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LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE PATENTES: OS PROJETOS DE LEI

BRASILEIROS NO CONTEXTO DA CRISE DA COVID-19


JOSÉ AUGUSTO FONTOURA COSTA*
GILBERTO BERCOVICI **

Abstract: Brazilian lower house of the Parliament does analyse three projects of amendment
of the Article 71 of the Intellectual Property Statute: the statutes’ drafts 1.184/20, 1.320/20 and
1.462/20. The focus of the proposed reforms is to implement the automatic issue of compulsory
licences in the case of health emergencies, both national (declared by Federal Government)
and international (declared by the World Health Organisation). The project 1.462/20 is syste-
matically interpreted and its rules are contrasted to the Trade Related Intellectual Property
Agreement articles 31 and 31 bis. It results in the detection of potential breach of article 31 (a)
of the TRIPs, as far as no blanket licensing is authorised therein. Finally, some considerations
on the economic effects of a potentially amended Intellectual Property Statute are discussed,
particularly the importance of taking into account the need to foster the development of a
national Health Economic Industrial Complex (HEIC).

Keywords: Compulsory licensing; TRIPs; health national emergency; COVID-19.

Summary: Introduction. 1. The draft laws 1,184, 1,320 and 1,462 of 2020. 2. The compatibility
with TRIPs. 3. The industrial economic health complex and the compulsory licensing. 3.1 PL
1.462 / 20 in health emergencies. 3.2 The PL 1,462 / 20 and the Brazilian Economic Health
Industrial Complex. Conclusion.

Resumo: A Câmara dos Deputados brasileira analisa três projetos de alteração do artigo 71
da Lei da Propriedade Intelectual: os projetos de lei 1.184/20, 1.320/20 e 1.462/20. O foco
das reformas propostas é a implementação da emissão automática de licenças compulsórias
no caso de emergências de saúde, tanto nacionais (declaradas pelo Governo Federal) quanto
internacionais (declaradas pela Organização Mundial da Saúde). O projeto 1.462/20 é inter-
pretado sistematicamente e suas regras são contrastadas com os artigos 31 e 31 bis do Acordo
de Propriedade Intelectual Relacionada ao Comércio (TRIPs). Esse estudo tem por resultado a
detecção de possível violação do artigo 31 (a) do TRIPs, pois nenhum licenciamento inespecífico
é permitido nessa regra. Finalmente, algumas considerações sobre os efeitos econômicos de
uma Lei da Propriedade Intelectual alterada nos termos do projeto são discutidas, particular-

*
 Professor de Direito do Comércio Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Professor da Faculdade de Direito de Sorocaba e da Universidade CEUMA (São Luís – MA). Bolsista de
produtividade CNPq. Advogado.
**
 Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Nove de Julho
(Uninove). Advogado.

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mente a importância de levar em consideração a necessidade de promover o desenvolvimento
de um Complexo Industrial Econômico da Saúde (CEIS) nacional.

Palavras-chave: Licenciamento obrigatório; acordo TRIPs; emergência nacional de saúde;


COVID-19.

Sumário: Introdução. 1. Os projetos de lei 1.184, 1.320 e 1.462 de 2020. 2. A compatibilidade


com o TRIPs. 3. O complexo econômico industrial da saúde e os licenciamentos compulsórios.
3.1 O PL 1.462/20 nas emergências sanitárias. 3.2 O PL 1.462/20 e o Complexo Econômico
Industrial da Saúde brasileiro. Conclusão.

Ne perdez pas votre temps à battre sur un mur,


espérant le transformer en une porte.
(Coco Chanel)

Introdução

A pandemia da COVID-19 tomou o mundo de surpresa e, em pouco tempo,


alterou os mais diversos aspectos da vida, das previsões macroeconômicas aos
pequenos hábitos individuais. Espera-se que logo encontre seu término, mas não
sem deixar um rasto de inúmeras transformações.
O tratamento das patentes relacionadas ao setor sanitário é uma delas, pois as
emergências nacionais e internacionais ensejam preocupações com o desabaste-
cimento decorrente do incremento agudo da procura por alguns bens e os limites
da oferta. A atuação forte do Estado para mitigar a crise, inclusive por meio do
controle da exportação de bens essenciais para o enfrentamento da pandemia,
também limita a possibilidade de confiar plenamente no mercado internacional.
É nesse contexto que surgiram alguns projetos de lei na Câmara dos Depu-
tados brasileira. Ao menos um deles, o 1.462/20, tem potencial para modificar
substancialmente o regime da concessão de licenças compulsórias automáticas
para todos os bens vinculados a emergências sanitárias.
O presente artigo apresenta a estrutura desses projetos de lei, com ênfase
no 1.462/20 (parte 1), para, em seguida, discutir sua adequação aos parâmetros
do TRIPs (parte 2) e sua capacidade para gerar os efeitos econômicos desejados
(parte 3). Faz-se, para tanto, um esforço analítico e interpretativo do Direito
brasileiro atual e das mudanças propostas, bem como da compreensão da regu-
lação material dos artigos 31 e 31 bis do TRIPs. Ao final, busca-se compreender
o sentido econômico das alterações propostas e discutir seus potenciais efeitos.

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1. Os projetos de lei 1.184, 1.320 e 1.462 de 2020

O PL 1.184, de 27 de março de 2020, proposto por Jandira Feghali, deputada


federal pelo estado do Rio de Janeiro e filiada ao Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) e ao qual aderiram os deputados Alexandre Padilha (pelo estado de
São Paulo, Partido dos Trabalhadores – PT) e Alice Portugal (pelo estado da
Bahia, PCdoB), é composto de três artigos. Sua única regra substancial aparece
no Artigo 2º, conforme o qual:
Durante o Estado de Emergência em Saúde de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de
fevereiro de 2020, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária
e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respec-
tivo titular, nos termos da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 e de regulamento do
Ministério da Saúde.

Trata-se, portanto, de mera redundância, pois a regra da própria Lei n. 9.207


se refere a “casos de emergência e de interesse público” (Artigo 71), noção que
obviamente abrange o “estado de emergência em saúde” já reconhecido por lei.
Não é bem claro o objetivo de tal proposta; talvez seja apenas o de registrar politi-
camente uma posição favorável ao licenciamento compulsório no atual contexto.
Dado o caráter inócuo e a estagnação de seu andamento, dispensada fica qual-
quer análise adicional.
Os projetos 1.320, de 31 de março de 2020, e 1.462, de 2 de abril de 2020,
contêm o mesmo teor e proposta. A diferença é que o primeiro foi apresentado
apenas pelo deputado federal Alexandre Padilha (PT de São Paulo) e o segundo
pelo mesmo proponente, na companhia de outros dez deputados, representativos
de um amplo espectro de tendência política e do território nacional. Houve, ainda,
pedidos de outros deputados para passarem a constar como autores do projeto.
Ao primeiro, nenhum andamento foi dado desde a propositura em Plenário; ao
segundo, há um conjunto de pedidos e despachos, mesmo que sem progresso
significativo, em que pese haver gerado debates importantes fora do ambiente
parlamentar, suscitando apoios1.

1
 https://www.camara.leg.br/noticias/689119-camara-comeca-a-debater-quebra-de-patente-
de-vacinas-contra-a-covid-19/?fbclid=IwAR002XEYVr5J7wVYujRIsk54Kvqy8A3Wk_
Lj1EPz9mBDMHaBvTOtuYCV8t8; https://www.camara.leg.br/noticias/689553-governo-descarta-
quebrar-patentes-para-assegurar-acesso-a-vacina-contra-covid-19/?fbclid=IwAR002XEYVr5J7
wVYujRIsk54Kvqy8A3Wk_Lj1EPz9mBDMHaBvTOtuYCV8t8; https://www1.folha.uol.com.br/
equilibrioesaude/2020/05/especialistas-pressionam-maia-por-projeto-que-quebra-patente-em-razao-
da-covid-19.shtml, consultados em 11 de setembro de 2020.

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Deste modo, a atenção deve se concentrar na análise do Projeto de Lei
1.462/20, cujas normas ensejam mudanças efetivas no tratamento dos licencia-
mentos compulsórios no Brasil. Cabe, portanto, discutir seu conteúdo.
A norma que é objeto da alteração proposta é o Artigo 71 da Lei 9.279/96.
Esse diploma legal “regula direitos e obrigações relativos à propriedade intelec-
tual” (Lei 9.279/96, Artigo 1º), inclusive o regime jurídico das patentes. É, em
linhas gerais, um documento muito alinhado com o Acordo sobre Aspectos dos
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs), não
sendo acidental sua promulgação no ano posterior a sua adoção por ocasião do
surgimento da Organização Mundial do Comércio.
A questão das licenças compulsórias é abordada na Seção III (Da Licença
Compulsória; artigos 68 a 73) do Capítulo VIII (Das Licenças) do Título I (Das
Patentes) desta lei. Há duas hipóteses básicas de permissão legal para a autori-
zação do licenciamento compulsório: (1) o exercício abusivo dos direitos paten-
tários (artigo 68, caput) e (2) o desabastecimento, identificado pela verificação
objetiva de não haver oferta, ou haver oferta extraordinariamente restrita,2 dos
bens e serviços associados à patente (artigo 68, § 1º). O Artigo 71 estabelece outras
duas hipóteses: a autorização para, nos casos (3) de emergência nacional ou (4)
interesse público, haver concessão ex officio de licença “compulsória, temporária
e não exclusiva” para a exploração, resguardados os direitos do titular da patente.
Há, ainda, o licenciamento compulsório em razão da dependência das patentes,
ou seja, para solucionar aquelas circunstâncias em que o titular da licença da
patente não consegue realizar seu uso adequado em razão de outra patente; não
se tratará de tal tema no âmbito desse artigo.
O regime das duas primeiras modalidades (abuso e desabastecimento) é
bastante similar ao das outras (emergência nacional e interesse público), com
algumas importantes distinções, como se observa no quadro abaixo:

2
 A lei aponta “a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado,” o que não é consistente
em termos microeconômicos, pois o mercado do bem ou serviço relacionado à patente apenas arbitraria o
preço e a quantidade comercializados. Para dar sentido à determinação legal, portanto, é preciso interpretar
as tais “necessidades do mercado” em termos diversos do uso normal, o que parece indicar uma distorção
da relação de oferta em um sentido idêntico ou muito similar ao do exercício de preços de monopólio.

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Abuso e desabastecimento Emergência e interesse público
Pedido Por pessoa com legítimo interesse Pode ser concedida por ato de ofí-
e capacidades técnica e econô- cio. Não é necessário identificar o
mica para produzir. titular da licença.
(Artigo 68, § 2º) (Artigo 71)
Prazo mínimo para a concessão Abuso: assim que caracterizado e A partir da declaração da emer-
Desabastecimento: decurso de gência ou do interesse público
ao menos três anos da concessão por ato do Executivo Federal.
da patente.
(Artigo 68, § 5º) (Artigo 71)
Exceções imponíveis pelo titular Justificação do desuso. Oposição por meio da compro-
da patente Comprovação da iminência do vação de atendimento das neces-
início da exploração e sidades referentes à emergência
Justificação a falta de comerciali- e interesse público por parte do
zação ou fabricação por obstáculo titular da patente ou seu licen-
legal. ciado.
(Artigo 69) (Artigo 71)
Exclusividade São concedidas sem exclusividade.
(Artigos 71 e 72)
Sublicenciamento Não é admitido o sublicenciamento,
Exceto se cedida a licença compulsória em conjunto com a empresa
ou a parte da empresa que a explore.
(Artigos 72 e 74, § 3º)
Prazo para o início da produção Um ano, contado da concessão da Embora sem exceção expressa, é
no Brasil licença, admitida interrupção por evidente que o condicionamento
igual prazo. à situação de emergência ou
à atenção a interesse público
podem implicar o afastamento do
disposto no Artigo 74.
Observe-se que as regras sobre
a importação paralela aparecem
(Artigo 74) apenas no Artigo 68, §§ 3º e 4º.
Procedimento O delineamento do procedimento para a concessão de licença com-
pulsória por pedido de interessado está feito no Artigo 73.

O PL 1462/20 não tem por objetivo a integral revisão da sistemática de


concessão de licenças compulsórias, mas apenas o de realizar ajustes referentes às
licenças por emergência e interesse público, uma vez que apenas aponta mudanças
para o Artigo 71 da lei 9.279, in verbis:
Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder
Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa
necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não
exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

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Parágrafo único. O ato de concessão da licença estabelecerá seu prazo de vigência
e a possibilidade de prorrogação.

Para o caput há apenas uma mudança de redação: onde hoje se lê “patentes”,


passar-se-ia a ler “patentes e pedidos de patente”. O § 1º seria integralmente
mantido e, portanto, conserva-se a necessidade de estabelecer termo inicial e
final para a vigência da licença compulsória. As grandes alterações derivam do
§ 2º, que seria inserido no Artigo 71:
A declaração de emergência de saúde pública de importância internacional pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) ou a declaração de emergência de saúde pública
de importância nacional pelas autoridades nacionais competentes enseja automati-
camente a concessão da licença compulsória por emergência nacional de todos os
pedidos de patente ou patentes vigentes referentes a tecnologias utilizadas para o
enfrentamento à respectiva emergência de saúde, tais como vacinas, medicamentos,
diagnósticos, reagentes, dispositivos médicos, equipamentos de proteção individual,
suprimentos e quaisquer outras tecnologias utilizadas para atender às necessidades
de saúde relacionadas à emergência.

O objetivo dessa transformação é criar um regime especial para uma modali-


dade inexistente na lei atual. A hipótese é de “declaração de emergência de saúde
pública de importância internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS)
ou a declaração de emergência de saúde pública de importância nacional pelas
autoridades nacionais competentes”. À primeira vista, tratar-se-ia de uma especi-
ficação da hipótese geral contida no caput, sendo a “emergência de saúde pública”
um caso especial de “emergência nacional”. Ocorre, porém, extensão em razão
(1) da atribuição de efeitos a declaração da OMS, inexistente no Direito brasi-
leiro atual e (2) da atribuição de efeitos a declarações de “autoridades nacionais
competentes”, indicando um campo de possibilidades mais amplo que o delimi-
tado no caput pela expressão “ato do Poder Executivo Federal”. Em termos de
estrutura da regra, para maior clareza e sentido, seria melhor a proposta buscar
a inserção de um novo artigo.
A verificação dessa hipótese implica concessão automática de licenças compul-
sórias, o que é vinculado, na sistemática do PL 1.462/20, ao caráter imediato da
concessão e da presunção absoluta de necessidade. O caráter imediato se verifica em
razão de o licenciamento compulsório ocorrer ipso jure, pois se constitui imedia-
tamente na data da declaração da emergência, sem necessidade de qualquer ato
governamental ou privado (PL 1462/20, artigo 2º, sugestão de inciso I ao § 2º do
artigo 71 da Lei 9.279/96). Em termos procedimentais, o INPI anota a concessão
da licença no processo administrativo da patente ou pedido à medida em que estes

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forem identificados como relacionados à emergência de saúde pública (inciso II
sugerido), mas tal ato não tem natureza constitutiva, mas meramente declara-
tória, posto que a concessão seria efetivada pela declaração da emergência, nos
termos do § 2º proposto no projeto de lei.
A presunção jure et de jure da necessidade do licenciamento decorre da impos-
sibilidade de opor a defesa de existência de abastecimento suficiente, pois as
licenças são concedidas “independentemente da constatação de que o titular da
patente ou do pedido da patente (...) não atende às necessidades de saúde relacio-
nadas à emergência” (PL 1462/20, artigo 2º, sugestão de inciso I ao § 2º do artigo
71 da Lei 9.279/96). Por outro lado, tampouco se prevê expressamente a possibi-
lidade de opor ao licenciamento compulsório a alegação de que uma determinada
patente não é relacionada àquela emergência. Por exemplo: se equipamentos de
comunicação eletrônica podem ser utilizados para manter profissionais da saúde
em contato, uma patente referente a eles está coberta pela noção de “quaisquer
outras tecnologias utilizadas”?
Há, também, um regime da licença compulsória em razão de emergência de
saúde pública. Sua validade se estende da declaração do estado de emergência
pela OMS ou por autoridade federal até o término do período “em que perdurar
a situação” (PL 1462/20, artigo 2º, sugestão da alínea a ao inciso III ao § 2º do
Artigo 71 da Lei 9.279/96). Essa determinação é particularmente prejudicial ao
efetivo funcionamento da produção baseada nessas patentes, pois a inexistência de
prazos previamente estabelecidos torna muito difícil o cálculo da amortização dos
bens de capital fixo, tornando bastante arriscados os investimentos na produção
de bens ou oferta de serviços dependentes desse tipo especial de licença. Fixa-se,
ainda, a remuneração do titular da patente em 1,5% sobre o preço de venda ao
Poder Público, o que se baseia na experiência brasileira anterior e não se configura
como excessivamente baixo. Por fim, ressalta-se o dever de o titular da patente
ou pedido disponibilizar todas as informações necessárias à produção ao Poder
Público, asseguradas a proteção contra concorrência desleal e práticas desonestas.
O PL 1.462/20 não estabelece nenhuma regra para a permissão de impor-
tação paralela do bem no período em que a produção nacional não puder ser
iniciada, o que normalmente decorre das necessidades de adaptação das linhas
e procedimentos de produção. Em princípio, parece ser aplicável a regra geral
do Artigo 74, de até um ano depois da concessão da licença compulsória, o que,
porém, deve ser analisado em face do caráter emergencial. Ainda: na lei atual, a
importação apenas é permitida quando o bem houver “sido colocado no mercado
diretamente pelo titular ou com o seu consentimento” (Artigo 68, § 3º, § 4º).
É certo que emergências internacionais e nacionais não aparecem todos os
dias e, nesse sentido, haveria pouco campo para o emprego dessa nova modali-

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dade de situação geradora de licenciamento compulsório. Até por isso, e em razão
do risco de que o projeto de lei não seja aprovado antes do término do estado de
emergência da pandemia da COVID-19, é de se imaginar uma aplicação bissexta,
se efetivamente existente.
O PL 1.462/20, no entanto, foi proposto a partir de um grupo de deputados
interessados na pauta da saúde e que representam um espectro amplo da polí-
tica brasileira. Ainda que o potencial de utilização da eventual lei derivada de tal
projeto seja bastante reduzido, é importante analisar sua compatibilidade com
os parâmetros estabelecidos no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Proprie-
dade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs).

2. A compatibilidade com o TRIPs

O TRIPs estabelece um regime de licenciamento compulsório, denominado


“outro uso sem autorização do titular” e disposto em seu Artigo 31. Aí se procede
a construção de um sistema excepcional e escalonado. É excepcional porque surge
como exceção ao modo normal de funcionamento do regime das patentes em face
de circunstâncias que devem estar presentes para fazer incidir a permissão do
uso sem autorização do titular.
É escalonado em razão de estabelecer três hipóteses capazes de autorizar a
licença compulsória, com diferentes graus de exigência de tratativas anteriores
e limitações para o exercício da licença (Artigo 31, (b)): (1) o fracasso de nego-
ciações razoáveis para obter a autorização do titular e (2) emergência nacional
ou outros casos de extrema urgência, em que as tratativas prévias não são condi-
ções da autorização do regime excepcional e (3) para uso público não-comer-
cial, quando há dispensa das negociações prévias associada à limitação do uso da
patente. Outrossim, é importante observar que a redação do Artigo 31 do TRIPs
é bastante flexível quanto à configuração das hipóteses previstas; a mitigação do
potencial das licenças compulsórias decorre do regime expresso nas alíneas (a)
a (j).
Não cabe aqui, onde apenas se discute a compatibilidade do regime proposto
pelo PL 1.462/20 e o TRIPs, uma discussão detalhada desse acordo. Deve-se
ressaltar haver um considerável paralelismo entre a estrutura da Lei 9.279/96 e
o TRIPs; destaca-se, na lei brasileira, a ausência da restrição ao uso não-comer-
cial3. O caráter não exclusivo, intransferível, voltado ao mercado interno e com

3
 A questão de se a exigência do uso não-comercial pode ser imediatamente transposta para o Direito
brasileiro é um tema importante e complexo, o que impede sua discussão no âmbito desse artigo. Opina-

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remuneração adequada (Artigo 31, (d), (e), (f ), respectivamente) são aspectos
presentes nos dois instrumentos normativos, entre outros.
As hipóteses propostas no PL 1462/20 não estão em desacordo com o regime
do TRIPs. Ainda que, como observado acima, representem uma terceira hipótese,
distinta da do atual caput do Artigo 71 da lei brasileira, é bastante ajustada à noção
de “emergência nacional ou outras circunstâncias de urgência”. Ressalte-se que
a eventual declaração pela OMS seria, por força da lei brasileira com a possível
futura redação, equiparada a “outras circunstâncias de urgência”.
Há, porém, um obstáculo importante: o Artigo 31, (a), do TRIPs proíbe a
concessão de licenças em bloco, as chamadas blanket licenses4. Nesse sentido, esta-
belece: “a autorização [do uso sem autorização do titular] será considerada com
base no seu mérito individual”. Há, aqui, contraposição frontal à previsão de haver
“automaticamente a concessão da licença compulsória por emergência nacional de
todos os pedidos de patente ou patentes vigentes” (itálico adicionado). A verificação do
mérito individual não é consistente com (1) o automatismo, porquanto este afasta
qualquer avaliação de mérito, assim como com (2) a extensão a todas as patentes
e pedidos, pois obviamente fora da consideração individualizada.
O PL 1.462/20, porém, sustenta a plena compatibilidade com o TRIPs
apoiando‑se na Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPs e Saúde Pública
(DDTSP). Em particular, esse arrazoado declara o seguinte5:
Relacionando-se mais diretamente aos propósitos do presente PL, o item 5(b)
[da Declaração de Doha sobre o acordo TRIPs e Saúde Pública] defende que “cada
membro tem o direito de emitir licenças compulsórias, bem como liberdade para
determinar as bases em que tais licenças são concedidas”. E, que, além disso, em seu
item 5(c), “cada membro tem o direito de determinar o que constitui emergência
nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, subentendendo-se que crises
de saúde pública (...) são passíveis de constituir emergência nacional ou circunstân-
cias de extrema urgência.

-se, porém, que a ausência de exigência na legislação brasileira implica não haver exigibilidade interna de
exclusividade de uso não-comercial, havendo eventual violação de regra do TRIPs se houver concessão
de licença compulsória em contrariedade com as regras desse Acordo, ainda que harmônicas com as
exigências da Lei 9.279/96.
4
 Duncan Matthews. Globalising intellectual property rights: the TRIPs Agreement, Routledge, Londres,
2002, pp. 60-61. UNCTAD-ICTSD. Resource book on TRIPS and development, Cambridge University Press,
Cambridge, 2005, em particular, p. 468: “The ordinary sense of this would be that governments should
not attempt to grant blanket authorizations of compulsory licence pertaining to types of technologies
or enterprises, but instead should require each application for a licence to undergo a process f review to
determine whether it meets the established criteria for the granting of a licence”.
5
 Brasil, Projeto de Lei n. 1.462/2020, Câmara dos Deputados, Brasília, 2020, pp. 5-6.

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Com efeito, a DDTSP, feita pela Conferência Ministerial da OMC em
novembro de 2001, tem implicações importantes para a questão do licenciamento
compulsório no campo da saúde. Em especial, no seu parágrafo 4, admite que
os Estados têm direito a tomar medidas de saúde pública e que o TRIPs deve ser
“interpretado e implementado” de modo a promover o acesso universal aos medi-
camentos. Nas negociações os países em desenvolvimento buscaram a afirmação
ampla de direitos nos campos do licenciamento compulsório e da importação
paralela, mas, dada a resistência dos países industrializados e do setor farmacêu-
tico, o resultado foi mitigado.
Ainda que, em grande medida, a DDTSP tenha tido o sentido de dar clareza
às narrativas subjacentes ao texto6, é possível interpretar tal dispositivo como
autorizando derrogações do acordo TRIPs em assuntos sanitários e indicando a
necessidade de interpretar sua aplicação a favor dos países interessados na saúde
pública e não, como em princípio deve ser a interpretação de uma regra insti-
tuindo exceção, restritivamente7.
Há outro importante ajuste derivado da DDTSP, consolidado inicialmente
por um waiver de 30 de agosto de 2003, convertido depois em uma emenda do
texto do TRIPs resultante no Artigo 31 bis e ajustes no seu anexo8. Trata-se da
exceção ao limite imposto pela regra do Artigo 31 (f ), conforme a qual as licenças
compulsórias devem atender predominantemente o mercado interno. Isso afas-
tava qualquer eficácia da concessão de tais licenças por países cujo complexo
industrial da saúde não fosse capaz de produzir os bens9. Conforme essa regra,
válida apenas para produtos farmacêuticos, o país importador notifica o Conselho
da OMC a respeito de suas necessidades e um outro país, capaz de produzir,
emite uma licença compulsória para que o mercado do primeiro país possa ser

6
 Antony Taubman. A practical guide to working with TRIPS, Oxford University Press, Oxford, 2011, em
particular, p. 49: “The Doha Declaration therefore served the interesting function of adjusting a received
or ‘oral’ jurisprudence of TRIPS, a perceived or asserted legal scope attributed inaccurately to the treaty
language, so as to align it more accurately with the black letter law of TRIPS as a legal text: to synchronize
political perceptions of the law with its actual legal reach. Doha provided a political gloss on the text of
TRIPS by referring to a ‘right to grant compulsory licences’ and ‘the freedom to determine the grounds
upon which such licences are granted’. By doing so, the Declaration did not rewrite TRIPS; it simply made
explicit what was implicitly there, so as to dispel avoidable confusion and contention.”
7
 Carlos M. Correa, Implications of the Doha Declaration on the TRIPS Agreement and Public Health,
Organização Mundial da Saúde, Genebra, 2002, pp. 9-12.
8
 Muhammad Zaheer Abbas/ Shamreeza Riaz, “Compulsory licensing and access to medicines:
TRIPS amendment allows export to least-developed countries”, JIPLP, 12, 6 (2017), pp. 451-452.
9
 Carolyn Deere, The implementation game: the Trips agreement and the global politics of intellectual
property reform in developing countries, Oxford University Press, Oxford, 2009, p. 101.

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suprido. Observe-se que ambos os países devem emitir as licenças compulsórias10.
O PL 1.462/20 não traz regra específica permitindo às autoridades brasileiras
a emissão de licença compulsória com a finalidade de manufaturar os bens no
país para exportação, embora, na eventual posição de país importador, possa se
beneficiar dessa regra.
É preciso, porém, observar que a DDTSP não representa qualquer tipo de
ruptura na estrutura do licenciamento compulsório como estabelecido pelo
Artigo 31. Suas contribuições são importantes, em especial quando esclarece a
importância dessas licenças para o campo sanitário, institui um padrão de inter-
pretação mais favorável aos interessados e serve como ponto de partida para o
que veio a ser o Artigo 31 bis do TRIPs em matéria de importação paralela.
Nesse sentido, quanto à possibilidade de licenças em branco a abranger,
automaticamente, todas as patentes relacionadas a uma emergência nacional ou
internacional de saúde, não se identifica qualquer abordagem normativa direta
na DDTSP ou documento posterior capaz de dar esteio à interpretação de que o
dispositivo do Artigo 31, (a), do TRIPs tenha sido afastado de plano.
Deve-se, não obstante, observar que a adoção do texto legal não significa, por
si só, violação das regras do TRIPs. Essa não se dá por mera hipótese, ou seja, uma
eventual adoção da redação proposta pelo PL 1.462/20 não infringe o Artigo 31
(a) do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (General Agreement on Trade in
Services – GATS). Apenas se, em decorrência da caracterização da emergência
sanitária, for posto em prática o licenciamento automático e indiscriminado
haverá violação.
Observada a incompatibilidade do PL 1.462/20 com as regras do TRIPs a
respeito do licenciamento compulsório, cabe discutir a relevância de eventuais
alterações no regime legal brasileiro. O próximo tópico, portanto, se dedica a
uma breve referência à estrutura do complexo industrial da saúde brasileiro e sua
relação com as patentes e o eventual licenciamento compulsório.

3. O complexo econômico industrial da saúde e os licenciamentos compulsórios

A projeção do conteúdo do PL 1.462/20 sobre a estrutura do complexo indus-


trial da saúde brasileiro revela dois campos de discussão e crítica. Em primeiro
lugar, é preciso verificar se sua aprovação geraria um ambiente jurídico suficien-
temente robusto para facilitar o combate a emergências de saúde, nacionais e
internacionais. Em segundo lugar, é preciso compreender se ele implica impactos

 Antony Taubman, A practical guide…, cit., pp. 183-185.


10

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efetivos sobre o desenvolvimento do complexo econômico industrial da saúde
(CEIS) brasileiro.

3.1. O PL 1.462/20 nas emergências sanitárias

Quanto ao primeiro ponto, deve-se esclarecer que não se trata, aqui, da


discussão da efetiva capacidade brasileira de enfrentar os efeitos econômicos de
uma crise sanitária. Com efeito, o parque industrial brasileiro, embora vitimado
por um já longo processo de redução e desarticulação11, ainda apresenta condições
de produzir bens relacionados à área da saúde, inclusive equipamentos médicos,
medicamentos e vacinas. A discussão da necessidade estratégica de fomentar o
fortalecimento e crescimento do CEIS será debatida mais adiante.
Em termos microeconômicos, uma crise sanitária implica um aumento da
demanda pública e privada por bens de saúde associados ao quadro epidêmico
específico. O esgotamento do Oseltamivir (Tamiflu) nas farmácias brasileiras
durante a pandemia de H1N1, em 2009, e a explosão dos preços de álcool em gel
nos primeiros dias da pandemia da COVID-19, em 2020, ilustram os efeitos de
mercado de uma radical alteração da demanda privada. Em mercados competi-
tivos, como o do álcool em gel, deve haver um incremento do preço e da quanti-
dade demandada no ponto de equilíbrio; situações de desabastecimento e preços
muito elevados tendem a ser passageiros e, nesses casos, fáceis de explicar a partir
da hipótese de um ajuste inicial resultante do deslocamento abrupto da curva da
procura. Bens protegidos por propriedade industrial, como patentes e marcas,
apresentam respostas diferentes, próprias de situações de concorrência mono-
polística ou, até mesmo, monopólio12.
O que se visa resolver por meio do licenciamento compulsório são efeitos de
monopólio e de concorrência monopolística, alargando o universo dos poten-
ciais ofertantes de modo a (1) impedir o exercício de preços de monopólio e (2)
aumentar a oferta pela redução dos custos marginais, de maneira a baixar o preço

11
 Entre outros, Wilson CAno, “A desindustrialização no Brasil”, Economia e Sociedade [online], 21 (2012),
n.spe, pp.831-851, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
06182012000400006&lng=pt&nrm=iso, ISSN 0104-0618, https://doi.org/10.1590/S0104-
06182012000400006 (consultado aos 11 de setembro de 2020); Paulo César Morceiro,
Desindustrialização na economia brasileira no período 2000-2011: abordagens e indicadores, Cultura Acadêmica,
São Paulo, 2012; José Alderir da Silva/André Luís Cabral de Lourenço, “Desindustrialização
em debate: teses e equívocos no caso da economia brasileira”, Indicadores Econômicos da Fundação de Economia
e Estatística, 42, 2 (2014), pp. 57-76.
12
 Um tratamento simples e claro desses conceitos pode ser encontrado, i. a., em Paul Krugman/Robin
Wells, Introdução à Economia, Elsevier, Rio de Janeiro, 2011.

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e aumentar a quantidade ofertada no equilíbrio de mercado. Formas expeditas e
simplificadas de concessão das licenças compulsórias tendem a reduzir custos de
negociação e facilitar o ingresso de novos competidores no mercado.
Nesse sentido, o PL 1.462/20 aborda um aspecto importante da mitigação de
direitos de propriedade industrial como instrumento do aumento da oferta de
bens de saúde. Será, porém, dotado de estrutura jurídica adequada para maxi-
mizar a oferta? Além do desconforto causado pelas incertezas inerentes à poten-
cial violação do TRIPs há, ao que parece, ao menos três outros pontos passíveis
de ser melhorados: (1) a ausência de regras sobre a delimitação do universo de
licenciados compulsórios, (2) a coincidência entre o termo final da situação de
emergência e o gozo da licença compulsória e (3) as incertezas quanto à eficácia
de declarações da OMS como determinantes das licenças.
Quanto ao primeiro ponto, a pura e simples revogação do monopólio paten-
tário pareceria, à primeira vista, uma solução ideal para o máximo aumento do
universo de produtores, pois qualquer um pode, se assim desejar, ingressar no
mercado do bem. Isso, porém, tem um limite importante: um novo ingressante no
mercado deve realizar algum investimento em capital fixo e, portanto, deve avaliar
a possibilidade de reaver tais montantes. Nesse sentido, restringir o conjunto dos
ingressantes a um único ou alguns poucos titulares das licenças compulsórias
pode fazer sentido. A sistemática do PL 1.462/20, porém, parece não dar espaço
ao direcionamento das licenças compulsórias a um conjunto restrito de titulares
e, desse modo, pode criar uma barreira indesejada ao ingresso ao incrementar o
risco de não ver os investimentos em capital fixo amortizados.
Nesse mesmo sentido, já passando ao segundo ponto, a fixação de um termo
final concomitante com o término da emergência de saúde implica uma consi-
derável incerteza a respeito da duração da licença compulsória. Isso é inibitório
do direcionamento de fatores produtivos à fabricação de bens, dada a precarie-
dade da licença, posto que é radicalmente imprevisível quando se dará o término
de uma emergência de saúde. Sem a delimitação de um período mínimo de
vigência da licença compulsória pode ser muito arriscado, temerário até, investir
na produção dos bens ou oferta dos serviços. O PL 1.462/20 poderia ter esti-
pulado períodos mínimos de vigência das licenças compulsórias e, ao menos,
possibilitar a indicação dos termos finais pelo Instituto Nacional da Propriedade
Industrial (INPI).
Observe-se, não obstante, que políticas de compras públicas de quotas
mínimas dos bens produzidos podem servir para dar às empresas selecionadas um
horizonte de segurança suficiente para possibilitar o investimento na adequação
de suas linhas e cadeias produtivas. Em outros termos: o atrelamento da licença
compulsória a uma política de garantia de compra pode aumentar a eficiência de

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uma política voltada a garantir a ampliação da oferta de bens de saúde. Talvez,
nesse sentido, pudessem ser pensadas alterações nos critérios de compras públicas
em contexto de emergência nacional de saúde.
Por fim, dadas a relutância e claudicância com que o Governo Federal brasi-
leiro vem tratando a crise da COVID-19, é compreensível a intenção de atribuir
à Organização Mundial da Saúde o condão de, mediante declaração de “emer-
gência de saúde pública de importância internacional”, disparar o licenciamento
compulsório no Brasil; do mesmo modo, compreende-se o desejo de circundar
os juízos de conveniência do INPI por meio da automaticidade. Não obstante,
tal submissão voluntária a declarações de uma instituição internacional parece
desafiar a plenitude dos poderes soberanos do Estado brasileiro na avaliação dos
esforços necessários para enfrentar crises sanitárias. Além disso, condicionar o
início e o fim da validade das licenças compulsórias a eventos independentes –
declaração da OME e decretação de emergência nacional – dão campo a múlti-
plas incertezas que, juntamente às mencionadas acima, podem inibir a atuação
de produtores privados.
Não é possível responder de modo binário à questão de se, aprovado, o PL
1.462/20 implicaria um efetivo aumento da oferta dos bens protegidos por
patentes. É de se imaginar que seus efeitos sejam melhor sentidos naqueles
campos em que a patente garante o monopólio, ou posição próxima a essa; do
mesmo modo, depende da articulação com outras políticas nacionais e regionais
de saúde. As incertezas decorrentes da sistemática adotada, porém, reduzem a
capacidade de atingir os efeitos desejados.

3.2. O PL 1.462/20 e o Complexo Econômico Industrial da Saúde brasileiro

A noção de CEIS envolve a estrutura e os fluxos de produção e distribuição de


bens e serviços na área da saúde por meio de processos dinâmicos e não linea­res de
inovação e desenvolvimento, acoplando o sistema nacional da inovação ao sistema
nacional da saúde. Em termos analíticos, envolve as indústrias farmacêutica, de
vacinas, de hemoderivados, de reagentes para diagnósticos, de equipamentos
médicos e de insumos e, à vez, prestadores de serviços organizados em hospitais,
ambulatórios e outros serviços de diagnóstico e tratamento13.

13
 Carlos A. Grabois Gadelha, A dinâmica do sistema produtivo da saúde: inovação e complexo econômico
industrial, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012, pp. 13-18. Também Marco R. di Tommaso/ Stuart
O. Schweitzer, Health policy and high-tech industrial development: learning from innovation in the health
industry, Elgar Publishing, Cheltenham, 2005, pp. 7 e ss.

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A estruturação do CEIS parte do pressuposto que uma demanda cada vez
maior por bens e serviços de saúde significa uma oportunidade não apenas para
a ampliação do acesso à saúde, mas também para o desenvolvimento do país.
O CEIS é uma parte essencial do sistema nacional de inovação, contribuindo para
o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Boa parte das indústrias de
saúde possui forte ligação com os núcleos de pesquisa científica no país. Os inves-
timentos, públicos ou privados, em pesquisa geram efeitos positivos e inovações
nos mais variados setores da indústria de saúde. Além disto, o CEIS pode obter
uma inserção considerável, a partir da sua expansão em inovações, no mercado
internacional, transformando uma indústria doméstica em um sustentável setor
industrial exportador14.
Em termos jurídicos, há amplo suporte constitucional à utilização do CEIS
como instrumento de desenvolvimento nacional, influindo positivamente sobre
a garantia e a ampliação do acesso à saúde (CF, Artigo 196) e o de proteger e
incentivar o mercado interno (CF, Artigo 219)15. Em particular, a legislação sobre
propriedade intelectual deve ser interpretada e aplicada em vista dos princípios
constitucionais e dos objetivos de desenvolvimento16 e, desse modo, cabe ques-
tionar se o PL 1.462/20 se revela um instrumento de desenvolvimento nacional
ou apenas se propõe como um meio de mitigação de crises agudas.
Uma análise inicial não parece mostrar uma relação clara entre o PL 1.462/20
e a necessidade de promover o desenvolvimento nacional por meio do incen-
tivo ao CEIS. Isso decorre da percepção de que o enfrentamento de uma emer-
gência sanitária teria natureza episódica e, portanto, insuficiente para promover
o desenvolvimento em médio e longo prazo. As licenças compulsórias, porém,
podem ser um elemento facilitador da implementação de políticas de incentivo
ao desenvolvimento industrial nacional no setor sanitário.
Observe-se que a Lei 9.279/96 prevê o licenciamento compulsório para
aquelas situações em que se caracterize o interesse público. É regra consistente
com o TRIPs que, como já se observou, é bastante pródigo com a estruturação das
hipóteses, embora consideravelmente restritivo na articulação do regime. Essa
regra, observada do ponto de vista da Constituição, poderia ser empregada para
dar suporte a políticas bem articuladas, inclusive com a finalidade de universalizar

14
 Padmashree Gehl Sampath, Reconfiguring Global Health Innovation, Routledge, London/New York,
2011, pp. 3-4, 13, 17-20.
15
 Gilberto Bercovici, “Complexo industrial da saúde, desenvolvimento e proteção constitucional
ao mercado interno”, Revista de Direito Sanitário. 14, 2 (2013), pp. 9-42.
16
 Gilberto Bercovici/Marco Aurélio Cezarino Braga, “Contribuições para a reforma da
lei de propriedade industrial: a adequação da forma jurídica à Ordem Econômica constitucional”, in:
A revisão da lei de patentes: inovação em prol da competitividade nacional (Org. Centro de Estudos e Debates
Estratégicos), Câmara dos Deputados, Brasília, 2013, pp. 159-164.

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o acesso gratuito à saúde. Nada surge a respeito, porém, no PL 1.462/20, preo-
cupado com as potenciais crises de desabastecimento e a possibilidade de incre-
mentar, temporariamente, a oferta de bens associados a emergências de saúde.
Ocorre, porém, que a existência de um CEIS robusto e bem estruturado é
condição para a plena obtenção dos efeitos relacionados às emergências nacio-
nais. Ainda que a possibilidade de realizar importações paralelas protegidas por
licenças compulsórias resolva parcialmente o problema da falta de capacidade
industrial nacional – o que não chega a ser o caso do brasil para muitos dos bens
relacionados a saúde – é fundamental buscar adensar o sistema produtivo nacional,
sobretudo em um setor dinâmico e inovador. Mesmo para o estreito fim de enfren-
tamento da emergência sanitária, a importação paralela não garante acesso aos
bens produzidos no exterior, pois, além das óbvias dificuldades de lidar com
os aumentos de preço, é normal a imposição medidas públicas de proibição de
exportações até que as necessidades nacionais sejam atendidas.
Ressalte-se que o bom funcionamento do CEIS é importante para manter um
elevado potencial de superar as crises de saúde. Quanto maior a capacidade indus-
trial instalada e a capacitação dos quadros técnicos, melhores as chances de evitar
o desabastecimento em razão de alterações no mercado internacional; quanto
mais dependente de importações, mais vulnerável o sistema nacional de saúde.

Conclusão

Os projetos de lei brasileiros em matéria de licenciamento compulsório de


patentes no setor de saúde são, antes de tudo, uma resposta política ao desafio
posto pela crise sanitária. O PL 1.184/20 é uma espécie de manifesto desprovido
de maior conteúdo jurídico e o próprio PL 1.462/20 se notabiliza pela capacidade
de agregar deputados de diferentes campos ideológicos. Em todos os casos, o
tratamento jurídico das licenças compulsórias se caracteriza como uma expressão
de boas intenções limitadas por aspectos técnicos e econômicos.
A proposta substancialmente mais relevante é, sem dúvida, a do PL 1.462/20.
Inova na hipótese, indicativa da declaração de emergência internacional pela OMS
ao lado da declaração de emergência nacional de saúde como deflagradoras do
regime, igualmente ousado, de licenciamento compulsório automático e com
cobertura de amplo espectro. São, porém, causas de insegurança jurídica, talvez
capazes de impedir a efetivação dos efeitos positivos resultantes desse tipo de
autorização de uso das patentes por terceiros.
Por um lado, a atribuição a ato de Organização Internacional o efeito de gerar
licenças compulsórias automáticas é pouco consistente com a afirmação da soberania

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nacional e, sempre que contestada judicialmente, pode gerar a cessação de seus efeitos.
Pelo outro, a instituição de licenças em branco e de amplo espectro contrariam a
regra do TRIPs, artigo 31 (a) e, contanto, impõe a incerteza própria da anulabilidade.
Uma breve análise da microeconomia das licenças compulsórias, com ênfase na
presença de custos de mobilização de fatores produticos com a alocação de capital
fixo para iniciar a produção dos bens licenciados compulsoriamente, observa-se
que a falta de uma regra mais generosa sobre o termo final das licenças e a atri-
buição da licença sem identificação de titulares específicos ou especificáveis pode
significar uma indesejável barreira à entrada de novos produtores no mercado do
bem protegido pela patente.
Por fim, a avaliação da relação entre as reformas legais projetadas e o fortaleci-
mento do CEIS brasileiro aponta para a desatenção às finalidades de desenvolvi-
mento econômico e proteção do mercado interno preconizadas na Constituição.
Pode-se alegar que isso não deveria ser objeto do PL 1.462/20, voltado exclusi-
vamente à resolução de crises associadas a emergências nacionais ou internacio-
nais de saúde. Não obstante, o uso estratégico das licenças compulsórias para,
atendendo ao interesse público, fortalecer as estruturas produtivas brasileiras
poderia ser melhor integrado à sistemática das modificações legais pretendidas.
É possível, provável até, que o PL 1.462/20 não venha a ser aprovado pron-
tamente, como demonstra a lentidão imposta a seu trâmite pela Presidência da
Câmara dos Deputados. De qualquer modo, ainda se afigura longo e complexo o
caminho até uma possível votação. Se, contrariando essa percepção, for promul-
gado, poderá vir a ter efeitos positivos no campo dos produtos farmacêuticos e,
eventualmente, de equipamento médico. A rejeição, se houver, não deveria ser
tomada como uma prova de que as licenças compulsórias não devam ser melhor
regidas. Nesse sentido, independentemente do resultado, seria bom inciar refle-
xões a respeito do impacto do regime de propriedade industrial brasileiro e o
CEIS. Nesse campo os efeitos futuros podem vir a ser muito mais efetivos.

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