudam de sentido
como Formação Discursiva”, Interdiscurso”, conforme a posição ideológica dos sujeitos que as
'Intradiscurso”, “Pré-construído”, “Formação empregam, Pêcheux assume, pois, uma posição
Ideológica” entre diversos outros, serão teórica e política que se distancia de modo
elaborados a fim de elucidar a noção de “sentido” inequívoco da perspectiva assumida pela
a partir do funcionamento do discurso. Semântica saussuriana.
Trabalhando, pois, na confluência das regiões Em Semântica e Discurso, Pêcheux
disciplinares do Marxismo, da Lingúística e da (1999b) afirmara que não se podia “destruir” uma
coisa sem pôr uma outra em seu lugar. Em nosso NOTAS
gesto de interpretação, a “destruição” da
Semântica fundada em Saussure não aconteceu;
pelo contrário, as bases dessa Semântica Trabalho desenvolvido nos Projetos de Pesquisa
“Constituir, formular e fazer circular sentidos: dispersão e
continuam servindo ainda hoje como sustentação
memória no discurso sobre/na cidade” e “História das Idéias
a diferentes teorias e abordagens da questão do Lingúísticas”, vinculados ao Laboratório Corpus/UFSM e
sentido". Entretanto, se a “destruição” pensada orientados pela Prof? Drº Amanda Eloina Scherer.
pelo teórico nao ocorreu, também é certo que 1 Aftirmação retirada da obra Semântica e Discurso: uma
não se pôde, a partir de suas formulações, falar crítica à afirmação do óbvio (1975).
2 O ano que aparece depois das obras é o da publicação
em noção de “sentido” sem lembrar de Michel original dos textos e não o da edição utilizada por nós.
Pêcheux e de sua inquietude com relação ao 3 Discurso, aqui, deve ser tomado como “um conceito que
modo como os sujeitos, ao dizerem, significam a não se confunde nem com o discurso empírico sustentado
Si mesmos e ao que está ao seu redor. por um sujeito nem com o texto, um conceito que estoura
qualquer concepção comunicacional de linguagem”
(Maldidier, 2003, p.21).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4 Entendemos corte saussuriano como a instauração da
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