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Arte e perversão no mundo

administrado: notas sobre o filme


de Michael Haneke, La pianiste

Art and perversion in the administered world: notes on


Michael Haneke’s film, La pianiste

Resumo Este ensaio volta-se para a análise de temáticas levan-


tadas no filme A professora de piano: “perversão”, “austeridade
da música séria” e sua “decadência” nas sociedades de massa,
“pornografia comercial”, discrepância entre “sublimação e per-
versão” e/ou “erudito e mundano”. O referencial para tal análise
são os autores da teoria crítica da sociedade – Adorno, Horkhei-
mer e Marcuse. Os conceitos freudianos são usados como
instrumentos teóricos para a crítica da cultura. Tendo como Ana Paula de Ávila Gomide
pano de fundo o filme de Haneke, o problema da neutralização Universidade Federal de
Uberlândia (UFU)
da grande arte, bem como das vivências mutiladas dos sujeitos,
anapag2@gmail.com
calcadas no prazer sadomasoquista e fetichista com os outros
e com os objetos culturais, é aqui discutida com o propósito de
lançar luz sobre os pressupostos antropológicos do chamado
mundo administrado.
Palavras-chaveTeoria Crítica; Psicanálise; Arte; Perversão

Abstract The purpose of this essay is to analyze issues raised in


the film The Piano Teacher: “perversion”, “the austerity of seri-
ous music” and its “decadence” in mass societies, “commercial
pornography”, the discrepancy between “sublimation and per-
version” and/or “erudite and worldly”. The reference for such
analysis is the critical theory of society through its authors: Ador-
no, Horkheimer, and Marcuse. The Freudian concepts are used
as theoretical tools for the critique of culture. With the purpose
of shedding light on the so-called anthropological suppositions
of the administered world, we discuss the problem of the neu-
tralization of the great art, as well as the subjects’ mutilated ex-
periences that are seated in the sadomasochistic and fetishistic
pleasure with others and with cultural objects, having Haneke’s
film as the background.
Keywords Critical Theory; Psychoanalisis; Art; Perversion
Se é correto o teorema psicanalíti- mecanismos sociais de adaptação individual
co de que as mulheres experimen- requeridos pelas sociedades contemporâne-
tam sua constituição física como a as. Sobre o comércio da libido, este, por sua
consequência da castração, então vez, favorece as perversões sexuais na pu-
em sua neurose elas pressentem blicidade e na indústria voltada ao erotismo
a verdade. A mulher que se sente e à pornografia. As vivências mutiladas dos
como uma ferida, quando sangra, sujeitos calcadas no prazer sadomasoquista e
sabe mais a seu próprio respeito do fetichista com os outros e com os objetos cul-
que aquela que se imagina como turais ilustram as regressões psíquicas como
uma flor porque isso convém a seu condições subjetivas de uma sociedade com
marido. (ADORNO, 1993, p. 83). tendências totalitárias. Não é demais lembrar
que o cinema de Haneke suscita nos especta-
Introdução dores o desconforto e o estranhamento com
O aforismo de Adorno, acima citado, sobre a temas que se voltam para a questão da vio-
condição da mulher que se sente como uma lência e a apatia generalizada de sujeitos das
“ferida”, remete-nos à personagem central sociedades tecnológicas avançadas, desve-
do filme A professora de piano (2001), do di- lando as expressões subjetivas do sofrimento
retor Michael Haneke. Embora Érika, a perso- psíquico provenientes das condições objeti-
nagem do filme, possa se relacionar ao tema vas atuais.1 Em seus filmes – citamos alguns,
psicanalítico sobre o complexo de castração tais como Funny games (1997), Caché (2005) e
e suas implicações sobre a estrutura psíquica A fita branca (2009) – aparecem personagens
das perversões sexuais (vide as cenas de auto- desprovidos de qualquer sentimento de culpa
mutilação da personagem, bem como aquelas ou de remorso, com “inclinações” à cruelda-
que apresentam seus conflitos com uma mãe de, esta, por sua vez, fomentada pelo “clima
excessivamente opressora), caberia pensar, espiritual” presente na modernidade.
a partir dela e de sua relação com a música Pois bem, para a análise das temáticas
erudita tradicional, apresentada no enredo mencionadas no filme A professora de piano
do filme, algumas reflexões acerca das face- – “perversão”, “austeridade da música sé-
tas da subjetividade contemporânea, tendo ria” e sua “decadência” nas sociedades de
em vista os pressupostos antropológicos do massa, “pornografia comercial”, discrepância
chamado mundo administrado. Tais propósi- entre “sublimação e perversão” e/ou “erudi-
tos dão-se no esforço de querer apontar para to e mundano” –, toma-se como referencial
a discussão mais abrangente sobre os desdo- os autores da teoria crítica da sociedade e os
bramentos da sociedade contemporânea e conceitos freudianos como importantes ins-
suas relações com os traumas da existência trumentos teóricos para a crítica da cultura.
individual no intuito de tentar responder so- Desta forma, a sexualidade “sombria” da per-
bre até que ponto a modalidade psíquica da sonagem e a aparente contradição estabele-
perversão (evidenciada na personagem) ser- cida entre sua perversão e o universo artísti-
viria como paradigma da subjetividade reifica- co erudito, do qual ela também compartilha,
da, ainda que a perversão não seja exclusiva serão consideradas como elementos capazes
de nosso tempo. de ilustrar as tensões históricas entre cultura,
Tendo como pano de fundo o filme de civilização e “natureza mutilada”, entre escla-
Haneke, este ensaio levanta algumas ques- recimento e mito, ou entre arte autônoma e
tões sobre o problema da “neutralização”
do poder explosivo da grande arte e discute A discussão sobre os filmes de Haneke apresentarem
1

sobre os destinos das pulsões individuais que denúncias sobre os “microfascismos” latentes em
nossa cultura encontra-se no texto Imagens do
se tornaram heteronomamente administra- microfascismo. Segurança e controle. Seis fragmentos
dos, quer pelo comércio da libido, quer pelos para a obra de Michel Haneke (ULM, 2012).

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sublimação/dessublimação. Tais tensões en- tivos”, que desenvolviam a magia e/ou o com-
tre os polos aqui levantados foram apontadas portamento mimético a fim de controlar tais
pelos filósofos frankfurtianos, ou seja, o lega- forças e adaptar-se ao meio ambiente hostil.
do histórico-filosófico da civilização e da ra- Essa questão, trazida sobre o passado mitoló-
zão ocidental e a neutralização e fetichização gico da humanidade, diz respeito aos escritos
dos objetos artísticos no capitalismo tardio. dos frankfurtianos sobre os entrelaçamentos
históricos entre o mito e o esclarecimento.2
Uma aproximação possível Daí pensar que se encontram embutidas
de Haneke com a Teoria Crítica nas atividades sexuais perversas resquícios de
e a Psicanálise uma herança arcaica repudiada e negada pela
À luz da teoria crítica e da psicanálise, humanidade esclarecida, tendo em vista que
as “ambiguidades” de Érika (vivida pela atriz nessas formas de gozo revelam-se tentativas
Isabelle Huppert) – seu sadomasoquismo e do sujeito de querer aplacar sua angústia (ao
voyeurismo confrontados com a artificiali- obedecer a uma ideia inconsciente de que a
dade de sua virtuose musical – podem ser a “castração não existe” [FENICHEL, s.d.]), cujo
tradução de uma lógica pulsional, segundo controle e domínio voltados ao seu corpo ten-
as necessidades do mundo administrado. dem a seguir uma lógica de rituais idiossincrá-
Isso é colocado na medida em que se pode ticos e repetitivos, bem como o oferecimento
testemunhar na personagem a heteronomia de partes corporais como “sacrifícios” para a
e a impotência de tipos de indivíduos que realização das atividades eróticas.
se adaptam às demandas irracionais de uma Isto posto, na obra de Horkheimer e
sociedade burocratizada cujos processos de Adorno (1985), Dialética do esclarecimento,
socialização são oferecidos pela indústria de alguns elementos podem ser retirados para
consumo, pelo trabalho precarizado e pelas dar embasamento à discussão aqui coloca-
demais instâncias de controle das massas da – qual seja, a relação da perversão com
com a decadência de formas tradicionais de a história subterrânea do controle sobre as
autoridade (HORKHEIMER, 1976). Com base paixões, a natureza e o corpo rebaixado a
nos estudos propugnados pela psicanálise, corpus, associada ao medo do terror arcaico
de que as perversões sexuais consistem na e ao retorno do comportamento mimético,
regressão à sexualidade infantil centrada no “superados” pelo progresso histórico do
pré-prazer (FREUD, 2002), e a expressão da esclarecimento. No entanto, o tema não se
recusa/negação inconsciente da constatação esgota aqui, dada sua complexidade. Mais
da castração, evoca-se, aqui, por um lado, a do que isso, o texto de Freud (1974) O mal-
questão do medo arcaico que a humanidade -estar na civilização, apropriado pelos frank-
tem da recaída no mítico. furtianos, também serve de auxílio para a
Assim, as atividades sexuais masoquis- questão lançada sobre o passado arcaico
tas e compulsivas de Érika, voltadas para o expurgado pelo processo civilizatório. As im-
sacrifício de suas partes corporais (as cenas 2
Para isso, reproduzem-se, aqui, as seguintes
que mostram suas necessidades de mutilação observações acerca dos gestos ancestrais miméticos
e de punição física), apontam para uma natu- do passado mitológico da humanidade: “Para
reza regressiva por seu caráter repetitivo e de esse homem [primitivo], todo sacrifício repete o
defesa contra o sentimento de angústia que, sacrifício inicial e coincide com ele […]. A repetição
que para a consciência mítica imprimia o caráter de
para efeitos deste trabalho, se assemelham realidade a um objeto ou uma ação, dependia, pois,
à lógica repetitiva e sacrificial imanentes ao da constituição de modelos dotados de prestígio
pensamento mitológico. Por sua vez, tal pen- mágico. Tais modelos definem a maneira pela qual
samento mítico já continha em si formas de o homem arcaico vivia seu mundo, formulando um
conjunto de regras precisas para o pensamento e
controle e dominação sobre as forças da na- para ação. Forma de representação, o mito é também
tureza que amedrontavam os “homens primi- regime da ação” (TOLEDO, 2013).

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plicações destas obras dão-se na direção de desdenhada”,3 pois passível de ser matemá-
ilustrar a origem da dominação da natureza tica e calculadamente explorada e utilizada
correlata à história da dominação do corpo para a obtenção do gozo, também com a
(na relação do homem com o trabalho e com vigência da racionalidade instrumental, que
o domínio técnico sobre a natureza externa), visa dissociar meios e fins, a razão vê-se re-
que se traduz na dominação da natureza in- duzida, segundo Nobre (2004, p.51) a “uma
terna humana (o domínio das paixões e dos capacidade de adaptação a fins previamen-
desejos). Ao lado da dominação da natureza, te dados de calcular os melhores meios para
o desenvolvimento da civilização ocorreu alcançar fins que lhes são estranhos”. Tal
simultaneamente ao endurecimento e à fun- racionalidade é dominante nas sociedades
cionalização da razão que se resignou à au- industriais avançadas da era dos monopólios
toconservação, assim perdendo de vista as – que os frankfurtianos denominam “socieda-
ideias de felicidade e de liberdade humanas, de administrada” –, determinando, não só a
outrora almejadas pelos filósofos do esclare- economia e o sistema político, mas também
cimento com os prenúncios da modernidade. a formação da personalidade dos sujeitos. Eis
No contexto da discussão aqui propos- aí um dos aspectos regressivos da razão: a de
ta sobre a relação da dominação do corpo e propugnar um modelo pautado na lógica dos
dominação da natureza, com os mecanismos equivalentes, pela qual tudo deve se tornar
subjetivos das perversões sexuais, a hipóte- igual, clamando pela equalização e pelo ni-
se aqui também levantada é a de que as per- velamento de fenômenos, objetos e sujeitos,
versões, hoje, tanto revelam a íntima relação com a expulsão de tudo aquilo que seja parti-
existente entre a razão instrumental – termo cular e divergente. Os autores frankfurtianos
cunhado por Horkheimer (1976) – e a irracio- revelam a presença desta racionalidade que
nalidade (a racionalidade instrumentalizada se tornou forma de mediação universal, tanto
que traz em seu bojo a desrazão) quanto nos princípios da lógica econômica capitalista
traduzem os limites desta racionalidade bur- tardia quanto nos princípios de demais conhe-
guesa que culminaram na barbárie – cujos cimentos advindos da ciência positivista, que
tornaram impossível a emancipação humana
pressupostos foram estudados pela teoria
(NOBRE, 2004). Não obstante, essa mesma
crítica. No que tange à relação da teoria do
lógica encontra-se embutida nas relações
esclarecimento e os limites da razão com a
reificadas entre os indivíduos e deles com os
teoria freudiana, pode-se ressaltar algo já
demais objetos de seu cotidiano, também
bem conhecido na psicanálise, a saber: Freud
presente na síndrome sociopsicológica cor-
(2002) ao elaborar a teoria da sexualidade in-
respondente às denominadas personalidades
fantil, tornou visível que na dita normalidade
autoritárias estudadas por Adorno (1995): o
e nas formas de desenvolvimento psicosse-
xual e formação do eu, fazem parte as mani- 3
No excurso “Juliette ou esclarecimento e moral”, da
festações e regressões das pulsões polimór- Dialética do esclarecimento (HORKHEIMER; ADORNO,
ficas perversas. O que tende a ser superado 1985), os autores fazem uma retomada crítica da
concepção de conhecimento de Kant para apontar
em cada fase libidinal deixa marcas nas fases a característica de formalização da racionalidade, o
seguintes, seja como traços de caráter, seja que desemboca no processo moderno hipócrita de
como hábitos irracionais repetitivos, pré-fi- fazer da moral algo também passível de formalização.
xados, que sinalizam um campo simbólico na Sob este aspecto, citam o escritor Marquês de
Sade como o representante mais autêntico de tais
história pessoal do sujeito, transcendendo a pressupostos da razão moderna: “Aquilo que Kant
própria racionalidade. As cenas do filme que fundamentou transcendentalmente, a afinidade
mostram as práticas sexuais perversas da pia- entre o conhecimento e o plano, que imprime o
nista permitem ilustrar tais discussões. caráter de uma inescapável funcionalidade à vida
burguesa integralmente racionalizada […], Sade
Assim como para o gozo do perver- realizou empiricamente um século antes do advento
so nenhuma “abertura do corpo pode ser do esporte” (HORKHEIMER; ADORNO, (1985, p. 87).

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tipo caráter manipulador de pessoas com alto ressaltam-se as cenas que mostram a tirania
potencial fascista, predispostas aos demais e a intolerância de Érika para com seus alunos
tipos de preconceitos e que tendem a desen- mais criativos do conservatório. Por sua vez, o
volver uma “consciência coisificada”. caráter repetitivo da técnica musical aqui res-
Por outro lado, sobre o tema da austeri- saltado também se assemelha aos elementos
dade da arte séria extraída do filme, nos atos regressivos contidos no pensamento mítico
ritualísticos que Érika estabelece com a músi- dos gestos arquetípicos ancestrais.
ca percebe-se um tipo de manejo frio e obses- Além disso, para se pensar a questão
sivo para com o material musical, apontando da arte séria, tal como aparece no filme – a
para a neutralização e empobrecimento da admiração que Érika diz ter pelos composi-
arte autônoma, assim privada de sua própria tores Schubert e Schumann –, apreende-se a
substância artística, confirmando uma relação decadência da arte autônoma em uma época
desencantada e dominadora que Érika man- na qual a massificação cultural e a comerciali-
tém com o objeto de arte. Estas observações zação da esfera libidinal anunciam-se de for-
correspondem à crítica levantada por Adorno mas cada vez mais gritantes. A admiração da
(1994) sobre o sistema tonal da música tra- pianista por estes dois compositores (ambos
dicional, que se tornou absoluto, limitando representantes do romantismo) revela-se ar-
o poder criativo do artista, instaurando uma tificial, posto que o tratamento dado por ela
relação repetitiva e fetichizada dos ouvintes à música alude a uma atitude excessivamen-
com a música harmônica preestabelecida, o te formalista e pseudorrefinada do tradicio-
que contribuiu para a obstrução do potencial nal esteticismo burguês. Ainda mais quando
de negação da arte. A tonalidade na música se presenciam no filme as cenas dos recitais
apresentou-se como um sistema já dado de privados de famílias da alta burguesia euro-
regras mediante as quais o artista executa seu peia, consumidoras desses recitais e conser-
material seguindo um esquema convencional. tos, considerados signos de erudição ou de
Assim, pretende-se levantar a seguinte alta cultura. Na transição que a pianista faz
questão: até que ponto este manejo frio e entre o erudito e o mundano, entre a suposta
mecanizado da música tradicional revela, de sublimação e a perversão, pressupõe-se que
forma mais contundente, os falsos ideais de a oposição entre as duas esferas tornou-se
harmonia do sistema tonal,4 cujos elementos inócua, ou seja, não há oposição entre tais es-
foram enfraquecidos na época histórica vigen- feras quando percebemos em Érika a relação
te, que não mais tem permitido a formação de tecnicista e de fetiche que ela mantém com a
ouvintes receptivos à música séria? Tendo em arte e com seu corpo. A possibilidade de subli-
vista a rigidez do sistema tonal, aqueles sinais mação estética ou de criatividade é obstada
de dor da natureza aprisionada, apontado em nossa sociedade que promove mecanis-
por Adorno (1974) acerca da particularidade mos de controle voltados ao atrofiamento da
técnica e material da música tradicional, são esfera privada e particular dos sujeitos e na
excessivamente mostrados na relação de qual as formas infantilizadas de satisfação se-
controle que Érika desenvolve com a música, xual tornaram-se cada vez mais fomentadas
pois se percebe em sua exigência artística pela indústria do consumo.
repetitiva e automatizada algo desprovido Se à primeira vista o contraste estabe-
de criação e de espontaneidade. Sobre isso, lecido entre o mundo ignóbil da sexualidade
4
“O manejo comercial da música, que envilece o de Érika e sua erudição e afeição pela músi-
patrimônio existente ao exaltá-lo e galvanizá-lo como ca séria tradicional parece ser um paradoxo,
algo sacro, confirma somente o estado de consciência na discussão aqui proposta as dissonâncias
do ouvinte em si, para quem a harmonia alcançada no entre tais mundos tornam-se falsas. Na reali-
classicismo vienense, e a transbordante nostalgia do
romantismo se converteram indiferencialmente em dade, ambas as coisas – a perversão e a rela-
artigos de consumo” (ADORNO, 1974, p. 18). ção fetichizada com a arte – desembocam no

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mesmo problema: lançar luz sobre as insufici- individuação e de diferenciação dos sujeitos),
ências e o empobrecimento dos sujeitos no não favorece, ou até mesmo demanda, tipos
mundo contemporâneo, suas impossibilida- de sujeitos mais afeitos ao sadomasoquismo,
des de realização e de diferenciação na cul- bem como às demais regressões psíquicas? A
tura, bem como a obsolescência do conceito obstrução do processo de sublimação como
de sublimação estética nas sociedades pós- a aparente dissolução dos conflitos psíquicos
-industriais. Assim, as discussões de Marcuse entre ego, superego e id, ou entre a moral e
(1973) e de Adorno (1974; 1993; 1994) acerca a satisfação, aponta para um tipo de homem
da neutralização promovida pela sociedade requerido pelas demandas sociais e econô-
administrada dos elementos transcendentes micas do mundo atual, qual seja, aquele que
da arte autônoma e suas implicações nas es- deve obedecer e executar as normas técnicas
truturas libidinais dos sujeitos também serão e burocráticas estabelecidas pela sociedade
abordadas aqui. da administração – o indivíduo reduzido à ca-
Tais elementos podem ser retirados das tegoria de “objeto”.
cenas do filme que mostram o diálogo de Éri-
ka com Walter no recital de piano acerca dos Dialética da razão e natureza muti-
compositores Schubert e Schoenberg. Nesta lada: dominação do corpo, perver-
cena em particular, na qual Walter (rapaz que são e o comércio da libido
se apaixona pela pianista) revela querer ter Uma das cenas impactantes do filme é
tocado Schoenberg, pode-se perceber uma aquela que mostra Érika trancada no banhei-
alusão à crítica social implícita representada ro de sua casa para poder exercer o ritual de
pela música nova ao sistema tonal (a técnica perfuração e mutilação de suas partes íntimas
dodecafônica da música atonal introduzida com uma gilete. Tais cenas de automutilação
por Schoenberg). Ao mesmo tempo, nesta não deixam de causar grande desconforto
cena também se prenuncia a impossibilidade aos espectadores, principalmente por causa
de uma relação amorosa entre os dois perso- da frialdade enunciada no ato, no qual se per-
nagens e os conflitos de ordem erótica que es- cebe a indiferença de Érika com relação à dor.
tão por vir entre ambos. A rigidez do sistema Assim, os sangramentos das partes íntimas de
tonal, representada por Érika, ajusta-se bem Érika como consequência das automutilações
aos padrões das sociedades da administração são imagens que evocam a questão da am-
– a saber, a mentalidade correspondente aos bivalência inconsciente que o homem herda
imperativos econômicos das relações de tro- com relação ao corpo: ora objeto de prazer
ca objetivadas –, e, ao mesmo tempo, parado- alienado, ora repelido como natureza a ser
xalmente, revela a decadência da música/arte dominada. No ensaio “Interesse pelo corpo”
tradicional na época vigente. que se encontra na obra Dialética do esclareci-
A relação “coisificada” com a músi- mento, dizem Adorno e Horkheimer que: “O
ca e o gozo sadomasoquista apresentados amor-ódio pelo corpo impregna toda a cultura
pela pianista de Haneke não ilustrariam as moderna. O corpo se vê de novo escarnecido
características condizentes com uma subje- e repelido como algo inferior e escravizado, e,
tividade adequada ao mundo administrado, ao mesmo tempo, desejado como o proibido,
cujos pressupostos voltam-se para o primado reificado, alienado” (1985, p. 217).
de leis, regras e normas que visam subsumir Pois bem, reside na atividade masoquis-
as “particularidades” aos ditames do capital? ta da pianista, além do sentido ambivalente do
Ora, a nossa ordem social opressiva, que tem gesto (dor e prazer, ou prazer na dor), aquilo
como base a razão voltada à autoconserva- que a psicanálise apontou sobre as fantasias
ção para a manutenção de interesses produ- de antecipação da castração e da aniquilação
tivos para a preservação do próprio sistema que em tais práticas de perversão o sujeito
econômico (ao preço das possibilidades de tenta atualizar. E, ao mesmo tempo, subjaz

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em tais práticas a tentativa desesperada do A respeito desse distanciamento em re-
sujeito de poder reencontrar o prazer nega- lação a uma “reflexão feliz sobre o corpo”,
do/renegado, já que a antecipação da castra- Adorno e Horkheimer destacam que Freud
ção, inconscientemente recusada, torna-se soube expressar bem tal fator quando lançou
condição necessária para a excitação sexual. suas ideias a respeito dos impulsos destruti-
A respeito do masoquismo nas perversões vos dos homens (a pulsão de morte) e sobre a
sexuais, ao estabelecer um paralelo com os noção de narcisismo, ambos socialmente uti-
rituais mágicos regressivos – posto serem as lizados e fomentados pelos aparatos de con-
atividades masoquistas um mecanismo que trole das sociedades de massa. Essas ideias,
segue a lógica do sacrifício –, Fenichel diz que: na perspectiva dos frankfurtianos, dizem res-
peito à existência do indivíduo burguês con-
As atividades masoquistas seguem denado à infelicidade em uma cultura que,
o caminho do ‘sacrifício’; o preço voltada exclusivamente à produtividade eco-
que antecipadamente se paga visa nômica, impediu a realização dos sujeitos. O
a apaziguar os deuses e contentá- narcisismo, ou o movimento das pulsões vol-
-los a custo relativamente baixo. As tadas exclusivamente para o ego, e as demais
atividades masoquísticas deste tipo regressões psíquicas abarcam o isolamento
são ‘mal menor’; os masoquistas desse indivíduo condenado, atomizado, e
usam símbolos da autocastração acabam por expressar, por si sós, todo o so-
para evitar a castração. (FENICHEL, frimento existente. A dominação voltada para
s.d., p. 334). si próprio, manifestada na falsa aparência da
autoconservação promovida pelas socieda-
Acerca do processo histórico-filosófico des administradas – exemplos disso, a exal-
da dominação do corpo, Horkheimer e Ador- tação da beleza e força física, a entrega dos
no (1985) apropriam-se das ideias freudianas sujeitos ao consumo na ilusão de que suas
sobre o retorno do recalcado para as críticas necessidades e desejos individuais estão sen-
à história da civilização burguesa, sustentada do contemplados –, e a legitimação da cruel-
no domínio da natureza – externa e interna –, dade promovida pelos aparatos narcísicos de
na qual denunciam, na divisão do trabalho, a controle sobre o corpo, tais como as cirurgias
origem de todas as injustiças e, principalmen- plásticas, os movimentos contemporâneos
te, as raízes do rebaixamento do corpo como denominados body modification e o culto con-
algo inferior, passível de ser instrumentaliza- temporâneo da pornografia suscitam o enfra-
do e coisificado. Nas palavras dos autores: quecimento da consciência individual para a
crítica à realidade. Além do mais, fortalecem
Na relação do indivíduo com o cor- um repúdio do indivíduo às outras pessoas
po, o seu e de outrem, a irracionali- que não se enquadram neste esquema de
dade e a injustiça da dominação re- autoconservação por encarnarem, aos olhos
aparecem como crueldade, que está do dominador, características que remetem
tão afastada de uma relação com- à fraqueza e à debilidade da natureza a ser
preensiva e de uma reflexão feliz condenada, recalcada (por exemplo, a perse-
quanto a dominação relativamente guição histórica contra as minorias sociais re-
à liberdade. Nietzsche, em sua teo- baixadas à categoria de natureza dominada:
ria da crueldade, e sobretudo Sade os judeus, os loucos, as crianças, os negros).
reconheceram a importância desse Acrescentam ainda os autores que a
fator, e Freud interpretou-o psicolo- sociedade moderna tende a recompensar
gicamente em sua teoria do narcisis- o narcisismo individual, ou a petrificação da
mo e da pulsão de morte. (HORKHEI- subjetividade, enquanto esses se tornam a
MER; ADORNO, 1985, p. 216). matéria-prima dos movimentos irracionais de

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massa ou de publicidade por promoverem a central da epopeia de Homero, Odisseia, que
adesão dos sujeitos impotentes aos seus ide- acaba por representar o protótipo da indi-
ais autoritários e infantilizados com a promo- vidualidade burguesa. Na figura do herói, a
ção de uma dessexualização da sexualidade. superação da mentalidade mítica pressupõe
Não é demais lembrar que Érika consome, a introversão do sacrifício, que significa o sa-
clandestinamente e com voracidade, imagens crifício da natureza interna mediante as atra-
pornográficas oferecidas pelos shows de ções e as ameaças das forças míticas ilustra-
sexo explícito em cabines privês, cujas ima- das nas aventuras de Ulisses em suas viagens
gens também desconcertam o público. ao mar, em seus embates com os monstros
Dessa perspectiva, os medos, as idiossin- mitológicos. Por sua vez, essa introversão do
crasias e as práticas sexuais desviantes, escar- sacrifício – ou seja, a dominação das pulsões,
necidas pela lógica racional da sociedade bur- das paixões e da esfera irracional – tornou-se
guesa, revelam-se como marcas da dominação a essência da individualidade burguesa.
violenta de uma herança histórica calcada na Entretanto, a preservação da identidade
dominação da natureza, no expurgo da huma- de um indivíduo senhor de si desencadeou as
nidade de seu passado arcaico. A mutilação formas mais cruéis de dominação e de perse-
aqui colocada e problematizada apresenta-se guição aos sujeitos que poderiam ameaçar as
como possibilidade subjetiva, ou como efeitos bases que comportam tal identidade e, por
subjetivos de um processo civilizatório violen- isso, o risco de dissolução desta sempre se fez
to, cuja história oficial voltou-se para a ocul- presente, a saber:
tação da história subterrânea dos “instintos e
paixões humanas, recalcados e desfigurados A humanidade teve que se subme-
pela civilização” (HORKHEIMER; ADORNO, ter a terríveis provações até que se
1985, p. 215). Em nossa cultura, prenhe de fas- formasse o eu, o caráter idêntico,
cismo, revela-se na relação deturpada e cruel determinado e viril do homem […].
que o homem tem para com seu corpo, com o O esforço para manter a coesão do
corpo de outrem e na afinidade que possa ter ego marca-o em todas as suas fases,
com as diversas políticas de cunho autoritário, e a tentação de perdê-lo jamais dei-
ou na adaptação conformista aos produtos xou de acompanhar a determinação
oferecidos pela indústria da cultura, dos quais cega de conservá-lo. (HORKHEI-
não se pode deixar de citar a promoção de MER; ADORNO, 1985, p. 44).
todo um comércio pornográfico.
Sobre a violência imanente à história Tendo em vista a questão colocada pe-
do esclarecimento calcada na dominação da los autores na dialética do esclarecimento
natureza que desencadeou uma forma pre- acerca da gênese da individualidade moder-
dominante de razão e pensamento – a razão na, mostrando o esforço do indivíduo para
instrumental voltada para, fins práticos e pro- diferenciar-se de seu passado mítico e da na-
dutivos ao preço do próprio caráter superan- tureza primitiva por meio da renúncia à satis-
te da razão esclarecida –, de cujo modelo a ci- fação e à vigência de seus desejos originários
ência tecnológica tornou-se predominante na – assim negando suas ligações filogenéticas
modernidade, Adorno e Horkheimer (1985) com a natureza –, não se pode esquecer que
fazem correlação com a gênese da individuali- nossa cultura, voltada à autoconservação,
dade burguesa. Esta se baseou na negação do fortalece, paradoxalmente, as regressões psi-
prazer e no expurgo da natureza interna para cológicas e o aniticivilizatório, tal como apon-
a autoafirmação do ego, em que a superação tado por Freud acerca do mal-estar na cultura.
da mentalidade mítica tornou-se indispen- A pressão civilizatória do mundo administra-
sável. Para tal discussão, os autores fazem do multiplicou-se na “rede densamente inter-
uma análise da figura de Ulisses, personagem conectada” entre os monopólios, as grandes

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corporações e a indústria cultural, remetendo mutilou e reduziu ao masoquismo.
ao que Adorno (1995, p. 122) apontou sobre Não há nenhuma satisfação erótica
uma possível “claustrofobia das pessoas no que não junte à alusão e à excitação
mundo administrado”, em face de uma situ- precisa de que jamais se deve che-
ação cada vez mais socializadora e totalitária, gar a esse ponto. (HORKHEIMER;
expropriadora das pulsões e idiossincrasias ADORNO, 1985, p. 131).
individuais pelos mecanismos de controle das
sociedades de massa. No tocante às pulsões O pré-prazer e o gozo – que também po-
eróticas na sociedade contemporânea, as dem ser relacionados às perversões –, assim
formas de satisfação das pulsões perversas como as fantasias e a vida onírica do incons-
são fomentadas pelos imperativos fornecidos ciente, também são externamente manipula-
pelo comércio da libido que administram as dos e expropriados dos sujeitos.
formas e os meios pelos quais a satisfação da A íntima relação existente entre as satis-
pulsão deve ser obtida. fações sexuais perversas com a angústia do
Acerca das imagens pornográficas consu- medo da castração, a ponto de a fruição do
midas por Érika como possibilidades de satis- perverso poder tanto revelar quanto renegar
fação de sua perversão, pode-se acrescentar as cicatrizes de sua impotência diante de um
a discussão dos frankfurtianos relacionada ao prazer derradeiro, expressa sua recusa da fe-
mundo televisivo (ADORNO, 1953) e virtual rida, o que acaba por confirmar a própria mu-
(TURCKE, 2010) fornecido pela indústria da cul- tilação psíquica. Freud (2002) atenta para a
tura, que assimila e administra a própria lingua- vida sexual empobrecida dos pervertidos ditos
gem pulsional dos sujeitos, assim minando as como “pobres diabos que têm de pagar preço
tensões outrora existentes entre a linguagem alto pelo seu limitado prazer”. Os objetos de
do id e a sociedade. A publicidade, bem como fetiche do pervertido (lembrando do fetiche
o comércio pornográfico, promove a gratifica- da pianista por vestidos caros que compra-
ção ilusória ao provocar nos sujeitos a excita- va escondido de sua mãe, bem como pelos
ção sexual por meio de oferecimentos de obje- artefatos erótico-pornográficos), na teoria
tos em imagens, assim humilhando ainda mais freudiana, serviriam para encobrir e, ao mes-
a pulsão que se subordina ao entretenimento mo tempo, substituir o falos que falta à mãe,
e à satisfação sádica e precária. A compensa- simbolizando a recusa da castração e da falta,
ção oferecida pelo pré-prazer das perversões na medida em que o objeto de fetiche seria
como restos de prazer possível em um âmbi- uma coisa no lugar do pênis faltante. Assim, a
to de frustração e impotência, assemelha-se à lógica que subjaz o fetichismo pode significar
lógica de funcionamento da indústria cultural, os seguintes fatores: a recusa da mutilação e
que impõe ao particular (à libido individual) a a antecipação da castração temida por meio
mercadoria como o objeto fetiche para a rea- das fantasias sádicas e masoquistas. Não à toa,
lização da satisfação sexual. Assim, a respeito ressalta-se a cena na qual Érika agarra sua mãe
do prazer preliminar fomentado pela indústria tentando obter dela uma relação forçada, su-
cultural – que se aproxima da noção de pré- plicando seu amor. Nesta cena, Érika, ao ser
-prazer das perversões indicada pela psicanáli- rejeitada e empurrada pela mãe, anuncia algo
se –, citamos o seguinte trecho: bem elucidativo acerca de seu desespero e
angústia, dizendo-lhe: “Eu vi os pelos de seu
Expondo repetidamente o objeto sexo”. Neste gesto desesperador, ela conse-
do desejo, o busto no suéter e o gue ver os pelos que encobrem a genitália da
torso nu do herói esportivo, ela [a mãe – e não o sexo dela. Não aponta Isso para
indústria cultural] apenas excita o a questão da recusa da castração?
prazer preliminar não sublimado Evidencia-se a aproximação possível en-
que o hábito da renúncia há muito tre perversão e racionalidade instrumental,

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na medida em que as perversões – em suas teórica à discussão sobre as mudanças dos su-
formas “racionalizadas” de obtenção do gozo jeitos dentro do contexto de uma ordem so-
– remetem aos medos míticos e irracionais cial totalitária por poder revelar, em termos
que deveriam ser controlados e superados de mecanismos psíquicos, o lado subjetivo da
pela racionalidade técnica. Ou seja, no prazer irracionalidade objetiva.
sexual do pervertido, pautado em um prazer As regressões psíquicas e morais encon-
transtornado pela angústia e pelo medo in- tradas na modalidade psíquica da perversão
consciente (denominado “recusa” por Freud) demonstrariam os limites e a radicalização
– tal como aqui já apontado –, vislumbram-se desta racionalidade por apresentarem uma
indícios de uma dominação sobre o corpo que subjetividade que internalizou ao máximo o
se revelam como tentativas de controle sobre utilitarismo e o pragmatismo próprios de uma
um terror arcaico inerente à história do desen- cultura pautada pela racionalidade instrumen-
volvimento da humanidade. Não obstante, na tal (RAMOS, 2004). Tal subjetividade calca-se
psicologia individual privada isso se apresenta na entrega à totalidade e nos excessos sociais
como impotência: uma impotência individual, oferecidos hoje pela indústria de consumo
mas social e historicamente determinada. Nas das sociedades contemporâneas (na forma
atividades sexuais das perversões – a saber, de compulsão à satisfação e na manipulação
o fetiche que transforma o outro num objeto do corpo como coisa-objeto). As possibilida-
ser manipulado (objeto inanimado), o prazer des de satisfação sexual da pianista do filme
com o sofrimento e com o sacrifício, e a satis- dão-se por meio do consumo de imagens por-
fação com a barbárie – encontra-se um misto nográficas (pornografia hardcore comercial) e
de medos irracionais com tentativas de con- pela relação de controle que tenta estabele-
trolar tais medos míticos, também tendo em cer com Walter. Como exemplo, destaca-se a
vista o fato de que, nas fixações pré-sexuais, cena do filme na qual Érika entrega a Walter
algo de recalcitrante ao modelo de maturida- uma carta, cujo conteúdo contém as normas
de sexual, ligado aos imperativos da genitali- e as ordens referentes aos passos e aos ritos
dade, é expresso (FREUD, 2002). a serem executados para a realização de suas
Assim, a relação estabelecida entre a fantasias sexuais perversas, ali estabelecendo
teoria psicanalítica da perversão e a teoria um contrato para o comércio sexual entre os
do esclarecimento e do progresso histórico- dois (e que Walter acaba por repudiar). Essas
-filosófico da razão pode ser visualizada no cenas mostram o quanto o gozo sadomaso-
prazer/sofrimento embutido nas perversões, quista da pianista está submetido a um prag-
pois nele desponta uma rebelião não sublima- matismo na articulação de meios e fins, com
da da natureza (pulsão) condenada e recalca- a abolição de possíveis conflitos morais que
da pela história oficial do esclarecimento. Não poderiam ser suscitados pelo tipo de prazer
obstante, na perspectiva freudiana, a vida se- submetido à dominação, à crueldade e à ma-
xual empobrecida e insatisfatória e, por isso, nipulação do outro.
reificada dos homens, tornou-se condição A obra O mal-estar na civilização (FREUD,
premente de uma humanidade que teve que 1974) apresenta os efeitos de uma repressão
renunciar ao prazer em prol de um princípio civilizada sobre as manifestações de compor-
de realidade que não visa compensar o sacri- tamentos proto-históricos transformados em
fício individual (FREUD, 1974). Nossa ordem tabus na e pela civilização (o tabu da mens-
social que, em nome de uma razão instru- truação, das pulsões eróticas anais), quando
mental a serviço de interesses econômicos, apresenta a hipótese sobre o recalque orgâ-
mobiliza as regressões psíquicas dos sujeitos nico que incidiu sobre a psicologia humana e
para sua adaptação, acaba por favorecer as suas formas de satisfação pulsional na cultu-
perversões (bem como o narcisismo, as com- ra. Neste sentido, a teoria freudiana aponta
pulsões). A teoria psicanalítica dá sustentação para o problema encontrado em nossa cul-

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tura, que cria meios de impedimento às ma- ção dos homens sobre a natureza. Assim, “os
nifestações mais primitivas que se encontra- mitos que caem vítimas do esclarecimento já
riam subjacentes à psicologia humana e que eram o produto do próprio esclarecimento.
poderiam, por exemplo, remeter a uma fase No cálculo científico dos acontecimentos anu-
filogenética anterior à humanidade civilizada, la-se a conta que outrora o pensamento dera,
a ponto de a felicidade humana ser relegada a nos mitos, dos acontecimentos” (HORKHEI-
segundo plano dentro dos objetivos culturais. MER; ADORNO, 1985, p. 23).
Nas palavras de Freud: Para efeitos deste trabalho, o aspecto
repressivo e totalitário do esclarecimento
Com a adoção de uma postura ereta que tentou reduzir o mundo, a natureza e
pelo homem e a depreciação de seu os homens a um campo de exploração siste-
sentido olfativo, não foi apenas o mática pela ciência e pela técnica, teve como
seu erotismo anal que ameaçou cair consequência a prática de violência sobre a
como vítima da repressão orgânica, natureza interna humana, influenciando nas
mas toda a sua sexualidade, de tal relações deturpadas e patogênicas do ho-
maneira que, desde então, a função mem com seu corpo e seu prazer. Os filósofos
sexual foi acompanhada por uma da teoria crítica ainda acrescentam que tudo
repugnância que não pode ser expli- aquilo que possa remeter à lembrança de um
cada por outra coisa, e que impede a passado arcaico e mítico deve ser execrado e
sua satisfação completa, forçando-a transformado em objeto de perseguição, re-
a desviar-se do objetivo sexual em púdio ou dominação violenta.
sublimações e deslocamentos libidi-
nais […]. Assim, descobriríamos que A obsolescência do conceito de
a raiz mais profunda da repressão sublimação estética: dissonâncias
sexual, que avança juntamente com eróticas e a fetichização da arte
a civilização, é a defesa orgânica da A relação fria e rígida que Érika estabe-
nova forma de vida alcançada com o lece com a música tradicional sinaliza para a
porte ereto do homem contra a sua questão sobre como essa música acabou se
primitiva existência animal. (FREUD, transformando em um molde morto na so-
1974, p. 127). ciedade contemporânea. As imagens dos re-
citais e do conservatório de música no qual a
Na perspectiva da teoria crítica da socie- pianista dá suas aulas são apresentadas em
dade, a exclusão da animosidade humana deu- cenários mais sóbrios, com uma luminosidade
-se por meios mais violentos de dominação opaca, o que não deixa de ser um elemento
para o processo civilizatório (a colonização e importante para estabelecer um contrapon-
a escravidão de povos primitivos), incidindo to com a sexualidade clandestina da pianista,
tal violência na própria satisfação pulsional apresentada nas cenas nas quais ela consome
humana (a dominação e a instrumentalização pornografia, cujas imagens com luzes mais
do corpo para o trabalho, para o asseio e para fortes apresentam-se para chocar o público.
a adaptação à realidade e autoconservação) Não obstante, como já apontado, a pianista
sob o signo de uma razão voltada exclusiva- transita entre estes dois cenários/mundos,
mente à autoconservação. Mas em tal proje- assim indicando a não contradição entre tais
to de racionalidade abordada pelos autores universos. Destas questões colocadas, ressal-
na Dialética do esclarecimento encontrava-se ta-se a obsolescência do conceito de sublima-
a proposta de desencantamento do mundo, ção no mundo administrado, apontado pelos
na tentativa de dissolver e superar os mitos e frankfurtianos.
as práticas mágico-miméticas empregadas na Marcuse (1998) aborda a questão da
aurora da humanidade para fins de domina- transformação histórica do processo de su-

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blimação ao discutir a manipulação da pulsão arte e a possível realização dos homens nela.
dessexualizada pela cultura de massa. A satis- A transformação em mercadorias da cultura
fação pulsional sexual e destrutiva, que de- superior – da chamada arte autêntica –, pela
veria ser canalizada para alvos não sexuais (a sociedade unidimensional, também parece
filosofia, a literatura e a música, por exemplo) ter bloqueado a autotranscendência da libido
a fim de promover maior liberdade, prazer e a dos sujeitos, limitando, assim, o alcance da su-
resistência intelectual e pulsional do homem blimação. Marcuse (1973), ao discutir a liqui-
na cultura (a capacidade de protestar contra dação da cultura superior (do caráter trans-
a realidade), passa a ser administrada contra cendente da arte autêntica) pela sociedade
o princípio do prazer, revelando o caráter re- tecnológica, acusa o enfraquecimento da re-
pressivo das sociedades administradas. Esta volta pulsional contra o princípio da realidade
nova condição impõe um controle ainda mais sendo promovida pela dessublimação contro-
eficaz sobre a economia pulsional dos sujei- lada (a dessublimação repressiva), mais uma
tos, exigindo-lhes e comandando-lhes uma forma de dominação social da subjetividade
satisfação compulsiva e heterodeterminada no contexto do capitalismo dos monopólios.
pelos imperativos do consumo: A sociedade unidimensional tende a criar me-
canismos de controle mais sutis e sofisticados
Temos aqui um estágio de civiliza- que se voltam para a destruição do potencial
ção altamente desenvolvido, em crítico e revolucionário dos indivíduos, assim
que a sociedade, ao ampliar a liber- diluindo qualquer possibilidade sublimatória –
dade e a igualdade, subordina os encontrada na forma estética, por exemplo –
indivíduos às suas exigências, em que antes possibilitava o escape e a crítica dos
outros termos, e que o princípio sujeitos da realidade opressiva. Nas palavras
da realidade se impõe por meio de de Marcuse,
uma dessublimação mais ampla,
porém mais controlada. Sob essa As aptidões dessa sociedade estão
forma histórica nova de princípio reduzindo progressivamente o reino
de realidade o progresso pode sublimado no qual a condição do ho-
atuar como veículo da repressão. mem era representada, idealizada e
A satisfação melhor e maior é bem denunciada […]. Assim, diminuindo
real, e no entanto repressiva em a energia erótica e intensificando a
termos freudianos, na medida em energia sexual, a realidade tecnoló-
que reduz, na psique individual, as gica limita o alcance da sublimação.
fontes do princípio de prazer e da Reduz também a necessidade de
liberdade: a resistência pulsional – e sublimação. No mecanismo mental,
intelectual – contra o princípio de a tensão entre o que é desejado e
realidade. (MARCUSE, 1998, p. 106). o que é permitido parece conside-
ravelmente reduzida e o Princípio
Cada vez menos o inconsciente e o gozo de Realidade não mais parece exigir
atrapalham os objetivos sociais; ao contrá- uma transformação arrasadora e do-
rio, servem como alimento aos mecanismos lorosa das necessidades instintivas.
sociais de controle, garantindo seu funciona- (MARCUSE, 1973, p. 70, 83).
mento. As energias irracionais estão sendo
encampadas pelas vias do consumo e pela Quanto à reflexão adorniana sobre a
diversão administrada da cultura de massa, arte, esse autor denuncia o quanto o patrimô-
assim também obstruindo a capacidade de nio cultural de toda uma tradição da cultura,
sublimação e de criatividade dos sujeitos, que no Ocidente, tornou-se neutralizado e instru-
apontavam para a potencialidade crítica da mentalizado nas sociedades de massa, assim

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perdendo seu caráter de negatividade – aque- Nos textos de Adorno (1974) dirigidos à
le que apontava para a grande arte como re- arte e à música encontramos elogios à música
sistência possível, a expensas da exclusão das nova de Schoenberg. Diz o filósofo que as ino-
classes inferiores, embora ainda mantendo vações formais da música dissonante (como a
os temas universais da humanidade subtraída música escrita por Schoenberg em suas obras
de sua própria emancipação (HORKHEIMER; atonais) remetem aos movimentos corporais
ADORNO, 1985). Assim, no texto A coisa que do inconsciente, aos traumas da existência
me olha: os objetos sinistros de Michael Ha- mutilada pelas forças sociais do processo his-
neke, a seguinte passagem é destacada: “Em tórico e, por isso, essa nova música teria um
A professora de piano (2001) a música é exercí- efeito insuportável e desconcertante aos ou-
cio de controle e perfeição em um mundo im- vidos domesticados do público – esse, talvez,
penetrável às hesitações orgânicas. O piano é já acostumado com um tipo de música mais
o objeto no qual se materializa essa ideia de conformista e adaptada ao mundo adminis-
uma ordem instrumental da antissubjetivida- trado. A música nova acaba por realizar o jul-
de” (FELINTO, 2011, s/p.). gamento da música tradicional ao provocar
A discrepância mostrada entre o falso uma crítica social implícita ao sistema tonal
ascetismo da personagem e sua sexualidade excessivamente esquematizado, cujos traços
dissonante pressupõe as duas faces de uma tirânicos e coibitivos sobre o artista e o os ou-
mesma moeda: a relação instrumental e meca- vintes revelam-se em suas formas musicais
nizada com a música séria é a mesma que ela uniformizantes. Assim, diz Adorno que “a
mantém com seu corpo e seu sexo, passíveis música moderna não conhece nenhuma har-
de serem friamente manipulados e ilusoria- monia pré-estabelecida entre o universal e o
mente dominados, mas que, no fundo, regis- particular, e não deve conhecê-la” (ADORNO,
tram os traumas de uma natureza mutilada e 1994, p. 154).
humilhada pelo processo civilizatório violento. Acerca das inovações de obras atonais,
A repetição automática da exigência musical Adorno diz que “são documentos no sentido
sem criação revela a relação alienada e coisifi- dos documentos oníricos dos psicanalistas”
cada que Érika mantém com a arte erudita. (1974, p. 40). A comparação que Adorno faz da
Não à toa, verificamos na cena do pri- música dissonante com os sonhos tem como
meiro diálogo entre Érika e Walter a alusão intuito apontar para o conteúdo da expressão
à filosofia da música de T. W. Adorno. Isso se musical que, como movimento estético, reme-
torna o ponto essencial de leitura para a re- te ao diferenciado, ao que não foi totalmente
lação aqui estabelecida entre a decadência dominado pela ordem civilizatória (em compa-
da música tradicional manifestada pela teia ração com as obras musicais tradicionais), as-
opressiva e tirânica pela qual Érika envolve a sim como os sonhos mostram as deformações
música e os conflitos sexuais da pianista com do psiquismo dos indivíduos por causa das im-
Walter, apreciador da música nova, o que posições do princípio da realidade.
acaba por sinalizar um contraponto à música A nova música traz à tona os conflitos
tradicional. As elucubrações aqui colocadas sociais e, com isso, a consciência da impotên-
sobre o filme de Michael Haneke não se dão cia do homem, da dor ilimitada que aflige os
à toa. As referências à filosofia da música de homens condenados à impotência social. E
Adorno e aos compositores Schubert, Schu- sobre o músico Schoenberg, citado por Wal-
mann e Schoenberg na cena citada5 instigam ter no filme, Adorno, em seu texto, relembra
vários pontos de reflexão. o caráter sexual de algumas de suas obras (o
monodrama Erwartung). Nas relações que es-
Por exemplo, Walter, ao tocar no recital, apresenta-se
5
tabelece entre a arte e a pulsão, Adorno dá
dizendo querer tocar uma peça de Schoenberg, mas, em
homenagem a Érika, escolhe Schubert, assim dizendo: ênfase à qualidade estética pela qual a essên-
“Decidi esquecer Schoenberg e tocar Schubert”. cia social e histórica da solidão do indivíduo –

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dos sujeitos que se frustraram tanto no plano sublimação deve ser questionada. Assim, para
erótico quanto no plano social, por questões Adorno,
objetivas – é expressa:
Os artistas não sublimam. Crer que
Mas isto se baseia no conteúdo ex- eles não satisfazem nem reprimem
pressivo da própria música. O que a seus desejos, mas transformam-
música radical conhece é a dor não -nos em realizações socialmente
transfigurada do homem. A impo- desejáveis, suas obras, é uma ilusão
tência deste é tal que já não permite psicanalítica; aliás, nos dias de hoje,
aparência ou jogo. Os conflitos ins- obras de arte legítimas são, sem ex-
tintivos – a música de Schoenberg ceção, socialmente indesejadas. An-
não deixa dúvidas sobre o caráter tes manifestam os artistas instintos
sexual de sua gênese – assumiram violentos, de tipos neuróticos, que
na música documental uma força eclodem livremente e, ao mesmo
que lhe impede suavizá-los com o tempo, colidem com a realidade […]
consolo. Na expressão da angús- Na renúncia ao objetivo pulsional a
tia entendida como Vorgefuhle, a arte continua fiel a este, com uma
música da fase expressionista de fidelidade que desmascara o que é
Schoenberg atesta a impotência do socialmente desejado, ingenuamen-
homem. (ADORNO, 1974, p. 42). te glorificado por Freud como a su-
blimação que, provavelmente, não
A menção à filosofia da música de Ador- existe. (ADORNO, 1993, p. 186).
no no filme dá indícios sobre as dissonâncias
encontradas na subjetividade da personagem, No comportamento estético, os indiví-
trazendo à tona sua vida erótica tumultuada duos reconhecem seu isolamento desenca-
e a impossibilidade de satisfação da pulsão. A deado por forças sociais cada vez mais expro-
música radical e atonal, condenada ao isola- priadoras e, assim, as obras de arte recentes
mento, espanta o público por revelar-lhe sua acusam de falsa a harmonia preestabelecida
própria condição de impotência – condição pelas produções em série da indústria cultu-
esta já implícita na malfadada relação erótica ral. Desse modo, a arte radical, que visa des-
de Érika e Walter, cujas possibilidades de trans- mascarar o que é socialmente desejável no
gressão ou de satisfação foram obstadas. contexto das sociedades industriais – posto
As críticas de Adorno (1993) ao concei- que os gestos felizes e adaptados das pessoas
to de sublimação, diferentemente de Mar- têm se transformado na máscara da loucura
cuse, também se encontram no aforismo “O e da infelicidade (HORKHEIMER; ADORNO,
Exibicionista”, de Minima moralia (ADORNO, 1953) –, leva a questionar o conceito de subli-
1993). Segundo Adorno, as obras de arte le- mação, invertendo seu significado original e
gítimas, no caso a arte de vanguarda, são apontando para a obsolescência de seu con-
contestadoras da ordem social e, por isso, teúdo. Esse conceito de sublimação, contra-
indesejadas, o que teria implicações sobre a posto à dinâmica da sociedade administrada,
concepção freudiana de sublimação, a saber, perderia, em grande parte, seu conteúdo de
a de que as produções espirituais são desem- verdade quando empregado aos movimen-
penhos socialmente desejáveis. A arte nova – tos estéticos radicais (a arte contemporânea)
a melhor arte que se faz hoje, segundo Ador- que, por sua vez, são respostas às pressões
no – é a não aprovada socialmente e, tendo sociais que têm sufocado o particular.
em vista o suposto isolamento da arte radical Além do mais, no tocante à música tra-
e seus momentos associais no contexto do dicional (Adorno, por exemplo, faz menção
industrialismo tardio, a concepção original de à obra de Beethoven), esta se transformou

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em uma música que, nos dias atuais, não es- Um comentário final
tabelece mais nenhuma comunicação com o Tanto o sadomasoquismo de Érika quan-
público. Ou seja, tais músicas clássicas encon- to seu olhar vigilante e escrutinador de pro-
tram-se distantes do público, cuja experiência fessora de piano, revelam a aproximação pos-
pessoal não pode mais ser testemunhada por sível, já apontada pelos frankfurtianos, entre
ela (tendo em vista as regressões dos ouvin- a perversão e a racionalidade tecnológica vol-
tes). Os ideais de humanidade embutidos na tada para a dominação unilateral da natureza,
música harmônica não se realizaram, quais se- visualizada na relação instrumentalizada que
jam, os valores de liberdade, justiça e fraterni- a personagem do filme mantém com o corpo
dade da burguesia dos séculos XVIII e XIX, tra- e com objetos culturais: a heteronomia dos
zidos pelos movimentos musicais românticos. sujeitos e sua impotência diante da opressão
Pois bem, o contraste entre as aprecia- totalitária, ao mesmo tempo em que, na per-
ções musicais de Walter (que queria tocar versão, manifesta-se uma recusa por parte do
Schoenberg, uma música legítima, socialmen- sujeito de aceitar a condição de sua fragilida-
te indesejada, na análise adorniana) com a de (a negação da cicatriz trazida pela questão
preferência musical de Érika (a denomina- da recusa da castração).
da música tradicional) não poderia ser visto Os gestos ritualísticos da pianista, vol-
como um prenúncio do desencontro libidinal tados tanto para o gozo quanto para a exe-
entre os dois? A crítica à falsa harmonia de Éri- cução da música no piano, revelam a dimen-
ka/música estaria implícita nesta cena crucial são subjetiva do mundo administrado, da
do filme. Érika revela uma precisão mecânica tendência histórica calcada na expurgação
e inumana com a música tradicional, apesar e negação da diferença e da alteridade, tam-
da admiração que diz ter pelos compositores bém apontando para o empobrecimento da
românticos. E, além disso, também ilustra o arte tradicional e da arte nova como recusa
quanto a discrepância colocada entre música e resistência. A qualidade estética do filme
séria e música de entretenimento foi minada de Haneke também se encontra na possibi-
no mundo administrado. Na personagem, ve- lidade de desconcertar o espectador e po-
mos radicalizar todo o esvaziamento simbó- der apresentar, na linguagem do cinema, as
lico de uma tradição e de uma promessa de tensões existentes entre a arte autêntica e a
felicidade subjacente à sublimação estética sociedade, e a dissolução e expropriação da
trazida pela arte autêntica (HORKHEIMER; esfera libidinal pelos mecanismos sociais de
ADORNO, 1985). controle do mundo administrado.

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Filmes
A FITA BRANCA. Direção: Michael Haneke. Produção: Veit Heiduschka. Roteiro: Michael Ha-
neke. Intérpretes: Christian Friedel; Ulrich Tukur; Josef Bierbichler. Distribuição: IMOVISION.
2009 (144 min)
CACHÉ. Direção: Michael Haneke. Produção: Veit Heiduschka. Roteiro: Michael Haneke. Intér-
pretes: Juliette Binoche; Daniel Auteiul. Distribuição: Califórnia Filmes. 2005 (118 min)
FUNNY GAMES. Direção: Michael Haneke. Produção: Veit Heiduschka. Roteiro: Michael Haneke.
Intérpretes: Susanne Lothar; Ulrich Mühe. Distribuição: Maidman Entertainment. 1997(109 min)
LA PIANISTE. Direção: Michael Haneke. Produção: Veit Heiduschka. Roteiro: Michael Haneke.
Intérpretes: Isabelle Huppert; Benoît Magimel. Distribuição: MK2 Diffusion. Art France Cinema.
2001. 1 filme (131 min.)

Dados da Autora

Ana Paula de Ávila Gomide


Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduada
pela em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia,
mestrado em Psicologia Social pela PUC-SP, e doutorado em Psicologia pela USP-SP.
É professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Psicologia.

Recebido: 04/11/2013
Aprovado: 28/04/2014

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