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DIREITO PROCESSUAL PENAL I

Prof. Bruno Galvão

NOÇÕES GERAIS DO PROCESSO PENAL

1. Lide e Processo Penal

Desde que o homem passou a viver em sociedade de forma


organizada visando à obtenção de fins comuns, fez-se necessário um
controle social, o qual se deu através do Direito (ubi societas ibi jus) que
passou a exercer uma função ordenadora, dirimindo os conflitos derivados
das ilimitadas necessidades do ser humano frente à limitação dos bens
existentes.
A lide, portanto, pode ser definida como sendo uma pretensão
resistida (Carnelutti), onde o autor da infração resiste à pretensão do
acusador, pois, enquanto o primeiro pretende garantir o seu jus libertatis; o
segundo pretende vê-lo punido, com a diminuição de um bem jurídico
(patrimônio ou liberdade).
Do ponto de vista criminal, a lide surge com o cometimento de uma
infração penal, figurando de um lado o autor da conduta criminosa e do
outro o titular da pretensão punitiva que, no nosso ordenamento jurídico, é
o Ministério Público e, em casos excepcionais, o ofendido ou seu
representante legal, assim, é através do processo penal que se dirime
a lide
Deste modo, somente o Estado pode dirimir os conflitos existentes na
sociedade, solucionando-os através de um órgão imparcial (juiz) mediante o
processo legal, sendo exclusividade sua o monopólio da Justiça, daí ser

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considerada criminosa a conduta de fazer justiça com as próprias mãos (art.


345 do CP).
OBS – embora caiba ao Estado resolver os conflitos, há algumas
hipóteses em que é admitida a autodefesa, como no caso do art. 24 e 25
do CP (excludentes de ilicitude) e a autocomposição, disposta no art. 76
da Lei nº 9099/95 (transação penal).

2. Jus Puniendi e Jus Persequendi

Entende-se por jus puniendi o direito-dever do Estado em punir o


autor da infração penal, manifestado através do poder de império estatal, de
modo a salvaguardar a sociedade contra o crime, sendo esse direito limitado
através do Direito Penal Objetivo (Código Penal).
Quanto ao jus persequendi ou persecutio criminis é o direito do
Estado e perseguir o autor da ação criminosa, sendo tal direito
consubstanciado no conjunto de atividades exercidas pelos órgãos estatais
que visam à aplicação da sanção penal ao culpado.
A persecução criminal apresenta duas fases: a da investigação, que
é preparatória e inquisitiva (inquérito policial) e a judicial, que se inicia com
a propositura da ação penal.

3. Processo Penal

Para Hélio Tornaghi: “o processo penal é uma seqüência ordenada de


fatos, atos e negócios jurídicos que a lei impõe ou dispõe para averiguação
do crime e da autoria e para o julgamento da ilicitude e da culpabilidade”.

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A doutrina processualista diverge quanto ao objeto do processo,


havendo quatro posições fundamentais:
a) É a pretensão punitiva
b) É a pretensão processual
c) É a imputação (o fato imputado)
d) É a lide
O mestre Antônio Scarance Fernandes, na esteira da lição de Cândido
Rangel Dinamarco, diz que objeto serve para designar algo que é posto
diante de uma pessoa, ou como alvo de uma atividade sua. Daí pode se
extrair que o objeto do processo é tudo o que se coloca diante do juiz à
espera do provimento que ele proferirá afinal.
Desta maneira, a concepção mais moderna é no sentido de ampliar o
objeto do processo penal, de modo a abranger o exame dos elementos
do crime, da classificação da infração penal feita na peça acusatória e
das circunstâncias judiciais (art. 59 do CP) e legais (agravantes,
atenuantes, causas de aumento e diminuição de pena) aferíveis na
individualização da pena.
Quanto à finalidade do processo é ser o instrumento através do qual
a jurisdição se concretiza, dando ao Estado a possibilidade de aplicar a lei
para solucionar a lide.

4. Direito Processual Penal

O conceito, segundo Fernando Capez, é o conjunto de princípios e


normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da
aplicação do Direito Penal Objetivo.

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O objeto do Direito Processual Penal é o estudo das normas e


princípios relativos às pessoas que intervêm no processo, às relações entre
elas, e ao procedimento, entendido este como a coordenação das atividades
por elas desenvolvidas.
A sua finalidade pode ser dividida em mediata, que diz respeito a
própria pacificação social obtida com a solução do conflito e imediata, que
é o fato de que o Direito Processual Penal viabiliza a aplicação do Direto
Penal.
Quanto às características, a doutrina costuma discorrer sobre três:
a) Autonomia – o Direito Processual não é submisso ao Direito Material,
por ter seus princípios e regras próprias.
b) Instrumentalidade – é o meio para fazer atuar o Direito Penal.
c) Normatividade – é a partir da norma (Código de Processo Penal:
Decreto Lei nº 3.689/41), que se instrumenta os princípios, organiza
os institutos e constrói o sistema.
No tocante a relação com outros ramos do Direito, o Direito
Processual Penal possui estreita relação, senão vejamos:
Direito Penal – é através do Processo Penal que se aplica as regras
do Direito Penal, por isso seu caráter instrumental, pois, sem o processo
penal o Direito Penal não tem aplicabilidade.
Direito Constitucional – vários princípios do Processo Penal estão
consagrados na Constituição Federal, como o devido processo legal, da
ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, entre outros.
Direito Processual Civil – várias definições são comuns aos dois
ramos, como a citação, notificação, intimação, etc.

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Direito Administrativo – a atividade de execução da pena é,


também, administrativa, como também convergem a organização judiciária
e política judiciária.
Direito Civil – as questões prejudiciais, que devem ou podem ser
resolvidas no Juízo cível, refletem no processo penal, como no caso das
suspeições e impedimentos.
Direito Comercial – o procedimento dos crimes falimentares, sua
definição, entre outros, perpassam pelo processo penal.
Direito Internacional Público – as cartas rogatórias, seus
requisitos e procedimento de cumprimento são regulados no processo penal,
entre outros.

5. História do Processo Penal

5.1. Processo Penal Antigo

- Egito -

a) O Poder Judiciário era confinado aos sacerdotes


b) Os crimes mais graves eram julgados por um Tribunal Supremo,
formando por homens de maior prestigio e equilíbrio
c) Os atos processuais, em geral, eram feitos de forma escrita
d) As instrução do processo era pública, já o julgamento era secreto

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- Palestina -

a) A organização judiciária era composta de três tribunais: Tribunal


dos três (composto de 03 juízes que julgavam causas de interesse
pecuniário), Tribunal dos vinte e três (composto de 23 juízes que
julgava os recursos contra decisões do Tribunal dos Três e,
originariamente, os delitos apenados com morte) e Tribunal dos
Setenta (também denominado Sinédrio, composto por 70 juízes,
considerado a Suprema Corte dos Hebreus, com a função de
interpretar a legislação hebraica e julgar os senadores, profetas,
chefes militares, as cidades e as tribos rebeldes.
b) Só aplicava pena de multas e morte, pois não havia pena de prisão,
salvo a prisão em flagrante.
c) Não poderia haver condenação com base no depoimento de uma
única testemunha, assim como não poderia haver condenação com
base apenas na confissão
d) Eram proibidos interrogatórios ocultos
e) A instrução e os debates eram orais, porem os julgamentos secretos.

- Grécia -

a) Os gregos dividiam os crimes em delitos privados (menos graves,


cuja acusação ficava a cargo da vítima, seus representantes ou
sucessores) e delitos públicos (mais graves, sendo a acusação de
qualquer do povo – ação popular)
b) A organização judiciária era composta por quatro tribunais:

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I. Assembléia do Povo – somente julgava os crimes políticos mais


graves
II. Areópago – constituído de 51 juízes, era considerado o mais
famoso tribunal, julgava os homicídios premeditados, os
envenenamentos, os incêndios e outros crimes punidos com morte,
III. Tribunal de Efetas – julgava apenas os homicídios não
premeditados.
IV. Tribunal dos Heliasta – reunia-se na praça pública sob o sol,
composto por 6000 pessoas, recrutadas anualmente, que eram
divididas entre 10 seções, as quais formavam as Turmas
julgadoras, onde julgavam todos os casos criminais, salvo os
crimes de competência do Areópago e dos Efetas.
c) Não havia instrução probatória, as provas apresentadas no dia do
julgamento, sendo as testemunhas obrigadas a depor, sob pena de
serem aplicados os tormentos.
d) Não havia prisão preventiva, salvo quando se tratasse de crime de
conspiração contra a pátria e ordem pública.
e) Nas hipóteses de acusação caluniosa, o acusador era punido
f) O não comparecimento do réu implicaria julgamento à revelia,
prevalecendo a acusação contra ele formulada
g) O julgamento era público e oral

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- Roma -
a) Assim como na Grécia, havia o processo penal privado (iudicium
privatium) e o público (iudicium publicium), mas com o passar do
tempo, o processo privado foi praticamente abandonado.
b) As formas de procedimento do direito romano antigo foram:
I. Cognitio – surgiu na Monarquia e estendeu-se até a República,
sendo o sistema inquisitorial puro, no qual imperava o arbítrio, pois
o réu podia ser preso preventivamente, a critério do julgador, e
não tinha direito de se defender, nem de apresentar provas, mas
com o decorrer do tempo passou-se a permitir que o condenado
recorresse da condenação ao povo reunido em comício
II. Acusatio – surgiu no início da República através da justiça
centurial, em que as centúrias (integradas por patrícios e
plebeus) administraram a justiça penal em um procedimento oral e
público, sendo suas características a separação entre função de
acusador (feita pelo povo) e julgador, o julgamento feito por
colegiado popular onde predominava a publicidade e a oralidade e
por órgãos julgadores temporários
III. Cognitio extra ordinem – surgiu no Baixo Império Romano,
possuindo as seguintes características: o processo penal estava a
cargo do Senador, o sistema processual passou a ter o tipo
inquisitorial, foram recrudescido os poderes do julgador e limitado
o direito de acusação, o juiz poderia dar inicio e julgar o processo,
sem necessitar de acusação formal e a instrução passou a ser
secreta, escrita e não contraditória.

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- Processo Penal Germânico -

a) Havia distinção entre delito de ação penal pública e privada


b) Na ação pública, a acusação ficava a cargo do clã, na privada, era
feita pela vítima ou seus familiares perante a Assembléia, que era
presidida pelo Rei, Príncipe, Duque ou Conde.
c) Admitia-se a autodefesa (justiça com as próprias mãos)
d) A confissão do réu dispensava a instrução do feito
e) O ônus de provar a inocência era do réu
f) Buscava-se a verdade através do juramento e Juízes de Deus
(ordálias)
g) Admitia-se o contraditório, a oralidade, a concentração e a
publicidade.

- Processo Penal Canônico -

a) Vigorou entre o século XIII até o XVIII


b) Inspirou-se no processo penal extraordinário dos romanos
c) Aplicava-se o processo inquisitório no julgamento dos crimes comuns
e religiosos
d) Aboliu-se a acusação pública
e) Depoimentos das testemunhas eram colhidos em segredo
f) O interrogatório era precedido ou seguido de tortura, a qual estava
regulamentada sendo considerada a rainha das provas
g) Supressão da oralidade e da publicidade nos julgamentos

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5.2. Processo Penal no Brasil

- Período Colonial -

No período do descobrimento, vigoravam as ordenações Afonsinas


(1446-1514), Manuelinas (1514-1569) e o Código de Dom Sebastião
(1569-1603), sendo que dessas somente as Manuelinas foram aplicadas por
Martim Afonso de Souza, ao formar a organização judiciária da colônia
similar a de Portugal.
Posteriormente, entraram em vigor as ordenações Filipinas (1603-
1824), porém, o Decreto de 23.05.1821, da lavra de Dom Pedro I, aboliu
tais ordenações e trouxe várias inovações:

a) Aboliu as prisões provisórias arbitrárias


b) Estabeleceu que as provas deveriam ser abertas e públicas, para
facilitar a defesa
c) Vedou que as pessoas fossem levadas em masmorras, abolindo
também o uso de correntes, algemas, grilhões e outros ferros.

- Período Imperial -

Com a independência do país, entrou em vigor, em 1824, a primeira


Constituição do Brasil, sendo o primeiro Código de Processo Penal datado de
29.11.1832.
Tal código era composto de duas partes: uma da Organização
Judiciária e outra da Forma do Processo.

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- Período Republicano -

A Constituição Republicana de 24.02.1891 atribuiu aos Estados a


faculdade de legislar sobre processo penal, no entanto, nem todos os
Estados criaram seus Códigos Processuais.
Na verdade essa outorga prejudicou a aplicação da lei penal e o
avanço do processo penal no país, somente sendo restabelecido através da
Constituição Federal de 1934, que devolveu a unidade processual,
competindo à União legislar sobre processo penal.
Com o advento da Constituição de 1937, providenciou-se a criação de
um novo CPP e, em 03.10.1941, foi promulgado o primeiro Código de
Processo Penal Republicano, com as seguintes características:

a) Manutenção do inquérito policial


b) Estabelecimento da instrução contraditória
c) Separação das funções acusatórias e julgadora, salvo no
procedimento das contravenções penais
d) Submissão ao sistema acusatório de todas as formas procedimentais
e) Restrição da competência do Tribunal do Júri

Vale ressaltar que somente a partir da Constituição de 1988 se


restabeleceu o sistema acusatório puro, sendo conferido ao Ministério
Público, em regra, o monopólio da ação penal, mantendo-se a persecução
criminal pela vítima e seus familiares nas ações penais privadas

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6. Sistemas Processuais

- Sistema Inquisitório -

Contempla um processo judicial em que podem estar reunidas na


pessoa do juiz as funções de acusar, defender e julgar, sendo possível
que o próprio magistrado, ex officio, evoque a jurisdição e faça desencadear
o processo criminal.
Neste sistema o acusado não possui qualquer garantia como o
contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, podendo o
processo, inclusive, correr de forma sigilosa por ato discricionário do juiz.
Não há igualdade entre as partes e nem a presunção de inocência,
sendo comum o acusado permanecer preso durante toda a formação da
culpa.
Deste modo, o sistema inquisitório apresenta as seguintes
características:
a) Julgamento feito por magistrado ou juiz permanente
b) Juiz acusa, defende e julga, sempre se sobrepondo à pessoa do
acusado
c) Acusação é sempre ex officio, podendo a denúncia ser feita de forma
secreta
d) Procedimento escrito, secreto, não admitindo contraditório e ampla
defesa
e) Julgamento com base na prova tarifada
f) Prisão preventiva é regra
g) Decisão jamais transita formalmente em julgado, podendo o processo
ser reaberto a qualquer tempo

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- Sistema Acusatório -

É o sistema adotado pelo CPP e caracteriza-se pela distinção


absoluta entre as funções de acusar, defender e julgar, sendo
assegurado ao acusado o contraditório e a ampla defesa, devendo o
processo correr de acordo com as determinações legais (procedimentos).
A produção de prova incumbe às partes as quais possuem total
isonomia processual, bem como vigora a presunção de inocência, devendo o
acusado responder ao processo em liberdade.
Sendo assim, são características do sistema acusatório:
a) Investigação afeta a um órgão do Estado (Delegacia de Polícia),
distinto do órgão Judiciário
b) Processo de partes, estando de um lado a acusação (Ministério
Público) e do outro o acusado
c) Presunção de inocência
d) Julgamento feito por populares (jurados) ou por órgãos judiciários
totalmente imparciais (juiz)
e) Igualdade das partes
f) Necessidade do contraditório
g) Prova produzida pelas partes
h) Liberdade das partes quanto à apresentação das provas
i) Proibição de o juiz provocar sua jurisdição
j) Processo oral e escrito, público e contraditório
k) Livre convicção quanto à apreciação das provas
l) Liberdade do acusado é regra, admitindo-se, excepcionalmente, a
prisão preventiva
m) Sentença faz coisa julgada, mormente em favor do réu

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- Sistema Misto -

Também denominado Sistema Napoleônico ou Reformador, é a


combinação dos dois sistemas anteriores, abrangendo duas fases
processuais distintas: A fase inquisitiva, onde não há o contraditório, a
ampla defesa e a publicidade, sendo realizada uma investigação preliminar e
uma instrução preparatória sob o comando do juiz e a fase do
julgamento, em que são asseguradas ao acusado todas as garantias
(contraditório, ampla defesa, etc.).

O sistema misto possui as seguintes características:


a) Acusação reservada a um órgão do Estado
b) Instrução secreta e escrita
c) Debate público e oral
d) Juiz livre em seu convencimento
e) Compreende duas fases procedimentais distintas: 1ª) instrução e
julgamento é presidida por um juiz, onde apura-se a existência do
crime e sua autoria, não há contraditório e os atos processuais são
escritos e secretos. 2ª) julgamento, onde surge a acusação formal,
sendo um procedimento oral e público e caberá o contraditório.

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