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19 de maio

BONS DIAS!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como
melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei
de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era
nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni
umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe
dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a
taça de champanha e declarei que, acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos,
restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar
as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os
homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés.
Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre
assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas.
Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços
comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite,
recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um
ordenado, um ordenado que…
— Oh! meu senhô! fico.
— … Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa
ver; olha, és mais alto quatro dedos…
— Artura não qué dizê nada, não, senhô…
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o
seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou
sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não
escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso
natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu
de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés,
um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas
que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores,
direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um
escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a
ler, escrever e contar (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os
homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se
antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre
retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
BOAS NOITES.

(In “Bons dias!”, Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888. Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.)

9 de abril

O conselho municipal vai regulamentar o serviço doméstico. Já há um projeto, apresentado


esta semana pelo Sr. intendente João Lopes, para substituir o que se adiara, e em breve estará, como
se diz em dialeto parlamentar, no tapete da discussão.
Não me atribuam nenhuma trapalhice de linguagem, chamando intendente a um membro do
conselho municipal. Assim se chamam eles entre si. Podem retrucar que, no tempo das Câmaras
municipais, os respectivos membros eram vereadores. É verdade; mas, nesse caso, fora melhor ter
conservado os nomes antigos, que eram uma tradição popular, uma ligação histórica, e creio até que
a intendência que primeiro substituiu a câmara, é menos democrática. Intendência e intendente
cheiram a ofício executivo.
Mas, seja câmara, intendência ou conselho, vai reformar o serviço doméstico, e desde já tem
o meu apoio, embora os balanços da fortuna possam levar-me algum dia a servir, quando menos, o
ofício de jardineiro. As flores (não é poesia) são a minha alma. Eu daria a coroa de Madagascar por
uma rosa do Japão. Outros sacrificariam todas as flores de leste e de oeste pela coroa da ilha das
Enxadas. São gostos. Agora mesmo, o corretor Souto, achando-se em graves embaraços
pecuniários, pôs termo à vida. Pessoas há que, nas mesmas circunstâncias, criam alma nova. Pontos
de vista.
Enquanto, porém, não me chega o infortúnio, quero o regulamento, que é muito mais a meu
favor do que a favor do meu criado. Na parte em que me constrange, não será cumprido, porque eu
não vim ao mundo para cumprir lei, só porque é lei.
Se é lei, traga um pau; se não traz um pau, não é nada.
Um exemplo à mão. Qual é a primeira das liberdades, depois da de respirar? É a da
circulação, suponho. Pois para que a tenhamos no meio da rua da Candelária, e no princípio da da
Alfândega, vulgo Encilhamento, é preciso que andem ali a defendê-la duas praças de cavalaria.
Desde 1890 estabeleceu-se naquele lugar uma massa compacta de cidadãos, que não deixava passar
ninguém. Não digo que o motivo fosse expressamente restringir a liberdade alheia; pode ser que o
intuito da reunião fosse tão-somente formar um istmo que de algum modo imitasse o de Panamá,
que se desfazia todas as tardes, à mesma hora em que as antigas quitandeiras da rua Direita
levantavam as suas tendas. Pode ser; o espírito de imitação é altamente fecundo.
Entretanto (é a minha tese), tirem dali as duas praças de cavalaria, e o Encilhamento
continua. Já ali estiveram duas, e, para manter a liberdade da circulação, eram obrigadas a disparar
de vez em quando. Dispersavam a gente, é verdade, mas faziam perder e ganhar muito conto de
réis, porque os jogadores apostavam sobre elas mesmas, a saber, qual das duas praças chegaria a
uma dada linha da rua. Saíram as praças, refez-se o istmo.
Mas venhamos ao nosso projeto municipal. Tem coisas excelentes; entre outras, o art. 18,
que manda tratar os criados com bondade e caridade. A caridade, posta em regulamento, pode ser
de grande eficácia, não só doméstica, mas até pública. Outra disposição que merece nota, é a que
respeita aos atestados passados pelo amo em favor dos criados; segundo o regulamento, devem ser
conscienciosos. Na crise moral deste fim de século, a decretação da consciência é um grande ato
político e filosófico. Pode criar-se assim uma geração capaz de encarar os tremendos problemas do
futuro e refazer o caráter humano. Que tenha defeitos, admito. Assim, por exemplo, o art. 19 obriga
amo e criado a darem parte à polícia dos seus ajustes, sob pena de pagar o amo trinta mil réis de
multa e de sofrer o criado cinco dias de prisão; — isto é, ao amo tira-se o dinheiro, e ao criado ainda
se lhe dá casa, cama e mesa. É irrisório; mas pode emendar-se.
Quando os criados fizerem os regulamentos, não creiam que sejam tão benignos com os
amos. A primeira de suas disposições será naturalmente que toda a pessoa que contratar um criado,
pagar-lhe-á certa quantia, a título de indenização, pelo incômodo de o tirar de seus lazeres. A
segunda proverá à composição de um pequeno dicionário, em que se inscrevam as palavras duras,
ou simplesmente imundas, que os criados poderão dizer aos amos, quando estes achem um copo
menos transparente. A terceira definirá os casos em que um gatuno possa perder paulatinamente o
vício, servindo a um homem e fumando-lhe os charutos, com tal graduação que, antes de vinte
meses, só os fume comprados com o seu dinheiro.
Tudo isto quer dizer que a legislação, como a vida, é uma luta, cujo resultado obedece à
influência mesológica. Oh! a influência do meio é grande. Que vemos no Rio Grande do Sul?
Combate-se e morre-se para derrocar e defender um governo.
Venhamos a Niterói, mais próximo do teatro lírico. Trata-se de depor a intendência.
Reúnem-se os autores e propugnadores da idéia, escrevem e assinam uma mensagem, nomeiam
uma comissão, que sai a cumprir o mandato. A intendência, avisada a tempo, está reunida; talvez de
casaca. A comissão sobe, entra, corteja, fala:
— Vimos pedir, em nome do povo, que a intendência deponha os seus poderes.
A intendência, para imitar alguém, imita Mirabeau:
— Ide dizer ao povo, que estamos aqui pelos seus votos, e só sairemos pela força das
baionetas!
A comissão corteja e vai levar a resposta ao povo. O povo, na sua qualidade de
Luiz XVI, exclama:
— É pois uma rebelião?
— Não, real senhor, é uma conservação.
Tudo isto limpo, correto, sem ódio nem teimosia, antes do jantar, antes do voltarete, antes
do sono. Se alguém ficou sem pinga de sangue, não o perdeu na ponta de uma espada; foi só por
metáfora, uma das mais belas metáforas da nossa língua, e ainda assim duvido que ninguém
empalidecesse. Talvez houvesse programa combinado. Quantos fatos na história, que, parecendo
espontâneos, são filhos de acordo entre as partes!

(In “A Semana”, Gazeta de Notícias, 9 de abril de 1892. Obra Completa de Machado de Assis. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.)
4 de setembro

Nem sempre respondo por papéis velhos: mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não
é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da
montanha, à maneira de São Mateus. Não se apavorem as almas católicas. Já Santo Agostinho dizia
que "a igreja do Diabo imita a igreja de Deus". Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o
do Diabo:

"1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e,
depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
"2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes.
"3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.
"4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
"5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
"6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
"7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito.
"8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
"9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de
salgar?
"10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim
se perdem o chapéu e a vela.
"11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.
"12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se consertam,
e se não for com remendo da mesma cor, será com remendo de outra cor.
"13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos
uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o
próprio.
"14. Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para
que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o
reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa.
"15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio
desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe
a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo.
"16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor
os teus juramentos.
"17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além
de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos
para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou,
todos acenderão velas.
"18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.
"19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça
treze de cinco e cinco.
"20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem,
e donde os ladrões os tiram e levam.
"21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a
traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.
"22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer
o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio.
"23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a terra se não
despovoe das lebres, nem as más concessões pereçam nas vossas mãos.
"24. Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do próximo
para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não
ir nenhum.
"25. Não tenhais medo às assembléias de acionistas, e afagai-as de preferência às simples
comissões, porque as comissões amam a vangloria e as assembléias as boas palavras.
"26. As porcentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo, para que as outras
flores brotem mais viçosas e lindas.
"27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpétuas
as contas que se não contam.
"28. Deixai falar os acionistas prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa vontade.
"29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não
até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos.
"30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem
sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração,
que edificou sobre a areia, e fica a ver navios..."

Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por ele; mas eu
creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz com
os dedos e, ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem pelos
erros de cópia.

(In “A Semana”, Gazeta de Notícias, 4 de setembro de 1892. Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.)

16 de outubro

Não tendo assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer
entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu
silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum,
encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.
Para não mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro.
Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de
superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto.
Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não
é meu ofício censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar
espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena propriedade,
merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável
sensação? Que tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do bond, deslizando como os barcos dos poetas, ao
sopro da brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em sentido contrário, não tardou que nos
perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua
do Catete. Nem por isso o perdi de memória. A gente do meu bond ia saindo aqui e ali, outra gente
entrava adiante e eu pensava no bond elétrico. Assim fomos seguindo; até que, perto do fim da linha
e já noite, éramos só três pessoas, o condutor, o cocheiro e eu. Os dois cochilavam, eu pensava.
De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-
me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu conheço um pouco a língua dos
Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei
que cavalo não é burro; mas reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos, decerto; é
talvez o trapista daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:
— Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.
O da esquerda:
— Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bonds, estamos livres, parece claro.
— Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não conheces a história da
nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que,
tendo o salvador dos homens nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia
de Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.
— Que tem isso com a liberdade?
— Vejo, redarguiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de homem nessa
cabeça.
— Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.
O cocheiro, entre dois cochilos, juntou as rédeas e golpeou a parelha.
— Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bonds
entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote.
Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem chicote?
Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e abençoaram a ideia os trilhos,
sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. Não conheciam o homem.
—Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rédeas. Sei também
que, em certos casos, usa um galho de árvore ou uma vara de marmeleiro.
— Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro não tem força; mas, levando
pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente Shannon? Mandou isto:
“Engorde os burros, dê-lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se
afeiçoem ao serviço; oportunamente mudaremos de política, all right!”
— Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos trabalho, quando estou
repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois do bond elétrico?
— O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
— De que modo?
— Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos,
vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.
— Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? nenhum
prêmio? nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a justiça deste mundo?
— Passaremos às carroças — continuou o outro pacificamente — onde a nossa vida será um
pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que ele lhe
custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer coisa que nos torne incapaz, restituir-nos-á a
liberdade...
— Enfim!
— Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí deixem
crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa?
Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana,
— esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três, a vizinhança
começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais
atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclamação. No quinto dia sai a reclamação
impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma
carroça, puxada por outro burro, e leva o cadáver.
Seguiu-se uma pausa.
— Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da esperança.
— Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o
gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao
homem que anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da
astronomia. Nós nunca seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas humanas a
este respeito são perfeitas quimeras. Cada século...
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e travou o carro.
Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois interlocutores. Não podia crer que
fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para
levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois burros:
— Houyhnhnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e perguntaram-
me cheios de entusiasmo:
— Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os
animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como
dizia o burro da esquerda, ainda agora:
— Onde está a justiça deste mundo?

(In “A Semana”, Gazeta de Notícias, 16 de outubro de 1892. Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.)
ASSIS, Machado de. A Semana – 122. Edição, apresentação e notas por John Gledson.

A SEMANA – 122

John Gledson

Machado volta a um velho tópico, abordado já na crônica de 1o de janeiro de


1877, de “História de Quinze Dias”, e novamente na de 6 de novembro de 1892, desta
série: a igreja da Matriz da Glória, no Largo de Machado, perto da sua casa, com a sua
estranha mistura de estilos – um frontispício de templo grego, “imitado da Madalena” (a
Madeleine, de Paris), e uma torre, “imitada de coisa nenhuma” (de fato, claro, da torre
de uma típica igreja cristã). O fato de voltar ao assunto nesta ocasião provavelmente
indica que ele estava sem assunto mais imediato, mas a crônica não é menos
interessante por isso. Sobretudo, as considerações sobre a “beata” Maria de Araújo e a
devoção popular, contrastada com, em parte porque provavelmente imitada de,
Bernadette de Lourdes, são de uma isenção notável.

237
Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, p. 237-240, jul.-dez. 2018.
ASSIS, Machado de. A Semana – 122. Edição, apresentação e notas por John Gledson.

A SEMANA
30 de setembro de 1894
[Edição, apresentação e notas por John Gledson]

Não escrevo para ti, leitor do costume, mas1 para ti, venerando arcebispo, que
ainda há pouco recebeste o pálio na nossa catedral de S. Sebastião.2 Não esperes que
venha dizer mal de ti, em primeiro lugar porque o mal só se diz “por trás das pessoas”,
locução popular e graciosa; em segundo lugar, porque venho pedir-te um favor.
O favor que te peço, meu caro arcebispo, não é um benefício propriamente
eclesiástico, nem carta de empenho, nem dinheiro de contado. Bênção não é preciso
pedir-ta; ela é de todo o rebanho, e, ainda que em mim os vícios superem as virtudes,
terei sempre a porção dela que me sirva, não de prêmio, que o não mereço, mas de
viático.
Meu caro arcebispo, não te peço nenhum milagre. Nem milagres são obras fáceis
de fazer ou de aceitar. A mais incrédula, a respeito deles, é a própria igreja, que acaba
de declarar que os milagres de Maria de Araújo são simples embustes.3 Os louros de
Bernadette tiravam o sono a essa moça do Juazeiro, que se meteu a milagrar também,
nas ocasiões da comunhão, e é provável que comungasse todos os dias. Em vão o bispo
do Ceará, depois de bem examinado o caso, reconheceu e declarou, em carta pastoral,
“que eram fatos naturais, acompanhados de algumas circunstâncias artificiais”; o povo
continuava a crer em Maria de Araújo, e não só leigos mas até padres iam vê-la ao
Juazeiro. Como sabes, venerando prelado, a questão foi submetida à Santa Sé, que
considerou os fatos e os condenou, tendo-os por “gravíssima e detestável irreverência à
santa eucaristia”, e ordenando que as peregrinações à casa de Maria de Araújo fossem

1
Aurélio tem “nem”, que parece errado, já que o cronista está mesmo escrevendo para o arcebispo. A
palavra não se lê bem no microfilme, mas termina em “s”, e tem três letras.
2
Para d. João Esberard, primeiro arcebispo do Rio de Janeiro, ver nota 1 à crônica de 4 de junho de 1893.
A catedral era a antiga Capela Imperial, na rua Primeiro de Março, em frente à praça XV de Novembro.
3
Maria de Araújo (1862-1914), também conhecida como beata Maria de Araújo, foi protegida pelo padre
Cícero. Em 1o de março de 1889, teria acontecido um milagre, em que, ao receber a hóstia, ela não pôde
recebê-la, pois se transformava em sangue – o “sangue de Cristo”, segundo o povo, que passou a
reverenciá-la, tratando os panos manchados de sangue (os “panos ensanguentados”) como relíquias. Dois
padres mandados pela Igreja acreditaram no milagre, mas o bispo do Ceará, d. Joaquim José Vieira,
declarou que era embuste, sendo apoiado depois pela Santa Sé. É beata só pela devoção popular.

238
Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, p. 237-240, jul.-dez. 2018.
ASSIS, Machado de. A Semana – 122. Edição, apresentação e notas por John Gledson.

vedadas, e assim também quaisquer livros que a defendessem, e a simples conversação


sobre tais milagres, e por fim que se queimassem os panos ensanguentados e outras
relíquias da miraculosa senhora.
Eis aí Maria de Araújo obrigada a trocar de ofício. Eu, se fosse ela, casava-me e
tinha filhos, que não é pequeno milagre, por mais natural que no-lo digam.
Perde a celebridade, é certo, mas não se pode ser tudo neste mundo, alguma
coisa se há de guardar para o outro, e particularmente aos famintos anunciou Jesus que
seriam fartos.4 Não haverá Zola que a ponha em letra redonda e vibrante, para deleite de
ambos os mundos.5 Paciência; terá nos filhos os seus melhores autores, e basta que um
deles seja um Santo Agostinho, para canonizá-la pelo louvor filial, antes que a igreja o
faça pela autoridade divina, como sucedeu a6 Santa Mônica.7 Esta não fez milagres na
terra, não teve panos ensanguentados, nem outros artifícios; ganhou o céu com piedade
e doçura, virtudes tão excelsas que domaram a alma do marido e da própria mãe do
marido.
Mas a quem estou ensinando os fastos da igreja? Perdoa, meu rico prelado,
perdoa-me esses descuidos da pena, tão pouco experta8 em matérias eclesiásticas.
Perdoa-me, e vamos ao meu pedido. Hás de ter notado que, para pedinte, sou um tanto
falador, sem advertir que a melhor súplica é a mais breve. Também eu ouço a
suplicantes, porque também sou bispo, e a minha diocese, caro D. João Esberard, não
tem menos nem mais pecados que as outras, e daí a necessidade da paciência, para que
nos toleremos uns aos outros. Mas não há paciência que baste para ouvir um suplicante
derramado. Todo suplicante conciso pode estar certo de despacho pronto, porque fixou
bem o que disse, sem cansar com palavras sobejas. Vês bem que sou o contrário.
Colhamos pois a vela ao estilo.
Peço-te um favor grande, em nome da estética. A estética, venerando pastor, é a
única face das coisas que se me apresenta de modo claro e inteligível. Tudo o mais é
confuso para estes pobres olhos que a terra há de comer, e não comerá grande coisa, que
a vista é pouca e a beleza nenhuma. Não cuides que, falando assim, peço coisa estranha
ao teu ofício. Há muitos anos, li em qualquer parte, que a moral é a estética das ações.
Pois troquemos a frase, e digamos que a estética é a moral do gosto, e a tua obrigação,
caro mestre da ética, é defender a estética.
4
Mateus 5:6.
5
Em 1894, Émile Zola tinha publicado Lourdes, o primeiro de uma série de três romances sob o título de
Les trois villes. Apesar da pretensão de ser objetivo, de ser escrito “com a simpatia crítica que é marca
distintiva do historiador do século XIX” (palavras do romancista), o livro é profundamente cético em
relação às motivações dos vários peregrinos que descreve, e em relação aos “milagres” operados por
Bernadette. No dia 22 deste mês veio a notícia que o livro fora condenado e interditado pela Igreja.
6
Na Gazeta com sinal de crase, que, como diz Aurélio, parece simples erro de revisão.
7
Santa Mônica (331-387) foi a mãe de Santo Agostinho, que trabalhou pela conversão do filho, do
marido e da sogra. Agostinho dedica-lhe várias páginas nas Confissões. Ela é a padroeira das mães de
família, e o assunto do Panegírico de Santa Mônica do companheiro de seminário de Bento Santiago (ver
cap. LIV de Dom Casmurro).
8
“esperta” na Gazeta, que Aurélio corrige para “experta”, achamos que com razão.

239
Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, p. 237-240, jul.-dez. 2018.
ASSIS, Machado de. A Semana – 122. Edição, apresentação e notas por John Gledson.

Eis aqui o favor. Manda deitar abaixo uma torre. Não me refiro a torres dessas
cujos sinos tocam operetas e chamam à oração por boca de D. Juanita.9 A torre cuja
demolição te peço, é a da Matriz da Glória. Conheces bem o templo e o frontispício.
Não sei se eles e a torre entraram no mesmo plano do arquiteto; todos os monstros, por
isso mesmo que estão na natureza, podem aparecer na arte. Mas não é fora de propósito
imaginar que a torre é posterior, e que foi ali posta para corrigir pela voz dos sinos o
silêncio das colunas. Bom sentimento, decerto, religioso e pio, mas o efeito foi
contrário, porque a torre e as colunas detestam-se, e a casa de Deus deve ser a casa do
amor.
Sei o que valem sinos, lembra-me ainda agora a doce impressão que me deixou a
leitura do capítulo de Chateaubriand, a respeito deles.10 Mas, prelado amigo, uma só
exceção não será mais que a confirmação da regra. Manda deitar abaixo a torre da
Glória. Se os sinos são precisos para chamar os fiéis à missa, manda pô-los no fundo da
igreja, sem torre, ou na casa do sacristão, e benze a casa, e benze o sacristão, tudo é
melhor que essa torre em tal templo. Ou então faze outra coisa, – mais difícil, é verdade,
mas que me não ofenderá em nada, – manda sacrificar o templo à torre, e que fique a
torre só.
E aqui me fico, para o que for do teu serviço. Relendo estas linhas, advirto que
uma só vez te não dei Excelência, como te cabe pela elevação do posto. Não foi por
imitar a Bíblia, nem a Convenção Francesa,11 mas por medo de ficar em caminho. São
tantas as Excelências que se cruzam nas sessões da Intendência Municipal, que bem
poucas hão de ficar disponíveis nas tipografias. Para não deixar a carta em meio, falei-te
a ti, como se fala ao Senhor.

9
Esta ópera de Franz von Suppé (1819-1895) já foi mencionada, no mesmo contexto dos sinos, na
crônica de 15 de abril de 1894. No dia 23, estava sendo encenada em dois teatros, o Lírico e o Sant’Ana.
10
O primeiro capítulo da quarta parte do Génie du Christianisme leva o título “Des cloches” e ocupa-se
do som dos sinos, e do seu grande poder sobre a alma humana.
11
A Convention Nationale foi a assembleia unicameral, eleita por sufrágio masculino universal, que
governou a França de 21 de setembro de 1792 até 26 de outubro de 1795, isto é, nos anos centrais da
revolução. Começou decretando a suspensão do reinado de Luís XVI, e dos títulos aristocráticos e outros.

240
Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 1, n. 2, p. 237-240, jul.-dez. 2018.

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