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Ser e tempo

A desconstrução da metafísica

Editorial
"Heidegger nunca enunciou, mas acredito que ele deveria aceitar: lembrar o ser (para
tentar sair da metafísica) significa somente lembrá-lo como já-sempre ter ido
embora; como Deus que se mostra a Moisés somente de costas. Portanto, pensar o
ser não é uma experiência de presença cheia, de verdade luminosa; se levarmos em
consideração que, para Heidegger, a metafísica (esquecimento do ser) é a história do
ser, então o ser tem uma história que é sempre de diminuição, de esquecimento, de
"fraqueza"..." A afirmação é de Gianni Vattimo, filósofo italiano, que mais uma vez
nos brinda com uma instigante entrevista, sobre Martin Heidegger, nos seus trinta
anos de falecimento e quase oitenta anos da sua obra fundamental Sein und Zeit.
"Acredito que Heidegger começou o seu "erro" nazista quando deixou de meditar
sobre São Paulo e começou a mitificar Hölderlin", é outra contundente afirmação do
filósofo do pensamento fraco.

Assim damos continuidade ao tema de capa da edição número 185, "o século de
Heidegger", publicando as entrevistas de João Augusto Anchieta Amazonas Mac
Dowell, professor de Filosofia da FAJE em Belo Horizonte, dos filósofos Emmanuel
Carneiro Leão, ex-aluno de Martin Heidegger, Rafael Haddock-Lobo e Écio Elvis

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Pisetta. Também publicamos uma entrevista com William J. Richardson, do Boston
College. Ele foi o destinatário de uma célebre carta de Martin Heidegger.

A economista pernambucana Tânia Bacelar analisa a política econômica brasileira, e


o escritor mexicano Carlos Montemayor reflete sobre o significado da eleição
presidencial mexicana.

O Homem Urso, de Werner Herzog, é o filme da semana que destacamos nesta


edição.

A todas e todos uma excelente leitura e uma ótima semana!

Leia nesta edição


Editorial pg. 2

Tema de capa
Entrevistas
Gianni Vattimo: O nazismo e o « erro » filosófico de Heidegger pg. 4
Emmanuel Carneiro Leão: Heidegger e a influência do cristianismo pg. 8
João Augusto Mac Dowell: A busca pelo sentido do ser pg. 12
William Richardson: Heidegger e a subjetividade pg . 23
Haddock-Lobo: A desconstrução em Heidegger, Lévinas e Derrida pg. 33
Rafael Haddock-
Écio Elvis Pisetta: « A filosofia heideggeriana é destrutiva e construtiva » pg. 38

Brasil em Foco
Tânia Bacelar: Só o desmonte da máquina de desigualdade
pode mudar o Brasil pg. 42

Destaques da semana

Entrevista da Semana:
Armando Lopes de Oliveira:
Oliveira: Vaz e a filosofia da natureza pg. 47

Análise de Conjuntura:
Carlos Montemayor:
Montemayor: Os dois caminhos do México pg. 51

Memória:
Reyes Mate:
Mate: José María Mardones, filósofo da religião pg. 55

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Filme da Semana:
O homem urso pg. 56

Deu nos jornais:


pg. 60

Frases da Semana:
pg. 61

Destaques On-Line:
pg. 63

IHU em revista
Eventos
pg. 66

Sala de Leitura
pg. 67

IHU Repórter
pg. 68

Errata
pg. 71

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O nazismo e o “erro” filosófico de
Heidegger
Entrevista com Gianni Vattimo

“Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim


entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive,
etc. Também por isso Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas
devemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch estavam com Stalin,
Giovanni Gentile com Mussolini...”. As afirmações são do filósofo italiano
On--Line, explicando as
Gianni Vattimo, em entrevista por e-mail à IHU On
relações entre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo.

On--Line. A primeira
Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vattimo concede à IHU On
foi publicada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003 sob o título O cristianismo
é a religião do pós-moderno , a segunda na 128ª edição, de 20 de dezembro de 2004
sob o título “Deus é projeto, e nós o encontramos quando temos a força para
projetar...”, e a terceira saiu na edição 161, de 24 de outubro de 2005, quando
On--Line, em Porto Alegre, no dia 18 de outubro
recebeu pessoalmente a IHU On
daquele ano, às vésperas de proferir sua conferência no evento Metamorfoses da
cultura contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou sobre “O pós-moderno é uma
reivindicação de multiplicidade de visão de mundo”. Dele também publicamos uma
entrevista na 121ª edição, de 1º de novembro de 2004, sob o título Garzantina di
filosofia, um artigo na edição 53, de 31 de março de 2003 sob o título A guerra pelos
direitos humanos? e outro no número 80, de 20 de outubro de 2003, sob o título
Democracia, killer da metafísica. A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º de
agosto de 2005, abordou a obra The future of religion, escrita por Vattimo, Richard
Rorty e Santiago Zabala.
Vattimo nasceu em Turim, em cuja universidade se formou em Filosofia e na qual
ministra aulas até hoje. Cursou uma especialização na Universidade de Heidelberg
(Alemanha) e teve algumas passagens por universidades americanas como professor
visitante. Foi deputado no Parlamento Europeu, integrando várias comissões, como
as de cultura, educação e justiça, entre outras. Estudioso do pensamento de
Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do
"pensamento fraco". De sua produção intelectual, destacamos, Credere di Credere.
cristianità.. Per um
Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o português), Dopo la cristianità

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cristianesimo non religioso. Milano:Garzanti, 2002 (traduzido para o português), O
pós--moderna. São Paulo:
fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós
Martins Fontes, 1996; Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.

IHU On-Line – Como Heidegger sempre tendo ido embora; como Deus
ajuda a entender o enfraquecimento que se mostra a Moisés somente de
das estruturas do ser na pós- costas. Portanto, pensar o ser não é uma
modernidade? experiência de presença cheia, de
Gianni Vattimo – A concepção da verdade luminosa; se levarmos em
diferença ontológica – que Heidegger consideração que, para Heidegger a
começa a desenvolver em Ser e Tempo1 metafísica (esquecimento do ser) é a
– significa que o ser não deve se história do ser, então o ser tem uma
confundir com o ente, com alguma história que é sempre de diminuição,
“coisa” presente. E, como se sabe, de esquecimento, de “fraqueza”...
Heidegger pensa que identificar o ser
com o ente seja um “esquecimento” do IHU On-Line – Qual é o lugar da
ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O verdade e da unidade do sujeito no
que, porém, significaria fazê-lo pensamento de Heidegger?
“presente” diante dos olhos da nossa Gianni Vattimo – Verdade, para
mente, portanto, reduzi-lo novamente a Heidegger, é também aquela secundária
um “ente”. Além disso: Heidegger, nos das proposições “verdadeiras”, que
seus escritos sobre Nietzsche2, escreve correspondem a critérios dados com a
que a metafísica é a história do ser. Eu abertura do ser no qual somos sempre
tiro disso tudo a seguinte conclusão, arremessados. Mas a verdade “primeira”
que Heidegger nunca enunciou, mas é esta abertura (algo semelhante aos
acredito que ele deveria aceitar: lembrar paradigmas dos quais fala Kuhn3). A
o ser (para tentar sair da metafísica) relação com esta verdade primária (por
significa somente lembrá-lo como já- exemplo, na experiência da obra de
arte, que nos “dribla” porque é o
anúncio de um paradigma “outro”, não
1
Ser e tempo: principal obra filosófica de
Heidegger, foi publicada em 1927. Em português,
é uma experiência de unidade do
confira Ser e tempo. 6ª. ed. Petrópolis: Vozes, sujeito, mas, ao contrário, exatamente
1997. (Nota da IHU On On--Line) uma experiência de “desorientação”).
2
Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão,
conhecido por seus polêmicos conceitos “além-
do-homem”, transvaloração dos valores, niilismo,
IHU On-Line – Como explicaria a
vontade de poder e eterno retorno. Entre suas aproximação de Heidegger ao
obras figuram como as mais importantes Assim nazismo? É uma derivação de seu
Zaratustra. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Falou Zaratustra pensamento filosófico?
Brasileira, 1998; O Anticristo
Anticristo. Lisboa: Guimarães, Gianni Vattimo – De certa forma sim,
1916; A Genealogia da Moral. 5. ed. São Paulo:
Centauro, 2004. Escreveu até 1888, quando foi foi um “erro” filosófico. Heidegger
acometido por um colapso nervoso que nunca o
abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche 3
Thomas Kuhn (1922-1996): físico norte-
foi dedicado o tema de capa da edição número americano, cujo trabalho incidiu sobre história e
127 da IHU OnOn--Line, de 13 de dezembro de 2004. filosofia da ciência, tornando-se um marco
Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a importante no estudo do processo que leva ao
entrevista exclusiva realizada pela IHU On- On-Line desenvolvimento científico. Sua obra mais
edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta conhecida é A estrutura das revoluções científicas.
cubano Emilio Brito, docente na Universidade de 7.ª ed. Säo Paulo: Perspectiva, 2003. (Nota da IHU
Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e Paulo. On--Line)
On
On--Line
(Nota da IHU On Line)

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acreditou que fosse possível reconstruir Gianni Vattimo – Acredito que o
uma situação histórica análoga àquela Heidegger dos anos 1930, aquele depois
da Grécia pré-clássica, na qual, errando, da Kehre, se deu conta de que a
porque esquecia a diferença ontológica, autenticidade da qual falava Ser e
pensou que o ser pudesse “dar-se” de Tempo, não é algo que se possa
modo não-metafísico. Mas era um erro, procurar “sozinho”. Autenticidade
antes de tudo filosófico. significa co-responder à chamada do
ser; mas o ser assim entendido é
IHU On-Line – O próprio nazismo também a própria comunidade, a
deve ser entendido como uma sociedade na qual se vive, etc. Também,
anormalidade na História ou como por isso, Heidegger se empenhou com
uma radicalização da racionalidade Hitler, errando. Mas devemos pensar
moderna? que naqueles anos Lukacs5 e Bloch6
Gianni Vattimo – Heidegger o estavam com Stalin7, Giovanni Gentile8,
entendeu como uma radicalização da com Mussolini9 etc.
racionalidade moderna. Visto que ele
pensava que esta racionalidade fosse o On--Line – Por que Heidegger
IHU On
auge do esquecimento do ser, não a afirmou que era impossível
podia aceitar. Mas, de outro modo, o ultrapassar o niilismo? Como
extremo da metafísica devia também ser entender a esperança num mundo
o seu fim. “Onde está o perigo, cresce niilista?
também o que salva” (Hölderlin4). Gianni Vattimo – Como foi dito acima,
Portanto, posição ambígua; um pouco o ser nunca pode dar-se como ente. A
como o capitalismo para Marx: é o pior esperança do niilismo é de que,
do pior, mas é também a condição que reduzindo a imponência, a
prepara a revolução do proletariado... peremptoriedade, o peso do ente, do
real (paixões, instinto de sobrevivência,
IHU On-Line – O paradigma da
técnica pode auxiliar a compreender 5
Lukács György (1885-1971): mais conhecido
as bases desse e de qualquer outro
como Georg Lukács,
Lukács filósofo húngaro. Em sua
totalitarismo? trajetória filosófica procurou refazer o percurso da
Gianni Vattimo – A resposta está filosofia clássica alemã, inicialmente como crítico
implícita na precedente. Certo, como influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente,
diz em Identität und Differenz, a aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On On--Line)
6
Ernst Bloch (1885-1977):: filósofo alemão marxista
possibilidade de sair da metafísica em heterodoxo, que construiu vasta obra que ressalta
direção a um novo evento do ser está o papel da utopia na história do homem. Seu livro
também ligada ao fato de que no Princípio
O Princípi o Esperança. Rio de Janeiro:
Gestell, no mundo técnico-totalitário, Contraponto, 2005, foi destacado na editoria Livro
da Semana da 151ª edição da revista IHU On- On-Line,
homem e mundo não têm mais os de 15 de agosto de 2005, com a realização de
caracteres de sujeito e objeto. Mas quais duas entrevistas sobre a obra: uma com o tradutor
caracteres terão? do livro, Nélio Schneider, e outra com o professor
da UFRGS, Edson Sousa. (Nota da IHU On On--Line)
7
Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético,
IHU On-Line – Se o ente está responsável pelo stalinismo. (Nota da IHU On On--
lançado no mundo, como entender Line)
sua responsabilidade individual e 8
Giovanni Gentile (1875-1944): filósofo italiano.
política? (Nota da IHU On On--Line)
9
Benito Amilcare Andrea
Andrea Mussolini (1883-1945):
jornalista e político italino, governou a Itália com
poderes ditatoriais entre 1922 e 1943,
4
Johann Christian Friedrich Höld
Hölderlin
erlin (1770-1843): autodenominando-se Il Duce, que significa em
On--Line)
poeta lírico alemão. (Nota da IHU On italiano “o condutor”. (Nota da IHU OnOn--Line)

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violência recíproca) o ser se dê como age exatamente como eles),
das Gering, o mínimo, o pequeno, do enfraqueceria muito as próprias
Asufsätze.
qual falava Vorträge und Asufsätze posições...

IHU OnOn--Line – O ser-para-a-morte On--Line – Que relações podem


IHU On
(Sein-zum-Tode) não é um conceito ser estabelecidas com o
muito pessimista para classificar o pensamento cristão e o
ser humano? heideggeriano? Há aí uma influência
Gianni Vattimo – De maneira mútua?
nenhuma. Significa somente aceitar o Gianni Vattimo – Certo, se pensarmos
próprio fim e historicidade, sentindo-se em um texto como a Introdução à
empenhados para responder a uma Fenomenologia da Religião, de 1920,
chamada que vem de outros mortais, e nos daremos conta de que alguns, ou
não pensar nunca que atingimos já a talvez todos os conceitos fundamentais
verdade “objetiva”, o ponto de vista de que Heidegger desenvolveu após, em
Deus. E, portanto, nunca bombardear o Ser e Tempo (por exemplo, a
Iraque em nome do verdadeiro direito autenticidade, a metafísica etc.) estão já
humano. todos na sua leitura das cartas de São
Paulo. Acredito que Heidegger começou
On--Line – Se pudéssemos trazê-
IHU On o seu “erro” nazista - que durou
lo ao presente, como Heidegger somente alguns anos - quando deixou
dialogaria com o “pensamento de meditar sobre São Paulo e começou
fraco” de Gianni Vattimo? a mitificar Hölderlin. Mas o seu
Gianni Vattimo – Teria que adotá-lo pensamento permanece profundamente
como seu filho, embora um pouco cristão; e também, a propósito de
extravagante. Fora de brincadeira: se influência “mútua”, os cristãos de hoje
Heidegger visse o que acontece hoje por deveriam elegê-looa verdadeiro mestre,
causa do fundamentalismo, da deixando de lado os tantos resíduos de
pretensão de ser “correto” (Bush metafísica escolar que ainda dominam
acredita de verdade, como os nazistas, o ensino nos seminários.
no Gott mit uns, Deus está conosco; e

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Heidegger e a influência do
cristianismo
Entrevista com Emmanuel Carneiro Leão

“Sem o cristianismo, na sua origem e proveniência cristã, não se


compreende o pensamento de Heidegger”, pondera o Prof. Dr.
On--Line,
Emmanuel Carneiro Leão, em entrevista por telefone à IHU On
refletindo a influência do cristianismo em Heidegger e vice-versa.
Carneiro Leão menciona também a presença das idéias
heideggerianas em Bultmann, Bruckner, Lackner e Rahner e conta
algumas de suas lembranças como aluno de um dos filósofos mais
discutidos e estudados da atualidade.
Doutor pela Universidade de Roma, Itália, e licenciado em Filosofia pela
Universidade de Friburgo, Alemanha, onde foi aluno de Heidegger, Carneiro Leão
regressou ao Brasil em meados da década de 1960. Desde então, dedica-se ao
magistério na condição de professor titular da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), na qual leciona até hoje. É um dos principais divulgadores do
pensamento heideggeriano no Brasil, tendo traduzido para o português alguns livros
do filósofo alemão. É autor de, entre outros, do livro Aprendendo a pensar.
Petrópolis: Vozes, 1991. Confira o que o professor pensa sobre o assunto.

IHU On-Line – Quais são suas era que todo o homem tem uma
principais lembranças como aluno contribuição a dar à vida do
de Heidegger? pensamento, de maneiras diferentes,
Emmanuel Carneiro Leão – Minha com graus diferentes, com qualidade
primeira lembrança é que a atividade diferente, deixando transparecer que
de ensino e acadêmica de Heidegger essa contribuição é fundamental para o
para com seus alunos, com os desenvolvimento da capacidade de
estudantes, aqueles que escutavam suas pensar de todos.
palestras, era de um cuidado todo
especial. Era um professor com grande IHU On-Line – Qual é a grande
atenção para as dificuldades e os contribuição da filosofia de
problemas dos seus alunos. A segunda Heidegger?
grande lembrança e impressão que Emmanuel Carneiro Leão – A
tenho é que a importância do ensino de principal contribuição da obra de
Heidegger era promover a capacidade Heidegger e o grande mérito é
de pensamento dos alunos. Ele não promover esse aprofundamento do
queria ensinar respostas, problemas, pensamento. Pensar não é ficar no nível
perguntas, doutrinas, mas desenvolvia a das relações já dadas, encontradas, mas
capacidade própria de pensar de cada aprofundar, a partir do que é dado, até
aluno, porque a posição que ele passava

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a proveniência, a origem, a fonte de Platão11 e Aristóteles12, Heidegger
onde elas são oriundas. procura suas fontes, de onde provêm
esses pensadores. Por isso, a principal
IHU On-Line – Quais são as influência para o pensamento pré-
principais diferenças entre a socrático. Para se compreender o
fenomenologia de Heidegger e a de pensamento clássico é indispensável ter
Husserl? uma experiência do que constitui a
Emmanuel Carneiro Leão – Podemos contribuição dos pré-socráticos. Com
dizer que a fenomenologia de Husserl10 essa recuperação dos pré-socráticos,
se constrói por meio da que é uma tradição alemã desde
intencionalidade da consciência. Isso Nietzsche, sobretudo, mas também de
significa que há uma diferença entre Hegel13, embora este esteja mais ao lado
fenômeno e fenomenologia e o que faz
a intermediação entre essa diferença é a 11
Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador
intencionalidade dessa consciência. de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a
Teoria das Idéias e a Dialética. Discípulo de
Sem consciência, não há Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre
fenomenologia, para Husserl. Para suas obras, destacam-se A República e o Fédon.
Heidegger, já não é dessa forma. Ele On--Line)
(Nota da IHU On
acredita que a fenomenologia é o 12
Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.):
próprio fenômeno. É por causa da filósofo grego, um dos maiores pensadores de
fenomenologia do fenômeno que há todos os tempos. Suas reflexões filosóficas — por
consciência e intencionalidade. O um lado originais e por outro reformuladoras da
tradição grega — acabaram por configurar um
Dasein, a presença, o modo de ser do modo de pensar que se estenderia por séculos.
homem, não é intermediário entre o Prestou inigualáveis contribuições para o
fenômeno e a fenomenologia, mas é o pensamento humano, destacando-se: ética,
lugar onde o fenômeno mostra que ele política, física, metafísica, lógica, psicologia,
poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural
já é a fenomenologia.
e outras áreas de conhecimento. É considerado,
por muitos, o filósofo que mais influenciou o
IHU On-Line – Como Heidegger pensamento ocidental. (Nota da IHU On On--Line)
dialoga com a tradição filosófica? 13
Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Foi
Quais são suas principais um dos pensadores mais influentes dos tempos
influências e quais são os recentes. Como Aristóteles e Santo Tomás de
rompimentos que propõe? Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema
filosófico no qual estivessem integradas todas as
Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger
contribuições de seus principais predecessores.
tem uma formação religiosa, cristã, Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito,
escolástica e, pela escolástica, ele tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa
encontra a filosofia grega. Como a continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel
filosofia grega, mediada pela escolástica considerava uma variedade tão grande de
concepções quanto os diversos estados da mente,
é a filosofia clássica, o que significa e as encarava como estágios no desenvolvimento
do espírito em direção a uma maior maturidade.
Sua segunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer
10
Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão,
uma análise sistemática dos conceitos. Sua
principal representante do movimento
Enciclopédia das ciências filosóficas contém todo
fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então
o seu sistema de uma forma condensada. O
ignorados, influenciaram profundamente Husserl,
direito.
último livro de Hegel foi A filosofia do direito
que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl
Depois de sua morte, seus alunos publicaram suas
apresenta como idéia fundamental de seu
conferências sobre filosofia da história, da religião
antipsicologismo a “intencionalidade da
e da arte, e sobre história da filosofia, usando
consciência”, desenvolvendo conceitos como o da
principalmente suas anotações. (Nota da IHU On On--
intuição eidética e epoché. Pragmático, Husserl
Line)
teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e
On--Line)
outros. (Nota da IHU On

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de Aristóteles, o que leva a um parâmetros e os padrões e princípios de
movimento não de retorno e como ele tem que viver. Ele quer, ele
recuperação das fontes da cultura, da mesmo, assumir a construção de sua
história, do pensamento, da ciência, da cultura, sua sociedade, sua vida, seu
arte. Isso é a grande influência que pensamento, seu conhecimento. O
sofre o pensamento de Heidegger, um homem moderno é aquele que quer
pensamento cuja originalidade é a sua transformar a realidade e não apenas
origem. aceitá-la como ela é. A perda dessa
perspectiva de aceitação leva consigo
IHU On-Line – Em quais aspectos também uma experiência de criação, o
Heidegger influencia o que significa que, para sermos
desconstrutivismo e por quê? criadores, não temos que nos deixar
Emmanuel Carneiro Leão – Sua sufocar pela forma de conhecimento
influência se dá porque, para se chegar transformadora da realidade. Por isso,
a essa fonte de originariedade do chegamos cedo demais para essa
pensamento pré-socrático, há uma experiência de doação criadora do real.
necessidade de desvincular-se,
desvencilhar-se das respostas já dadas, IHU On-Line – Há em Heidegger
dos padrões de pensamento e influências do cristianismo? E no
conhecimento já estabelecidos até aqui. cristianismo vieses heideggerianos?
Então é preciso se desconstruir o que se Emmanuel Carneiro Leão – Sim, sem
constitui a tradição do pensamento, do dúvida há influências recíprocas.
conhecimento e da arte para poder Heidegger queria fazer curso de
abrir caminho e libertar a experiência teologia cristã. Toda a atividade de
para o originário. leitura e interpretação da realidade que
Heidegger propõe é resultado do que
IHU On-Line – De que maneira ele aprendeu da interpretação e na
podemos compreender a afirmação leitura da chamada hermenêutica
do filósofo de que "chegamos muito bíblica. Sem o cristianismo, na sua
tarde para os deuses e muito cedo origem e proveniência cristã, não se
para o ser"? compreende o pensamento de
Emmanuel Carneiro Leão – A nossa Heidegger. No cristianismo católico e
tradição entende a realidade como no evangélico, além de várias outras
sendo o resultado não de uma atividade orientações, a influência de Heidegger
de sentido ou de criação, de um foi fundamental nesse século. As
princípio absoluto. Com a modernidade chamadas correntes evangélicas da
não temos mais essa consciência e essa teologia dialética, teologia da morte de
necessidade, por isso, somos modernos Deus, exegética, todas elas tem grande
à medida que perdemos essa presença e influência heideggerianas.
necessidade. Isso significa que Em Bultmann14, isso também pode ser
chegamos tarde para os deuses, no
entanto, com a modernidade, para
Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo
conseguir-se isso houve uma mudança
14

luterano alemão nascido em Wiefelstede,


nos padrões de relacionamento do Oldenburg, que propôs uma interpretação do
homem europeu ocidental, que é a Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos
respeito de quem estamos falando. Essa de uma filosofia existencialista. Iniciou como
mudança aconteceu porque o homem professor sobre sua especialidade, o Novo
Testamento (1916), em Breslau, Giessen e
de agora não quer mais receber, como o Marburg. Nessa cidade, tomou contato com
homem religioso de antes, os Martin Heidegger e a filosofia existencialista, que
influenciou seu pensamento posterior. Morreu em

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notado, assim como em Bruckner, as relações entre Heidegger e o
Lackner e Rahner15. Esses pensadores advento do nazismo.?
querem ler tanto a Bíblia como a Emmanuel Carneiro Leão -
tradição cristã sob a perspectiva do Heidegger foi reitor da Universidade
pensamento de interpretação de de Friburgo no período nazista. Sem
Heidegger. dúvida, ele achava, inicialmente, que o
movimento do Partido Nacional
IHU On-Line – Como o senhor avalia Socialista trazia uma resposta para a
situação de crise em que se encontrava
a Alemanha depois da Primeira Guerra
Marburg, então Alemanha Ocidental. Seu primeiro Mundial. No entanto, a seguir, ele se
livro foi Jesus (1926), e sua mais famosa obra foi convenceu de que estava enganado, de
Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição que o nazismo não trazia nenhuma
114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na
editoria Teologia Pública um debate sobre a obra
proposta de libertação, de promoção
Teologia do Novo Testamento, com a participação para a Alemanha, pelo contrário, trouxe
de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU a destruição. Entretanto, isso só foi
On--Line)
On perceptível com o tempo. Inicialmente,
15
Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo como todos os alemães que estavam em
católico do século XX, ingressou na Companhia de crise depois da Primeira Guerra
Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e em Mundial, Heidegger viu nesse
Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e
professor na Universidade de Münster. A sua obra movimento político de restauração uma
teológica compõe-se de mais de 4 mil títulos. Suas saída, porém a saída que o nazismo
obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no trouxe foi aprofundar a desgraça.
mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da
Palavra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos
de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e
1984, Grundkurs des Glaubens (Curso
Fundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos
seu centenário de nascimento. A Unisinos
dedicou à sua memória o Simpósio Internacional
O Lugar da Teologia na Universidade do século
XXI,
XXI realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A
IHU OnOn--Line n.º 90, de 1º de março de 2004,
publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre
Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004,
publicou uma entrevista de J. Moltmann,
analisando o pensamento de Rahner. No dia 28
de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro,
Livro Érico
Hammes, teólogo e professor da PUCRS,
apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma
das principais obras de Karl Rahner. A entrevista
com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na
On--Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda
IHU On
sobre Rahner, publicamos uma entrevista com H.
Vorgrimler no IHU On On--Line n.º 97, de 19 de abril
de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo do
Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição
número 102, da IHU On On--Line, de 24 de maio de
2004, dedicou a matéria de capa à memória do
centenário de nascimento de Karl Rahner. Os
Cadernos Teologia Pública publicaram o artigo
Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner, de
autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da
IHU OOnn-Line)

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JULHO DE 2006
A busca pelo sentido do ser
Entrevista com João Augusto Mac Dowell

Uma obra original e profunda, comparada à Fenomenologia do Espírito, de Hegel.


Esses são alguns dos méritos de Ser e tempo, considerada a obra-prima de
Heidegger. “Transformando o método fenomenológico, herdado de seu mestre
Husserl, em uma hermenêutica da própria realidade, ele não só questiona as
categorias com que vinham sendo interpretados o ser humano e o ente no seu
conjunto desde o início do pensamento ocidental, mas também abre novos
horizontes imensamente fecundos para a compreensão de sua historicidade
constitutiva”. A avaliação é do filósofo João Augusto Mac Dowell, SJ, reitor da
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), antigo Centro de Estudos Superiores
da Companhia de Jesus (CES), em Belo Horizonte. Por e-mail, ele concedeu
On--Line, contribuindo para o debate sobre Heidegger no ano em
entrevista à IHU On
que se completam 30 anos de sua morte.
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira e em
Teologia pela Philosophische Theologische Hochschule Sankt Georgen, na
Alemanha, Mac Dowell é mestre em Teologia pela mesma instituição. É doutor em
Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na Itália, com a tese A
gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger. O trabalho foi publicado pela
editora Herder, de São Paulo, em 1970, e chegou à segunda edição em 1993 pela
Loyola. Escreveu, ainda, Religião também se aprende. 3. ed., São Paulo: Santuário,
2003 e organizou Saber filosófico, história e transcendência. Homenagem ao Padre
Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, em seu 80ª aniversário. São Paulo: Loyola, 2002.

IHU On-Line – Qual é a gênese da dominantes, especialmente na


ontologia fundamental de Alemanha, no início do século XIX, o
Heidegger? cientificismo positivista e o
João Augusto Mac Dowell – Com este neokantismo, limitado a uma
título “Ontologia Fundamental”, transcendência meramente lógica.
Heidegger designa o projeto de Tendo recebido sua primeira formação,
refundamentação da Metafísica também filosófica, num ambiente
desenvolvido parcialmente e de católico, ele pretendia com este projeto
maneira, afinal de contas aporética, em fazer valer a visão do mundo própria da
sua obra mestra Ser e Tempo. Este cultura cristã, embora sobre novas
projeto se origina da preocupação que bases, compatíveis com os princípios da
anima o jovem Heidegger de restaurar a filosofia moderna, em particular,
Metafísica como pensamento de uma tomando como ponto de partida à
transcendência real, transcendência imanência do sujeito humano. Aliás, o
rejeitada pelas correntes filosóficas pensar de Heidegger, ao longo de todo

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JULHO DE 2006
o seu percurso, foi um pensar pensamento ocidental, mas também
comprometido, como tentativa de abre novos horizontes imensamente
compreender o seu próprio tempo e de fecundos para a compreensão de sua
apontar caminhos para superar as historicidade constitutiva.
limitações do mundo moderno. Somente pouco a pouco, porém, os
Entretanto, à medida que foi intérpretes do filósofo compreenderam
desenvolvendo o seu projeto nos dez que as brilhantes descobertas da
anos que precederam a publicação de Analítica Existencial sobre o ser do
Ser e Tempo (1927), Heidegger homem constituíam apenas o primeiro
descobriu que a Ontologia passo na elaboração da questão do
Fundamental não poderia consistir na sentido de ser, verdadeiro alvo da
restauração da Metafísica, mesmo que investigação heideggeriana. Entretanto,
sobre novas bases, mas sim na esta empreitada, assumida em Ser e
elaboração da questão do sentido de Tempo, levou-o a convencer-se de que
ser, questão, segundo ele, esquecida por a verdade do ser não poderia ser
toda a tradição filosófica do Ocidente autenticamente desvendada a partir do
desde Platão. Com efeito, a Metafísica, movimento de transcendência do ser
como pensamento do ente como ente, humano em busca de seu sentido. Esta
determina o ser ou essência de cada constatação, que não tornou supérfluo o
ente e do ente em geral, quando caminho percorrido até então, já que só
pergunta: Que é (este) ente? Mas não poderia acontecer no seu término,
perguntou jamais: Que é ser?, ou provocou a inversão do rumo de seu
melhor: Por que há ser e não pensamento: de busca e conquista do
simplesmente nada? Em vez disso, para sentido de ser ele transformou-se em
entender a existência do ente, ela acolhida de sua verdade como dom.
remete a outro ente e, finalmente, ao Esta inversão ou conversão do pensar
ente supremo (Deus), como princípio e heideggeriano inaugurará uma nova
fundamento de toda a realidade. fase de sua trajetória espiritual.

IHU On-Line – Por que Ser e Tempo Filosofia como hermenêutica da


é considerada sua obra mestra? realidade
João Augusto Mac Dowell – Trata-se Paradoxalmente, mesmo que os
de um marco na história da filosofia resultados da investigação nele
semelhante, a meu ver, por exemplo, à desenvolvida tenham sido superados
Fenomenologia do Espírito de Hegel. pelo próprio Heidegger, Ser e Tempo,
Sua importância reside, em primeiro mesmo assim, pode ser considerada sua
lugar, na sua profunda originalidade. obra-prima. Por um lado, há autores –
Heidegger propõe uma nova não é o meu caso – que seguem
perspectiva global, que ele chama Heidegger até Ser e Tempo, mas
“existencial”, para a compreensão do ser recusam como divagação mítica ou
humano e aplica-a com admirável rigor poética, destituída de significado
ao longo de toda a obra. filosófico, o seu pensamento ulterior.
Transformando o método Por outro lado, as publicações
fenomenológico, herdado de seu mestre subseqüentes do filósofo ou são
Husserl, em uma hermenêutica da relativamente breves, conferências as
própria realidade, ele não só questiona mais das vezes, divulgadas isoladamente
as categorias com que vinham sendo ou reunidas em volumes de cunho mais
interpretados o ser humano e o ente no ou menos homogêneo, ou consistem na
seu conjunto desde o início do transcrição de cursos, que por sua

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JULHO DE 2006
própria natureza, possuem um caráter É verdade que a sua influência durante
mais difuso. Apesar de consignarem muito tempo esteve restrita
passos decisivos no caminho do pensar praticamente à chamada filosofia
de Heidegger, estas obras, cada uma de continental17, permanecendo
per si, não alcançam a radicalidade relativamente alheios às suas idéias, seja
inventiva e a imponência arquitetural os pensadores de tendência marxista,
de Ser e Tempo. Na verdade, é a seja as correntes filosóficas analíticas ou
próprio índole meditativa do novo pragmatistas do mundo anglo-saxônico.
pensar inaugurado com a mencionada Depois de inspirar, em parte em função
“conversão” ou “vira-volta”, que impede de mal-entendidos, a filosofia
o filósofo de estruturar suas idéias à existencialista do Sartre18 de O Ser e o
maneira relativamente analítica e Nada, bem como a tentativa de
orgânica daquela produção magistral. superação da Ontologia de E. Lévinas19,
Mas o que acima de tudo determina a sem falar em seus discípulos como H.
primazia de Ser e Tempo é que as Jonas20 e H. Arendt21, o pensamento
intuições fundamentais dessa obra, o
filosofar entendido como hermenêutica 17
Analíticos e Continentais. São Leopoldo, RS:
Unisinos,
Unisinos 2002
da realidade, a compreensão existencial 18
Jean-
Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo
do ser humano, a idéia de ser-no- existencialista francês. Escreveu obras teóricas,
mundo com todas a suas implicações, a romances, peças teatrais e contos. Seu primeiro
contraposição entre a temporalidade romance foi A Náusea (1938), e seu principal
existencial e a temporalidade trabalho filosófico é O Ser e o Nada (1943). Sartre
define o existencialismo, em seu ensaio O
cronológica e psicológica, a concepção existencialismo é um humanismo, como a
da verdade como manifestação e o des- doutrina na qual, para o homem, "a existência
ocultamento do ente e, enfim, o precede a essência". Na Crítica da razão dialética
primado da questão do ser, (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e
sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas
permanecem válidas ao longo de toda a nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet
obra heideggeriana e são elas que vão (1953). As palavras (1963) é a primeira parte de
conduzir o seu pensamento a novas sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o
paragens até então ainda não prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da
contempladas. On--Line)
IHU On
19
Emmanuel Lévinas:
Lévinas filósofo e comentador
IHU On-Line – Como avalia a talmúdico, nasceu em 1906, na Lituânia, e faleceu
em 1995, na França. Desde 1930 era naturalizado
importância e o impacto de francês. Foi aluno de Husserl e conheceu
Heidegger na Filosofia? Heidegger, cuja obra Ser e tempo, de 1927, o
João Augusto Mac Dowell – Há influenciou muito. “A ética precede a ontologia” é
certamente consenso entre os uma frase que caracteriza o pensamento de
Lévinas. Ele é autor do livro que o consagrou
entendidos em colocar Heidegger, ao
l’extériorité
Totalité et infini. Essai sur l’ext ériorité que foi
lado de Wittgenstein16 e talvez algum traduzido para o português com o titulo
outro mais, em lugar de absoluto Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2000. No
destaque na galeria dos filósofos do Brasil, a Editora Perspectiva, publicou Quatro
século XX. Com efeito, quer se leituras talmúdicas, em 2003, e a Editora Vozes,
De Deus que vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU
inspirando nele, quer rejeitando-o mais On-Line)
ou menos radicalmente, ninguém que 20
Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão,
pretenda pensar o mundo de hoje pode naturalizado norte-americano, um dos primeiros
deixar de confrontar-se com a sua obra. pensadores a refletir sobre as novas abordagens
éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra
principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung.
16
Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo Versuch einer EEthik thik für die technologische
On--Line).
analítico austríaco (Nota da IHU On On--Line)
Zivilisation, 1979. (Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
heideggeriano se traduziu na corrente extrapolou o campo da filosofia,
hermenêutica, representada por H G. afetando, por exemplo, a psicologia,
Gadamer22 e, até certo ponto, por P. com Binswanger24 e Medard Boss25, e a
Ricoeur23. É difícil citar o nome de um teologia cristã tanto evangélica como
pensador significativo dentro da católica, com figuras como R. Bultmann,
tradição da filosofia continental que do lado evangélico, e K. Rahner, do
não tenha sentido o impacto da reflexão católico.
heideggeriana. Aliás, a sua irradiação
IHU On-Line – E, em nossos dias,
21
Hannah Arendt (1906-1975), filósofa e socióloga
perdura a sua influência?
alemã, de origem judaica, nasceu em Hannover. João Augusto Mac Dowell –
Foi influenciada por Husserl, Heidegger e Karl Heidegger não fez propriamente escola.
Yaspers. Em conseqüência das perseguições Seu pensamento assistemático não se
nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde
presta a transmissões padronizadas. No
escreveu grande parte das suas obras. Lecionou
nas principais universidades deste país. Propôs, entanto, os desafios que ele lançou
em uma distinção inusitada, que os termos labor, continuam a repercutir em todas as
trabalho e ação fossem entendidos como faixas do espectro filosófico, numa
diferentes formas de atividades fundamentais do proposta integradora, as linhas
ser humano, sendo aquele vinculado às
necessidades biológicas, o intermediário ao
hermenêutica e analítico-pragmática,
artificialismo da vida moderna e esta às relações inspiradas nos dois maiores mestres do
entre os homens sem a mediação das coisas ou século XX, Heidegger e Wittgenstein, de
da matéria. Sua filosofia assenta numa crítica à um lado com K.-O. Apel26, e, do outro,
sociedade de massas e à sua tendência para
atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a
com R. Rorty27. Entretanto, é sobretudo
uma concepção política separada da esfera o pensamento pós-moderno de
econômica, tendo como modelo de inspiração a Lyotard28, J. Derrida29, G. Vattimo30 e
antiga cidade grega. Entre suas obras, citamos::
Eichmann em Jerusalém - Uma reportagem so sobre
bre
a banalidade do mal. Lisboa: Tenacitas. 2004; O 24
Ludwig Binswanger (1881-1966): filósofo suíço
Sistema Totalitário. Lisboa: Publicações Dom considerado ,o fundador da psicologia existencial.
Quixote.1978; O Conceito de Amor em Santo On--Line)
(Nota da IHU On
Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget; A Vida do 25
Medard Boss (1903-1990): psicanalista e
Espírito. v.I. Pensar. Lisboa: Instituto Piaget; Sobre psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de
a Revolução. Lisboa: Relógio D`Água;
psicoterapia chamada análise do Dasein,
Compreensão Política e o Futuro e Outros Ensaios. largamente influenciada na filosofia
Lisboa: Relógio D`Água (edição da Perspectiva,
fenomenológico-exitencial de seu amigo e
2002). Sobre Arendt, confira o número 168 da IHU
On--Line)
mentor, Martin Heidegger. (Nota da IHU On
On--Line, de 12 de dezembro de 2005, sob o título
On
Stein.
Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stei n. Três 26
Karl-
Karl-Otto Apel (1922):: filósofo alemão que
mulheres que marcaram o século XX. (Nota da IHU combinou as tradições filosóficas analítica e
On--Line)
On continental. É autor do livro Transformação da
Filosofia V.1. São Paulo: Loyola, 2000. (Nota da IHU
22
Hans-
Hans-Georg Gadamer:
Gadamer filósofo alemão, autor do
On--Line)
On
importante livro Verdade e método. Petrópolis:
Vozes, 1997, faleceu no dia 13 de março de 2002, 27
Richard Rorty: filósofo pragmatista
aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a estadunidense. Sua principal obra é Filosofia e o
On--Line número 9, de 18
matéria de capa da IHU On On--Line)
Espelho da Natureza. (Nota da IHU On
On--Line)
de março de 2002. (Nota da IHU On 28
Jean-
Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo
23
Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre francês, autor de uma filosofia do desejo e
ele, conferir um artigo intitulado Imaginar a paz significado representante do pós-modernismo.
ou sonhá-la?, publicado na IHU On On--Line 49ª Escreveu, entre outros, A fenomenologia. Lisboa:
edição, de 24 de fevereiro de 2003, e uma Edições 70, 1954, O inumano: considerações
entrevista na 50ª edição, de 10 de março de 2003. sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1990, Heidegger
A edição 142, de 23 de maio de 2005, publicou a e 'os judeus'. Lisboa: Instituto Piaget, 1999 e A
editoria Memória sobre Ricoeur, em função de pós--moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: J.
condição pós
seu falecimento. (Nota da IHU OnOn--Line) Olympio, 2004. (Nota da IHU OnOn--Line)

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JULHO DE 2006
tantos outros, que não pode ser Marx32. Estes autores, com base em
entendido senão à luz da reflexão pressupostos certamente diversos,
heideggeriana sobre o destino da rejeitam simplesmente a Metafísica,
Metafísica e sobre o mundo moderno. como um tipo de pensamento ilusório e
Sua busca do fundo sem fundo do incapaz de revelar a verdade do mundo.
pensar, por um lado, e sua crítica do Para Heidegger, porém, que classifica,
subjetivismo da razão instrumental aliás, o pensamento desses filósofos
moderna, por outro, deram azo ao como ainda enredado no dualismo
surgimento do pensamento débil e da metafísico, o fim da Metafísica constitui
razão fragmentada, que caracterizam as o acabamento de um processo histórico.
obras daqueles filósofos. Trata-
Trata-se de uma etapa do pensamento
ocidental, que possui sua grandeza
IHU On-Line – O fim da metafísica própria, mas que hoje já exauriu suas
anunciado por Heidegger ajuda a possibilidades. A Metafísica, tendo
aprofundar a crise religiosa das cumprido até o fim o seu destino, abre
sociedades pós-modernas? uma nova possibilidade de pensar e
João Augusto Mac Dowell – Para compreender o real no seu todo. Pensar
responder à sua pergunta será o fim da Metafísica significa entender a
necessário esclarecer o que significa essência do mundo moderno,
para Heidegger o fim da Metafísica. De caracterizado pelo império da
fato, esta expressão entrou no jargão tecnociência, na qual o modelo
filosófico e, como tal, foi banalizada metafísico do pensar chega às suas
numa série de acepções superficiais e últimas conseqüências.
confusas. O que Heidegger denomina
“superação da Metafísica” não se Metafísica, estrutura da filosofia
identifica com as expressões idênticas ocidental
ou equivalentes utilizadas por R. Metafísica, segundo Heidegger, não é
Carnap31 ou por Nietzsche ou ainda por apenas uma das disciplinas filosóficas,
ao lado da lógica, da ética, da
antropologia filosófica e da filosofia da
29
Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, natureza. Constitui antes a própria
criador do método chamado desconstrução. Seu
trabalho é associado, com freqüência, ao pós- estrutura da filosofia ocidental desde
estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as Platão. A idéia heideggeriana de
principais influências de Derrida encontram-se Metafísica pode ser caracterizada, creio,
Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua por três elementos. Por um lado, trata-
extensa produção, figuram os livros Gramatologia.
São Paulo: Perspectiva, 1973; L'Ethique du don,
(1992), Demeure, Maurice Blanchot (1998 ), Voiles
eminente defensor do positivismo lógico. (Nota
avec Hélène Cixous (1998), Donner la mort (1999).
On--Line)
da IHU On
Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU
On--Line edição 119, de 18 de outubro de 2004
On 32
Karl Heinrich Marx (1818–1883): filósofo,
On--Line).
(Nota da IHU On cientista social, economista, historiador e
revolucionário alemão, um dos pensadores que
30
Gianni Vattimo (1936): filósofo italiano,
exerceram maior influência sobre o pensamento
internacionalmente conhecido pelo conceito de
social e sobre os destinos da humanidade no
pensamento fraco. Concedeu diversas entrevistas
século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estudos
On--Line. Leia a entrevista que publicamos
à IHU On
Repensando os Clássicos da Economia. A palestra
On--Line).
acima. (Nota da IHU On
A Utopia de um novo paradigma para a economia
foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani,
em 23 de junho de 2005. O Caderno IHU Idéias,Idéias
31
Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que
edição número 41, teve como tema A
trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos
(anti)filosofia de Karl Marx, com artigo de autoria
Estados Unidos após esse período. Foi um dos
da mesma professora. (Nota da IHU On On--Line)
principais membros do Círculo de Viena e um

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JULHO DE 2006
se do dualismo platônico, vigente sob constitui a essência da técnica.
formas diversas em todo o pensamento Entretanto, na sua pretensão de tudo
ocidental, que se estabelece entre o controlar, o ser humano acaba sendo
mundo sensível e o mundo inteligível, controlado pela própria técnica. Ele já
isto é, entre as coisas individuais e não é capaz de pensar o ente e muito
mutáveis de nossa experiência imediata, menos o ser como tal, envolvendo sua
situadas no espaço e no tempo, e a sua existência, sem o perceber, em um nada
essência, como idéias universais e de sentido. Entretanto, diante da crise
eternas, que constituem a verdadeira do que há de mais próprio no ser
realidade. humano, quando todas as
Outro traço determinante da Metafísica possibilidades do pensar metafísico se
é o privilégio do conhecente, esgotaram, surge também a
radicalizado no subjetivismo moderno, oportunidade de um novo pensar. Não
mas vigente já, segundo Heidegger, na se trata da negação da técnica nem da
metafísica clássica, de determinar o ser fuga do mundo da técnica, antes de
do ente, enquanto depende do juízo ou procurar um caminho para o pensar
julgamento do sujeito a sua verdade. A neste contexto inexorável.
distinção entre ente e ser é vista do Este novo pensar, para o qual devemos
sujeito, em função de seu movimento nos dispor, segundo Heidegger, na
de transcendência sobre o ente para o sobriedade própria da acolhida de um
ser. É constitutiva da Metafísica esta dom, já não será metafísico, nem
transcendência ascensional, na qual o tampouco antimetafísico e reducionista,
ente é captado no seu ser e como o cientificismo positivista ou o
representado na sua verdade. Enfim, o individualismo relativista. Ele terá de
tipo metafísico de pensar tem um descartar, contudo, as três
caráter onto-teológico, enquanto, características do pensamento
embora se exercendo no âmbito da metafísico acima descritas. Desde Ser e
diferença ontológica entre ser e ente, Tempo, Heidegger apontava a
não a pensa, ou seja, não interroga o necessidade de suplantar a oposição
sentido de ser, antes fundamenta o ente secundária sensível/inteligível, ao
no seu todo e na sua diversidade na desvendar a unidade originária da
unidade do ente primeiro, absoluto e existência humana numa
infinito, identificado com o Deus temporalidade existencial.
cristão. Correspondentemente, o próprio ser,
como horizonte último do pensar, não
Tecnociência, expressão final da se situa no plano do imutável e eterno,
Metafísica mas implica uma historicidade
A tecnociência moderna constitui para constitutiva. É nesta perspectiva que a
Heidegger, como já disse, a expressão Metafísica, com seu modo próprio de
final e a plena realização do destino da pensar e compreender a realidade,
Metafísica. Nela o ente não é apenas re- constitui uma etapa na história do ser.
presentado como ob-jeto do Entretanto, a diferença ontológica já
conhecimento, mas é também re-criado não se estabelece mediante a
de acordo com os interesses e objetivos transcendência do espírito humano
humanos como pro-jeto da vontade de sobre o ente em direção ao ser. Pelo
poder. Nestas condições, as coisas do contrário, a conversão ou vira-volta do
mundo se transformam em meros itinerário heideggeriano, como
recursos, sem consistência própria, no superação da Metafísica, equivale
interior de um sistema de controle, que justamente à percepção de que é o

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JULHO DE 2006
próprio ser que toma a iniciativa de se interpretação filosoficamente adequada
revelar, abrindo para o pensar um da realidade.
horizonte de compreensão. Isso
significa a exclusão filosófica de Um pensar da essência, e não da
qualquer pensar representativo e existência
objetivante. Trata-se antes de acolher A posição heideggeriana decorre de
como dom a manifestação do ser que vários pressupostos. O primeiro é a sua
torna os entes presentes ao pensar. Daí concepção da filosofia como
também se segue o questionamento da determinação do ser ou “essência” do
estrutura onto-teológica da Metafísica. ente e, em última análise, do sentido de
Esta caracterização de toda a história da ser como tal. Embora rejeite, a certa
Metafísica foi violentamente contestada altura, pelos motivos já dados, a
por autores, que não aceitam que sejam Ontologia, como autêntico pensar do
assim rotulados determinados ser, a sua investigação tem certamente
pensadores, como, por exemplo, Tomás um caráter “ontológico” (próprio do ser
de Aquino33. Sem envolver-me aqui do ente), em oposição ao que chama de
mais a fundo nesta discussão, basta “ôntico” (próprio do ente).
dizer que, a meu ver, ela decorre de um Compreender o ente é compreender o
mal-entendido. Com efeito, desde seu ser e não explicá-lo por outro ente,
Aristóteles a transcendência metafísica como fazem as ciências positivas. Em
aponta numa dupla direção, por um virtude da adoção do método
lado, para o ente em geral, isto é, o ente fenomenológico, ele só focaliza o eidos,
como ente (dimensão ontológica), por a casa formal no sentido aristotélico,
outro, para o fundamento último do desprezando toda consideração da
ente (dimensão teológica). Portanto, a causa eficiente.
Metafísica tem inegavelmente um Para ele, a filosofia só pode levar em
caráter onto-teológico. O que pode ser consideração aquilo que pode ser
questionado e discutido é o juízo de descrito fenomenologicamente, isto é,
Heidegger a este respeito, ou seja, a que se manifesta implícita ou
afirmação da fundamentação do ente explicitamente e pode ser
de nossa experiência em um ente experienciado, dando ao termo
primeiro, própria da Metafísica, experiência o significado radical de
enquanto ontoteológica, não é uma presença ao pensamento,
independentemente da distinção já
superada, para ele, entre sensível e
33
Tomás de Aquino (1227-1274): frade dominicano inteligível. Tomando os termos no
e teólogo italiano, considerado santo pela Igreja. sentido tradicional, pode-se dizer, com
Um de seus maiores méritos foi introduzir o
aparente paradoxo, que o seu pensar é
aristotelismo na escolástica anterior. A partir de
São Tomás, a Igreja tem uma teologia (fundada na um pensar da essência, e não da
revelação) e uma filosofia (baseada no exercício existência. Ser, para Heidegger, não
da razão humana) que se fundem numa síntese significa existir, como o fato de estar aí
definitiva: fé e razão. Nascido numa família nobre, no mundo, mas sim o horizonte
estudou filosofia em Nápoles e depois foi para
Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo de determinante do pensar, a iluminação e
questões filosóficas e teológicas. Seus interesses não o iluminado. Ele recusa, portanto,
não se restringiam à religião e filosofia, mas passar, mediante o raciocínio, do ente
também à alquimia, tendo publicado uma que é experienciado a seu fundamento
importante obra alquímica chamada Aurora
Consurgens. Sua obra mais famosa e importante é
metafísico, inacessível à experiência, a
a Suma Teológica. (Nota da IHU OnOn--Line) um ente supremo, que seria a razão
suficiente do que existe. Tal é a

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JULHO DE 2006
dimensão teológica da Metafísica, um não aceita o tipo de pensamento que
procedimento de caráter ôntico, que a pretende demonstrar a existência de
leva a esquecer a questão decisiva do Deus como fundamento último da
status do próprio ser. realidade, nem reconhece no Deus do
Com efeito, o novo pensar teísmo metafísico um Deus que possa
heideggeriano não pergunta pelo ser objeto de culto e de adoração. Por
“porquê”. Esta pergunta só tem sentido isso mesmo, enquanto um novo pensar
no âmbito das relações entre os entes não se consolidar, é mais sensato calar-
intramundanos. Procurar justificar o se diante do mistério do que querer
ente no seu todo, determinar a sua falar de Deus.
razão suficiente, alcançar o seu Na verdade, segundo Heidegger, só é
fundamento, foi a pretensão possível falar autenticamente de algo à
desmesurada da razão metafísica. O medida que se manifesta, ou seja, que é
todo, no seu mistério, não pode ser experienciado pelo pensamento. Ora, o
abarcado pela razão humana, mundo da técnica, criado à imagem e
essencialmente limitada. O autêntico semelhança do homem e de seus
pensar é o que se situa modestamente interesses, já não revela a presença de
diante do fundo sem fundo do ser e, em um Deus. Trata-se de um mundo
vez de tentar dominá-lo, acolhe na dessacralizado, que impede o acesso
gratidão as suas manifestações. Uma vez autêntico ao divino. Estas observações
que a revelação da verdade depende indicam claramente que, para ele, o
propriamente da iniciativa do próprio divino, embora oculto pelo pensar
ser, neste momento da crise do representativo da modernidade,
pensamento metafísico, só resta ao ser pertence essencialmente ao horizonte
humano dispor-se por uma expectativa existencial do ser humano. Ele inclui
serena a acolher a eventual expressamente esta dimensão no
comunicação de um novo pensar. quarteto, constitutivo do mundo, que
envolve a existência humana: céu, terra,
Heidegger e a questão de Deus deuses e mortais. E a célebre entrevista
Só depois deste amplo rodeio, será que deu à revista Der Spiegel por
possível abordar diretamente sua ocasião de seus 80 anos, para ser
pergunta sobre a religião no publicada apenas depois de sua morte,
pensamento de Heidegger e sobre as como seu testamento espiritual, contém
conseqüências da superação a afirmação enigmática, mas decisiva:
heideggeriana da Metafísica em relação “Só um Deus pode salvar-nos”. A
à crise religiosa contemporânea. Em questão é saber de que Deus se trata
primeiro lugar, diga-se de passagem, aqui e qual é sua relação com o ser. É
que os termos religião e experiência certo que o ser, central no pensamento
religiosa não são bem vistos por ele, de Heidegger, não é Deus. O ser, aliás,
que os considera eivados do não é, porque só do ente se pode dizer
subjetivismo moderno. Valoriza, ao que é. E o ser não é um ente, aquilo que
invés, a experiência do sagrado e do é. Por isso, Heidegger prefere dizer: há
divino, como constitutiva da existência ser (es gibt Sein). Ora, o equivalente de
humana. A questão de Deus em “haver” em alemão se traduz
Heidegger é extremamente complexa e literalmente em português por “dar-se”,
tem sido muito discutida. Só poderei que pode significar também algo como
acenar aqui para alguns aspectos mais “haver”, “acontecer”, em frases como:
importantes. Como já disse, ele rejeita a “Isso se deu (aconteceu, houve) naquele
linguagem metafísica sobre Deus, isto é, tempo”. Portanto, ser, como se dá,

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JULHO DE 2006
implica algo comunicativo, algo de decorreria, quem sabe, da convicção de
doação. É próprio do ser dar que que com isso ultrapassaria os limites do
pensar. Ele constitui a clareira em cujo puro filosofar? É possível. Em todo
âmbito as coisas vêm ao nosso encontro caso, há também na sua obra indícios
como sendo, isto é, na sua verdade e que vão em sentido contrário, ou seja,
sentido. no sentido da concepção de um divino
imanente ao cosmo, próxima à
Concepção de existência no último experiência do sagrado própria da
Heidegger antiga religião da Grécia. A expressão
Apesar de distinguir absolutamente “deuses” como uma das dimensões do
entre o ser e os entes, Heidegger lhe mundo, que já mencionei, entre outras
atribui uma espécie de atuação, que considerações, pode levar a tal
suporia uma consistência entitativa e interpretação. Nesse caso, o ser planaria
até um caráter pessoal. Para ele, como sobre o mundo humano tal qual a
já expliquei, é o ser que determina com “moira” da mitologia grega, como o que
suas iniciativas de manifestar-se ou determina, em última análise, o destino
ocultar-se o destino e a história do dos deuses e dos mortais.
pensar. O verdadeiro pensar é aquele
que, longe de arvorar-se em senhor da Niilismo e “morte de Deus”
verdade, acolhe-a com gratidão como É possível que Heidegger tenha deixado
uma graça e favor do ser. É evidente a afinal sem resposta a questão sobre o
semelhança dessa linguagem com a que tipo de divino ao qual ele se refere.
exprime na bíblia a relação entre Deus Qualquer que seja, porém, a sua
e a liberdade humana na revelação dos posição a esse respeito, é certo que o
seus desígnios como história da divino faz parte de sua visão da
salvação. Em todo o caso, mesmo realidade. O seu pensamento sobre o
prescindindo da relação para com um fim da Metafísica, bem entendido, longe
Deus transcendente e criador, tem de contribuir para o agravamento da
muito de cristã a concepção da crise religiosa contemporânea, permite
existência do último Heidegger, como encará-la com a maior lucidez. Por um
aceitação serena e agradecida do dom lado, a “morte de Deus”, característica
do ser como expressão suprema da da cultura moderna, não equivale a um
liberdade como abertura à verdade. atestado da inexistência de Deus,
Será que por trás do ser haveria que segundo sua interpretação da afirmação
divisar um Deus, concebido não tanto de Nietzsche, mas tão somente à
como a causa eficiente do mundo percepção de que o Deus da Metafísica
empírico, quanto como a fonte do perdeu todo o seu vigor, já não é capaz
sentido, aquele que, ao comunicar o ser de dar sentido ao mundo
como verdade, desperta o pensar como contemporâneo. Por outro lado, ele
liberdade? A sintaxe do “dar-se” como tacharia certamente de superficiais e
“haver” em alemão é distinta da absolutamente incapazes de superar o
portuguesa, enquanto atribui niilismo atual, resultante da “morte de
gramaticalmente ao sujeito impessoal Deus”, as manifestações de
“es” o dom do ser qual objeto direto. ressurgimento religioso dos últimos
Poder-se-ia identificar neste “es” o decênios. Esta religiosidade
mistério frontal do qual flui o ser como individualista, voltada para a satisfação
o horizonte histórico da existência afetiva do sujeito, constitui uma mera
humana? Heidegger não faz tal atitude reativa diante do racionalismo
identificação. Mas esta reserva não moderno, que, por isso mesmo, no seu

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irracionalismo permanece atrelada ao a norteiam. Foram as esperanças de um
mesmo esquema de pensamento. Como ressurgimento do povo alemão, após as
disse há pouco, para Heidegger, só à trágicas experiências da derrota na
medida que o divino se manifesta pode Primeira Guerra Mundial e do desastre
estabelecer-se um autêntico ser-para- da República de Weimar, e mais ainda
Deus. Apenas ele pode tomar a sua visão de uma revitalização da
iniciativa de revelar-se, cabendo ao ser cultura ocidental com base em raízes
humano tão somente acolher com autênticas, que ele projetou
atenção a comunicação divina. Destarte, ingenuamente sobre a figura esquálida
nesta época de ocultamento da de Hitler34. No entanto, este erro fatal de
divindade não passaria de arrogância julgamento, logo corrigido, a respeito
enfatuada qualquer tentativa de chegar do eventual executor de tais ideais não
a Deus seja pela via da demonstração comprova qualquer afinidade entre seu
racional, seja pelo sentimento religioso. pensamento e a ideologia nacional-
Nem por isso propugna Heidegger uma socialista. São, portanto, deploráveis as
atitude de mera passividade e tentativas de invocar este episódio com
resignação diante da crise atual. Trata- o fito de minar a influência do
se de assumir a tarefa de vigiar e pensador do ser.
proteger a verdade do ser, região onde
será possível experienciar o sagrado e IHU On-Line – A superação
pensar sua essência, desde que ele volte heideggeriana da Metafísica não
a manifestar-se. excluiria uma verdade absoluta? E a
fundamentação das questões éticas,
IHU On-Line – De que forma o como pode ser feita com base nessa
senhor interpreta a decisão de posição?
Heidegger de filiar-se ao nacional- João Augusto Mac Dowell – A noção
socialismo tendo em vista que heideggeriana da verdade originária
quase foi padre e pediu um funeral como des-ocultamento e manifestação
religioso? do ente no seu ser e
João Augusto Mac Dowell – No correspondentemente como abertura e
tempo de sua adesão ao nacional- liberdade do pensar relativiza a
socialismo Heidegger já havia rompido distinção metafísica entre verdade
os laços com a Igreja Católica. Não absoluta e relativa. A manifestação do
creio que este episódio, já debatido à ente é sempre verdadeira; poderá, sim,
saciedade, possa ser explicado, num ou
noutro sentido, em função das atitudes 34
Adolf Hitler (1889-1945): ditador alemão, líder do
religiosas de Heidegger. Em todo o caso, Partido Nazista. Suas teses racistas e anti-semitas,
bem como seus objetivos para a Alemanha
ele constitui uma mancha indelével na
ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein
biografia do filósofo. Mais grave, sob o Kampf (Minha Luta). No período da sua ditadura,
ponto de vista ético, que a filiação, por os judeus e outros grupos minoritários
um breve período, ao partido nazista – considerados "indesejados", como ciganos e
que poderia ter suas atenuantes – foi negros, foram perseguidos e exterminados no
que se convencionou chamar de Holocausto.
talvez sua recusa até o fim de exprimir Cometeu o suicídio no seu Quartel-General (o
sua mea culpa por tal gesto. Nem por Führerbunker) em Berlim, com o Exército Soviético
isso se justifica a tentativa de, com base a poucos quarteirões de distância. A edição 145
nesse fato, querer desqualificar o seu da IHU On-On-Line, de 13 de junho de 2005,
comentou na editoria Filme da Semana, o filme
pensamento. Naturalmente, passos dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as
desta envergadura têm muito a ver com últimas horas de Hitler. (Nota da IHU On
On--Line)
a mentalidade da pessoa, os valores que

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ser mais ou menos verdadeira, de todas as possibilidades intramundanas,
acordo com o maior ou menor des- libertando a pessoa para a escolha livre.
ocultamento do ser e de acordo com a Aqui, portanto, o acento recai sobre a
amplitude da perspectiva hermenêutica responsabilidade de cada um de
do pensar. Não há, porém, para o compreender-se e projetar-se de acordo
pensar humano, essencialmente finito, com o sentido próprio de sua
uma verdade absoluta, isto é, uma existência. A segunda fase do
revelação total do ente no seu ser. É isso pensamento heideggeriano contém
que reconhece o novo pensar que também e de maneira talvez ainda mais
supera o racionalismo da metafísica central um aspecto ético. Não se trata,
moderna e sua pretensão de abarcar no porém, de uma disciplina filosófica
pensamento toda a verdade. Não se específica. O agir humano só pode ser
pode fundar absolutamente o edifício compreendido em conexão com a
do saber. A verdade, contraposta à essência das coisas, do próprio homem,
falsidade, como correspondência ou do seu pensar, da sua linguagem e do
não entre o que é afirmado no juízo ser. Desse modo, há uma Ética
predicativo e a realidade, é, para imanente ao próprio pensar do ser, que
Heidegger, uma concepção secundária é assim anterior à distinção tradicional
de verdade. Nada impede, porém, de entre saber teórico e saber prático.
considerar a verdade do juízo, nesta Heidegger tem plena consciência de
acepção, como absoluta. Algo não pode, que no mundo atual, justamente como
ao mesmo tempo e sob o mesmo dominado pela técnica, não vigoram
aspecto, ser e não ser verdadeiro, como normas e valores absolutos. Por isso
pretende o relativismo. No entanto, este mesmo, nestas circunstâncias, não tem
discurso lógico-predicativo não é o sentido propor outro sistema de valores
mais adequado para pensar o ente no ou procurar fundamentá-lo. O que
seu todo, pensamento que encerra importa é dispor-se mediante
também, segundo Heidegger, uma determinadas atitudes a acolher na
dimensão ética. liberdade uma eventual manifestação
A sua posição a respeito das questões do ser que, para além do mundo da
éticas é complexa. Ele não desenvolve técnica, configure uma nova relação do
uma Ética como ciência das normas ou homem para com o ente no seu todo.
valores morais, porque considera que Ele propõe, assim, em contraste com o
tal saber pertence ao reino da subjetivismo e o antropocentrismo
Metafísica. Isso não o impede de modernos, um ethos caracterizado por
distinguir em Ser e Tempo a existência atitudes como a admiração e reverência
autêntica da inautêntica, embora o ante o mistério do ser, a serenidade e a
critério para tal distinção não seja a gratidão, entre outras. Só assim o ser
adesão ou não a determinadas normas humano e o seu pensar, que é para ele
obrigatórias, mas sim o assumir a a forma fundamental de agir,
finitude e a temporalidade da existência corresponderão aos apelos do ser.
como ser-para-a-morte, o que relativiza

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Heidegger e a subjetividade
Entrevista com William Richardson

Professor do Departamento de Filosofia do Boston College, em


Chestnut Hill, Massachussets, EUA, o filósofo e psicanalista
On
William Richardson, SJ, afirmou por e-mail à IHU O n-Line que
“a contribuição de Heidegger para o entendimento da
subjetividade foi esclarecer sobre o que um sujeito é e o que não é.
Claramente, o que não é, é o ser que Heidegger tomou como o
fenômeno humano por excelência: Dasein, cuja natureza essencial
é simplesmente Estar-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Se,
eventualmente, ele age como sujeito, isso é uma função válida,
porém puramente secundária”.

Richardson é mestre em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia de Louvain, na


Bélgica. Ao longo de sua trajetória acadêmica recebeu diversos prêmios e
reconhecimentos, entre eles o Cardinal Mercier Prize in Philosophy, da Universidade
de Louvain, o Pós-doctoral Fellow, da Society for Values in Higher Education, entre
outros. De seus inúmeros artigos, destacamos The place of the unconscious in
Heidegger. Review of Existential Psychology and Psychiatry, V, 1965; Kant and the
Late Heidegger. In Phenomenology in America, ed. J.M. Edie. Chicago: Quadrangle,
1967; Heidegger and the Quest of Freedom. Theological Studies, XXVIII, 1967 e The
transcendence of God in the World of Man. Proceedings of the Catholic Theological
Society of America, XXIII (1968).
a dissertação de Franz Brentano: Sobre
IHU On-Line – Quais são as o Sentido Principal do Ser em
principais críticas de Heidegger à Aristóteles (1862). Na folha de rosto do
ciência? Como essas considerações seu trabalho, Brentanto cita a frase de
podem ser aplicadas à ciência de Aristóteles: to on legetai pollachôs. Eu
nossos dias? traduzo: “Um ser manifesta-se (ou seja,
William Richardson – A crítica de a respeito de seu Ser) de vários modos.”
Heidegger à ciência é moldada pela sua Latente nesta frase é a questão que
crítica à metafísica, que surgiu da sua determina o modo do meu pensamento:
experiência filosófica anterior. Em uma o que é a determinação penetrante,
carta de 1962, quando perguntado simples e unificada do Ser que permeia
sobre como sua busca filosófica todos os seus múltiplos sentidos? ...
começou, ele respondeu: Como eles podem ser trazidos para um
“O primeiro texto filosófico no qual eu acordo compreensível? Este acordo
trabalhei repetidas vezes desde 1907 foi não pode ser compreendido sem

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primeiro se levantar e se estabelecer a fundação da metafísica e a torna
questão: de onde este Ser como tal (não possível.
meramente ser como ser) recebe esta
determinação?” (ênfase de Heidegger) Segmento dos seres
O “Ser” (Seidenes) do título de O que nós chamamos de “ciência” lida
Brentano35 traduz o to on (“o que quer com um certo segmento desses seres
que seja”), isto é, um ser, como distinto começa com o desenvolvimento, pelos
do uso do “Ser” (Sein) de Heidegger no cientistas, de uma metodologia para
sentido de que um ser se manifesta medir, calcular e especular sobre a
como o que ele é – o É, por assim dizer, natureza de um certo segmento dos
do o-que-é. O próprio Aristóteles, na seres com uma visão para entendê-los
sua “primeira filosofia”, procura melhor e na esperança de aprimorar a
entender seres como seres (on hei on) capacidade do ser humano em lidar
tanto no sentido do menor com eles nos interesses práticos da vida
denominador comum de todos os seres diária. Entendida desta maneira, a
(o que foi mais tarde chamado de ciência para Heidegger é totalmente
“ontologia geral”) ou de seres no merecedora do seu respeito. Até o
sentido de suas bases finais em algum ponto em que, no entanto, os cientistas
ser supremo, a temática que mais tarde em pleno vôo tendem a negligenciar as
foi chamada “teologia”. Vistas juntas, dimensões mais profundas dos seres
essas duas abordagens ao que deixam seu próprio trabalho dar
questionamento dos seres como seres em nada, Heidegger critica o esforço
se tornam idênticas como “metafísica”. científico em arriscar a redução dos
As razões para o termo são incertas, seres ao nível de meros instrumentos
parcialmente por causa da ambigüidade para o controle humano e para o
de meta (significando “após” ou “além”) engrandecimento do desejo humano
como prefixo de physika (“física”) na pelo poder sobre eles.
fórmula. Qualquer que seja a origem do Tal redução demanda a própria
termo, Heidegger insiste que a dignidade humana do cientista,
metafísica vista como um todo é unicamente baseada na abertura ao Ser
preocupada apenas com os seres como na sua diferença dos seres os quais ele
seres e negligencia as questões mais formalmente investiga. Isso posto,
profundas sobre o É do o-que-é na sua Heidegger jogou uma grande luz na
diferença do o-que-é, que repousa na emergência histórica do
empreendimento científico como o
35
Franz Brentano (1838-1917): filósofo alemão. efeito de um esquecimento do Ser em
Lecionou em Würzburg e na Universidade de uma época da história marcada pela
Viena. Sua filosofia evoluiu para um aristotelismo origem da ciência moderna. Além disto,
moderno, nitidamente empírico em seus métodos
e princípios. Os trabalhos mais importantes de certos cientistas encontraram sua
Brentano são no campo da psicologia, por ele própria técnica fenomenológica de
definida como ciência da alma. O objeto de seus Heidegger, a qual ele uma vez chamou
estudos não foram, porém, os estados, e sim os de “hermenêutica de facticidade”, que
atos e processos psíquicos. Segundo Brentano, o
fenômeno psíquico distingue-se dos demais por
foi de grande ajuda em tornar as
sua propriedade de referir-se a um objeto por apresentações mais precisas,
meio de mecanismos puramente mentais. Ao iluminando seus próprios
filósofo caberia, então, estudar as diversas procedimentos metodológicos.
maneiras pelas quais a mente estabelece contatos
com os objetos. Sua obra póstuma mais
importante é Von Simmlichen um Poetishen IHU On-
On-Line – De que forma a
Bewusstsein (Sobre a consciência sensorial e filosofia heideggeriana contribui
On--Line)
poética), de 1928. (Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
para um entendimento da sujeito analisado por Freud foi o sujeito
subjetividade e dos fundamentos como o descoberto por Descartes38.
filosóficos da psicoanálise? A contribuição de Heidegger para o
William Richardson – Para Heidegger, entendimento da subjetividade foi
o ser humano é considerado como esclarecer sobre o que um sujeito é e o
Dasein, ou seja, um ser entre o resto dos que não é. Claramente, o que não é, é o
seres, por meio do que o Ser se torna ser que Heidegger tomou como o
manifesto com a revelação de todos os fenômeno humano por excelência:
seres em quê e como são. Como tal, Dasein, cuja natureza essencial é
Dasein36 (ou Existência) é pensado simplesmente Estar-no-mundo (In-der-
como sendo um “eu”, mas não um Welt-Sein). Se, eventualmente, ele age
“sujeito”. Ser um sujeito significa como sujeito, isso é uma função válida,
relacionar-se com todos os outros seres porém puramente secundária.
como “objetos” para os quais o sujeito é
o único ponto de referência para
IHU On--Line
On – Quais as
determinar o que quer que possam
contribuições de Heidegger para
“significar”. Assim, todos os seres são
uma compreensão mais ampla do
objetos para sujeitos, ou sujeitos que
inconsciente do sujeito?
servem como objetos para outros
William Richardson – Para um
sujeitos (ou para si mesmos). Na
homem de tão grande inteligência, o
psicanálise, o ser humano é concebido
entendimento de Heidegger sobre
como um sujeito – em princípio um
Freud parece cru e superficial. Ele foi
sujeito consciente – que é capaz da
seriamente apresentado a Freud
atividade a qual – apesar de sua
relativamente tarde na vida, quando
consciência – é, na verdade,
Medard Boss39 o convidou para uma
inconsciente. Essa dimensão da qual o
série de seminários (1959-1969) para os
sujeito é inconsciente foi primeiro
psiquiatras que ele estava treinando em
problematizada por Freud37 e designada
Zollikon (Suíça). Brevemente, Heidegger
por ele como “o inconsciente”. Quer
assumiu que, quando Freud encontrou
seja consciente ou inconsciente, o
um processo físico que ele não podia

38
René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e
36
A tradução literal do termo (alemão) seria “ser- matemático francês. Notabilizou-se sobretudo
aí”. (N. do T.) pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia,
37
Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e tendo também sido famoso por ser o inventor do
fundador da Psicanálise. Interessou-se, sistema de coordenadas cartesiano, que
inicialmente, pela histeria e, tendo como método influenciou o desenvolvimento do cálculo
a hipnose, estudava pessoas que apresentavam moderno. Descartes, por vezes chamado o
esse quadro. Mais tarde, interessado pelo fundador da filosofia e matemática modernas,
inconsciente e pelas pulsões, foi influenciado por inspirou os seus contemporâneos e gerações de
Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele
favor da associação livre. Estes elementos iniciou a formação daquilo a que hoje se chama
tornaram-se bases da Psicanálise. Freud, além de de racionalismo continental (supostamente em
ter sido um grande cientista e escritor, realizou, oposição à escola que predominava nas ilhas
assim como Darwin e Copérnico, uma revolução britânicas, o empirismo), posição filosófica dos
no âmbito humano: a idéia de que somos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU OnOn--
movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias, e Line)
seu tratamento com seus pacientes foram 39
Medard Boss (1903-1990): psicanalista e
controversos na Viena do século XIX, e continuam psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de
muito debatidos hoje. A edição 170 da IHU On On-- psicoterapia chamada análise do Dasein,
Line, de 8 de maio de 2006, dedicou-lhe o tema largamente influenciada na filosofia
de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da fenomenológico-existencial de seu amigo e
suspeita. (Nota da IHU On
On--Line) On--Line)
mentor, Martin Heidegger. (Nota da IHU On

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explicar pela causalidade consciente, disponíveis a ele nos círculos científicos
ele postulou um processo psíquico da sua época para que se pudesse fazer
inconsciente para esclarecê-lo. Mas isso esse insight especulativamente crível.
foi ignorar completamente a dimensão No século XX, entretanto, outra ciência
do Dasein/Existência como Ser-no- surgiu: a lingüística formal – tendo
mundo, a qual estende muito além o como pioneiro Ferdinand de Saussure41,
nível de consciência consciente da e que foi estendida para a cultura
Dasein/Existência. Considerando essa antropológica por Claude Lévi Strauss42
dimensão, seria necessário postular algo – que pode servir como um paradigma
tão bizarro quanto a inconsciência melhor para a conceitualização do
freudiana para poder explicar o insight original de Freud do que o
comportamento humano. De fato, o fisicalista. O próprio projeto de Lacan,
próprio Boss já havia (antes de 1959) então, tornou-se um retorno ao insight
dispensado a hipótese de uma original de Freud e um repensar as suas
inconsciência freudiana a favor de uma implicações lingüísticas de acordo com
análise clínica próxima da a hipótese fundamental de que “a
Dasein/Existência como Ser-no-mundo. inconsciência é estruturada como a
Ele batizou esta técnica de linguagem”. Como teria reagido
“Dasainanálise” e formou a base de um Heidegger se Freud tivesse sido
método psicoterapêutico que continua apresentado a ele nesse contexto?
a ser usado por esse nome pelos
sucessores contemporâneos de Boss.
No entanto, essa atitude negativa para Base ontológica
com Freud permanece sobre o Nós não sabemos, é claro, mas nós
entendimento fisicalista de Heidegger sabemos que, para o Heidegger inicial, a
da metapsicologia de Freud. Mais linguagem tinha um lugar único na
recentemente, uma nova abordagem de
Freud foi proposta por um dos mais 41
Ferdinand de Saussure (1857-1913): lingüista
eminentes discípulos de Freud: o assim suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o
desenvolvimento da lingüística como ciência e
chamado “Freud Francês”, Jacques desencadearam o surgimento do estruturalismo.
Lacan40. Após estudar intensamente os Além disso, o pensamento de Saussure estimulou
principais trabalhos iniciais de Freud (A muitos dos questionamentos que comparecem na
Interpretação dos Sonhos {1900}, A On--Line)
lingüística do século XX. (Nota da IHU On
Claude Lévi-
Lévi-Strauss (1908): antropólogo belga
Psicopatologia na Vida Diária {1901} e
42

que dedicou sua vida à elaboração de modelos


Chistes e sua relação com o baseados na lingüística estrutural, na teoria da
Inconsciente {1905}), Lacan concluiu informação e na cibernética para interpretar as
que o insight épico de Freud foi no culturas, que considerava como sistemas de
caminho dos trabalhos com a comunicação, dando contribuições fundamentais
para o progresso da antropologia social. Sua obra
linguagem. O recurso de Freud às teve grande repercussão e transformou, de
categorias fisicalistas a fim de especular maneira radical, o estudo das ciências sociais,
sobre isso foi determinado pelo fato de mesmo provocando reações exacerbadas nos
que esses foram os únicos meios setores ligados principalmente à tradição
humanista, evolucionista e marxista. Ganhou
renome internacional com o livro Les Stru Strucctures
40
Jacques Lacan (1901
(1901--1981): psicanalista francês. élémentaires de la parenté (1949). Em 1935, Lévi-
Lacan fez uma releitura do trabalho de Freud, mas Strauss veio ao Brasil para lecionar Sociologia na
acabou por eliminar vários elementos deste autor USP. Interessado em etnologia realizou um
(descartando os impulsos sexuais e de trabalho de pesquisa em aldeias indígenas do
agressividade, por exemplo). Para Lacan, o Mato Grosso. A experiência foi sistematizada no
inconsciente determina a consciência, mas este é livro Tristes Trópicos, publicado em 1955 e
apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo. considerado um dos mais importantes livros do
On--Line)
(Nota da IHU On século XX. (Nota da IHU OnOn--Line)

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JULHO DE 2006
estrutura ontológica do Em suma, se “a inconsciência é
Dasein/Existência. Dos três estruturada como a linguagem”,
componentes “equiprimordiais” da Heidegger pode oferecer uma base
estrutura ontológica do ontológica para a qual Lacan e seus
Dasein/Existência, die Rede, termo pelo seguidores são tentados em um nível
qual Heidegger traduz o logos grego, ôntico para fazer o insight genial de
não é só “discurso” (traduzindo para o Freud cientificamente respeitável para
português), mas a exata estrutura do outras gerações de pensadores.
Dasein/Existência que permite
Verstehen e Befindichkeit “chegar à On--Line – Como Heidegger pode
IHU On
expressão” lingüística. Do mesmo fundamentar a liberdade na pós-
modo, nós sabemos que, para o modernidade?
Heidegger recente, o logos de William Richardson – Esta é uma
Heráclito43 (como physis para dupla questão: a) como Heidegger
Parmênides44) é um modo no qual o entende a modernidade como uma
Ser/alētheia dá em nada. época de Ser-como-história? b) qual é o
Conseqüentemente, logos/legein para papel da liberdade em tal concepção?
Heráclito é interpretado como o a) Modernidade.
Modernidade É senso comum agora
processo de agrupamento de seres neles dizer que as primeiras tentativas de
mesmos, precisamente na sua Heidegger de discernir o significado de
acessibilidade (expressível). Por esta Ser por meio de uma fenomenologia do
razão, logos, como experienciado por Dasein/Existência como Ser-no-mundo,
Heráclito, pode ser entendido como a em Ser e Tempo produziram uma
própria linguagem na sua mais conceitualização negativa do Ser, ou
profunda origem. Então, o esforço seja, como não-um-ser/coisa, como
recente de Heidegger em pensar o Não-coisa ou Nada (Nichts) que podem
significado do Ser em termos da função ser articulados onticamente. No entanto,
da linguagem em poeta, pensador e a análise da verdade produziu o fato de
homem de estado é um complemento que a explicação clássica da verdade em
coerente ao seu insight inicial no logos conformidade entre o julgamento e o
como um componente estrutural do conteúdo do que é afirmado pressupõe
Dasein/Existência no contexto do Ser e uma arena prévia de acesso entre juiz e
Tempo. Conseqüentemente, o julgado, no qual um primeiro encontro
psicanalista, então disposto, pode entre as duas partes tem espaço. Essa
pensar o analisando como um eu já área antecedente de abertura, segundo
constituído pelo logos como um Heidegger, é um tipo mais fundamental
componente ontológico do seu Ser, que de verdade que a forma contida em
funciona também no nível ôntico de julgamentos, que os gregos chamavam
acordo com as leis da linguagem que a simplesmente alētheia, literalmente a-
lingüística discerne. São essas leis que (“privação”) - lēthē (“esquecimento”,
podem estruturar e guiar o próprio “ocultamento”), portanto um processo
processo analítico. inicial de “des-ocultamento” como
prévio à qualquer outra forma de
verdade. Este poderia ser um domínio
43
Heráclito de Éfeso (540 a. C. - 470 a. C.): filósofo de pura abertura de todos os seres, o
pré-socrático, considerado o pai da dialética. Aberto como tal (ou seja, o próprio Ser)
Problematiza a questão do devir (mudança). (Nota
que habilita todos os seres a se
On--Line)
da IHU On
44
Parmênides de Eléia (530 a. C. – 460 a. C.): revelarem como o que e como são.
filósofo pré-socrático, fundador da escola eleática.
(Nota da IHU OnOn--Line)

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JULHO DE 2006
Após 1930, alētheia como des- Heidegger explica detalhadamente.
ocultamento desempenhou um papel Tudo somado, a revolução filosófica
mais ativo que antes e foi concebida instituída por Descartes e a evolução da
como simultaneamente revelando-se metodologia científica que constituiu a
para e ocultando-se da emergência da ciência moderna
Dasein/Existência. Este processo de coincidiram para formar o que nós
revelação/ocultação em seguida levou a agora chamamos de época da
um sentido histórico como já modernidade. Heidegger insistiria,
antecipado em Ser e Tempo e pensado entretanto, que nós pensássemos sobre
posteriormente como uma espécie de isso menos como uma realização
dispensa do Ser-como- alētheia para o humana do que efetivamente um
Dasein/Existência, mesmo para esquecimento do Ser como alētheia ao
indivíduos (ex: Parmênides, Heráclito, qual certos homens e gênios
Platão etc), ou para grandes grupos de responderam.
humanos assim constituindo todas as
épocas da história. Teria sido O papel da liberdade
esquecimento (Geschick) para b) Liberdade.
Liberdade Cada esquecimento da
Descartes, que iniciou um estilo de alētheia é um esquecimento de
pensamento filosófico geralmente liberdade, pois alētheia implica
categorizado como “subjetivismo”, de liberação da escuridão que torna os
acordo com o qual todos os seres foram seres humanos livres e abertos para o
pensados na polaridade sujeito-objeto. que é/são. Heidegger deixa esse ponto
Como este estilo de pensamento tornou explícito ao discutir outra época do Ser-
possível a revolução científica de como-história que ele caracteriza como
Copérnico45 a Newton46 e além, uma espécie de seqüência para a
modernidade e descreve a época da
45
Nicolau Copérnico (1473-1543): astrônomo e tecnicidade (die Technik). Na sua
matemático polonês, além de cânone da Igreja, essência, ela é marcada não só pela
governador e administrador, jurista, astrólogo e objetivação de seres, mas pelo aumento
médico. Desenvolveu a teoria heliocêntrica para o
sistema solar, que colocou o Sol como o centro do
do poder sobre eles, que eventualmente
sistema solar, contrariando a então vigente teoria vitimiza a si própria. Heidegger a
geocêntrica - o geocentrismo (que considerava a apresenta, entretanto, como uma época
Terra como o centro). Essa teoria é considerada de liberdade na qual ela é um novo
uma das mais importantes descobertas de todos
modo de des-ocultamento:
os tempos, sendo o ponto de partida da
astronomia moderna. A teoria copernicana A essência da liberdade não está
influenciou vários outros aspectos da ciência e do originalmente conectada com a vontade
desenvolvimento da humanidade, permitindo a ou mesmo com a causalidade da
emancipação da cosmologia em relação à vontade humana. A liberdade governa o
teologia. O IHU promoveu de 3 de agosto a 16 de
novembro de 2005 o Ciclo de Estudos Desafios da espaço livre no sentido da clareza, a
Física para o Século XXI: uma aventura de
Copérnico a Einstein. Sobre Copérnico, em
específico, o Prof. Dr. Geraldo Monteiro Sigaud, da anos de 1665 e 1667. É considerado um dos
PUC-Rio, proferiu palestra em 3 de agosto, maiores nomes na história do pensamento
intitulada Copérnico e Kepler: como a Terra saiu humano, por causa da sua grande contribuição à
do centro do Universo. (Nota da IHU On
On--Line) matemática, à física e à astronomia. O IHU
46
Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e promoveu de 3 de agosto a 16 de novembro de
matemático inglês. Revelou como o universo se 2005 o Ciclo de Estudos Desafios da Física para o
mantém unido através da sua teoria da gravitação, Século XXI: uma aventura de Copérnico a Einstein.
descobriu os segredos da luz e das cores e criou Sobre Newton, em específico, o Prof. Dr. Ney
um ramo da matemática, o cálculo infinitesimal. Lemke proferiu palestra em 21 de setembro,
Essas descobertas foram realizadas por Newton intitulada A cosmologia de Newton. (Nota da IHU
em um intervalo de apenas 18 meses, entre os On--Line)
On

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qual deve-se dizer, a revelada. ... Mas (Se) alētheia49 tem uma essência
aquilo que liberta – o mistério está conflituosa, a qual aparece também nas
oculto e sempre se ocultando. Toda a formas opositivas de distorção e
revelação surge do livre, vai para o livre esquecimento, então na polis50 como
e traz o livre (“A Questão a Respeito da domicílio essencial do homem há que
Tecnologia”, grifo de Heidegger). se regrar todas as mais extremas contra-
Isso é bonito de se dizer, é claro, mas essências e nisso todos os excessos do
como a liberdade então entendida se indisfarçável. ... Aqui as mentiras
relaciona com a “vontade e a disfarçaram a base primordial dessa
causalidade da vontade humana”, a característica apresentada por Jacob
qual precisa ser envolvida em qualquer Burkhardt pela primeira vez em toda
resposta genuinamente humana à sua distinção e multiplicidade: a
liberdade como dispensa da alētheia? “assustadoriedade”, a “horribilidade”51, a
Heidegger não é de grande ajuda aqui. atrocidade da polis grega. Assim é a
ascensão e a queda do homem no
domicílio histórico de sua essência
IHU On--Line – Como podemos
On
(entre os gregos). (Paramenides, 90)
entender essa liberdade diante de
Nesse contexto, fenômenos como o
regimes totalitários, como o nazista,
totalitarismo e o nazismo devem ser
por exemplo?
guardados como formas de excesso na
William Richardson – Para Heidegger,
modalidade da falibilidade. Como eles
a experiência da verdade como
estão sendo superados? A questão é
liberdade não é uma bênção pura47.
essencialmente a mesma que: como
Cada revelação da verdade é finita e
estamos sendo “salvos” das pilhagens da
deixa um resíduo de trevas, lēthē48. Ela
tecnicidade (die Technik)?
pode assumir duas formas: uma forma
é o “mistério”, “o esconder daquilo que
é totalmente escondido, dos seres como On--Line – De que maneira o
IHU On
tais”; o segundo modo Heidegger chama pensamento desse filósofo pode nos
“falibilidade” uma combinação de ajudar a compreender uma
mistério que ignora, subverte e até sociedade cada vez mais
perverte o mistério de tal maneira que secularizada e mais subjugada pelo
Heidegger a chama de “contra-essência paradigma da técnica?
da verdade”: “A falibilidade pertence à William Richardson – A questão é
constituição interna do análoga à questão de Ser e Tempo:
Dasein/Existência na qual o homem como tornar-se autêntico? Lá (em Ser e
histórico é admitido. (...) Tempo) a resposta é: finalmente
Desencaminhando-o, a falibilidade aceitando-se como o transcendente (ao
domina o homem completamente.” mundo) que é finito, cujo sentido
(“Sobre a essência da verdade”). Essa último é tempo, ou seja, como a
dominação pode afetar o abertura à verdade como vivenciada em
Dasein/Existência individual, ou grupos todas as conseqüências de sua finitude.
sociopolíticos, ou culturas inteiras – até, O “sim” do Dasein's exitentiell a essa
certamente, a mais precursora situação ôntica/ontológica está na
experiência dos gregos. própria realização da autenticidade.

Termo grego para “Verdade”. (N. do T)


49

47
O termo usado no original, unmixed, significa Termo grego para “cidade”. (N. do T)
50

“pura” no sentido de “não-adulterada”. (N. do T) 51


Os termos “assustadoriedade” e “horribilidade”
48
Palavra originária do grego e que significa não existem no português, porém foram “criados”
“negatividade”. (N. do T) para que a frase se fizesse entender.

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Analogamente, sugiro que a única chamado do Ser supõe alguma
forma de o Dasein/Existência “superar” explanação crível sobre como a
o esquecimento da verdade que lhe fora liberdade secundária, essa da “vontade”
concedida, com todas as conseqüências ou da “causalidade da vontade”, ou ao
da negatividade que isso implica, é menos da capacidade de dizer “sim” ou
reconhecê-la como tal para o que é e “não”, é derivada. Até onde sei,
lidar com sua negatividade da melhor Heidegger deixou-nos famintos aqui.
forma possível. Trinta anos após sua morte, uma
Quando o próprio Heidegger foi referência a esta edição permanece na
questionado sobre se havia alguma primeira ordem de importância.
razão para esperar pela salvação dessa
condição humana comum, sua resposta
On--Line – Por que os membros
IHU On
foi “Apenas um deus pode salvar-nos!”.
do Círculo de Viena receberam mal
Tomo “deus” aqui por uma metáfora
a filosofia de Heidegger? Quais
hölderliniana52 para um outro, ou seja,
foram os aspectos criticados?
diferente, esquecimento do Ser, o que
William Richardson – O Círculo de
pode, claro, incluir sua própria
Viena foi um grupo de pensadores de
negatividade dinâmica. Isso deixa-nos
diferentes disciplinas que se
apenas com um futuro bastante
organizaram em torno de Moritz
desanimador para o qual olhar? Talvez!
Schlick53 após ele se tornar professor da
Mas isso é mais promissor do que
Filosofia das Ciências Indutivas na
aquilo com que Nietzsche deixa-nos: o
Universidade de Viena, em 1922, e
eterno retorno do mesmo. Para
sobreviveu até a sua morte prematura
Heidegger, o futuro do
em 1936. Eles se encontravam
Dasein/Existência vem por meio do regularmente (normalmente nas noites
passado, definitivamente, mas como um
de quinta-feira) no Instituto de
advento contínuo, sempre novo e
Matemática para discutir questões
fresco. Certamente, o futuro seria preso
filosóficas. O grupo era mantido unido
em sua própria inescapável escuridão
pelo seu objetivo e método comum:
mas poderia ao menos deixar-nos livres
com a exclusão do que eles chamavam
para desejar que possamos beneficiar-
de metafísica e examinando uma série
nos com a experiência de outros e
de pseudo-especulações realizadas com
lidarmos com isso melhor que antes.
sentenças mal formuladas logicamente
Tudo isso implica, entretanto, que o
(ou seja, sem sentido), eles desejavam
Dasein/Existência seja capaz de encontrar uma base filosófica comum
responder ao esquecimento do Ser, que
para todas as ciências especiais,
seja de alguma forma livre para dizer
enquanto faziam a própria filosofia
“sim” ou “não” à chamada do Ser. Mas
cientificamente sustentável através de
isso implica um outro tipo de liberdade
análises lógicas. Assim, eles prestavam
do esquecimento “original” da alētheia
atenção principalmente ao sentido das
do que aquilo que se discutiu até agora.
sentenças (proposições), tentando
“A essência da liberdade está
esclarecer os conceitos e métodos das
originalmente não conectada à vontade
próprias ciências e esperando mostrar
ou mesmo à causalidade da vontade
que todo o conhecimento humano é
humana”, nos foi dito (“A Questão
construído de sentido-dados, isto é, do
concernente à Tecnologia”). Sendo
que eles chamaram “experiência”.
como seja, qualquer resposta ao
53
Moritz Schlick (1882-1936): filósofo alemão,
52
Relativa a Friedrich Hölderlin, poeta alemão do figura central do positivismo lógico e do Círculo
século XVIII/XIX. (N. do T.) On--Line)
de Viena. (Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
Lógica e experiência são as palavras- qualquer maneira é que, no que lhe diz
chave para caracterizar esse grupo que respeito, o Deus sobre o qual se fala é
propôs o positivismo lógico na sua finalmente reduzido ao Deus da
forma mais pura. metafísica: um ser supremo (höchste
O que um grupo como esse tem a ver Seiendes), mas ainda assim um ser. Tal
com as questões de Heidegger sobre o concepção ignora a questão de Ser na
Ser na sua diferença dos seres? sua diferença de todos os seres, mesmo
Obviamente, tal questão não surge da um ser supremo. O problema não é que
experiência sensível, portanto sem um deus para a mente questionadora
sentido desde o começo. Além disso, o de Heidegger é divino demais, mas que
método escolhido por Heidegger, não é divino o suficiente. Ele não é o
fenomenologia (o deixar aparecer de Deus perante o qual Davi dançou, o
seres cuja natureza é aparecer) tinha Deus da experiência religiosa genuína.
pouco tempo para a análise lógica do Para ter certeza, a reflexão sobre o
significado de sentenças nas quais os sentido do Ser diferente dos seres não
resultados de tal análise são revela tal Deus, para Ser é necessário
expressados. Finalmente, a invenção de nada mais do que um processo finito
Heidegger de novas formas de (sempre comportando sua lēthē) que
linguagem para expressar os resultados deixa o fenômeno finito se manifestar.
dos seus insights deixou os membros Quando muito permite uma reflexão no
do Círculo horrorizados. Rudolf significado de Sagrado, como Hölderlin
54
Carnap , em particular, ficou ofendido nos ajuda a fazer, e a consciência do
com frases como “o Nada não é nada” Sagrado pode nos ajudar a reconhecer
(das Nichts nichtet). Para Heidegger, o Deus como divino se ele se revela, em
fenomenologista, o sentido é bastante primeiro lugar.
simples: o mundo, como horizonte de A pergunta sobre Deus estava escondida
grande significância, não é uma coisa nas barbas do pensamento de
como as outras coisas, mas, diferente Heidegger durante vários anos, às vezes,
delas, funciona antes como uma Não- de forma benevolente, às vezes, não,
coisa (“nadas”) que dá em nada mas nunca mais intensamente, parece,
precisamente como a área na qual os que nos anos de 1937 a 1939, quando,
seres humanos podem encontrar outros nas conseqüências da experiência
seres como significantes. Mas para uma nazista e na privacidade dos seus
lógica positivista, isto é um absurdo aposentos, ele se entregou àquelas
total. E nunca os dois se encontrariam. especulações que foram eventualmente
publicadas sob o título Beiträge zur
Philosophie: vom Ereignis, 50 anos
On--Line – Por que Deus para
IHU On
após sua composição, em 1989. Nesse
Heidegger só pode ser explicado
trabalho, ele fala sobre Deus, deuses, os
pela linguagem poética? O Deus de
deuses fluidos e até sobre o “Último
Heidegger é um Homem-Deus?
Deus”. Comentaristas pensaram muito
William Richardson – O problema de
sobre estas reflexões desde a sua
Heidegger com o falar sobre Deus de
publicação, mas, até onde eu sei, não
chegaram a um consenso sobre o seu
54
Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que significado – além do fato, talvez, de
trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos que a pergunta sobre Deus para
Estados Unidos após esse período. Foi um dos
principais membros do Círculo de Viena e um
Heidegger permaneceu endereçada até
eminente defensor do positivismo lógico. (Nota o fim. O que mais pode ser dito?
On--Line)
da IHU On

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JULHO DE 2006
Pessoalmente, eu acho esclarecedor o ao seu livro Heidegger: da
relato de Bernard Welte (filósofo, padre fenomenologia ao pensamento. 4ª.
da Arquidiocese de Freiburg, antigo ed. New York: Fordham University
estudante que se tornou amigo do velho Press, 2003?
Heidegger) que narra o que eu tomo William Richardson – Heidegger
por ser a palavra final de Heidegger concordou em escrever um curto
sobre o assunto. Em fevereiro de 1976, prefácio para esse livro, e eu poderia
Heidegger, ciente de que estava responder a uma ou duas questões
morrendo, pediu a Welte para que específicas que ofereceriam foco às suas
proferisse um curto sermão no seu observações. As perguntas pediam por
funeral. Desconcertado, Welte protestou esclarecimento no que dizia respeito a
que durante o passar dos anos, duas questões que foram muito
Heidegger deixou claro não ser uma discutidas como boato entre estudantes
pessoa crente, que seu pensamento, graduados no Departamento de
quando muito, seria ateísta (isto é, sobre Filosofia da Universidade de Freiburg
Ser, e não sobre Deus) em essência. na época: uma sobre a origem da busca
“Mas eu nunca deixei {formalmente} a filosófica de Heidegger, a outra sobre a
Igreja”, respondeu Heidegger. assim chamada “volta” (Kehre) no seu
Finalmente consentindo, Welte pensamento após 1930. As questões
perguntou ao velho Mestre sobre o que foram:
ele gostaria que ele falasse – qual texto 1. “Como estamos apropriados para
da escritura, por exemplo, ele pensava entender sua primeira experiência da
ser apropriado para se meditar sobre. questão sobre o Ser em Brentano?”
Heidegger respondeu: “Peça e receberá, 2. “Garantido que uma 'volta' ocorreu
procure e encontrará, bata, e a porta se no seu pensamento, como isto ocorreu?
abrirá para você” (Lucas 11:9). Em outras palavras, como nós estamos
para pensar sobre a própria
ocorrência?”
HU On--Line – Quais foram os
On
principais tópicos da carta de
Heidegger que serviram de prefácio

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JULHO DE 2006
A desconstrução em Heidegger,
Lévinas e Derrida
Entrevista com Rafael Haddock-Lobo

“Heidegger como Lévinas têm seus pensamentos balizados em um


fundamento: o Ser, para o primeiro, e o Outro, para o lituano. Já em
Derrida, a différance – este princípio de diferencialidade – não pode
ser tomado como fundamento, pois ela não tem substância, ela
apenas é e causa efeitos”. A afirmação é do filósofo Rafael Haddock-
On--Line, na qual
Lobo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On
traça algumas relações entre os filósofos Heideggger, Lévinas e
Derrida.
Haddock-Lobo é bacharel em Filosofia pela UFRJ, licenciado em
Letras pela Universidade Salgado de Oliveira, mestre, professor e
doutorando em Filosofia, ambos os cursos pela PUC-Rio. Sua dissertação intitula-se
Da existência ao infinito: a redução ética o pensamento de Emmanuel Lévinas e sua
tese, Sobre a hospitalidade: Derrida leitor de Lévinas .Sobre este assunto o professor
On--Line em 12/12/2005. É autor do livro Da
concedeu uma entrevista à IHU On
existência ao infinito. Ensaios sobre Emmanuel Lévinas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio;
São Paulo: Loyola, 2006.

IHU On-Line – Quais seriam os sempre esteve presente em sua ética.


principais pontos de diálogo entre Desse modo, ainda que, mesmo de
Lévinas, Heidegger e Derrida? modo assombrado, pode-se dizer que
Rafael Haddock-Lobo – Em primeiro Lévinas nunca se libertou da sombra
lugar, todos os três autores em questão heideggeriana. Já Derrida não, pois
partem da leitura (e também de uma nunca quis ou pretendeu se libertar
crítica) da fenomenologia de Edmund desta (nem de nenhuma outra) sombra.
Husserl. Além disso, Heidegger é um Derrida sempre assumiu sua herança
filósofo fundamental para os heideggeriana – o que era bem
pensamentos de Lévinas e Derrida. Para complicado em uma França que
o primeiro, seja com a enorme pretendia se afastar ao máximo deste
influência do filósofo alemão em suas pensamento desde o fim da Segunda
leituras de Husserl ou no posterior Guerra. Então, para resumir, se Lévinas
ataque à ontologia, em que Lévinas se mantém em uma constante relação
parece querer inverter a importância com a diferença ontológica, no intuito
dada ao Ser em detrimento dos entes na de invertê-la e apostar no primado dos
diferença ôntico-ontológica, Heidegger entes, Derrida vê nesta diferença a

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JULHO DE 2006
possibilidade de pensar uma diferença de mais presente. Isso colocaria
radical, um princípio de Heidegger, segundo Derrida, como a
diferencialidade, à qual ele chama de forma mais sutil e refinada (e por isso a
différance. E a própria tarefa mais perigosa) de “metafísica da
heideggeriana anunciada em Ser e presença”.
Tempo como uma “destruição da
Metafísica” vai ser o que, em francês, IHU On-Line – Como podemos
Derrida traduz por “desconstrução” – e entender a desconstrução de Derrida
não destruição – sendo este o nome que, centrada na filosofia de Lévinas e
posteriormente, nomeia seu Heidegger? A que conclusões essa
pensamento. desconstrução nos faz chegar sobre
a sociedade fragmentária do século
IHU On-Line – E os pontos de XXI?
ruptura? Rafael Haddock-Lobo – Não poderia
Rafael Haddock-Lobo – Como dizer que a desconstrução está centrada
antecipei, em Lévinas, vemos muito mais nas filosofias de Heidegger e Lévinas.
as rupturas que propriamente afinidades Em primeiro lugar, por não haver uma
com Heidegger. Lévinas queria “limpar” centralidade em seu pensamento e, além
sua filosofia de qualquer ontologia – disso, por estarmos esquecendo de
que, para o filósofo, seria uma das tantos outros autores que poderiam, ao
formas mais violentas e perigosas de lado destes dois, serem considerados
pensamento, devido justamente ao centrais em seu pensamento, como
esquecimento do Outro. Então, Nietzsche, Freud, Lacan e o próprio
poderíamos simplificar dizendo que, Husserl. Entretanto, com isso em mente,
quando toca Heidegger, o pensamento podemos entender que estes dois
levinasiano visa mais ainda a um pensadores anteciparam algo
abandono, a um corte e a uma denúncia fundamental para Derrida: a diferença.
de Heidegger. Tudo por uma “simples” Em Heidegger, sua ontologia parte de
razão: a Ontologia é, por excelência, um uma diferença, a do Ser e dos entes; em
pensamento do Mesmo e da Totalidade Lévinas o princípio da filosofia é a ética,
– e não uma ética do Outro e do infinito. não uma ética nos moldes da moral, mas
As críticas de Derrida são muito mais uma ética do Outro, que tem como
refinadas que as de Lévinas – e, por isso, princípio a alteridade. No entanto, temos
muito mais contestadas. Derrida tem por que guardar em mente o fato de que,
princípio nunca dar uma resposta do desse modo, tanto Heidegger como
tipo “sim ou não” a uma questão. Por Lévinas têm seus pensamentos balizados
essa razão, Derrida não é heideggeriano em um fundamento: o Ser, para o
nem anti-heideggeriano, o que acaba primeiro, e o Outro, para o lituano. Já
desagradando a ambos os lados. Derrida em Derrida, a différance – este princípio
vê aspectos importantíssimos e de diferencialidade – não pode ser
perigosíssimos em Heidegger. tomado como fundamento, pois ela não
Entretanto, eu poderia aqui arriscar que tem substância, ela apenas é e causa
o principal ponto de afastamento destes efeitos. O problema de chegarmos a
dois filósofos é uma insistência na conclusões talvez seja um dos impasses
presença que Derrida vê em Heidegger. mais importantes com os quais a
O Ser, sendo aquilo que dá sentido a desconstrução se confronta. Isso porque
tudo, como uma precisa e obrigatória ela não oferece – e nem pode oferecer –
orientação, por mais que não seja uma conclusões. Um pensamento em tempos
coisa, um ente, acaba por ser o que há fragmentados, em tempos dilacerados

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como os que vivemos, não pode mais Rafael Haddock-Lobo – Alain Badiou55,
oferecer verdades, mas apenas mostrar a em seu Ética: ensaio ensaioss sobre a
fragilidade e a desconstrução inerente às consciência do mal. Rio: Relume
estruturas de nossos tempos (seja na Dumará, 1995, diz – em tom mais que
filosofia, seja na política, seja nas crítico – que Lévinas seria o grande
relações pessoais, seja na Lei etc.). responsável por esta onda de discursos
Arrisco aqui dizer que Derrida talvez sobre os direitos humanos no século XX.
seja um dos pensadores mais atuais da Em parte, isso pode estar correto,
filosofia, mais contemporâneo. A porque Lévinas vai, sim, trazer o Outro e
desconstrução é mais um efeito de a humanidade do outro como temas
nossos tempos – a diferença de outros para a filosofia, mas isso sem cair, de
pensamentos é que ela assume esta modo algum, em um humanismo, pois
fragilidade e o caráter desconstruído de se há algo a ser pensado é um
todo discurso, ao invés de pretender humanismo que leve em conta a própria
oferecer verdades, tapar os buracos e alteridade, e não um modelo ou um
pretender-se sólida ou certa. ideal de Homem – mas sim o sentido do
Outro, que ele chama de “Rosto”.
IHU On-Line – Em que sentido o Derrida, por sua vez, radicaliza bastante
conceito de alteridade em Lévinas esta tentativa de Lévinas – e que devo
propõe uma virada ética em relação frisar que foi inaugurada por Nietzsche e
a Heidegger? Heidegger – de superar o humanismo.
Rafael Haddock-Lobo – A ética, em Não, porém, em nome de um “super-
Heidegger, ocupa um lugar secundário homem”, de um “ser-aí” ou de um
com relação à Ontologia. Esta sim, seria “outro homem”, pois, neste sentido,
o pensamento original. Com isso, o Ser é Nietzsche, Heidegger e Lévinas ainda
o que deve ser pensado, o que é digno estariam presos a uma certa figura,
de ser pensado, e a tarefa do filósofo, sombra ou fantasma de humanidade,
então, passa a ser pensar o Ser de modo mas sim em direção a um pensamento
próprio e autêntico. Lévinas inverte este de uma alteridade radical, que incluiria
esquema e diz que a filosofia primeira é os próprios textos, pensadores, animais,
a Ética: que devemos, antes de qualquer línguas e também homens.
coisa, pensar o Outro, pois este é o
fundamento e o princípio, antecedendo, IHU On-Line – Em que medida a
sobretudo, a este “eu” que cremos tão alteridade em Lévinas ainda guarda
seguro, certo e fundamental. Com isso, traços da ontologia heideggeriana?
Lévinas diz que passam a ser – e Rafael Haddock-Lobo – Como disse, o
somente assim – dignas de serem Ser, em Heidegger, surge como aquilo
pensadas questões, como a fome, a que não é nem pode ser pensado de
orfandade, as vítimas da guerra etc... modo algum como ente. Surge como
diferença e passa a ser o que deve ser
IHU On-Line – Qual é a importância
dessa virada na construção do 55
Alain Badiou (1937): filósofo, dramaturgo e
respeito à alteridade na pós- romancista, leciona filosofia na Universidade de
modernidade? Paris-VII Vincennes e no Collège International de
Philosophie. É autor, entre muitos outros, do livro
Saint Paul. La fondation de l’universalisme. Paris:
PUF, 1997, várias vezes reeditado na França e
traduzido em diferentes línguas como o inglês e o
On--Line)
italiano. (Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
pensado propriamente. Lévinas aposta IHU On-Line – O nazismo, cenário
no outro lado da moeda, no existente, e histórico de Heidegger e tantos
não na existência, nos entes e não no outros autores que hoje relemos,
ser, na ética e não na ontologia etc. Por pode ser considerado uma anomalia
isso, pode-se dizer, junto a Derrida, que ou uma radicalização da própria
Lévinas mantém o pensamento razão moderna?
heideggeriano ao invertê-lo. O que Rafael Haddock-Lobo – Se pensarmos
Derrida afirma também, e com isso friamente, Hitler nada mais foi que,
concordo plenamente, é que, nesta dentre tantos, mais um humanista: ele
inversão, Lévinas insere algo sutil, que é acreditava, tanto como os franceses da
o Outro como tema na filosofia, como revolução de 1789, em um ideal de
tarefa do pensamento e, com isso, homem que deve ser preservado a
promove uma grande e forte mudança qualquer custo. E, de fato, isso custou
nos eixos da filosofia. Ele não apenas muito. Creio, e não sei se isso foi
inverte, mas desloca o problema para suficientemente pensado ainda, que o
uma outra maneira de pensar. nazismo põe em questão o quanto um
ideal de humanidade é perigoso, pois ele
IHU On-Line – Como se insere o acaba por supor que tudo que está fora
pensamento de Heidegger na pós- deste ideal é desumano, ou subumano.
modernidade? Até que ponto ajuda Assim foi o nazismo, mas também o
na sua consolidação? Em algum humanismo francês, o ideal bolchevique
sentido ele é crítico à razão e mesmo um discurso tosco e distorcido
moderna? como encontramos no Bush filho. O
Rafael Haddock-Lobo – Heidegger ideal é o que deve ser mantido indene, e
certamente pode ser considerado um assim surgem os tantos inimigos da
autor pós-moderno, deixando de lado humanidade...
aqui todas as prevenções que eu tenho Eu gostaria de fazer duas observações
com este termo. Ele é pós-moderno no para pensarmos: primeiro, no que diz
sentido que ele não aposta mais, de respeito ao humanismo do tipo marxista
modo algum, na razão moderna, nem no – um ideal, certamente, muito mais
sujeito, nem na consciência. É por essa nobre que os do terceiro Reich –
razão que, em Ser e Tempo, ele evita, a podemos ver o risco deste ideal, que
todo custo, utilizar-se de um léxico ainda por cima está ligado a um
tradicional como homem, sujeito etc. e pensamento dialético e a uma certa
aposta em seu Dasein ou ser-aí. noção de progresso, não apenas em um
Heidegger crê que a filosofia tradicional stalinismo ou trotskismo ou mesmo sua
nunca pensou propriamente o Ser, e versão mais leve, o leninismo, mas já no
sempre o entificou. Desse modo, apenas próprio Marx que, a sua maneira,
uma “destruição da metafísica” poderia aceitava quase tranqüilamente, para
dar lugar a esta nova forma de pensar. tomarmos como exemplo, o extermínio
Devemos, contudo, ter em mente que, das tribos latino-americanas pelos
desde Husserl, a consciência subjetiva já colonizadores, pois, assim, estes povos
vinha sendo posta em questão, que a estariam sendo colocados na marcha
hermenêutica e a fenomenologia das histórica que rumaria, enfim, ao
quais Heidegger é herdeiro já iniciavam socialismo.
este movimento que Heidegger, a seu Outra questão que me vem a mente
modo, radicalizou. agora é sobre Nüremberg. Penso em

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Derrida e em Jankélevitch56. Este último existência. Mas há um outro fator que
diz que não há punição para o que se não posso deixar de enfatizar: a já tão
fez para os judeus, que isso foi citada crítica ao humanismo, que
imperdoável. Então, praticamente, como Heidegger, contra o existencialismo de
punir estes criminosos? A questão é que Sartre, desenvolve em carta sobre o
não há como puni-los. Crimes desta Humanismo. A meu ver, a crítica de
espécie não tem medida, extrapolam Heidegger aponta todo humanismo
qualquer possibilidade de julgamento. como metafísico, desde o grego ao
Isso porque, para encerrar a questão, contemporâneo, passando pelo cristão.
não dizem respeito à razão humana. E, Mas podemos ainda fazer reservas a ele.
assim, a razão humana não dá nem Sobretudo no que concerne ao tema da
nunca vai dar conta de problemas como historicidade. Se a historicidade se
esse que o nazismo cometeu. desprende de toda cronologia e passa a
ser vista como a Historicidade do Ser,
IHU On-Line – Ao reler Heidegger, um acontecimento epocal, então este
seu pensamento e sua época, o que acontecimento não pode ser mensurável
devemos levar em conta na por nenhuma valoração. O que acontece
constituição de nossa consciência não é bom nem mal, simplesmente
histórica? acontece: assim foi com o tempo grego,
Rafael Haddock-Lobo – Primeiro, e com a técnica moderna etc... Então, um
antes de tudo, nós devemos ler acontecimento como o nacional-
Heidegger. Não, como muito se fez ou socialismo, que por muitos, muitos
muito se faz, evitar lê-lo. Querendo ou mesmo, foi visto como o porvir de uma
não, Heidegger foi um dos maiores, época, pode ser de tal modo privado de
senão o maior pensador do século XX, e valoração? Mais uma questão para
Ser e Tempo é indubitavelmente o livro mantermos em mente.
mais importante de sua época.
Heidegger traz problemas fundamentais IHU On-Line – Como o senhor avalia
para o pensamento e, mais que isso, traz a influência intelectual de Heidegger
o pensamento para a existência e exige sobre o pensamento de Arendt e
da filosofia uma atenção à nossa vice-versa? O que significa o fato
cotidianidade. Nosso modo de ser deles terem cortado relações em
cotidiano, nossa vivência com os outros, plena época nazista?
com os objetos, com o mundo, são Rafael Haddock-Lobo – Apesar de não
expressões da verdade do Ser e, por isso, ser um conhecedor de Hannah Arendt,
não podem nem devem ser evitadas. venho, ao longo dos últimos anos, me
Com isso, o autor coloca a filosofia, na incomodando muito com as leituras que
esteira de Husserl, Nietzsche e a aproximam demais de Heidegger. É
Kierkegaard57, na vida. Isso é, na minha inegável o fato da ligação intelectual – e
opinião, algo que devemos ter sempre não apenas intelectual – entre os dois.
em mente – ao invés de pensarmos que Ele foi, sem dúvida, um mestre, mas
a filosofia deve ater-se às esferas aqueles que lêem o pensamento de
singulares e especiais de nossa Arendt como quase uma “aplicação
política” da filosofia de Heidegger estão
56
Wladimir Jankélévitch: Filósofo e musicólogo cometendo um crime com a pensadora.
judeu do século XX especialista em Debussy, E talvez até mesmo com Heidegger. Ela
biógrafo e crítico. (Nota da IHU On-
On-Line)
dá um passo muito além de Heidegger,
57
Søren Aabye Kierkegaard (1813 - 1855) foi um
teólogo e um filósofo dinamarqués do século XIX, por pensar politicamente, coisa que para
que é conhecido como o "pai" do existencialismo. Heidegger era uma coisa menor, menos
On--Line)
(Nota da IHU On

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digna de ser pensada que uma Freiburg, Heidegger nada fizera para
Ontologia. Arendt enfatiza um evitar o afastamento do mestre. Depois,
pensamento político e da política, coisa Lévinas, prisioneiro de um campo de
que, em Heidegger, é inconcebível. Além trabalhos forçados, começou a pensar
disso, ao que se sabe, Heidegger nunca nos problemas do pensamento de
deu nenhuma atenção ao pensamento Heidegger... E, por fim, Arendt. Creio que
dela. Quanto à questão pessoal, ela foi o problema afetivo não deve ser levado
mais uma dentre muitos que se tanto em consideração. É claro que isso
decepcionaram com Heidegger. Antes de agrava, e muito, o problema, mas todos
tudo Husserl, que teve sua dedicatória os autores citados apresentaram reservas
Tempo
retirada de Ser e Tempo. Além disso, nos quanto ao pensamento de Heidegger, e
anos que assumira o reitorado de não apenas ao ser humano Heidegger.

“A filosofia heideggeriana é
destrutiva e construtiva”
Entrevista com Écio Elvis Pisetta

Pensar é pensar contra si mesmo, argumenta o filósofo Écio


Elvis Pisetta, analisando o legado filosófico heideggeriano.
On--Line, ele compara
Em entrevista por e-mail à IHU On
aspectos do pensamento nietzschiano com o de Heidegger,
pois “destruição e construção são os dois lados da mesma
moeda”. Sobre a vinculação do nazismo à filosofia de
Heidegger, “como se um se prolongasse ou se espelhasse no
outro”, Pisetta diz que isso é um golpe baixo, porque foge do
diálogo. Essas e outras reflexões, como sobre o sentido do ser-para-a-morte, são
trazidas por Pisetta à discussão na entrevista que segue.

Graduado em Filosofia pela Universidade São Francisco (USF), Pisetta é mestre e


doutor em Filosofia pela UFRJ. Sua dissertação intitulou-se O conceito existencial de
ciência em Martin Heidegger e sua tese, Morte e totalidade: um estudo acerca do ser-
para-a-morte e suas remissões para a compreensão da totalidade em Martin
Heidegger. Pisetta leciona Filosofia na rede pública de ensino do Estado do Rio de
Janeiro, a adolescentes e adultos do nível médio.

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IHU On-Line – Quais seriam as Existenciais no lugar das categorias ou
maiores contribuições e limitações propriedades
propriedades
de Martin Heidegger? Em oposição às categorias ou
Écio Pisetta – Para muitos, Heidegger é propriedades, Heidegger propõe os
considerado o pensador mais existenciais: estes são compreendidos
significativo do século XX, e isso por como modos de ser. Antes de tudo e, na
diversos motivos: como poucos, foi maioria das vezes, nós estamos naquilo
alguém que, durante toda a sua vida, que o autor denomina cotidianidade. As
dialogou com a tradição filosófica e seus estruturas mais freqüentes da
grandes expoentes, desde os pré- cotidianidade correspondem aos
socráticos até os pensadores mais existenciais, que são destacados e
recentes; ocupou-se com as temáticas desdobrados para uma compreensão do
centrais de cada pensador, com as humano. A partir disso, podemos dizer
discussões e conceitos forjados pela que, pelo menos, uma das maiores
filosofia grega – e que orientam contribuições de Heidegger à filosofia foi
grandemente toda a nossa vida atual – e a ocupação com o ser, nos mais diversos
até com a preponderância da ciência e autores e temas, bem como a
da tecnologia em nossos dias. A necessidade de sempre de novo pensar
tecnologia, por exemplo, deve ser os fundamentos ontológicos do ser
pensada como o acabamento da humano. O que importa não é dizer o
metafísica. que os filósofos pensaram, mas pensar
Heidegger é um pensador atual, não junto com eles. A filosofia
porque discute temas que estão na heideggeriana é destrutiva e construtiva:
ordem do dia, mas porque busca dizer pensar é pensar contra si mesmo. Pensar
aquilo que cada vez é o essencial em consiste antes numa tarefa, num a-se-
todas as questões e tentativas de fazer cada vez, mais do que uma
respostas que o ser humano faculdade racional já resolvida. E qual a
experimenta. Trata-se do ser. Assim, maior limitação? Se entendermos
Heidegger pensa o ser e interpreta a “limite” como alguma deficiência, algo
tradição metafísica, em suas diversas que não foi adequadamente trabalhado
variantes, como a história do por algum pensador, é difícil responder.
esquecimento do ser. Em Ser e tempo Diz-se, por exemplo, que Heidegger
ele se coloca a pergunta sobre o ser. deveria ter fornecido, em sua obra, uma
Entretanto, para poder colocar ética... Mas quando lemos a carta Sobre
legitimamente esta pergunta, ele o humanismo e Ser e tempo somos
necessita fazer uma analítica do Dasein levados a questionar se tal “falta”
(do ser humano, da pre-sença), colocar a constitui “de fato” uma carência. Esta
questão pelo ser de quem questiona, isto crítica deve-se antes a um problema de
é, pensar a “essência” daquele ente (do compreensão do pensamento de
ser humano): quem é este que Heidegger. No entanto, todo pensamento
questiona? “O como” é o ser humano concretiza-se, sempre e necessariamente,
mostra-se mais significativo na filosofia nos limites de sua história, vinculado aos
heideggeriana do que “o que” é o ser problemas que lhe servem como pano
humano. Surge, então, o conflito, sempre de fundo. Se o pensamento visa a uma
presente no pensamento heideggeriano, certa transcendência, ao mesmo tempo,
sobre qual a melhor maneira de ele é sempre imanência, chão, limite. O
determinação do ente. ser é sempre tematizado com base no
ser humano existente, isto é, sempre
localizado ou situado, ocupando-se com

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os outros, com as coisas e consigo sempre de uma maneira incompleta,
mesmo, dotado de um sentido. Mais do pois nunca incorporaria a morte à vida.
que uma deficiência, a limitação é Entretanto, esta argumentação, criticada
fundamental para todo pensamento por Heidegger, separa morte de vida.
essencial. O que não tem limite, não tem Contra isso, a cunhagem do ser do
também consistência, e não está homem como ser-para-a-morte, visa a
sintonizado com seu tempo. compreender a morte e a vida na
simultaneidade da existência, no ser
IHU On-Line – Como o filósofo aqui e agora em cada atividade. A
entende o Ser-para-a-morte e como o interpretação existencial inclui a
conceito contribui para a temática da morte na vida humana,
compreensão da totalidade em enquanto o ser humano é e,
Heidegger? retroativamente, o ser humano pode
Écio Pisetta – A temática da morte adquirir uma distinta compreensão de si
aparece de maneira especial, mas não mesmo, dos outros e das coisas, com
exclusiva, no início da segunda parte de quem vive, convive, se ocupa, a partir do
Ser e tempo. As reflexões ali realizadas ser-para-a-morte. A morte não está num
têm por objetivo conquistar uma nova “fim”, mas o ser humano, cada vez, é
compreensão da morte. Em geral, para o fim.
fazemos uma oposição entre vida e
morte. A partir dessa compreensão, IHU On-Line – De que forma a
quando a morte é, nós não somos, e certeza cotidiana da morte influencia
enquanto nós somos, ela não é. Assim o cotidiano da vida pós-moderna?
sendo, a morte nada teria ver conosco. A Écio Pisetta – De que forma nós, em
morte, para Heidegger, é experimentada nossa cotidianidade, estamos certos de
pelo ser humano em vida, isto é, a morte nossa morte? Pois todos dizem em alto e
é problema enquanto nós estamos vivos. bom tom que a coisa mais certa da vida
Desse modo, o ser humano é ser-para-a- é a morte. Qual a qualidade desta
morte. Sua vida está sempre remetida certeza? Por certo, é estranha, porque
para esta experiência extrema, a cada não sabemos nem o dia nem a hora.
momento. Não podemos desdobrar Curiosamente, em todas as nossas
agora esta noção, mas podemos atividades corriqueiras, o que nós mais
acrescentar que, em Heidegger, trata-se fazemos não é determinar com precisão
de uma noção privilegiada, ímpar, e não a nossa morte, pois isso é impossível,
no mesmo patamar de outras vivências. mas é fugir de toda a determinação da
O ser-para-a-morte é um existencial morte. Assim, a certeza é principalmente
privilegiado porque ele só pode ser uma indeterminação do aqui e agora de
vivido antecipadamente e como nossa morte. Percebemos isso nos
“possibilidade”, nunca como alguma diversos comportamentos diante dos
“realidade”, que possa ser efetivada, isto moribundos, quando consolamos,
é, é sempre antes que vivemos nossa estimulamos, falamos que tudo vai
morte. E, sucintamente, retomando a melhorar, etc.; também nas mil e uma
segunda parte da pergunta, a temática da ocupações em que sempre estamos
totalidade pode ser assim colocada: se envolvidos.
mantivermos a compreensão de que Se uma das características da vida pós-
vida e morte se excluem, então a morte é moderna é o fim de todas as certezas,
algo que se acrescenta ao ser do homem seguranças, fundamentos da metafísica,
quando ele morre. Então, ele já não será podemos ver na certeza cotidiana da
mais. Disso se concluiria que ele viveria morte a exposição da pós-modernidade:

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a morte é certa, porém, indeterminada, mundo vive, tendo em vista a
por isso, possível a todo momento, mas possibilidade da morte, como nossa
por ora, ainda não... Dessa forma, em intransferível possibilidade, podemos
todas as nossas ocupações nós nos balizar de forma própria, isto é, singular,
desviamos de um encontro com o ser- cada atividade ou ocupação de nossa
para-a-morte que somos, preenchendo o existência. A “propriedade” não é algo
nosso tempo das mais diversas formas, fora da existência que nós vivemos, mas
inclusive fugindo para ideologias as é uma transmutação que ocorre no seio
mais diversas, religiosas, filosóficas, da impropriedade: vê-se com novos
psicológicas, científicas etc. Em todos olhos o que sempre já se viu. Uma
estes posicionamentos, o ser humano existência transmudada. Por isso,
esquiva-se de viver no aqui e agora o seu Heidegger fala que o ser-para-a-morte
ser como ser-para-a-morte. deve ser concebido como liberdade para
a morte, numa recordação à “morte
IHU On-Line – Quais as relações que livre” de Nietzsche.
se estabelecem entre morte e
decisão segundo Heidegger? IHU On-Line – A filiação ao nazismo
Écio Pisetta – Com esta pergunta por parte de Heidegger pode ser
chama-se a atenção para o aspecto entendida como uma conseqüência
ontológico do ser-para-a-morte, dentro de seu pensamento filosófico?
de uma análise existencial do ser Écio Pisetta – Como li outro dia num
humano. O fenômeno da decisão jornal, vincular o pensamento
(Entschlossenheit), em Ser e tempo, leva heideggeriano ao nazismo, como se um
o ser humano a experimentar-se de se prolongasse ou se espelhasse no
modo mais próprio. A decisão, pensada outro, é um “golpe baixo”. E isso por
existencialmente, opõe-se ao modo de uma simples razão: é o caminho mais
ser do homem tal como ele o vive em fácil para fugirmos do diálogo. É
geral, isto é, ao modo de ser impessoal. conhecida e muito discutida a
Como, em geral, é o ser humano? Como participação heideggeriana no partido
todo o mundo é, e raramente apenas nazista, mas reduzir uma à outra é não
como só ele pode ser. Heidegger pensar, nem em uma, nem em outra, é
concebe a idéia de uma experiência não dispor-se a questionar nem o que é
própria da existência em oposição a filosofia nem o que é nazismo e,
uma imprópria. Apesar de nós, em geral, sobretudo, é não deixar-se provocar
vivermos impropriamente, perdidos nas pelas questões levantadas pela filosofia
teias do impessoal, isso não significa que heideggeriana. Seria mais digno
esta seja a única possibilidade de nosso aprender a ouvir o obscuro filósofo
ser. Assim, decisão pode ser vista como Heidegger do que soterrá-lo no chavão
“destrancamento”, liberação ou impensado de “nazista”.
libertação. O ser-para-a-morte,
genuinamente assumido pelo ser IHU On-Line – Alguns autores
humano como possibilidade privilegiada associam Heidegger ao projeto
de ser e existir, é também decisão para a nietzschiano de desconstrução da
morte (não como o suicídio semântica ocidental. O que o senhor
corriqueiramente compreendido). pensa disso?
Na decisão para a morte, acontece um Écio Pisetta – Ser e tempo fala da
destrancamento, uma libertação. Do necessidade de destruição da história da
quê? Da existência como possibilidade, metafísica. Como já dissemos, não
isto é, se vivemos em geral como todo o podemos ver na noção de destruição um

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mero aniquilamento do que nos foi Por isso, não podemos esquecer que,
legado pela tradição filosófica. Destruir segundo Nietzsche, todo construtor deve
é, de certa forma, assumir ou ser antes um destruidor. Destruição e
reconquistar a gênese da tradição, isto é, construção são os dois lados da mesma
não meramente aceitar e passar adiante moeda. Com base nessa concepção,
os conceitos herdados, mas investigar podemos ver uma certa unidade nos
suas origens, pensar desde os princípios. projetos nietzscheano e heideggeriano.

Brasil em foco
Só o desmonte da máquina de
desigualdade pode mudar o Brasil
Entrevista com Tânia Bacelar

Tânia Bacelar de Araújo é bacharel em Ciências Sociais e em Ciências


Econômicas e doutora em Economia Pública, Planejamento e Organização do
Espaço. Lecionou nos cursos de Economia da UNICAP e da UFPE e integra o
corpo docente dos cursos de graduação e mestrado em Geografia, Ciência
Política e Desenvolvimento Urbano e Regional da UFPE. Foi diretora de
Planejamento Regional da SUDENE, secretária do Planejamento, secretária da
Fazenda do Estado de Pernambuco e diretora do Departamento de Economia da
Fundação Joaquim Nabuco. É diretora da CEPLAN (C onsultoria Econômica de
Planejamento) e atua como consultora de várias entidades nacionais e internacionais.
Ela concedeu a entrevista que segue, por telefone, à redação da IHU On
On--Line
Line,
diretamente de Brasília, onde está participando do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária, que começou na terça-feira, dia 26 de junho, e termina hoje, dia 29-6-2006.
Além de tratar da aplicação da proposta da economia solidária no modelo
econômico atual, questionamos a professora Tânia sobre a conjuntura nacional,
principalmente no aspecto econômico. A entrevista foi publicada nas Notícias
Diárias, do sítio do IHU, de 29/06/2006.

IHU On-Line - Qual é a sua análise é um modelo direcionado ao


do modelo econômico adotado pelo consumo popular?
governo Lula? Como o classifica? Ele Tânia Bacelar - Gostaria de fazer uma
primeira distinção entre a política

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JULHO DE 2006
macroeconômica e a política voto nas camadas mais pobres da
econômica mais geral, que inclui outras população.
políticas econômicas que não são o que
chamamos de política macro. A política IHU On-Line - Quais as principais
de juros, a política fiscal e a política conseqüências que estamos
monetária não estão voltadas para o sofrendo do modelo de crescimento
consumo popular. Elas pretendem adotado nos últimos 50 anos? Como
garantir a estabilidade da inflação e a senhora define esse modelo?
privilegiam o pagamento da dívida Tânia Bacelar - O modelo hegemônico
pública, com taxas de juros ainda muito no mundo é o modelo organizado pelo
elevadas, embora menores do que as do capitalismo. Ele tem esse traço
governo anterior. Mesmo assim, seguiu importante que o distingue, por
privilegiando os aplicadores, as pessoas exemplo, da economia solidária. E,
mais ricas, que podem comprar títulos além disso, foi marcado nos últimos
do governo. Com isso, essas pessoas anos por uma mudança nos padrões
financiam o governo e são muito bem tecnológicos de grande dimensão. Nós
remuneradas. ainda vivemos nessa conjuntura de um
A política econômica é mais ampla modelo que busca, principalmente,
porque inclui, por exemplo, a política assegurar lucros. Coincidentemente,
industrial. O governo anterior não tinha vivemos também com uma mudança
política industrial e o atual tem. Ele muito importante nos padrões técnicos,
inclui a política de apoio à agricultura a ponto de a chamarmos na academia
familiar. Aí o governo atual faz de "revolução científico-tecnológica",
diferença. O Pronaf, quando terminou o pois se trata de uma verdadeira
governo Fernando Henrique, aplicava revolução, que se dá pela passagem do
R$ 2,4 bilhões por ano. Nessa safra, nós paradigma mecânico para o paradigma
estamos aplicando R$ 9 bilhões. É um eletrônico. É nesse paradigma que
aumento muito significativo, e isso estamos entrando agora. Na verdade, já
amplia o consumo popular, porque os estamos nele.
produtores agrícolas são pessoas que E essa é uma mudança que requer um
produzem alimentos para o mercado outro tipo de trabalho, outras
interno brasileiro. habilidades dos trabalhadores. O
Uma outra política diferente é a de modelo atual é comandado pela esfera
crédito, que foi muito ampliada. A financeira da economia, considerando
participação do crédito no PIB cresceu, que ele opera em duas esferas: a
e isso facilita e mobiliza o consumo das produtiva e a financeira. A produtiva
classes médias para a baixa. O aumento está em revolução, e os agentes
real do salário mínimo foi mais econômicos estão ganhando muito mais
significativo, coincidindo com o índice dinheiro hoje, aplicando no mercado de
de inflação baixo e com os preços dos moeda e na bolsa de valores. Isso
alimentos principais sem crescer muito. intensifica a contradição do capitalismo:
Eu gosto de fazer uma comparação: ele é muito bom para aumentar a
quando surgiu o plano real, um salário produtividade e modernizar a
mínimo comprava 70% da cesta básica. economia, mas é muito incompetente
Hoje o salário mínimo compra duas para resolver os problemas sociais, que
cestas básicas. É inegável que o têm crescido no mundo e no Brasil. O
consumo popular está crescendo no resultado dessas tendências é o
País. Não é a toa que Lula tem uma agravamento da crise social do mundo.
imensa predominância de intenção de

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JULHO DE 2006
IHU On-Line - O Brasil tem, dos anos 1980 e que faz com que o
atualmente, um modelo de modelo não esteja dinâmico como já
desenvolvimento? Qual seria esse foi. Nós temos um modelo, mas ele não
modelo? é dinâmico. E também concordo com o
Tânia Bacelar - As elites brasileiras têm segundo grupo, na segunda parte da
um modelo para fazer do Brasil uma afirmativa, de que estamos crescendo
economia capitalista, moderna e uma pouco há 25 anos.
das principais economias capitalistas do
mundo. Esse é o projeto hegemônico IHU On-Line - Como seria um
das elites brasileiras. O grande progresso sustentável? Como se
problema dessa visão é que o Brasil é podem integrar as possibilidades
um país muito desigual e não vai energéticas no Brasil e na América
conseguir ser uma grande economia, Latina ao modelo econômico
nem uma das principais potências, com vigente?
o quadro de desigualdade social que ele Tânia Bacelar - Eu acho que não pode.
tem. Por isso, é preciso, mesmo Nós teríamos que, gradualmente, mudar
crescendo um pouco menos, inserir esse modelo hegemônico, que não dá
melhor a sociedade brasileira na vida conta das necessidades da maioria da
produtiva do País. Eu não conheço população do Brasil, nem dá conta das
nenhum país entre as potências no nossas grandes potencialidades. Ele
mundo que tenha o tamanho da desperdiça muita potencialidade
exclusão social que o Brasil tem. Esse é existente no Brasil, exatamente porque
o equívoco da elite brasileira. Ela acha ele é excludente, seletivo, apropriado
que pode fazer do Brasil uma grande para o pedaço mais moderno do Brasil.
potência com o tamanho da E o País não é só o pedaço mais
desigualdade social que nós temos. E moderno. Mas essa fatia dita "não-
não pode. Basta ver a crise social moderna" tem muito potencial. Temos
instalada nas principais capitais do País. que fazer uma mudança desmontando
a máquina de desigualdade que foi
IHU On-Line - Entre os economistas instalada aqui. Só isso muda o Brasil.
há duas principais correntes de
pensamento com relação ao IHU On-Line - Quais são as suas
desenvolvimento brasileiro. Uma diz impressões do evento de Economia
que o Brasil teria um modelo de Solidária em que está participando
desenvolvimento capitalista, e uma aí em Brasília? Quais os principais
outra que diz que o País não tem temas que estão sendo discutidos
um modelo de desenvolvimento, no evento? O que a senhora tira de
que ele está parado, estagnado, mais importante até o momento?
desde a década de 1980. Com qual Tânia Bacelar - Primeiro, destaco a
dessas posturas a senhora mais se força que esse tipo de economia já tem
alinha? no País. O encontro revela isso. Eu
Tânia Bacelar - Em primeiro lugar, achava que tinha menos. Desse ponto
basta juntar dois economistas e teremos de vista, o encontro é positivo para
duas opiniões. Eu partilho mais da revelar para pessoas como eu,
primeira opinião. Nós temos um interessadas no assunto, o potencial e
modelo, que é um modelo típico do os avanços que já se fez. Isso é muito
capitalismo contemporâneo, só que positivo. Em segundo lugar, o evento
vivemos uma crise financeira muito mostra que é muito difícil consolidar
profunda do Estado brasileiro, que vem esse tipo de economia no quadro da

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JULHO DE 2006
hegemonia do capitalismo. É difícil, esse tipo de economia já deve
mas não é impossível. representar algo por volta de 1/5 da
produção brasileira e mobiliza muita
IHU On-Line - Quais as limitações da gente. O grande limite é que ele opera
economia solidária? num ambiente desfavorável, organizado
Tânia Bacelar - A principal limitação para outro tipo de economia, que é a
que ela encontra é o aparato capitalista. A base conceitual avançou
institucional, que está montado para a muito. Hoje já se tem uma produção
economia capitalista. Então, temos que acadêmica muito mais consistente e as
atuar com o padrão de economia que se experiências concretas também
organiza em torno de outros valores, de avançaram muito. No entanto, o que
outras relações sociais e de produção, nós temos hoje ainda é um subsídio do
num ambiente que está elaborado para que poderá ser quando isso crescer no
a economia capitalista. Esse é o futuro. O interessante é que isso não
principal entrave, tanto que há várias acontece só no Brasil. Esse é um debate
faixas no encontro pedindo mudança mundial.
do aparato institucional, por exemplo,
"novo aparato institucional para as IHU On-Line - A senhora aposta na
cooperativas". proposta da economia solidária?
Tânia Bacelar - Aposto. Tenho
IHU On-Line - Qual a importância de paciência. É uma construção lenta, mas
se debater sobre Economia Solidária consistente. É importante destacar que
na sociedade contemporânea? Quais o governo Lula criou uma secretaria de
as possibilidades da sua aplicação economia solidária. Essa é outra
dentro desse modelo conservador diferença. E essa secretaria tem hoje
neoliberal vigente? O que a senhora uma política, um programa de apoio.
pensa dessa proposta? Eu não acredito que o governo construa
Tânia Bacelar - Estamos discutindo as a economia solidária, quem constrói é a
suas vantagens, mas o fato é que ela sociedade, mas se o governo apoiar, é
existe e já tem uma dimensão melhor.
interessante. Pelo que tenho lido
recentemente, há uma estimativa que

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JULHO DE 2006
Destaques da Semana

Entrevista da Semana pg. 47


Análise de Conjuntura pg. 51
Memória pg. 55
Filme da Semana pg. 56
Deu nos Jornais pg. 60
Frases da Semana pg. 61
Destaques On-Line pg. 63

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JULHO DE 2006
Entrevista da Semana

Vaz e a filosofia da natureza


Entrevista com Armando Lopes de Oliveira

On--Line intitulado
Dando continuidado ao tema de capa da edição 186 da IHU On
Jesuítas: quem são?, publicamos uma entrevista realizada por e-mail com o professor
da UFMG, Armando Lopes de Oliveira, aluno do jesuíta Henrique Cláudio de Lima
Vaz (1921-2002). Armando Lopes de Oliveira é licenciado, bacharel e mestre em
Física pela UFMG. Doutorou-se em Física pelo Centro de Estudos Nucleares de
Grenoble, França, e é pós-doutor pelo Imperial College, em Londres. O físico
coordenou, durante o Simpósio Internacional Terra Habitável,
Habitável realizado pelo IHU em
2005, a oficina A estrutura do universo e os seus códigos físicos e ministrou o curso
O caos dedilhado em planilhas Excel.
O pesquisador concedeu três entrevistas à IHU On-
On-Line: na edição 143, de 30 de
maio de 2005, sob o título As revoluções causadas pela teoria da relatividade; na
edição 142, de 23 de maio de 2005, celebrando a memória do Padre Henrique
Cláudio de Lima Vaz, e na edição 141, de 16 de maio de 2005, a entrevista com o
título A imperiosa criação e recriação dos códigos de entendimento do Universo. A
On--Line dando continuidade às
entrevista que segue foi respondida por e-mail à IHU On
discussões suscitadas na edição 186, de 26 de junho de 2006, no número Jesuítas,
quem são eles?,que, entre outros temas, refletiu sobre o legado do Padre Vaz. Confira!

IHU On-Line - Como definiria o Pe. com rara habilidade e criatividade, sem
Vaz? Que experiências poderia nunca incorrer nas chocantes
relatar sobre esse grande filósofo? imposturas intelectuais denunciadas
Armando Lopes de Oliveira - Filósofo por Alain Sokal58. Sua genialidade,
de primeiríssima grandeza, erudição e espírito enciclopédico,
orgulhosamente modesto e simples, alicerçados no que há de mais sadio de
arredio à convivência social vazia e oca, um espírito cristão que valorizava toda
que não prestigiasse os valores do conquista humana de vanguarda,
espírito, culto como ninguém, erudito permitiram-lhe a façanha de continuar
como ninguém, de psicologia tímida, sendo rigorosamente e sempre um
era capaz de tocar com misteriosa homem do seu tempo. A partir deste
varinha de condão, manobrada com
uma memória de anjo, tudo o que lia, 58
Alan Sokal: físico americano, professor na
fazendo transposições criativas de um Universidade de Nova Iorque. Com Jean Bricmont
escreveu Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro:
domínio do conhecimento para outro, On--Line)
Editora Record, 1999. (Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
ponto de vista entende-se por que se Razão Pura de Kant61. Pena que tudo
tenha transformado em mentor tenha permanecido sem ter sido
intelectual de tantas faixas etárias e publicado sob a forma de livro.
sempre tenha sido consultado por Harmonizar ciência contemporânea e fé
pessoas das mais diversas formações e não é tarefa fácil e corriqueira. Lima
profissões, desde políticos, filósofos e Vaz abriu uma senda importante para
juristas, até acadêmicos e cientistas das isso.
mais diferentes áreas.
Minha experiência em conviver com IHU On-Line - Poderia caracterizar
Henrique Cláudio de Lima Vaz, seja um pouco mais em que consistiu
como meu professor (Interpretação de essa revolução na pesquisa e no
Textos e Filosofia da Natureza, em Nova estudo da filosofia da natureza?
Friburgo – início da década de 1960; Essa revolução teve continuidade
Ética, no ISI – final da década de 1990), até o presente?
seja como amigo, como confidente e Armando Lopes de Oliveira - Talvez
como mentor (desde a década de 1960, seja mais rigoroso falar de revolução
até alguns meses antes de sua morte) delineada, mas não consolidada, devido
constituiu experiência humana, cultural ao desestímulo sofrido, na época de sua
e espiritual indelével e fascinante.
inspirou os seus contemporâneos e gerações de
IHU On-Line -Quais foram as filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele
grandes contribuições de Vaz na iniciou a formação daquilo a que hoje se chama
de racionalismo continental (supostamente em
área da filosofia da natureza? Qual é oposição à escola que predominava nas ilhas
a importância dessa área para a britânicas, o empirismo), posição filosófica dos
sociedade? On--
séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On
Armando Lopes de Oliveira - Na Line)
década de 1960, em Nova Friburgo, Vaz, 61
Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano,
articulando-se com o seu companheiro considerado como o último grande filósofo dos
de ordem religiosa, padre Xavier princípios da era moderna, representante do
Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus
Roser59, listado como um dos primeiros pensadores mais influentes da Filosofia. Kant teve
PH.Ds a trabalhar em nosso país, e, na um grande impacto no Romantismo alemão e nas
época, professor de física na PUC-Rio, filosofias idealistas do século XIX, tendo esta
conseguiu empreender uma revolução faceta idealista sido um ponto de partida para
Hegel. A IHU On On--Line número 93, de 22 de março
metodológica, na pesquisa e no estudo de 2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à
da filosofia da natureza, revolução essa, obra do pensador. Também sobre Kant foi
no meu fraco modo de entender, de publicado este ano o Cadernos IHU em formação
magnitude não inferior ao Discours de número 2, intitulado Emmanuel Kant - Razão,
liberdade, lógica e ética. Os Cadernos IHU em
Crítica
la Méthode de Descartes60 e a Crí tica da formação estão disponíveis para download na
página www.unisinos.br/ihu do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU. Kant estabeleceu uma
59
Francisco Xavier Roser (+1967): fundador do
distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que
Instituto de Física da PUC-Rio, representante do
chamou noumenon), isto é, entre o que nos
Brasil na comissão de Energia Atômica da ONU.
aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-
On--Line)
(Nota da IHU On
em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser
60
René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e objeto de conhecimento científico, como até
matemático francês. Notabilizou-se sobretudo então pretendera a metafísica clássica. A ciência
pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e
tendo também sido famoso por ser o inventor do seria constituída pelas formas a priori da
sistema de coordenadas cartesiano, que sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias
influenciou o desenvolvimento do cálculo do entendimento. (Nota da IHU On On--Line)
moderno. Descartes, por vezes chamado o
fundador da filosofia e da matemática modernas,

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JULHO DE 2006
consolidação, não apenas pela morte encarar o ínfimo (escala atômica,
prematura do seu colega e amigo Padre nuclear e subnuclear), utilizando-se as
Xavier Roser, que o colocava de cheio mesmas leis válidas para o
em contato com os grandes conceitos intermediário (escala humana), ou para
físicos (principalmente teoria da o astronômico (escala cósmica), em fé,
relatividade), convidando-o a reelaborá- ética e política deve-se usar uma escala
los como categorias filosóficas, mas radicalmente humana, de maneira
ainda pela incompreensão de grande análoga ao que faz a física, ao lidar com
parte dos seus superiores hierárquicos, o nosso quotidiano: utiliza-se geometria
isso no seio de uma ordem religiosa tão euclidiana e não riemanniana, tempo e
disciplinada como a dos jesuítas. E Vaz espaço newtonianos e não-relativísticos.
não quis transformar-se em uma
espécie de enfant terrible. De uma coisa IHU On-Line- Poderia explicar um
Lima Vaz, no entanto, sempre se pouco mais a originalidade desse
mostrou intimamente convencido, não método elaborado por Pe. Vaz?
se podia continuar a fazer uma filosofia Armando Lopes de Oliveira - De
da natureza, imediatamente com base inspiração hegeliana, o Pe. Vaz
no bom senso ou no senso comum. fundamentou sua reflexão filosófica no
Tudo deveria alimenta-se da fonte viva que Hegel62 considerava a ciência
do conhecimento científico. O logos maior, a história. Cada conceito a ser
filosófico sobre a natureza, segundo explorado parte de profunda e bem
Vaz, só faria sentido se mediatizado documentada pesquisa histórica
pelo logos científico. (indução histórica), em que procura pôr
a descoberto a denotação daquele
IHU On-Line - Como ele se apropriou conceito em cada época.
da teoria da relatividade? Criteriosamente empreende, então, a
Armando Lopes de Olveira - Vaz tarefa de depurá-lo de toda conotação
apropriou-se da teoria da relatividade acidental (redução crítica) e captar o
de maneira análoga à apropriação feita que essencialmente é lícito afirmar via
por Kant em relação à física clássica ou
newtoniana, mas seguindo pegadas 62
Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Foi
inteiramente diversas, mais próximas um dos pensadores mais influentes dos tempos
do hegelianismo que do kantismo, com recentes. Como Aristóteles e Santo Tomás de
base no método dialético por ele Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema
elaborado na década de 1960, que filosófico no qual estivessem integradas todas as
contribuições de seus principais predecessores.
perpassa toda a sua imensa e prodigiosa
Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito,
obra filosófica, método este constituído tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa
essencialmente de indução histórica, continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel
redução crítica e elaboração categorial. considerava uma variedade tão grande de
concepções quanto os diversos estados da mente
e encarava-as como estágios no desenvolvimento
IHU On-Line - Quais foram as do espírito em direção a uma maior maturidade.
contribuições do Pe. Vaz para Sua segunda obra, A Ciência da Lógica, faz uma
compreender as relações fé-ética e análise sistemática dos conceitos. Sua
política? Enciclopédia das ciências filosóficas contém todo
o seu sistema de uma forma condensada. O
Armando Lopes de Oliveira - Vaz direito.
último livro de Hegel foi A filosofia do direito
convida-me a pensar. Como na Depois de sua morte, seus alunos publicaram suas
natureza existem várias escalas, a conferências sobre filosofia da história, da religião
microscópica, a mesoscópica e a e da arte, e sobre história da filosofia, usando
principalmente suas anotações. (Nota da IHU On On--
macroscópica, sendo inútil tentar
Line)

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JULHO DE 2006
cada conceito estudado (elaboração em reelaborar a lógica de Hegel de
categorial). A parte mais árdua e árida é maneira original e muito promissora.
a da elaboração categorial. Não é por
acaso que o volume dois do tratado de
ética de Henrique Vaz é de leitura mais
agradável que a do volume dois.

IHU On-Line- Algum outro aspecto


que não foi perguntado e deseje
acrescentar...
Armando Lopes de Oliveira - Vaz, nos
seus últimos anos de vida, perguntava-
me com certa freqüência se não seria
ousadia sua tentar reescrever a Filosofia
da Natureza e publicá-la sob a forma de
livro. Procurei encorajá-lo...
Infelizmente a morte o colheu de forma
inesperada. Por sua vez, utilizando
inspiração hegeliana, em outra vertente
que não a vaziana, o professor Cirne-
Lima63, na Unisinos, tem se empenhado

63
Carlos Roberto Velho Cirne-Cirne-Lima: filósofo
brasileiro, professor do PPG Filosofia da Unisinos.
É graduado em Filosofia pelo Berchmannskolleg,
em Pullach (Alemanha), doutor em Filosofia pela
Universität Innsbruck, (Áustria) e livre-docente
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
(UFRGS). Entre seus livros publicados, citamos:
Realismo e Dialética. A analogia como dialética do
Realismo. Porto Alegre: Globo, 1967; Sobre a
contradição. Porto Alegre: Edipucrs, 1993; Dialética
para Principiantes. São Leopoldo: Editora Unisinos,
On--Line publicou uma entrevista
2002. Dele a IHU On
na 80ª edição, de 20 de outubro de 2003, sob o
título As universidades perderam a unidade do
saber e na 102ª edição, de 24 de maio de 2004,
sob o título Karl Rahner defendeu idéias, antes do
tempo, cedo demais. Na edição 142 da IHU On On--
Line, de 23 de maio de 2005, intitulada O ser
humano como sujeito social na Teoria dos
Sistemas, Auto-Organização e Caos, Cirne-Lima foi
um dos integrantes da mesa-redonda que debateu
esse assunto com os filósofos Karen Gloy, da
Universidade de Lucerna, Áustria, e Günther
Küppers, da Universidade de Bielefeld, Alemanha.
A entrevista mais recente concedida pelo filósofo
On--Line foi na edição 183, de 5 de junho de
à IHU On
2006, quando falou sobre o lançamento do CD-
ROM Dialética para todos, sob o título Dialética
para todos: Aristóteles com o controle-remoto na
mão. Todas as entrevistas estão disponíveis para
download no site do IHU, www.unisinos.br/ihu.
On--Line)
(Nota da IHU On

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JULHO DE 2006
Análise de conjuntura
Os dois caminhos do México
Entrevista com Carlos Montemayor

On--
Nas vésperas das eleições no México, na sexta-feira passada, dia 30/06/2006, IHU On
Line conversou por telefone com o tradutor, ensaísta, poeta e narrador mexicano
Carlos Montemayor. A entrevista, que foi publicada nas Notícias Diárias do sítio do
IHU do dia 1/07/2006 é reproduzida na presente edição, enquanto ainda se espera o
resultado final das eleições. Montemayor formou-se em Letras Ibero-Americanas na
Universidade Nacional Autônoma de México (UNAM). Foi professor da Universidad
Autónoma Metropolitana- Azcaptzalco (UAM-A). Conferencista reconhecido e lido
em diversos institutos e universidades do México, da América Latina, da Europa e
dos Estados Unidos, membro do Conselho Científico Internacional, da Association
Archives de la Littérature Larino-Américaine, des Caribes et Africaine du xxe siècle,
da Academia Mexicana da Língua Espanhola, é especialista em tradição oral dos
maias de Yucatán e impulsionador da nova literatura escrita na língua desse povo e
Correspondente da Real Academia Espanhola. Destacamos, entre suas obras, o
importante livro Chiapas, la rebelión indígena de México. Madrid: Espasa, 1998. Para
Montemayor, há só duas opções eleitorais: o continuísmo do presidente Fox no
candidato Calderón ou uma certa mudança no compromisso social que estaria
presente em López Obrador. Ele localiza no EZLN e A outra campanha como uma
movimento de cidadania que está bem além do processo eleitoral e tem um caráter
continuo. Montemayor já concedeu entrevista à IHU On-Line** na edição 89ª de
12/01/2004 com o título **A globalização pode ser desativada**

Confira, a seguir, trechos da conversa telefônica do escritor mexicano, estudioso do


On--Line
Movimento Zapatista com a IHU On

IHU On-Line - Como deixa o País o um decrescimento. Há um desgaste


presidente Vicente Fox? social muito notório pelo
Carlos Montemayor - A adminsitração desvanecimento enorme que teve o país
Fox foi desastrosa para o país. Trata-se e uma desvalorização da ação política.
de um dos piores governos que o Foi um governo marcado pelo cinismo e
México teve nos últimos 60 anos, com a corrupção.
um avanço econômico nulo. Um
promédio de crescimento do PIB de IHU On-Line - Quem se beneficiou
1,8%, o que significa, em termos reais, com Fox?

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JULHO DE 2006
Carlos Montemayor - A maior parte do Fox está de acordo com o Nafta, com as
empresariado beneficiado com as políticas migratórias do Governo Bush e
fraudes bancárias que foram depois com a submissão aos EUA, de maneira
consideradas uma dívida pública estão que não havia a menor possibilidade de
felizes com a administração foxista. mudar.
Grande parte dos quadros de extrema
direita do país está também feliz. Houve IHU On-Line - Concorda em que essa
um grande empobrecimento, uma perda eleição apresenta três caminhos?
do poder aquisitivo dos trabalhadores Carlos Montemayor - Três principais
mexicanos, mas houve também uma candidatos, mas dois principais
enorme campanha midiática do governo caminhos.
que confundiu a realidade com a
fantasia; gestão do governo com IHU On-Line - Um terceiro caminho
campanha mercado-técnica nos meios não seria o do voto nulo defendido
eletrônicos. O governo foxista não pelo Exército Zapatista de Libertação
popou investimentos para criar, nos Nacional (EZLN)?
meios eletrônicos e na imprensa, uma Carlos Montemayor - Acho que o
imagem positiva que se afasta da Exército Zapatista não promove a
realidade do país. abstenção, e sim a criação de uma força
cidadã não-submetida aos interesses e
IHU On-Line - Quais foram os efeitos conjunturas dos processos eleitorais.
mais negativos do Tratado de Livre Uma força cidadã que possa agir além
Comércio (TLC) com os EUA? desses processos. Esta é uma das falhas
Carlos Montemayor - A concentração fundamentais da vida política mexicana,
da riqueza e dos benefícios das não contar com uma cidadania ativa,
exportações em mãos internacionais e além de cada processo eleitoral.
nas mãos de uma cúpula de empresários
mexicanos e estadunidenses que não IHU On-Line - Voltando, então, às
representaram nenhum benefício social duas opções, elas apresentam
para a população. muitas diferenças?
Carlos Montemayor - Continuar com o
IHU On-Line - Há possibilidade de projeto de política econômica de Salinas,
sair do Nafta? Zedillos e Fox na candidatura de Felipe
Carlos Montemayor - Possibilidade de Calderón, do Partido Ação Nacional
negociar o Nafta sempre haverá, mas a (PAN) ou de Roberto Madrazo, do
administração foxista, terceiro governo Partido Revolucionário Institucional
do mesmo projeto no México, de uma (PRI) ou modificar algumas variáveis
mesma política econômica: o de Carlos deste projeto para fortalecer a
Salinas de Gortari, Ernesto Zedillo e intervenção do Estado Mexicano em um
Vicente Fox, não tem essa perspectiva. O mínimo de bem-estar social, que seria o
governo Fox impulsionou o mesmo caso de Carlos Manuel López Obrador,
projeto que os anteriores. Em nenhum do Partido de la Revolución
momento, embora todo o país esperasse Democrática (PRD). Só que haveria duas
isso, o presidente Fox questionou únicas opções: a continuidade da
modificar esse modelo. Foram períodos política ou alguma modificação de
em que México se dobrou aos Estados beneficio social com López Obrador.
Unidos que beneficia os consórcios Estas são as duas opções eleitoralmente
internacionais. Não havia vontade possíveis no México neste momento.
alguma de modificar o TLC. O governo

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JULHO DE 2006
IHU On-Line - Considera López discurso. Campanha de confusão
Obrador um candidato de esquerda? política apoiada pela adminsitração
Carlos Montemayor - Neste momento, a foxista. O “empate técnico” é parte da
esquerda é um conceito tão elástico e manipulação que caracterizou a
revertível que considero melhor falar em Campanha eleitoral.
termos mais simples. A extrema-direita
está representada pelo PAN de Calderón. IHU On-Line - O que podemos
Uma direita moderada está representada esperar e o que não podemos
pelo PRI de Roberto Madrazo. No caso esperar da gestão de López Obrador?
de López Obrador, talvez pudéssemos Carlos Montemayor - Devemos
falar de centro-esquerda ou de um reconhecer que a mudança de um
governo de centro pragmático com uma governante não muda uma sociedade.
orientação mais social, mais nacionalista, No mundo contemporâneo, cada vez há
mais de interesse popular. A esquerda menos espaço para que a decisão de um
no mundo, neste momento, pode se só governante modifique a realidade
confundir não com posições extremas política, internacional ou econômica de
de radicalização de políticas um país. O que podemos esperar é uma
econômicas, e sim poder-se-ia confundir mudança na orientação geral da política
com a diferença do Estado Soberano, a econômica e da política internacional e
diferença do Estado de bem-estar ou do no compromisso do Estado com o bem
Estado benfeitor, a defesa de um estar da sociedade mexicana. A história
mínimo de bem-estar social. A esquerda do México teve, durante muitos anos,
se aproxima ao que no período da este compromisso: com a saúde,
guerra suja chamávamos de governo de educação pública, moradia,
centro. comunicações etc. Desde que
começaram os governos de Salinas, de
IHU On-Line - Comparável a Lula no Gortari e os outros, esses princípios
Brasil? começaram a ser desmantelados.
Carlos Montemayor - Exatamente, acho Podemos esperar de López Obrador a
que seria comparável. recuperação do compromisso social.
Dessa maneira, esperaríamos uma
IHU On-Line - Ou mais comaprável a participação econômica do estado
Evo Morales? mexicano maior que a atual. Nas ultimas
Carlos Montemayor - (Risos) Não, é três adminsitrações, o Estado mexicano
claro que não. O que Bolívia está se converteu numa espécie de gerência
vivendo com Evo Morales, México o funcional de empresas no lugar de ator
viveu em 1936, há 70 anos. Tem chovido que intervém na vida econômica do
muito a partir desse momento. país. Esperamos, então, uma intervenção
maior do Estado na vida econômica,
IHU On-Line - As pesquisas anunciam portanto uma melhora na economia.
empate técnico entre os dois Essa seria uma administração mais
candidatos, Calderón e López proveitosa que as anteriores.
Obrador, qual será o desfecho?
Carlos Montemayor - Parte da fraude IHU On-Line - Acha que pode haver
oficial que está cometendo o governo de uma maior integração latino-
Fox para apoiar a seu candidato, americana?
Calderón, consiste nesta confusão: Carlos Montemayor - Não sei por que
acreditar num empate técnico. Não há também depende das administrações
um empate técnico, é um conflito de dos outros países e das medidas que

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JULHO DE 2006
possam tomar os EUA. Medidas que que foram as juntas de bom governo. De
sempre foram fatais na vida de nossos forma que o EZLN não substitui seus
países. objetivos iniciais. A outra Campanha é
uma atividade adicional que se soma e
IHU On-Line - Com as novas consolida a trajetória do EZLN.
lideranças de Morales e Chávez, não
poderia haver novas integrações, IHU On-Line - Haveria uma meta em
inclusive energéticas, que A outra Campanha de derrocar o
fortaleçam as nossas economias? governo em 2012 sem usar meios
Carlos Montemayor - Poderia. É violentos. Como pode ser isso?
desejável que isso aconteça. Mas depois Carlos Montemayor - Acho que não
de tantos anos de submissão econômica podemos falar de uma mudança
da empresa pública mexicana na imediata tão radical. A experiência do
questão energética, não sabemos qual EZLN é importante, mas não creio que
será a reação dos EUA numa mudança possa obter resultados nacionais dessa
que o afronte, uma proposta de magnitude em tão pouco tempo.
integração da América Latina.
IHU On-Line - O Movimento Zapatista
IHU On-Line - Qual é a maior não tem uma postura oficial com
conquistra de A outra Campanha do relação ao voto nas atuais eleições,
Exército Zapatista de libertação então?
Nacional (EZLN)? Carlos Montemayor - Não, não. Não se
Carlos Montemayor - O importante de propôs a intervir nas eleições neste
A outra Campanha é o valor que tem momento. O que procurou é o contexto
para entender a política do México neste eleitoral para chamar a cidadania e a
momento, não conforme as cúpulas, e elite de poder no México para as
sim conforme as realidades sociais. Não necessidades de perspectivas que em
há uma força cidadã no México capaz de algum momento o país inteiro terá que
agir permanentemente além dos tomar.
interesses conjunturais de cada processo
eleitoral. Esse é um sinal múltiplo do IHU On-Line - E qual será o futuro do
EZLN. Não vê a política do México Movimento Zapatista?
segundoos os interesses das elites, e sim Carlos Montemayor - Não sei. O EZLN
dos que estão abajo e não vê a teve sempre grande imaginação e
mobilização da cidadania em função dos criatividade. Já fortaleceu seu trabalho
interesses eleitorais, mas como atividade com os territórios autônomos e suponho
necessária em todo o momento no país. que seguirão mostrando a presença
Um terceiro aspecto é que o EZLN nacional em muitos aspectos e que
desenvolveu essa outra campanha haverá um trabalho de avaliação do
depois de ter culminada a aplicação dos proceso de A outra Campanha.
acordos de San Andrés. E eles foram
aplicados nesse processo de vários anos,

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JULHO DE 2006
Memória

José María Mardones, filósofo da


religião
José María Mardones, filósofo e sociólogo espanhol, conhecido também no Brasil por
seus livros, faleceu na sexta-feira da semana passada. Traduzimos e publicamos um
breve artigo de Reyes Mate, publicado no jornal El País, 26-6-2006 e nas Notícias
Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu no dia 27-6-2006.

Nas livrarias Gandhi, do México ou interrogava sobre o lugar da religião num


Argentina, um dos filósofos espanhóis mundo desestruturado.
mais vendidos é José María Mardones, Hoje, quando tanto interesse desperta o
que faleceu no dia 23 de junho, em interesse social e político das religiões,
Madrid, fulminado por um ataque pode-se dizer que José María Mardones
cardíaco, aos 63 anos de idade. foi um dos analistas espanhóis mais
Formado na Alemanha, professor de qualificados no estudo das dimensões
Sociologia na Universidade do País Basco políticas do fenômeno religioso
e pesquisador do CSIC no Instituto de contemporâneo.
Filosofia desde o seu início, foi um Sua fecunda obra foi sua vida: clara e
fecundo autor no campo da filosofia e da próxima. A claridade da sua escritura lhe
sociologia da religião. garantia uma notável fidelidade dos
irracional.. La teoría
Dialéctica y sociedad irracional leitores e a claridade na palavra
de la sociedad de M. Horkheimer, uma converteu-o num dos conferencistas mais
das suas primeiras obras, foi pioneira na solicitados, tanto na Espanha quanto na
recepção espanhola da Escola de América Latina. E a proximidade como
Frankfurt, uma linha de trabalho que método. Interessavam-lhe os problemas
daria muito fruto, vinte anos depois, no em suas manifestações concretas, no que
seu livro Habermas y religión (1998). tinham de vivo ou morto para os
Agora que o pensamento conservador contemporâneos, ainda que não temia
descobriu Habermas que fala com enfrentar assuntos mais teóricos como
Ratzinger, o livro de Mardones pode nos livros La vida del símbolo e Teoria
ajudar aos habermasianos de última hora comunicativa
crítica y razón comunica tiva.
tiva
a compreender o rigor e a exigência do Foi-se sem avisar, com uma agonia que
filósofo alemão no tratamento da durou poucos segundos. Sendo como era
religião. um trabalhador infatigável, será esperado
A formação sociológica lhe permitia em muitos fóruns, inutilmente, para que
seguir com autoridade os avatares do cumpra os compromissos assumidos. E
fenômeno religioso. No seu livro vamos sentir a falta de um homem
Capitalismo y religión estudava com amável, sempre pronto para escutar,
olhar crítico as chaves da religião política disposto à concórdia e capaz de
neoconservadorea e no livro contagiar sua seriedade cristã pelas
Postmodernidad y cristianismo se perguntas últimas."

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JULHO DE 2006
Filme da semana

O Homem Urso
(Grizzly Man) de Werner Herzog

Ficha Técnica:
Nome: O Homem Urso
Nome original: Grizzly Man
Cor filmagem: Colorida
Origem:
Origem: EUA
Ano produção: 2005
Gênero: Documentário
Duração: 103 min
Classificação: 12 anos

Pablo Villaça, crítico de cinema, comenta o filme O Homem Urso de Werner Herzog
na página www.cinemaemcena.com.br ,no dia 21-6-2006.

“Todo o bom filme é também um documentário sobre sua época” –


Eric Rohmer

O Homem Urso é uma das maiores Todo o bom filme é também um


obras-primas da carreira de um documentário sobre sua época”, disse o
cineasta que vem conquistando, ao diretor francês Eric Rohmer – e algo
longo dos últimos 44 anos, um lugar parecido se aplica a realizadores tão
mais do que merecido entre os ícones particulares quanto Herzog: em suas
da Sétima Arte – e o que algumas vezes obras, conhecemos também o Homem
lhe falta de estilo é mais do que por trás dos filmes, mesmo que este não
compensado pelas complexas tenha a intenção de se deixar conhecer.
discussões que seus filmes (de ficção ou Assim, ao escrever sobre O Homem-
documentários) inspiram. Dono de uma Urso, o envolvente retrato de um
personalidade fascinante, o alemão indivíduo confuso, não posso deixar de
Herzog, certa vez, se atirou em um reservar um espaço para seu diretor,
cacto e, em outra ocasião, comeu o cujas filosofias de vida e trabalho são
próprio sapato (algo registrado em um aspectos sempre presentes ao longo da
curta-metragem de 1980) como projeção.
pagamento de apostas feitas com o
elenco de um de seus projetos e com o O Homem: Herzog
documentarista Errol Morris,
respectivamente. E se isso comprova Em outubro de 2003, o ativista norte-
algo (além de sua excentricidade) é o americano Timothy Treadwell, que
fato de que ele leva muitíssimo a sério durante 13 anos manteve o hábito de
sua palavra e suas ações. acampar durante o verão em uma

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JULHO DE 2006
reserva florestal do Alaska habitada por Interlocutor sempre atencioso, Herzog
ursos pardos a fim de “protegê-los”, foi divide com realizadores como Eduardo
morto e devorado (ao lado da Coutinho e João Moreira Salles o
namorada) por um dos animais aos talento para deixar seus entrevistados
quais devotava sua vida. Como legado, completamente à vontade – a ponto de
deixou mais de 100 horas de imagens levá-los a fazer declarações que
gravadas ao longo de suas cinco últimas denotam elementos comprometedores
temporadas ao lado dos ursos – e é com de suas personalidades (como o piloto
base neste material, complementado de helicóptero que afirma que
por entrevistas com pessoas que Treadwell “teve o que merecia” e o
conheceram e conviveram com o médico-legista que, apaixonado pela
ecologista, que Werner Herzog câmera, parece não perceber como seu
desvenda as reais motivações que sadismo assustador jorra sobre o
levaram o sujeito a adotar um estilo de espectador). Porém, se o cineasta não
vida tão perigoso. poupa aqueles que expõem suas vilezas,
sua postura diante da vulnerabilidade
Racional ao extremo, o cineasta de certos entrevistados é tocante, como
certamente não se contenta com a denota o carinho que demonstra ao
resposta óbvia (“amor aos ursos”) e, ao lidar com Jewel Palovak, ex-namorada e
longo do filme, acaba deixando uma das melhores amigas de Timothy
evidente que seu interesse por Treadwell. Além disso, Herzog,
Treadwell não se deve ao trabalho diferentemente do que faz a maior
ecológico deste – aliás, Herzog procura parte dos relatos sobre a morte do
até mesmo demonstrar (com sucesso, ativista, faz questão de se aprofundar
diga-se de passagem) que as viagens de também na morte de sua companheira
seu “personagem” ao Alaska não faziam Amie Huguenard, mesmo com todas as
a menor diferença no que dizia respeito dificuldades impostas pela situação (ela
à proteção dos animais. E mais: o amor aparece apenas três vezes nas fitas de
incontido de Treadwell pela natureza Treadwell e seus pais se recusaram a
soa, para o diretor, como sinal de uma gravar depoimentos para o filme): desta
inocência preocupante, incompatível maneira, o documentarista investiga os
em um adulto que se julga “funcional”. diários do ecologista e revela que
Ao analisar o choque que o rapaz Huguenard, ao contrário do namorado,
experimenta ao encontrar uma raposa tinha medo dos ursos, e que dizer que o
morta, por exemplo, Herzog manifesta casal morreu “fazendo o que gostava”
sua visão irremediavelmente pessimista (como alguém afirma, em certo
do mundo: momento) é uma grande mentira – ao
menos, no que diz respeito à moça.
“Ele parece ignorar que na natureza há
predadores. Eu acredito que o Outro objeto de fascínio para Herzog,
denominador comum do Universo não como não poderia deixar de ser, é o
é a Harmonia, mas sim o Caos, a próprio material deixado por Treadwell
Hostilidade e o Assassinato”. ao longo de cinco anos de gravações – e
se não tenta justificar as ações
Em parte, é isso que torna O Homem ecológicas do sujeito, o diretor assume
Urso tão brilhante: as filosofias outra postura no que diz respeito ao
absurdamente contrastantes do trabalho de Timothy como “cineasta”:
documentarista e seu objeto de estudo. em vários momentos, O Homem Urso
se detém no método de trabalho de seu

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personagem-título, como seu hábito de E ele amaldiçoou o Automóvel
repetir tomadas e as surpresas que Disse: ‘Este não é o lugar para um
naturalmente surgem durante longos hombre como eu’
planos sem cortes. E, mesmo exibindo Neste mundo novo de asfalto e aço
uma curiosidade atípica (para alguém Então ele olhou para algum lugar
tão racional), sobre a aparente hesitação distante
de Treadwell em abandonar o quadro Para algo que apenas ele podia
ao filmar o último plano de sua vida, enxergar
Herzog demonstra um respeito Ele disse: ‘Tudo o que resta agora dos
admirável ao não incluir, no longa, o velhos tempos
áudio gravado durante o ataque do urso São os malditos coiotes e eu’.
que matou o casal (acompanhamos
apenas a reação do próprio cineasta ao É com esta música, na voz triste de Don
escutar a fita); é como se ele se Edwards, que Werner Herzog conclui O
recusasse a invadir aquele que talvez Homem Urso, um estudo de um
seja o instante mais íntimo na vida de personagem real, Timothy Treadwell,
um indivíduo: sua morte. que morreu ao lado da namorada sob
as presas de um urso pardo –
Ao final de O Homem Urso, Werner justamente um dos animais aos quais
Herzog não apenas cria um tributo dedicava sua vida, filmando-os durante
comovente a um homem que, na o verão e realizando palestras no
tentativa de se encontrar, acabou se restante do ano (ele não cobrava um
destruindo, como também esclarece centavo para visitar escolas em todos os
aquele que considera o grande Estados Unidos, tamanha era sua paixão
equívoco cometido por Timothy: pelo tema e por crianças). Intitulando-
se “O Guerreiro Gentil”, Treadwell
“O que me assombra é que, em todas as insistia que suas viagens anuais ao
caras de todos os ursos filmados por Alaska eram fundamentais para a
Treadwell, eu não descobri nenhuma proteção dos ursos que moravam em
simpatia, compreensão ou piedade. Vi uma grande reserva florestal do Estado
apenas a impressionante indiferença da – e, para cumprir seus objetivos, não
natureza. Para mim, não existe um hesitava em entrar em conflito com as
‘mundo secreto dos ursos’, e este olhar autoridades responsáveis pelo parque.
vazio revela apenas um interesse
entediado por comida”. A esta altura, você provavelmente já está
questionando a lógica da última frase:
Já Treadwell leu, na expressão daqueles por que os animais de uma reserva, de
animais, algo que procurava um parque, precisariam de proteção? A
desesperadamente – e, para Herzog, resposta é simples: não precisavam. Esta
este erro inspira um sentimento é a primeira incongruência na história
diferente: piedade. de Timothy Treadwell que leva Werner
Herzog a se interessar pelo ecologista,
cujo trabalho chegava a ser
considerado, pelos nativos Alutiiq,
como desrespeitoso e prejudicial aos
O Urso: Treadwell ursos, que formavam uma população
estável e, portanto, não corriam risco
Bom, ele amaldiçoou todas as estradas e algum de extinção – e a alegação de
a velha mula que a caça ilegal ameaçava os animais é

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facilmente desmentida por um biólogo fosse homossexual – algo que, somado
da região. Assim, por que Treadwell se à sua insistência exagerada em afirmar
forçava a acreditar que sua que “ama garotas” e ao seu histórico de
permanência no local era tão negação de identidade, nos leva a
importante? É esta, a pergunta que questionar sobre uma provável
move O Homem-Urso. confusão com relação à sua própria
sexualidade.
Ex-alcoólatra, ator frustrado e
sobrevivente de uma overdose, Timothy Vítima diagnosticada de depressão
decidiu, após sua experiência quase maníaca, Timothy se negava a tomar os
fatal com drogas, que era hora de medicamentos necessários por acreditar
procurar uma persona diferente para si que seus “altos e baixos” eram parte
mesmo – e apenas o fato de ter que importante de sua personalidade – e
“procurar” por uma identidade revela sua insistência em discutir a
um desajuste patente e uma possibilidade de morrer em um ataque
insegurança colossal sobre o próprio de urso indicava não sua preocupação,
lugar no mundo. “Eu não tinha vida”, mas sim um certo fascínio pela
ele diz a uma raposa, em uma de suas situação, como se precisasse disso para
fitas. Infelizmente, a vida que ele sentir-se vivo. Da mesma maneira, suas
encontrou se baseava, ao menos ocasionais explosões de cólera diante
parcialmente, em mentiras – incluindo da câmera soavam mais como
um sotaque falso. Desta forma, não é necessidade teatral de afirmar-se do
difícil concluir que sua luta pelos ursos que como desabafo real, o que fica
envolvia, também, sua própria claro em sua calma prontamente
necessidade de se sentir como parte de restabelecida assim que as tomadas
algo maior. chegam ao fim.

Passando meses sozinho em meio aos Igualmente revelador – e comovente – é


animais, Treadwell gradualmente seu hábito de declarar amor a
começou a encarar suas duas câmeras praticamente tudo que vê em suas
como verdadeiros confessionários, passagens pela reserva, de abelhas
expondo para as lentes seus mortas a raposas e ursos. É como se, em
sentimentos de inadequação, suas sua necessidade de amar e ser amado,
frustrações, suas dúvidas sobre Deus, Timothy encontrasse, entre os animais,
mas também seus sonhos e ambições – a liberdade e a confiança necessárias
e, julgando que suas confissões para entregar-se aos próprios
posteriormente passariam por seu sentimentos. Aliás, resume-se, aí, sua
próprio crivo, deixou aberta, no história: fugindo de uma Sociedade
processo, uma janela para que repleta de intolerância, preconceitos e
pudéssemos ter a rara experiência de desonestidade, Treadwell pensa
testemunharmos um ser humano descobrir, na natureza, o mundo ideal
rasgando-se completamente diante de que sempre buscou – e sua paranóia
nossos olhos, mesmo quando não diante de mensagens claramente
demonstra estar ciente dos significados jocosas de alguns “intrusos” denota o
escondidos por trás de algumas medo que sente de tudo que remete à
afirmações. Ao falar sobre suas humanidade de modo geral. Portanto,
aventuras amorosas fracassadas, por quando Herzog compara a geografia
exemplo, o rapaz cogita que sua vida tortuosa de determinada região à alma
talvez tivesse sido mais fácil caso ele confusa de seu protagonista, a metáfora

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surge incontestável e dolorosa: para o No final das contas, a vida de Timothy
ecologista, viver entre ursos é algo mais Treadwell resume-se a uma ironia e a
seguro e reconfortante do que ter que uma tragédia. A ironia é que os mesmos
se submeter ao julgamento constante de ursos que o salvaram, tirando-o do
seus pares (e ao chocar-se com o “mundo de asfalto e aço” cantado por
canibalismo dos ursos, distancia-se Don Edwards, também viriam a tomar
ainda mais da pose de especialista nos sua vida. A tragédia é que, por mais que
animais e revela sua tristeza ao insistisse na importância de suas
constatar que seu mundo perfeito não é atividades na reserva, seu trabalho era
tão inocente quanto desejava). vital apenas para uma pessoa: ele
mesmo.

Deu nos jornais


A semana, no Brasil, foi dominada, além da Copa do Mundo, por três temas.

Ministro de Agricultura
O primeiro foi a demissão do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. O significado
político da sua saída e a nomeação do seu substituto foi tema das notícias diárias dos
dias 29/6, 30/6 e 1/7.

TV Digital
O segundo foi à oficialização da opção brasileira pelo padrão japonês da TV Digital. O
fato, já preanunciado e comentado há muitos meses, também nas notícias diárias foi
amplamente comentado e analisado no mesmo espaço nos dias 27/6, 28/6, 29/6 e 30/6.
Ressaltamos as entrevistas com Valério Britos e Alexandre Kieling, publicada no dia
30/6 e 28/6, respectivamente.

Igualdade Racial
O terceiro tema, não tão amplamente divulgado quanto mereceria, foi o manifesto de
intelectuais contra o Estatuto da Igualdade Racial. O manifesto é assinado por
intelectuais do porte de Gilberto Velho, Luiz Werneck Viana, Caetano Veloso, entre
outros. Confira as notícias diárias do dia 30/6.

América Latina
México
Na América Latina, dois países se destacaram. No México as eleições presidenciais
foram destaque nas notícias diárias dos dias 28/6, 29/6, 30/6, 1/7, 2/7 e 3/7.
Ressaltamos a entrevista especial com Carlos Montemayor publicada no dia 1/7 e nesta
edição. Também reproduzimos entrevistas com Néstor García Canclini, com Carlos
Monsiváis e Enrique Krauze nos dias 2/7, 28/6 e 3/7 respectivamente.

Bolívia
Por sua vez, a Bolívia vota neste domingo os participantes da Assembléia Constituinte e
o plano de autonomia. Confira as notícias diárias nos dias 1/7 e 2/7. Evo Morales

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JULHO DE 2006
denunciou novamente os ataques dos EUA contra o seu governo. Confira as notícias
diárias do dia 27/6. E, visitando a Argentina, onde foi recebido em grande estilo pelo
presidente Néstor Kirchner, foi oficializado o ingresso da Bolívia no projeto do Grande
Gasoduto do Sul conforme as notícias diárias do dia 30/6.

Venezuela
E na Venezuela, Hugo Chávez, candidato à reeleição teve uma grande vitória política. A
oposição anunciou que não conseguiu se unificar para apresentar um candidato único
para as eleições presidenciais. Confira as notícias diárias do dia 28/6.

Timor Leste
No Timor Leste, cuja dramática situação procuramos acompanhar nas últimas semanas,
o primeiro-ministro Mari Alkatiri, renunciou e assumiu, provisoriamente o posto José
Ramos Horta, prêmio Nobel da Paz. Veja as notícias diárias do dia 26/6.

Vaticano
No Vaticano Ratzinger continua a reforma da Cúria. Nesta semana antecipou a
oficialização da nomeação do cardeal Tarcisio Bertone, arcebispo de Gênova, como
secretário de Estado. Trata-se um dos postos proeminentes do Vaticano. Bento XVI
antecipou a nomeação, prevista para o dia 15 de setembro, por causa das fortes
pressões curiais contrárias à nomeação. Bertone é teólogo e não diplomata. No próximo
final de semana Bento XVI visita a Espanha. Confira as notícias diárias do dia... Confira
também a entrevista de Hans Küng, notícias diárias do dia 28/6.

Religião no Brasil
Brasileiro deixa religião, mas mantém fé foi um dos destaques das noticias diárias do
dia 28/6 comentando uma pesquisa do Ceris. Um artigo de José de Souza Martins
comenta a pesquisa. Confira as notícias diárias do dia 2-7-2006.

Frases da semana
Eleições
"Entre os ex-presidentes (José Sarney) é o que mais sabe ser ex-presidente. Ele
não dá palpite, dá conselhos. Não fala com a imprensa, fala com a gente. É um
parceiro surpreendentemente extraordinário." - Luiz Inácio Lula da Silva,
presidente da República - Globo, 27-6-2006.

“Esse negócio de eleição só está me atrapalhando. Não posso dar aumento aos
funcionários públicos, não posso liberar dinheiro aos municípios, não posso
fazer nada. A campanha nem começou e eu já estou de saco cheio!” - Luiz
Inácio Lula da Silva, presidente da República - Globo, 1-7-2006.

"Se Lula é festejado pelos banqueiros, é tido como um regenerado; se é festejado


na favela, é um degenerado." - Elio Gaspari, jornalista, Folha de S. Paulo, 28-6-
2006.

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JULHO DE 2006
"Como tenho 76 anos, todos querem ser meu suplente porque pensam que vou
morrer cedo. Seria o melhor negócio nesta eleição. Estão todos enganados. O
suplente ficará oito anos me vendo trabalhar. Ainda viverei muito." - Pedro
Simon, senador, PMDB-RS e candidato à reeleição - Zero Hora, 28-6-2006.

Agronegócio
"Nas duas primeiras safras de 2003 e 2004, os fazendeiros brasileiros do
agronegócio acumularam uma renda extra de 50 bilhões de reais. Depois na
crise de 2005 e 2006, esses mesmos fazendeiros tiveram um prejuízo de 25
bilhões de reais. Por tanto o balanço para o agronegócio é positivo durante o
governo Lula" - Fernando Homem de Mello, especialista em política agrícola, da
USP, em entrevista para a UOL noticias-video, por telefone - 28 de junho de
2006.

Racismo
“Hoje entre nós brasileiros há um sentimento difuso verdadeiramente fascista,
racista em relação aos marginalizados. Um racismo muito estranho para um
país mestiço que é etnicamente todo misturado. Não é um confronto entre
alemães e turcos, mas entre mouros contra negros, mulatos claros contra
mulatos escuros. É um violento sentimento de exclusão. Como as cartas dos
cidadãos que se podem ler nos jornais, sobretudo depois desta onda forte de
violência que acometeu São Paulo no mês de maio: são horríveis, terríveis, dá
vontade de desaparecer daqui. De ir embora." - Chico Buarque em entrevista
publicada hoje no jornal italiano Repubblica, 28-6-2006.

“As classes ricas da América Latina são os piores ricos do mundo.” - Elena
Poniatowska, escritora mexicana – Clarín, 2-7-2006.

Desemprego
"Entre mais inflação e mais desemprego, escolhe sempre mais desemprego. O
país é conservador e não se incomoda com a criminalidade. Vota em gasolina e
importados baratos. Produção, emprego e crescimento não ganham eleição" -
João Sayad, economista - Folha de S. Paulo, 3-7-2006.

Eleições no México
"Os nossos sonhos não entram na urna" - palavra de ordem dos zapatistas,
ontem, no Zócalo, na Cidade do México - Repubblica, 3-7-2006.

O Brasil na Copa
"O time saía unido do Brasil (em 1958, na Suécia), todo mundo uniformizado,
fazíamos uma visita ao presidente. Tinha jogo de despedida, voltávamos unidos.
Havia um simbolismo, um romantismo. Isso mudou, como mudou o mundo.
Agora, a convergência é outra. Os jogadores moram na Europa. É tudo diferente"
- Carlos Alberto Parreira, técnico da Seleção Brasileira - Folha de S. Paulo, 3-7-
2006.

"Ninguém desaprende de uma hora para outra. Algo aconteceu" - Assis, irmão

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JULHO DE 2006
de Ronaldinho Gaúcho, tentando explicar o fracasso do irmão na Copa - Zero
Hora, 3-7-2006.

"Devemos sepultar o cadáver com dignidade" - Carlos Alberto Parreira, técnico


da Seleção Brasileira - Repubblica, 3-7-2006.

"Perdoem-nos, não fomos o Brasil" - Kaká, jogador da Seleção Brasileira -


Repubbica, 3-7-2006.

Destaques On-Line
Entrevistas exclusivas produzidas para o sítio do IHU

Essa editoria veicula entrevistas exclusivas publicadas no sítio do IHU


(www.unisinos.br/ihu), durante a última semana. Selecionamos algumas dessas
entrevistas e apresentamos a lista completa de todas, que podem ser conferidas nas
Notícias Diárias do sítio, na data correspondente.

Título: Uma alternativa na


na busca pelos direitos humanos fundamentais
Entrevistado: Alessandro Chiarottino, advogado e professor
Entrevista: No último dia 19 de junho, o advogado e professor Alessandro Arthur
Ramozzi Chiarottino, que ensina Ciência Política, Direito Constitucional e Processo
Constitucional na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (IMES), defendeu sua
tese de doutorado em Direito pela USP. A tese, intitulada John Rawls e Ronald Dworkin:
em busca dos alicerces para os direitos humanos fundamentais num mundo
globalizado foi o tema da entrevista publicada nas Notícias Diárias do sítio do IHU de
27/06/2006.

Título: O mito do progresso e a capacidade crítica


Entrevistado: Gilberto Dupas, economista e pesquisador da USP
Entrevista: Gilberto Dupas, coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional
(Gacint) da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto de Estudos
Econômicos e Internacionais (IEEI), acaba de lançar o livro O Mito do Progresso, pela
Editora Unesp. A obra analisa a quem dominantemente o progresso serve e quais os
riscos e custos de natureza social, ambiental e de sobrevivência da espécie que ele está
provocando. O professor concedeu a entrevista à IHU On On--Line que foi publicada nas
Notícias Diárias, do sítio do IHU de 28/06/2006.

Título: A sociedade vai sair ganhando com a TV Digital.


Entrevistado: Valério Brittos, pesquisador da Unisinos
Entrevista: No dia 29 de junho, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva assinou o acordo
adotando o padrão de TV digital japonês para o Brasil. A redação da IHU On On--Line
ouviu novamente, em uma entrevista exclusiva, a opinião do professor Dr. Valério

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JULHO DE 2006
Brittos, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea e pesquisador da área de
TV Digital no PPG em Comunicação da Unisinos. A entrevista foi publicada nas
Notícias Diárias do sítio do IHU do dia 30/06/2006.

Título: A TV Digital e a pesquisa na Unisinos


Entrevistado: Alexandre Kieling, jornalista, pesquisador e professor na Unisinos.
Entrevista: IHU OnOn--Line ouviu ainda sobre a TV Digital o professor e diretor do
Complexo de Teledifusão de Tecnologia Educacional da Universidade, Alexandre
Kieling. Ele é jornalista, professor universitário de Telejornalismo desde 1993, mestre
em comunicação e especialista em cinema e vídeo. Foi autor e executor do projeto da
TV Unisinos, que opera em canal interno e virtual desde 2001 e, desde 31 de julho de
2003, está operando em canal aberto para alguns municípios do Vale do Rio dos Sinos
e região metropolitana de Porto Alegre. A entrevista foi publicada nas Notícias Diárias
do sítio do IHU de 30/06/2006.

Título: Fórum Nacional de Economia Solidária. Um depoimento de Lucas Henrique da


Luz, do IHU
Autor: Lucas Henrique da Luz trabalha no Programa Tecnologias Sociais, vinculado à
diretoria de Ação Social da Unisinos e ao IHU.
Depoimento: Lucas da Luz esteve em Brasília na última terça-feira (27/6),
participando do Fórum Nacional de Economia Solidária, que terminou dia 29/6. IHU
On-
On-Line solicitou um depoimento a ele, que falasse sobre suas impressões do evento e
da importância dos temas lá debatidos. O depoimento foi publicada nas Notícias
Diárias do sítio do IHU de 29/06/2006.

Também foram publicadas entrevistas nas notícias diárias com Hans Küng no dia 29/6
sob o título Fanáticos há em todas as religiõe; Enrique Krause, no dia 29/6; com Carlos
Monsiváis, no dia 28/6 sob o título As eleições no México; com Peter Sloterdijk no dia
26/6 sob o título Copa do mundo: O que vemos na Alemanha não é nacionalismo, mas
patriotismo de lazer; com Jean Ziegler, no dia 30/6 sob o título A dívida externa é uma
pobres com Néstor Canclini, sob o título Muito além das
corda que asfixia os mais pobres,
tortillas e de Frida Kahlo no dia 2/07/2006.

Igualmente foram publicados o artigo “Só pela entrada de serviço” de Francisco Foot
Hardman, o artigo “Os autônomos da fé” de José de Souza Martins, no dia 2-7-2006
comentando pesquisa recente do CERIS sobre o crescimento dos sem religião mas com
fé. Sobre a pesquisa veja as Notícias Diárias, do dia 28/6.

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JULHO DE 2006
IHU em revista

Eventos pg. 66

Sala de Leitura pg. 67

IHU Repórter pg. 68

Carta do leitor pg. 71

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JULHO DE 2006
Eventos

Vulnerabilidades e condições de
saúde da população negra
Programa de combate ao racismo institucional -
UNESCO

A Prof.ª Dr.ª Fernanda Lopes, do Programa de Combate ao Racismo Institucional


– UNESCO fala nesta quarta-feira, 5 de julho, das 11 às 12h, na sala 1G119 do
IHU, sobre Vulnerabilidades e condições de saúde da população negra. A
entrada é franca e aberta ao público em geral.

Educação e trabalho: relação


histórica e social
IHU Idéias

Esse é o tema que o Prof. Dr. Jorge Ribeiro, da UFRGS, traz para discussão no
encerramento das atividades do IHU Idéias neste semestre, em 6 de julho. Para
conferir o debate, compareça na sala 1G119 do IHU, das 17h30min às 19h. Com
entrada franca, o evento é aberto a toda comunidade acadêmica. E já comece a se
agendar para as próximas palestras do IHU Idéias. Acompanhe a programação de
atividades na página do IHU, www.unisinos.br/ihu.

Ribeiro, que leciona no Departamento de Educação da UFRGS, é licenciado e


bacharel em História pela UFRGS, bacharel em Ciências Sociais pela mesma
instituição e graduado em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação,
Ciências e Letras (FAPA). Cursou mestrado em Sociologia na UFRGS. Ele doutorou-se
em Sociologia da Educação na Universidade Pontifícia de Salamanca (UPSAL), na
Espanha, com a tese Pocos, buenos, bién tratados y pagados: el mercado interno de
trabajo em el sector eléctrico español, 1953-1985.

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JULHO DE 2006
Sala de Leitura
Estou lendo no momento A Janela de Euclides, de Leonard Mlodinow.
Geração Editorial, 2004. O livro fala da evolução histórica da
geometria e conta como a geometria está presente em nossas vidas. A
influência da geometria nas percepções de arte e de música, a
utilização dos princípios geométricos de proporção e simetria
utilizados na pintura e escultura e a geometria como base para a
construção e a arquitetura, são algumas das inúmeras relações feitas pelo autor. O livro
descreve essas relações com simplicidade e desperta a curiosidade do leitor para
observar e fazer suas próprias correlações da geometria com o seu cotidiano, além de
deixá-lo curioso para ler o parágrafo seguinte. Mesmo falando de geometria, o livro é
interessante pelos aspectos da evolução histórica da ciência em que um pouco das
histórias de Euclides, Descartes, Einstein são contadas de maneira prazerosa. O livro
cativa a todos e não precisa ser matemático ou gostar da matemática para gostar do
livro.
Prof. Dr. Jacinto Ponte Júnior, da Unidade Acadêmica de Ciências
Exatas e Tecnológicas da Unisinos

Leio e releio constantemente o livro: A Teia da Vida, de Fritjot Capra. São


Paulo: Cultrix, 2004. A obra é permeada pela perspectiva sistêmica da vida
que se constitui mediante uma visão de inter-relação entre “todos” e
“partes” e por conexões aparentes e, principalmente, ocultas. É interessante,
pois nos propicia pensar que ações e sujeitos são ambos, articulações
interdependentes dos “ambientes” e não-determinados por “eles”, o que nos leva a uma
idéia de autonomia ao mesmo tempo em que nos remete a uma visão de correlações
(de sobrevivência) entre os sistemas.
Prof.ª Dr.ª Susane Martins Garrido, da Unidade Acadêmica de
Ciências Humanas da Unisinos

Estou lendo o livro: Transformações da Política na Era da Comunicação


em Massa, de Wilson Gomes. São Paulo: Paulus, 2004. Os processos de
midiatização crescente das interações sociais atingem todos os setores e
processos. Talvez nenhum outro âmbito com tanto vigor como o da
política. A tal ponto que as análises políticas e a própria compreensão do
espectro do que são “decisões políticas”, de governo e de sociedade, se
modificam em direções insuspeitadas. O livro de Wilson Gomes trabalha
exatamente sobre as características dessa transformação. Com uma formação doutoral
em Filosofia e uma grande experiência nos estudos da Comunicação, o autor expõe
com acuidade o estado da questão. Em uma perspectiva na qual a Comunicação é o
operador principal, discute, entre outros temas, questões, como a ética, as estratégias, a
política da imagem, o theatrum politicum, os controles políticos da comunicação –
tudo isso submetido ao crivo de uma reflexão vigorosa, mediante uma argumentação
rigorosamente racional.
Prof. Dr. José Luiz Braga, da Unidade Acadêmica de Ciências de
Comunicação da Unisinos

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JULHO DE 2006
IHU Repórter

Suzana Kilpp
“Anarco-existencialista-cristã” é a forma como se
autodefine a professora e pesquisadora na Graduação e
Pós-graduação em Comunicação da Unisinos Suzana
Kilpp. A definição foi se configurando ao longo de uma
existência intensamente vivida na qual os caminhos
inesperados se transformaram em novas experiências e
aprendizados novos. Suzana conseguiu combinar, na sua
trajetória, atuação na área da saúde, atividades artísticas,
produção acadêmica e literária, paixão pela sala de aula
e tantas outras coisas relatadas na entrevista a seguir.

Origens – Nasci no dia 20 de março de 1948, no município de Estrela. Meu pai era
mecânico, e minha mãe cuidava da casa. Tenho uma irmã 5 anos mais velha. É a mãe
de meus dois sobrinhos e avó dos meus cinco queridíssimos sobrinhos netos. A família
do meu pai era de origem germânica e a da minha mãe, polonesa. Acredito que tive
uma infância e adolescência muito rica em possibilidades. Estudava num colégio que
me ofereceu oportunidades de fazer milhares de coisas, como estudar vários idiomas,
entrar para um coral, praticar esportes, tocar piano, violão, enfim essa diversidade de
atividades me abriu muitos horizontes. Com 17 anos, vim sozinha para Porto Alegre.
Queria fazer Medicina, mas, no terceiro ano do Cientifico, conheci alguns colegas que
me sugeriram não arriscar e fazer bioquímica. Então fiz Bioquímica na UFRGS. Sou
formada em Farmácia e Bioquímica. Apaixonei-me pelas aulas de laboratório. E
também quando tive a primeira aula de anatomia percebi que jamais poderia ser
médica.

Trabalhos – Depois de formada, fui trabalhar no Hospital Espírita, em Porto Alegre


junto com uma colega que estava montando um laboratório industrial. Durante dois
anos, trabalhamos numa produção paralela de medicamentos. Eu tinha 22 anos. Com
esta produção, que era maravilhosa, tínhamos uma linha de excelente qualidade, e os
médicos aceitaram muito bem, passando a substituir a linha da indústria farmacêutica
pela nossa. Naquela época, de ditadura, a grande questão na área da saúde era a
indústria farmacêutica, representada no Brasil principalmente pelos americanos e
alemães. Estas multinacionais vieram procurar a mim e a minha colega para fecharmos
nosso laboratório, pois havia medicamentos que produzíamos com muita diferença de
custo. Isso para um hospital beneficente fazia uma grande diferença. Eles tentaram
fazer de tudo para que desistíssemos de nosso trabalho. Ofereceram-nos geladeira,
fogão, casa, automóvel... Nós não aceitamos, mas eles ofereceram para a direção do

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JULHO DE 2006
hospital, que aceitou. Então o laboratório fechou. Fiquei muito desgostosa com a
profissão e o mercado. Nesta época, eu dava aulas no Colégio Americano, de Porto
Alegre, de Bioquímica, Tecnologia dos Alimentos e Bromatologia, que é o controle de
qualidade dos alimentos.

Teatro – Fiz muito teatro estudantil, desde criança. Na Casa dos Estudantes onde morei
nos primeiros anos em Porto Alegre, também havia um grupo de teatro amador. Anos
depois, fiz teatro de periferia. Algo muito louco na época. Com toda a censura que
havia, fazíamos teatro no presídio, nas vilas populares, na Casa dos Alfaiates, no
Sindicato dos Bancários, nos Diretórios Acadêmicos. Isso foi nos anos 1970. Participei
bastante da vida cultural de Porto Alegre nessa época.

Anos 1970 – Naquela época, nós vivíamos de um jeito muito diferente do que vivem
os jovens hoje. Estava conversando ontem com um colega que tem por volta de 30 anos
e já possui apartamento, carro e todo o conforto. Quando tinha a idade dele, minhas
estantes ainda eram de caixa de maçã, as camas eram de armar ou só colchões no chão;
enfim, naqueles tempos tínhamos um despojamento muito maior. Morei em casas de
estudantes, que eram baratas porque nós mesmos fazíamos nossas tarefas. Depois que
me formei, ainda vivi em comunidades até 1978, só depois fui morar sozinha. Neste
ano, vendi tudo que eu tinha (até bicicleta e enciclopédia de arte), e dei de entrada para
um apartamento. Eu podia abrir mão dos móveis, mas comprei um aparelho de som,
que era a única coisa que não podia faltar...

Mestrado – Um dia, notei que o que eu gostava das aulas dadas no Americano não
tinha a ver com as disciplinas, mas com dar aulas, e numa perspectiva histórica. E essa,
a História, foi me interessando cada vez mais. Foi o que me levou mais tarde a procurar
um mestrado em história, na PUC. Era de concentração em cultura brasileira. Achei
que havia chegado a hora de teorizar sobre aquilo que vinha fazendo, visto que, além
das aulas, também estava muito ligada às artes e à cultura. E de dar uma guinada mais
forte na minha vida profissional, pois eu não tinha mais nada a ver com a farmácia.
Depois que terminei o mestrado, a Christa Berger, na época Coordenadora da Famecos
ofereceu-me a oportunidade de dar aula num curso de especialização que relacionava
jornalismo, comunicação e cultura. Foi a minha primeira intervenção na vida
acadêmica. Meio ano depois, a Unisinos estava procurando professor de Cultura
Brasileira. Foi assim que comecei na Unisinos, em 1988. No semestre seguinte,
convidaram-me para dar Estética e Comunicação de Massa.

Pesquisa – Alguns anos atrás, no antigo Centro 3, formamos um grupo de estudos da


imagem na comunicação. Queríamos compartilhar nossas pesquisas e pensar
alternativas para qualificar a formação de alunos na produção de imagens para as
mídias. Éramos uns doze professores, e alguns trabalhavam os mesmos autores que eu
(Foucault, Deleuze, Benjamin...). Dessa atividade resultou a Semana da Imagem na
Comunicação, o curso de especialização em Design Gráfico e alguns projetos de
pesquisa e de doutoramento. O meu doutorado e a minha pesquisa até hoje são
decorrência daquelas belas e inquietas discussões.

Hobby – Gosto de ficar em casa lendo, vendo vídeos e TV. E de caminhar por algumas
ruas e cenários de Porto Alegre.

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JULHO DE 2006
Trilha Sonora – Let it Be, dos Beatles, e Bach, como emblema. Para ouvir muito e
sempre: Marc Knopler, Egberto Gismonti e as trilhas de Blade Runner e Tudo sobre
minha mãe.

Filme – Terra Estrangeira, do Walter Salles. Não seria o filme mais importante da
minha vida, mas ele me marca na cena em que a Gal Costa canta Vapor Barato, uma
lembrança muito forte para mim. Mas são muitos os filmes... Sem dúvida, Tempos
modernos (Chaplin), Mulheres à beira de um ataque de nervos (Almodóvar) e Ladrões
de sabonete (Nichetti) estão na lista.

Livro – Durante muito tempo, meu livro de cabeceira foi Aventuras de Alice no país
das maravilhas através do espelho e o que ela encontrou lá, de Lewis Carroll. Não sei
dizer por quê. Inesquecíveis: em ficção, A casa dos espíritos (Isabel Allende), e em
Sociologia, Enamoramento e amor (Francesco Alberoni).

Autor preferido – Alberoni e Walter Benjamin...

Um grande sonho – Não perder a vontade de sonhar.

Um presente – Uma boa aula, uma boa pergunta, um bom argumento. Um gesto
amigo. Uma boa noite de sono.

Uma grande paixão – Uma história “contada” de maneira instigante. Literatura-


Cinema- Música-História. Assim, sem hierarquia. Entre.

Eleições – Costumo anular o voto, e evitá-lo sempre que posso. Não acredito no
sistema representativo: ninguém representa ninguém. Além disso, ainda que ela possa
ser menos ruim do que outras, a democracia é também uma ditadura – a da maioria.
Prefiro o dissenso ao consenso. Prefiro os anti-sistemas, a auto-regulação. Sou uma
anarco-existencialista cristã.

Unisinos – A Unisinos tem vários significados pra mim. Ela me conecta com pessoas,
tenho amigos que fiz aqui e que foram relações importantes para mim, afetivamente e
intelectualmente. Eu adoro os alunos da Unisinos, tenho uma relação muito boa com
eles. A Unisinos é uma instituição que se realiza num ambiente às vezes
demasiadamente tenso; mas também reconheço ações promovidas no sentido da
melhoria da qualidade de vida (saúde, previdência, cultura...) dos professores e dos
funcionários, assim como a assistência a alunos com certas dificuldades. Ah! e eu adoro
esse campus. E acho que, em geral, temos condições de trabalho bastante boas, se
comparadas com as de outras universidades.

Instituto Humanitas Unisinos – O IHU é algo muito interessante. Identifico-me com


as inquietações que o impulsionam. O Instituto produz diferença, e consegue realizar
várias coisas ímpares dentro da Universidade.

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JULHO DE 2006
Errata
Dain Borges, porto-riquenho, historiador e professor na Universidade de
Chicago, entrevistado na última edição, no. 186, 26-6-2006, sobre Michel
de Certeau, não é jesuíta.

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JULHO DE 2006

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