Você está na página 1de 13

REPRESENTAÇÕES DA MULHER E DO CORPO NAS AUTORIAS DE PAULA

TAVARES E DE LUÍS CARDOSO

Paloma de Melo Henrique*


Alisson Preto Souza**

Introdução

Apesar das diferenças entre as obras Amargos como os frutos, de Paula

Tavares, e Réquiem para o navegador solitário, de Luís Cardoso, um aspecto

compartilhado por ambas é a protagonização da mulher nas duas literaturas de língua

portuguesa. No momento atual, em que o pensamento binário rege grande parte da

opinião pública em mídias sociais diversas, liderado por intolerância e preconceito,

tanto os estudos de gênero como os estudos pós-coloniais são áreas vitais de pesquisa à

reavaliação de certas tradições e preconceitos vigentes em relação à mulher. De certa

forma, este trabalho é revelador de narrativas que tentam abafar ou degradar a mulher

como sujeito engajado nas suas práxis sociais. Através de recortes das obras referidas,

pretendeu-se explorar de que forma a identidade e o corpo da mulher foram retratados,

assim como compreender a influência do homem e do colonizador na produção das duas

escritas. Em um jogo de mostra-esconde, o trabalho investigou as narrativas que

interpelam tanto a mulher angolana quanto a mulher timorense em relação às

representações do amor, como uma imagem que tece o imaginário erótico ou exótico, e

influencia a produção de marcas que singularizam essas identidades. Além disso,

propusemos uma observação que expõe os movimentos pedagógicos e performáticos

das narrativas que circundam essas identidades culturas. A dupla presença deste tema

demonstra um ato de resistência e busca por um espaço para voz feminina nas literaturas

de língua portuguesa contemporâneas. Pretende-se explorar, assim, a representação do


corpo ―mulher‖ tanto na poesia de Tavares quanto no romance de Cardoso. As análises

realizadas partem, especificamente, das representações da protagonista de Réquiem para

o navegador solitário, Catarina, e da subjetividade feminina na poesia de Amargos

como os frutos.

Contextualização

Ainda que Luís Cardoso tenha desenvolvido e concluído seus estudos em

Portugal, sua escrita literária preocupa-se com o seu lugar de origem: o Timor-Leste.

Alguns aspectos geográficos, políticos e históricos estão presentes em sua narrativa,

construída tanto por ficção quanto por uma realidade pertinente à consciência coletiva

do país recém-liberto. Em Réquiem para o navegador solitário, publicado em 2007,

Cardoso adentra conhecimentos que demonstram com materialidade os efeitos das

interferências e imposições coloniais no Timor.

Aquela ilha perdida no fim do mundo, que os governantes portugueses


tão bem tinham sabido esconder da cobiça das potências, da avidez
dos ricos, reduzindo-a a uma nulidade confrangedora. Um sítio para
deportados, um depósito de esquecidos, uma ilha-prisão cercada pelo
mar enfestado de tubarões e de piratas em busca de pérolas, pedras
preciosas e de gatas, donde ninguém podia fugir, nem mesmo para se
juntar aos australianos da Brigada Internacional, que estavam a lutar
em Espanha (CARDOSO, 2009, p.109).

De acordo com o autor, o Timor é um ser feminino, violentado, maltratado e

utilizado a serviço de interesses estrangeiros. É por meio da voz da narradora-

protagonista Catarina, que a ilha é descrita como ―um navio encalhado no fim do mundo

onde nada havia para fazer e tudo estava por fazer, doce encanto dos territórios do além-

mar‖ (CARDOSO, 2009, p.43). Ao chegar em Díli, Catarina se vê sozinha em uma

casa com gatos e descobre que a realidade não é exatamente como seu pai e sua
educação europeia a havia descrito. A protagonista depara-se com um lugar no qual é

indesejada, estrangeira e degradada: ―Você não devia ter vindo Cathy‖, o que revela um

imaginário contaminado por imagens sonhadoras que não constituem de forma alguma a

realidade de misoginia e dominância que age sobre o Timor.

As interferências coloniais, principalmente de Portugal, também são marcas da

realidade de Angola, espaço esse de sobreposições políticas e culturais que são

evidenciadas pela literatura de Paula Tavares. Assim como Cardoso, a autora também

vive em Portugal, e sua criação literária produz predominantemente conexões com o seu

lugar de nascimento: província de Huíla, ao sul de Angola. Contudo, em vez de se

manifestar através da voz de uma sobrevivente às ameaças coloniais - o caso de

Catarina em Réquiem - Tavares enuncia um eu-lírico feminino que se ―liberta‖ através

do resgate tanto entre as sensações de seu corpo e o espaço físico quanto com os ritos

que constituem os saberes ancestrais de sua comunidade.

Em Amargo como os frutos, sem deixar seus corpos serem narrados e

sobrepostos pelo lugar de fala do estrangeiro, a mulher angolana apropria-se do espaço e

da natureza para o gozo e autoconhecimento. A autora surpreende o leitor que, assim

que abre o livro, encontra uma série de poemas cujos títulos trazem vegetais. Os

vegetais, contudo, funcionam como metáforas ao corpo, uma vez que, sinestésica e

simbolicamente, revelam associações eróticas através das funções fisiológicas dos

contornos anatômicos e das texturas da pele do corpo feminino. Alguns exemplos disso

são ―A abóbora menina”, “O maboque”, ―A anona‖, ―O mirangolo‖, ―O mamão‖, etc.

Essas sutileza e precisão expressas na criação da subjetividade feminina em Amargos

está traduzida pelo provérbio da filosofia cabinda, prenunciado antes dos primeiros

versos do poema ―Dessosaste-me‖: ―as coisas delicadas tratam-se com cuidado‖


(TAVARES, 2011, p.55), sublinhando o cuidado com as palavras e a importância do

sensorial na estética de Tavares.

Apesar de os dois textos apresentarem manifestações identitárias diferentes

devido às suas especificidades culturais, históricas e sociais, ambos trazem a voz da

mulher feminina em um processo de maturação e adaptação em seus respectivos

contextos coloniais. Dessa forma, pretendeu-se observar de que forma alguns aspectos

influenciam a movimentação dessas subjetividades. Os conceitos rastreados para essa

análise foram o amor, segundo a leitura de Dóris Sommer, a performatividade e o

pedagógico, no viés de Hommi Bhabha, e o conceito de exotismo de Ella Shohat.

O amor como dispositivo regulador do Estado

No texto ―Amor e Pátria na América Latina: Uma especulação Alegórica sobre

Sexualidade e Patriotismo‖, Dóris Sommer coloca o amor como parte importante para a

consolidação dos Estados nacionais da América Latina no século XIX. A autora analisa

a questão por meio dos romances fundacionais latino-americanos, nos quais constata a

presença do amor heterossexual e dos casamentos como basilares para a formação de

idealizações nacionalistas. Dessa forma, há uma acumulação de imagens que retratam

uma consolidação não violenta dos incomensuráveis conflitos integradores das nações

latino-americanas que se independizavam em meados do século XIX e traziam os

impasses gerados pela colonização.

Os romances nacionais latino-americanos são quase todos histórias que trazem

amantes representativos de grupos sociais específicos em situação de conflito, de modo

que o amor funciona como forma de pacificação e de uma ideia de união frente à

desordem social. Assim, ―a linguagem do amor, especificamente da sexualidade


produtiva do lar, é notavelmente coerente e fornece veículo para uma consolidação

nacional, aparentemente não violenta, após longas guerras revolucionárias e civis‖

(SOMMER, 1994, p. 159). Em outro caminho, em outro continente e em outro século, o

romance de Cardoso traz uma personagem que vive uma história em que esse

imaginário também é construído nas suas vivências, entretanto, de forma que o autor

trabalha para desmitificá-lo e destruí-lo.

Vivendo em um país recentemente assolado pelas guerras geradas pela

colonização, Catarina é interpelada constantemente por seus pais sobre a importância de

um enlace amoroso para a sua vida. Assim, ela tinha ciência de que só poderia realizar o

que almejasse depois de satisfazer o desejo de seus pais ―fazendo um príncipe feliz‖

(CARDOSO, 2009, p. 29). É perceptível que o amor funciona, no contexto da

personagem, como ideal romântico de resolução dos conflitos que afetam de diversas

formas a vida na sociedade conturbada timorense. O imaginário literário aparece,

também, como recorrente para a consolidação desse ideal. A personagem lamenta

quando se encontra numa realidade amorosa opressora para as mulheres, diferente

daquela que havia sido idealizada por seus pais e encontrada nos romances: ―Lamentei

que a minha preceptora não me tivesse dito que os contos de fadas só existem mesmo

nos livros‖ (CARDOSO, 2009, p. 52).

O romance de Cardoso tece, então, elaboradamente, um caminho de denúncia e

destruição do ideal de resolução de conflitos coloniais por meio do amor. Nesse sentido,

o autor revela o jogo de interesses por trás dessas relações, demonstrando que o amor

pode funcionar simplesmente como ficção apaziguadora de conflitos políticos. Há uma

ironia latente no romance, que abre espaço às ideias trazidas por Sommer (1994) a

respeito do papel dos romances nacionalistas: "bons negócios geram sempre bons
casamentos, dizem os cânones entoados com abusivas repetições antes de cada enlace"

(CARDOSO, 2009, p. 22). A realidade de Catarina torna-se, no entanto, bastante

diferente, uma vez que é violentada pelo marido, apesar de ter seguido o ideal imposto

por um imaginário amoroso regulado pelos interesses políticos do Estado.

Em contrapartida, Paula Tavares questiona, em entrevista para o canal Nova

Angolaii, os preconceitos em relação ao amor que são dominantes no imaginário

colonial. Para a angolana, nas sociedades coloniais, o amor não consegue ser visto como

consequência de desejo, não haveria relações de paixão, existindo somente um grande

vazio relacionado às questões do amor. O olhar preconceituoso frente às sociedades

tradicionais, segundo a escritora, coloca a relação amorosa de forma objetivada, por

meio de situações relacionadas à condição social, quando ter muitos filhos, por

exemplo, seria em face de se ter mão de obra para o sustento da família.

Com o intuito de preencher esse vazio, a poesia de Paula é enaltecedora do

amor, desencadeado principalmente pelo forte desejo e paixão. Além disso, a mulher

angolana é protagonista desse desejo, é agente, nunca objeto. O eu poético feminino

adquire, em muitos poemas, um caráter libertador frente ao que seria imposto enquanto

prática amorosa, contrário aos benefícios e interesses sociais relacionados ao enlace

amoroso. O poema ―Devia olhar o rei‖ é emblemático, nesse sentido, pois apresenta um

eu lírico que se sente interpelada socialmente a amar o rei, e que, no entanto, deseja e

realiza o amor com o escravo: ―Devia olhar o rei/Mas foi o escravo que chegou/Para me

semear o corpo de erva rasteira‖ (TAVARES, 2011, p. 191). O eu poético feminino é,

nesse caso, não apenas sujeitado pelo desejo, mas é corpo sujeito de desejo: ―O escravo
era novo/Tinha um corpo perfeito/As mãos feitas para a taça de meus seios‖

(TAVARES, 2011, p. 191).

A identidade cultural: o pedagógico e a performatividade

Apesar do texto Disseminação, do livro O Local da Cultura, trazer muitas

noções importantes para a investigação do viés pós-colonial, tais como hibridismo,

ambivalência e localismos, neste trabalho, enfocamos apenas em dois conceitos-chave

da teoria de Hommi K. Bhabha, que se referem ao movimento das identidades culturais.

A esses movimentos produzidos por nações hibridas, caracterizadas por marcas tanto da

individualidade cultural quanto da coletividade, o autor nomeia como atividades

performáticas e pedagógicas. A importância de Bhabha na articulação das

representações temporais é imprescindível para os estudos da cultura, uma vez que

estabelece um caminho para lutar contra determinadas formas de narrativas totalitárias

que tendem a construir o imaginário social do povo-nação.

A discursividade, as fantasias que habitam o imaginário, os artefatos culturais

podem ser entendidos nessa perspectiva teórica como matéria-prima da identidade do

sujeito do espaço híbrido. Enquanto, para Bhabha, o movimento performativo é uma

marca singular da identidade do sujeito social, capaz de produzir uma heterogeneidade

na esfera coletiva, o movimento pedagógico, por sua vez, tenciona as narrativas do

sujeito a um modelo ideal, produzindo assim a ideia de homogeneidade e unicidade, que

transforma o povo em nação. Sobre o sujeito cultural, o teórico aponta que

O sujeito do discurso cultural, agência de um povo, se encontra cingido na


ambivalência discursiva que emerge da disputa pela autoridade narrativa
entre o pedagógico e o performativo (DISSEMINAÇÃO. p.210).
Através desse viés, intencionou-se pensar nas tensões entre o movimento

performático e pedagógico nas obras de Luís Cardoso e de Paula Tavares. Enquanto em

Réquiem para o navegador solitário, as práticas pedagógicas estão mais frequentemente

sobrepostas às performances, em Amargos como os Frutos, o ato performático

sobrepõe-se às pedagogias que circundam o espaço.

Em Requiem..., ao ingressar em Díli, Catarina entende que, na verdade, os

conhecimentos agregados de sua adotiva educação europeia, não servem exatamente à

realidade de si e muito menos ao cotidiano que viria a enfrentar. Em primeiro momento,

Catarina deixa-se ser narrada, passivamente, por narrativas disseminadas pelo

imaginário do colonizador e dos invasores de Timor:

Saber línguas estrangeiras, ler os clássicos, tocar piano e admirar Debussy,


um sortido de extravagâncias para ornamentar uma excelente carta de
apresentação. No fim seria a perfeita união entre duas culturas. A asiática e a
europeia (CARDOSO, 2009, p. 17).

Esses movimentos pedagógicos, que reprimem, violentam e abafam a

subjetividade feminina, estão condicionados aos interesses da identidade nacional dos

invasores da terra. Mais especificamente, estão sob controle dos homens (detentores do

poder de destruir, violentar e dominar) tanto as mulheres e as matérias-primas, quanto a

ilha, como um todo. Contudo, ao longo da narrativa, através da ironia, da observação e

instinto de sobrevivência em um espaço misógino, Catarina reage contra as narrativas

que a impedem da aproximação das práticas políticas.

Um dos atos performativos da subjetividade feminina na obra se dá após os

traumas que atravessa na ilha. Mesmo após muitos enfrentamentos, como o seu estupro,

o rapto do filho, a perda da casa em chamas e a morte de sua melhor amiga e filha
adotiva, Catarina ainda assim não se dá por vencida: desejava recuperar seu filho.

Através da memória, retorna aos saberes ancestrais passados pela mãe, que através do

poder das palavras, detêm um poder curativo da alma e do espírito, para, dessa forma,

superar a dor e a guerra.

Aprendi com minha mãe a domar os meus fantasmas. Lembrei-me duma


recomendação.

- Se não tens todos os meios para lutar contra um dragão, não o enfrentes.
Procura antes dotar-te com os meios necessários. (...) Eu tinha a consciência
de que eram apenas palavras como tantas outras repetidas pelos devotos nos
cantos, salmos e orações, mas naquele momento era um conforto lembrar-me
delas. Ensinaram-me que as palavras curam tanto como os remédios
(CARDOSO, 2009, p.54).

Já em Amargos como os Frutos, os movimentos performativos estão

sobrepostos às pedagogias. O ato performático, por um lado, está ligado ao

autoconhecimento dos corpos que se confundem com as frutas, paisagens e elementos

locais de Huíla, sublinhando um desejo de si - para si mesma. Por outro, aparece

relacionado às práticas de purificação e no retorno ao sagrado. Ambos os traços dessa

performatividade estão representados no poema ―Cerimônia de Passagem‖: “A zebra

feriu-se na pedra/ a pedra produziu lume/ a rapariga provou o sangue/ o sangue deu

fruto/ a mulher semeou o campo/ o campo amadureceu o vinho/ o homem bebeu o

vinho/ o vinho cresceu o canto/ o velho começou o círculo/ o círculo fechou o princípio/

a zebra feriu-se na pedra/ a pedra produziu lume‖ (TAVARES, 2011, p.15).

O discurso eurocêntrico do exotismo

Catarina, em Réquiem..., constantemente se sente como objeto exótico de desejo

dos homens estrangeiros que chegam à ilha. A obra destaca muitas vezes a
representação do olhar masculino frente ao corpo da mulher oriental. A personagem

protagonista desdenha o modo como os homens encaram o feminino como mais um

objeto de dominação em terras a serem conquistadas:

Ocorreu-lhe acrescentar que a sedução é uma mulher vestida de seda, saboreando uma
chávena de café de Timor e fumando tabaco de Java num salão de homens em Xangai.

O visitante, durante todo o tempo em que esteve em nossa casa, não tirou os olhos nem
de mim nem de uma peça amarela que não era de pedra, mas de carne e osso, e
representava uma menina chinesa com pretensões culturais exóticas (CARDOSO, 2009,
p. 20).

Em Crítica da imagem eurocêntrica, Shohat e Stam (2006) colocam o exotismo

como ―uma das contradições internas do racismo que mascaram com frequência uma

atração pelo objeto detestado‖ (SHOHAT; STAM, 2006, p. 47). Na obra de Cardoso,

essa atração não é mascarada no que se refere às mulheres, dado que a ficção erótica é

retratada pelo masculino sem sutilezas em relação a ver as mulheres como exóticas.

Para Shohat e Stam (2009), o ―racismo pode ser, portanto, adepto da arte do falso

elogio, da qual fazem parte o primitivismo e o erotismo‖ (p. 49).

O racismo/exotismo, que aparece não só na forma de ―falsos elogios‖ às

mulheres orientais, é recorrente no meio em que Catarina vive e as conversas

masculinas que ouve: "os ingleses amavam a Índia mas detestavam os indianos.

Precisamente o contrário dos portugueses, que amavam tanto a terra como as

especiarias, sendo a mais picante delas, a morena de Goa mais o seu delicado umbigo

onde encostavam a cabeça antes de se lançarem em novas conquistas" (CARDOSO,

2009, p. 33). Como apontam Shohat e Stam, ―o exotismo utiliza seu objeto para o prazer

do dominador, tomando o outro colonizado como uma ficção erótica que mistifica o

mundo‖ (SHOHAT; STAM, 2009, p. 49). Há uma tentativa, portanto, de apagamento


do racismo por meio da ficcionalização erótica do corpo da mulher oriental, que tenta

esconder as relações de opressão e violência do colonizador para com essas mulheres.

A obra poética de Paula Tavares, por sua vez, não traz representações exóticas

por meio do erotismo, dado que este parte do anseio do corpo feminino, que descobre a

si mesmo e celebra o desejo do corpo. Se existe, dessa forma, um erotismo latente, pela

representação dos frutos e associação com o corpo, especificamente com os órgãos

sexuais, o erótico é de caráter libertador em relação à sexualidade feminina angolana,

muitas desprovida de espaço representativo para as mulheres como sujeito de seus

corpos.

Considerações finais

As forças reguladoras do corpo ―mulher‖ podem ser entendidas na forma do

amor, nas atividades pedagógicas de um espaço cultural, assim como no discurso racista

eurocêntrico. Essas forças objetivam silenciar o indivíduo feminino e afastá-lo de suas

práticas pedagógicas. Para isso, precisa narrá-lo e destituí-lo de sua subjetividade. Nesse

sentido, o corpo da mulher aparece degradado à serviço das narrativas controladoras e

homogeneizantes, renunciando suas diferenças e incutindo esses sujeitos femininos com

traumas e um complexo de passividade ou aparente passividade. Contudo, a

representação desses sujeitos femininos nos dois contextos literários difere-se em alguns

sentidos.

Enquanto em Em Réquiem para o navegador solitário, a personagem inicia um

processo de reapropriação do corpo e agência política, em Amargos como os Frutos, a

mulher enfatiza o domínio do seu corpo como seu. Este caminho de reapropriação está

colocado tanto pelos caminhos do desejo quanto pela busca do sagrado. Apesar de
aparentar não ter uma atividade política de resistência, a subjetividade do sujeito

feminino angolano opera infrapoliticamente por meio de uma subjetivação ativa.

A narrativa de Timor, criada por Cardoso, opera distintamente da poesia de

Tavares, pois baseia-se em uma denúncia dos horrores coloniais, retratando como

vítimas toda e qualquer feminilidade presente no espaço da ilha de Timor-Leste. A

mulher é apresentada como um produto exótico a serviço do poder masculino e, desde

sua criação, passa por um processo de engessamento para que não questione ou coloque

em cheque os poderes vigentes. O exotismo, portanto, pode ser entendido como uma

estratégia racista na medida em que ficcionaliza a mulher como mercadoria exótica a

serviço do homem branco heterossexual, configurando as mulheres como corpos

objetificados, desprovidos de anseios e vida. As mulheres de Angola, como marca Paula

Tavares em sua poesia, são conscientes dos horrores e das violências trazidas pela

colonização, contudo, através do resgate de sua ancestralidade, pelos rituais de suas

comunidades, pelos artefatos locais e pelas práticas do cotidiano tipicamente angolano,

desintegram-se das narrativas do imaginário do colonizador, num processo de

revalorização de seus corpos e seus povos.

Destarte, a importância deste trabalho vai além de conhecer o espaço e a

história de Timor e de Angola, a preocupação, de fato, reside em uma conciliação entre

as reflexões sobre o ethos feminino nestas sociedades de caráter misógino com a

realidade ocidental e a história da mulher na atualidade. Até onde essas forças

reguladoras operam nos melindres sociais que vivemos e afastam a mulher de certas

posições de poder? Ademais, de que forma se pode, então, reconhecer e combater o

imaginário misógino do homem branco heterossexual? E, por fim, de que forma essas
narrativas possibilitam revelar a opressão para que a mulher possa, efetivamente,

apropriar-se de si e buscar, pela transformação, a igualdade desejada?

REFERÊNCIAS:

BHABHA, H. K. ―Disseminação – O Tempo, a Narrativa e as Margens da Nação


Moderna‖. In: O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima
Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 198-238.
CARDOSO, L. Requiem para o Navegador Solitário. Rio de Janeiro: Língua Geral,
2009.
SHOHAT, E; STAM, R. ―Do eurocentrismo ao policentrismo‖. In. Crítica da imagem
eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 37-65.
SOMMER, D. ―Amor e Pátria na América Latina: Uma especulação Alegórica sobre
Sexualidade e Patriotismo‖ in: Tendências e impasses – O feminismo como crítica da
cultura. Organização de Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
TAVARES, P. Amargos como os Frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

Você também pode gostar