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Edição Nº 14 - dezembro de 2004

As bravas mulheres do bandeirismo


paulista
Embora com uma imagem ortodoxa, em
especial pela indumentária que sugeria
submissão e timidez, elas foram muito ativas
e tiveram um papel econômico fundamental,
até mesmo como negociantes

Boas
esposas e
mães de
família,
quase
sempre
recolhidas
aos seus
lares.
"Recatadas"
e "austeras",
nas poucas
vezes que
saíam à rua
cobriam-se
totalmente
com mantos
de baeta - um
tecido de lã
grosseiro e
tingido de
cor escura -,
o que lhes
rendeu o
apelido de
"mulheres
tapadas".
Essa era a
imagem
estereotipad
a das
mulheres
paulistas do
período
colonial que
muitos
historiadores
repetiram em
suas obras
durante
muito tempo.
Era quase
um consenso
entre eles
que, quando
as moças se
casavam,
passavam do
poder
paterno para
o do marido,
a quem
seriam
submissas
pelo resto da
vida.
Limitavam-se
a costurar,
lavar, bordar,
fazer rendas,
mandar nas
escravas,
rezar, e, é
claro, parir e
criar muitos
filhos, um
após o outro.
Por Madalena
Marques Dias
No século XIX, muitas mulheres paulistas ainda se
cobriam com mantos de baeta escura. Aquarela de
Eduard Hildebrant, 1844

Poucos pesquisadores apresentaram outras imagens.


Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, insistiu em
que elas saíam de casa mais vezes do que se pensava,
e tinham muita participação na vida de suas
comunidades: faziam curas e partos, lutavam pela
sobrevivência cotidiana. Outros apontaram que as
moças pobres, obrigadas a trabalhar muito para viver,
eram sempre vistas nas ruas. Só as mais ricas ficavam
em casa, à espera de um casamento vantajoso.
Benedito Carneiro Bastos Barreto, o caricaturista
Belmonte, outro autor da história paulista, destacou que
a tal capa de baeta nem sempre fora marca do recato
feminino como se pensava.

Ela permitia que muitas senhoras e senhoritas


freqüentassem as casas dos homens - em outras
palavras, fizessem o que quisessem - sem ser
identificadas. Mesmo assim, ao retomar a seriedade
habitual dos pesquisadores, ele enfatizou que eram
exceções, pois a atitude de recolhimento imperava.

Assim, durante muito tempo as mulheres do período


bandeirista - séculos XVI e XVII - foram vistas como
figurantes da história. Enquanto os maridos e filhos
cuidavam dos negócios comerciais ou seguiam, sertões
adentro, à caça de indígenas e à procura de ouro nas
bandeiras, elas simplesmente cuidavam das coisas do
lar. Aos homens coube alargar as fronteiras da América
Portuguesa, percorrendo territórios que, pelo Tratado
de Tordesilhas, pertenceriam à Coroa da Espanha e
que, mais tarde, passaram à Coroa lusa. Eles
destruíram, ainda, as missões jesuíticas em territórios
que hoje compõem o Rio Grande do Sul e Paraguai, na
sua sede de escravos indígenas e riquezas. A elas,
restou a tarefa de multiplicar a prole dos bandeirantes.
Tudo parecia encaixar-se claramente. Homens e
mulheres teriam vivido em universos totalmente
separados, com papéis sociais opostos.

Houve, porém, quem duvidasse desse quadro, em que


os universos feminino e masculino aparecem tão
separados e antagônicos, e da falta de participação na
comunidade e a submissão aos padrões vigentes como
marca das paulistas. Pesquisas recentes têm
demonstrado outra realidade, muito diferente da
tradicional.

Mistura cultural
Nos primeiros anos da colonização da vila de São
Paulo ainda não havia mulheres brancas. Todas as
uniões ocorriam entre portugueses, espanhóis ou
outros europeus e as cunhãs indígenas. Os jesuítas
Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, muito
incomodados, relataram em suas cartas que esses
laços prescindiam do sacramento da Igreja Católica,
além de muitos serem temporários e poligâmicos.
Houve grande esforço dos padres no intuito de regrar a
vida dessa população. Impuseram, portanto, o batismo,
a catequese e o uso de roupas para os índios, além do
sacramento do matrimônio monogâmico e indissolúvel
às famílias.

Não era, porém, com qualquer índia que os colonos


brancos se casavam perante a Igreja Católica, e sim
com as advindas de tribos aliadas aos portugueses. O
exemplo mais antigo é o do influente João Ramalho
com Bartira, filha do chefe Tibiriçá, união depois
sacramentada pela Igreja, após o batismo daquela que
já era sua esposa - pelo costume indígena - e de seus
pais e irmãos. Matrimônios de europeus com as que
eles denominavam "negras da terra" originaram as
mais antigas famílias paulistas, cujo traço fundamental
era a miscigenação: seus filhos legítimos eram
mamelucos e traziam uma intrincada mistura cultural.
Se, por um lado, vestiam-se à européia, falavam
português e eram católicos, por outro, entendiam-se
dentro de seus lares nas línguas maternas e
mantinham muitos hábitos e formas de lidar com a
natureza indígenas. Esse foi o perfil, portanto, das
mães e filhas de famílias paulistas no período
bandeirista.

Quanto às outras índias, dois destinos lhes foram


reservados. Se sua gente fosse levada para algum
aldeamento, tinham como tutores os jesuítas, sob o
estatuto de "administradas". Lá, eram batizadas,
catequizadas e recebiam os demais sacramentos, entre
eles provavelmente o do casamento com algum índio
igualmente aldeado. Elas, seus maridos e filhos
constituíam a mão-de-obra fundamental para os
padres, de maneira a garantir a sobrevivência desse
agrupamento, com o desempenho de várias funções.
Também poderiam ser cedidos temporariamente para
realizar tarefas para algum colono, que por isso pagaria
uma composição (aluguel) aos padres.

Se sua gente fosse capturada por alguma expedição


bandeirante, poderiam ser revendidas para outros
lugares ou mesmo permanecer como cativas na própria
vila de São Paulo. Apesar de batizadas e instruídas
minimamente na fé católica, não tinham o resguardo da
tutoria clerical e eram submetidas ao terrível cotidiano
da escravidão. Podiam se casar com algum outro
escravo ou, como atestam muitos documentos,
simplesmente gerar uma série de filhos de vários pais,
aí incluídos os próprios senhores. Não raro, estes
reconheciam os ilegítimos em testamento, legando-lhes
alguma coisa.

A vida dessas mulheres é pouco documentada, pois,


além de não terem propriedades, elas se tornavam a
propriedade de alguém. Como tendência geral, os
colonos não devolviam os indígenas "alugados" aos
jesuítas, tornando-os escravos de fato, embora na
documentação apareçam propositadamente declarados
como "forros" ou "administrados". Todas essas índias
viviam o dia-a-dia de trabalhos pesados da família de
seus proprietários, com quem se envolviam como
concubinas. Mais tarde, teriam a seu lado, nas lides da
escravidão, africanas que começaram a ser
introduzidas na região paulista no correr do século XVII,
quando houve condições econômicas de começar a
comprar "negros de verdade", enquanto algumas
"negras da terra", escravas ainda, seguiam os
bandeirantes para o sertão.         

Formosas e varonis
Da união dos primeiros conquistadores com as cunhãs
das tribos aliadas, surgiram as mais antigas linhagens
familiares paulistas. É nelas que se encontra outra
categoria feminina da colônia: a das mulheres livres.
Das mulheres e dos homens pobres, indígenas ou
mamelucos "sem família" (reconhecida), que
possivelmente viviam à deriva pelas regiões paulistas
ou viravam pequenos roceiros, a documentação pouco
oferece no período. Sem dúvida, o destino reservado
às moças de família dessa sociedade mameluca era
casar-se, ou, em caso de exceção, tornar-se freiras.
Por isso mesmo, elas ficavam responsáveis pelo
gerenciamento de muitas coisas de seus lares e, se
não morressem no primeiro parto, teriam tantos filhos
quantos o corpo pudesse suportar. Isso não significa,
porém, que fossem eternamente caseiras e isoladas.

Casar era uma questão de sobrevivência, de


propriedades, de aliança entre famílias e, em último
caso, de afinidade entre os cônjuges. Por isso mesmo,
os matrimônios eram arranjados pelos pais dos noivos
geralmente com antecedência de anos: havia até
meninas e meninos "prometidos" desde o nascimento.
No ato do casório, era costume dos pais darem o dote
às filhas. Se não podiam dá-lo por completo, doavam
pelo menos a metade, como adiantamento da
"legítima", ou seja, da parte que a moça tinha direito a
receber de herança, na morte dos genitores, dividida
em partes iguais entre os filhos.

É esse o dado fundamental para explicar o papel


econômico das futuras esposas. Os pais nem sempre
calculavam com perfeição o dote da casadoira, muitos
anos antes de morrerem. Mas o que realmente definia
o tamanho e a composição do dote talvez fossem mais
as negociações com a família do noivo e conveniências
do momento do que a lógica da igualdade entre
herdeiros. Assim, ao examinar a documentação
colonial, os historiadores observaram muitos casos em
que as filhas recebiam, no final de tudo, muito mais
bens do que seus irmãos homens. E isso era visto com
naturalidade: quando esses rapazes se casassem,
também teriam os dotes de suas esposas.

Tanto que, quando se abria o inventário por ocasião do


falecimento do pai ou da mãe, muitas filhas casadas
não traziam seus dotes para acrescentá-los novamente
aos bens familiares gerais a redividir, como mandavam
as Ordenações Filipinas (leis portuguesas). Elas e seus
esposos consideravam-se satisfeitos com o que já
haviam recebido, e irmãos e genros não criavam caso. 

Logo, as noivas traziam mais bens para o casamento -


na forma de dote - do que os noivos. Segundo as
mesmas Ordenações, embora a administração
coubesse aos maridos, eles tinham seus poderes
limitados: eram proibidos de vender, alienar ou
penhorar quaisquer bens de raiz sem o consentimento
das esposas. Por mais variados que fossem em sua
composição, os dotes traziam dois elementos básicos
em maior quantidade: terras e indígenas. Esses eram
os dois meios de produção fundamentais para que a
nova família pudesse garantir a sobrevivência, numa
época em que a grande maioria da população dependia
obrigatoriamente dos pesados trabalhos ligados à
terra. 

Uma vez casadas, essas mulheres adquiriam sua


importância social básica, que era gerar filhos do
marido, e também gerenciar ao lado dele as
propriedades do casal, que deveria se firmar dali em
diante como uma unidade econômica. Para o marido,
havia mais outras vantagens: como homem casado ele
ganhava mais respeito e credibilidade social. Assim,
tinha chances de receber terras e participar do poder
público, caso reunisse outros pré-requisitos exigidos
por lei e costume. Muitos inventários desse período
relacionam uma rede de mulheres credoras e
devedoras, seja com homens, seja entre si.
Curiosamente, quando a documentação da câmara
municipal arrolava os comerciantes para fins tributários,
só citava homens. Isso significa, no entanto, que elas
comerciavam também, mas quem encabeçava as redes
comerciais perante as autoridades municipais eram os
maridos e os filhos.
Esse comércio derivava da produção excedente em
suas terras.

Muitas famílias criavam, graças ao trabalho escravo,


porcos, bois, vacas, cavalos, frangos, geralmente para
o abate. Também tinham plantações e pomares. Trigo,
cana, milho, mandioca, feijão, algodão, vindimas,
marmeleiros, macieiras, tudo isso era comum ao
universo dos paulistas. Todo mês, praticamente,
desciam a serra do Mar até a região santista caravanas
de comerciantes, com seus carregadores indígenas
cheios de gêneros às costas. Foram descritos desde
gêneros alimentícios in natura até aguardente, vinho,
lingüiças, toucinhos, marmeladas, farinhas variadas,
tudo beneficiado no planalto, nas propriedades
paulistas.

Gerenciar o lar, portanto, extrapolava administrar


simplesmente a casa, e passava por controlar todo um
cotidiano produtivo nas propriedades, assim como toda
a escravaria. Eram tarefas que as esposas realizavam
ao lado dos maridos, ou mesmo sozinhas quando eles
se ausentavam por longos períodos, nas bandeiras.
Cuidavam de tudo, mesmo não sabendo ler e escrever;
de qualquer forma, os maridos geralmente também
eram analfabetos. Era desejável, portanto, que elas
soubessem administrar e tomar decisões importantes,
pois ficavam investidas de poder para representar seus
maridos em pendengas judiciais, casar e dotar filhos.
Isso lhes era assegurado pelas Ordenações e, acima
de tudo, era um recurso necessário, por causa das
freqüentes ausências dos pais e filhos mais velhos.

Nessas ocasiões, elas firmavam matrimônios que


implicavam criar ou aprofundar alianças com outras
famílias de destaque na vila, o que poderia lhes trazer
muitas vantagens políticas e facilitar a sobrevivência.
Também podiam ampliar relações comerciais,
diversificar a produção doméstica, quitar dívidas ou
fazer empréstimos, adquirir mais escravos, enfim, agir
como seus maridos agiriam se estivessem em casa.
Essa realidade parece ter inspirado um governador-
geral da colônia em viagem por São Paulo, Antônio
Paes de Sande, a assim descrever as paulistas em
1698: "As mulheres são formosas e varonis, e é
costume ali deixarem seus maridos a sua disposição o
governo das casas e das fazendas, para o que são
industriosas".

Viúvas empreendedoras
Quando enviuvavam, essas atribuições passavam total
e irrestritamente para elas, se não resolvessem se
casar novamente dali a um tempo. Podiam até obter
terras. Nesse momento o matriarcado -ficava muito
bem estabelecido em família, e muitas viúvas entravam
no rendoso negócio das bandeiras, como associadas
armadoras.

Equipavam os filhos, assim como providenciavam seu


treinamento para a viagem aos sertões. Quando eles
retornavam, metade ou mais dos índios cativos ficavam
para elas, que podiam tanto vendê-los como colocá-los
para trabalhar em suas propriedades. Por ocasião de
seu falecimento, os ganhos acumulados pelas
empresárias bandeirantes eram divididos entre seus
herdeiros como o resto do espólio familiar.

Houve uma viúva que se tornou célebre não


exatamente pela laboriosidade e senso administrativo,
mas por seu ódio: Inês Monteiro de Alvarenga,
conhecida como "a matrona" dos Pires. Foi uma das
protagonistas de uma longa série de escaramuças com
a família Camargo, episódio que colocou a vila de São
Paulo e arredores literalmente em pé de guerra, nos
idos de 1640.

A promoção da paz foi difícil tarefa, que envolveu até o


governador-geral, o Conde da Autouguia, que em
correspondência se referia à matrona como "a mais rija
parte que houve nos casos que resultaram todos os
descertos e tal contenda". Este é um caso
paradigmático, pois traduz o que se esperava, em
matéria de comportamento, das esposas e mães, no
período colonial: fidelidade e apego. Muito longe,
portanto, da imagem tradicional de recato, placidez e
submissão.

O célebre historiador de São Paulo e das bandeiras,


Afonso de Taunay, certa vez afirmou que a matrona
dos Pires seria uma "exceção à timidez feminil
daqueles tempos". Em poucas palavras, ele sintetizou o
que algumas gerações de historiadores pensavam
sobre as mulheres paulistas, e que expusemos nos
princípios deste artigo. Mas, nas ocasiões em que elas
ficavam investidas de poder, assumiam características
de autoridade e sede de vingança, atributos
essencialmente masculinos.

Sem participar de cargos públicos - o que lhes era


vetado pela legislação -, podiam influir neles de
maneira indireta, casando seus filhos
convenientemente para que fossem elegíveis, ou
mesmo fazendo pressão política. Viviam inseridas em
estruturas tipicamente violentas, entre cativos
submetidos à força, e até guerras familiares. Algumas
vezes, usaram do poder conferido por sua ascendência
familiar e seus bens para agir de uma forma vetada a
outras mulheres mais pobres ou mesmo cativas. Isso
não parece caracterizar a propalada "timidez feminina".

Embora careça de mais estudos, o papel das mulheres


no período das bandeiras paulistas era multifacetado e
surpreendente. A chave para compreendê-lo melhor
reside no fato de que seus pesquisadores trabalham
com três níveis. O primeiro é o da vida que as mulheres
levaram. O segundo é o das expectativas a que foram
submetidas - de serem dóceis, submissas, honradas,
fiéis, laboriosas, boas esposas e mães, engenhosas
para administrar suas propriedades na ausência do
marido - e que nem sempre atenderam. O terceiro, por
fim, é o da idealização a que vários historiadores
submeteram essas personagens históricas. Resgatar a
valentia e a determinação que existiram ao lado da
docilidade e obe-diência, concede a elas a garantia de
sua presença na história paulista.

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