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Cânone Editorial
Editora responsável
Ione Valadares
Conselho Editorial
Adriano Naves de Brito, Anita C. Azevedo Resende,
Custódia Selma Sena, Denize Elena Garcia da Silva,
Lisandro Nogueira, Maria Zaira Turchi, Noé Freire Sandes
Joana Plaza Pinto
Branca Falabella Fabrício
Organizadoras
1. edição
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
§ 307. “Não será você um behaviorista disfarçado?
Você por acaso não diz que, no fundo, tudo isto
é ficção, a não ser o comportamento humano?”
Quando falo de uma ficção, falo de uma ficção
gramatical.
§ 371. A essência está expressa na gramática.
(Wittgenstein, Investigações filosóficas)
Sumário
uma maneira de pensar sobre o uso linguístico e identidade que evita categorias
fundacionistas, sugerindo que identidades são formadas na performance
linguística ao invés de serem pré-dadas. Essa visão da identidade linguística
também nos ajuda a ver como subjetividades são criadas e sedimentadas
ao longo do tempo através de atos de linguagem regulados. Além disso,
fornece o terreno para considerar as línguas elas mesmas de uma perspectiva
antifundacionalista, em que o uso da linguagem é um ato de identidade que
cria a própria linguagem. E performatividade, particularmente em relação
a noções de perfomance, abre caminhos para entender como línguas,
identidades e futuros são redesenhadas.
Assim, para Pinto, a doutrina dos atos infelizes seria central para
a desconstrução da legitimidade naturalizada do conhecimento sobre
identidades estabelecido pela ciência ocidental da Modernidade. A defesa
de tal posição acompanha Derrida na compreensão de que as condições de
felicidade de ações linguísticas não podem nunca ser totalmente garantidas,
pois não preexistem à ação. Tal fato indica que os atos discursivos estão
sempre em risco, sendo passíveis de falhas, deslizes, ambivalências, incertezas
e contradições. Esses aspectos não são anomalias ou irregularidades e sim
parte integrante dos processos de constituição identitária – sendo, portanto,
familiares e conhecidos. No entanto, a noção tradicional de identidade –
comprometida com o ideário Moderno de coesão, completude, unicidade
e coerência – descarta o que é considerado como ruído, descuido ou,
frequentemente, atipia. Instaura-se, assim, o regime regulador das formas de
ser e agir que reprime e torna “estranho” a diversidade insistente, que não se
encaixa na norma postulada. Dessa forma, o familiar (a norma) e o estranho (a
quebra da norma) seriam um par relacional, fazendo parte da mesma lógica;
este é a contraparte cerceada daquele.
São esses espaços “banidos”, que interpelam a vontade de padronização,
os sítios de interesse de teorias críticas das identidades. Estas, ao realizarem
o movimento simultâneo de estranhamento dos ambientes “normais” e a
exploração daqueles tidos como “marginais”, levam em conta que identidade e
diferença (outra forma de aludir ao binômio familiar-estranho) são inseparáveis.
Ao se concentrar na produtividade do “estranho” e das identidades “desfeitas”
na crítica das identidades, Pinto nos indica um tipo de exclusão construída
por nossas práticas discursivo-identitárias entretecidas a ficções familiares de
felicidade. Ser crítico seria, então, resistir aos atos felizes e ver na infelicidade
um fator positivo a considerar, pois ela seria o domínio da criatividade e da
agência. Dessa forma, criação e agenciamento são entendidos aqui como a
possibilidade de, ao estranhar a “felicidade” corrediça, desfazer ou refazer
sistemas de regulação habituais.
Temos, desse modo, delineado, no diálogo entre Alencar e Pinto, um
esboço de quadro teórico propondo um olhar para nossos atos de fala e de
identidade, ou seja, para o que fazemos com as palavras em contextos concretos
de interação, para as formas pelas quais “eus” e “outros” agem discursivo-
identitariamente no cotidiano, e para os efeitos tanto locais quanto mais amplos
desse agir. Tal moldura, que orienta a investigação de processos de construção,
manutenção ou reconfiguração de referências matriciais, alinha-se ao foco
privilegiado por muitos estudos contemporâneos que investem na investigação
da interseção entre as escalas micro e macrossociais como forma de gerar
compreensões sobre as relações entre linguagem e sociedade.
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Mesmidades e mobilidade
uma escola para adolescentes privados de liberdade. Sua análise das reflexões
dos/as professores/as sobre sua ação crítica e transformadora nesta escola nos
leva a reconhecer que “os caminhos permeados de poder e opressão existentes
nesse contexto de exclusão social nos chama a atenção para a indispensável
ação política”, que persiste como ação cotidiana para a promoção de abalos na
estrutura coercitiva da escola e o desenvolvimento de novos saberes e técnicas
para serem trabalhados em sala de aula.
Nascimento, por sua vez, analisa tanto as representações construídas por
professores e professoras quanto por estudantes. A autora explora a concepção
de que “nem os sujeitos, nem os sentidos, nem os discursos já estão prontos e
acabados [...] A incompletude é o que condiciona a linguagem e cria os diferentes
sentidos de um discurso”. Nessa direção, Nascimento discute os deslocamentos
e (re)significações que professores/as experimentam sob condições limitantes
como as da unidade socioeducativa. O que a autora destaca é o processo pelo
qual, ao serem atravessados/as por vozes divergentes, professores/as constroem
suas identidades “de forma heterogênea e em (des)construção”. O fenômeno
detectado não é diferente para estudantes, uma vez que também são interpelados
por diversos discursos; entretanto, como resposta diferenciada, ele/as encontram
no silenciamento uma forma de resistência. A autora conclui que há ainda muitos
desafios para a implementação adequada das políticas públicas para adolescentes
(o ECA, por exemplo, que completou duas décadas), mas há estímulo e instigação
nas contradições produtivas de desejos e ações de professores/as.
Discutindo educação, discurso e socialização para e sobre crianças com
deficiências, Magalhães, Vieira, Vieira & Assunção e Lima, Nunes & Rios
apresentam, nos quatro últimos artigos do livro, reflexões fundamentais sobre
este tema. Da exploração conceitual à intervenção pedagógica, passando pela
análise de discursos sobre a deficiência, esses capítulos compõem um conjunto
crítico sustentado pelas análises do discurso crítica e foucaultiana.
Magalhães, explorando o conceito de agenciação na Linguística Aplicada
e relacionando-o com a ética, debate o contexto do letramento de estudantes
com deficiência na educação especial. Fundamentada em seus próprios estudos
anteriores, a autora observa a contradição entre o projeto governamental
inclusivo e as práticas excludentes no cotidiano escolar. Seu capítulo apresenta
um especial foco conceitual ao discutir que a agenciação “realiza-se em atos
de leitura e de escrita, significando a (re)construção das identidades das
pessoas com deficiência em termos da afirmação de sua participação social
em espaços públicos da cidade”. Esse desenvolvimento conceitual é um abalo
e deslocamento na “inclusão que pode excluir” e defende a visibilidade das
pessoas com deficiência por meio da exposição de sua produção em espaços
públicos para além da sala de aula, promovendo seu sentido de alteridade. Vieira,
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Referências
Introdução
versões idealistas quanto nas formas realistas do saber humano. Ela atravessa de
forma sub-reptícia o nosso pensar e o nosso falar sobre a linguagem, na forma
teórica de arcabouços conceituais e nas conversações cotidianas.
Rajagopalan (2003, p. 29), ao afirmar que a ideia de que a linguagem
tem a função primordial de representar o mundo está “fortemente arraigada
entre nós e escancaradamente presente em quase todas as teorias linguísticas”,
mostra a representação como parte dos pressupostos que sustentam os modelos
analíticos bastante disseminados na ciência da linguagem, como é o caso do
gerativismo, do funcionalismo e da versão da teoria dos atos de fala proposta
por John Searle. Essa visão representacionista tem, pois, patrocinado diversas
dicotomias nos estudos da linguagem como versões do par metafísico essência/
aparência, tais como: conteúdo/forma; significado/significante; mensagem/
código; conteúdo proposicional/força ilocucionária; intencionalidade intrínseca/
intencionalidade derivada; etc.
Neste artigo, quero mostrar, contudo, como a ideia de representação se
desloca de uma versão metafísica presente no pensamento linguístico e filosófico
tradicional para a conceituação que toma a representação como uma categoria
do social e do político, muito utilizada na teoria social e cultural crítica e nos
estudos críticos da linguagem. A palavra representação é utilizada para entender
as identidades nas sociedades contemporâneas repletas de antagonismos sociais
e para mobilizar a ação política de grupos excluídos, de sujeitos que lutam pela
hegemonia discursiva em torno da representação de diferenças.
Meu intuito aqui é mostrar que, embora se possa considerar que grande
parte dos trabalhos críticos pretendam indicar que o conceito de representação é
utilizado sob rasura e, por isso, é tomado de forma ressignificada, esse conceito,
nascido no jogo de linguagem essencialista e metafísico, acaba por obliterar a
perspectiva crítica de análise e, consequentemente, a ação política e os projetos
emancipatórios da teoria crítica. Por pertencer a um velho vocabulário metafísico,
o termo tem sido utilizado de modo a instaurar confusões conceituais que têm
levado as pesquisas do social a uma ontologização dos sujeitos e da realidade
social, a um dualismo epistêmico entre o que seria discurso ou representação
e o que seria o mundo exterior a ele, ressuscitando a velha dicotomia entre o
linguístico e o não linguístico.
dizer que não há conexão entre a linguagem e a realidade não é afirmar uma
antítese da tese de que se interligam por algum misterioso aparato mental ou
metafísico. É, em vez disso, negar que haja espaço para uma conexão, não
havendo intervalo a transpor. O que está sobrando é a pergunta “Como a
linguagem se liga à realidade?”. Pois se baseia firmemente em uma imagem
equivocada. (Baker e Hacker, 1980, p. 135)
Rorty (1994, p. 31) utiliza ideias de Davidson para romper com a noção
de linguagem como um meio, um meio quer de representação, quer de expressão.
Para Rorty, levantar questões sobre a linguagem do mesmo tipo das que eram
levantadas acerca da consciência (baseadas na imagem do núcleo essencial do
eu num dos lados, a consciência como uma estrutura de crenças e desejo, e a
realidade do outro lado) faz com que continuemos a utilizar um quadro sujeito-
objeto e que continuemos presos a questões sobre ceticismo, idealismo e realismo.
Para o autor, o trabalho de Davidson deixa de lado a imagem da lin
guagem como uma entidade terceira que ocorre entre o eu e a realidade, não
a considerando como meio nem de expressão, nem de representação. Rorty
(1994, p. 35) aproxima Wittgenstein de Davidson para combater a ideia de que
há entidades não linguísticas chamadas significados (que a linguagem tem como
função exprimir) e entidades não linguísticas chamadas fatos (que a linguagem
tem por função representar).
Não podemos esquecer as implicações desses mitos, fundamentados no
lamento e no desejo pela transcendência ou superação da linguagem, para as
áreas dos estudos da linguagem. Roy Harris reconhece o mito da linguagem como
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requisito básico para estabelecer uma língua nacional, pois, sem um consenso a
respeito das formas corretas a serem usadas, a comunidade não terá o desejado
entendimento comum. Nesse sentido, o autor identifica o mito em sua forma
moderna como um produto cultural da pós-renascença europeia. Ele diz que “‘uma
Pátria, uma língua’ foi o ideal ao qual todas as maiores monarquias centralizadas
aspiravam. Compilar dicionários e gramáticas de uma língua materna tornou-se
um empreendimento patriótico” (1998, p. 32). O perigo desse mito é que ele pode
conduzir aos nacionalismos extremados a serviço de dominadores.
A expectativa ou a certeza de comunicação harmoniosa, a ilusão de
que as formas verbais transmitem os significados mentais de forma perfeita,
o não reconhecimento do caráter dialógico da linguagem e da dinâmica de
constituições de realidades pela linguagem têm conduzido nossas atividades
intelectuais e cotidianas a estabelecer relações cruéis e desiguais com base em
pressupostos representacionistas.
Dizer que duas pessoas pertencem à mesma cultura é dizer que elas
interpretam o mundo de modo semelhante e podem expressar, por si
mesmas, seus pensamentos e sentimentos sobre o mundo, de forma que
serão entendidas umas pelos outras. (Hall, 1997, p. 2)
complexas relações entre eles” (1997, p. 17). Para o autor, o sistema conceitual e
os sistemas linguísticos são os códigos que permitem aos indivíduos falarem e
ouvirem inteligivelmente. Assim, a tese da determinação que sustenta o mito da
linguagem atravessa o trabalho teórico de Hall sobre a representação cultural.
A determinação é sustentada pela ideia de que toda forma de comunicação
requer um código fixado de regras que viabilize a transmissão e a apreensão de
significados. Por esta falácia, a formalização de processos em códigos linguísticos
permite que as palavras e as ideias sejam compartilhadas pelas pessoas.
Segundo Roy Harris (1998, p. 2), as abordagens que tratam as línguas
como códigos são criticadas por uma abordagem integracionista como segre
gacionais. O segregacionismo assume a validade e a necessidade da distinção
entre línguas como sistema e o uso possível e real desse sistema que pode ser
percebido na terminologia segregacional (langue versus parole, competência
versus performance, código versus mensagem).
Outros trabalhos nos Estudos Culturais que dão conta das interações e
apropriações culturais, que fortalecem o trabalho de subversão dos não produ
tores de cultura, também trazem em seu bojo uma concepção de linguagem que,
baseada na tese da determinação, acaba por trazer a discussão sobre a cultura
para os trilhos da tradição metafísica ocidental.
Michel de Certeau (1994) se propõe a estudar o cotidiano, as práticas de
criação anônima da classe subalterna que redirecionam os produtos da indústria
cultural, através dos discursos táticos dos consumidores. Interessado pelas
formas subterrâneas de conviver com políticas impostas, Certeau dá atenção ao
não lugar ocupado pelas classes subalternas para investigar “os modos de fazer”
dos sujeitos sociais que burlam, enquanto consumidores, as políticas culturais
sistemáticas. O autor usa as dicotomias da linguística hegemônica para pensar
as táticas e as invenções dos sujeitos e conceder-lhes as microrresistências
que deslocam fronteiras de dominação. Desse modo, as célebres divisões
segregacionistas da linguagem, langue/parole e competência/desempenho, são
usadas como modelo para ele pensar a dominação representada pelo sistema e
as táticas de resistência representadas pelo uso desse sistema.
Assim, a ideia da “construção de frases próprias com um vocabulário e
uma sintaxe recebidos” tem como pressuposto a noção de que há um sistema
linguístico ou de um código supraindividual que possibilita a performance
linguística individual. É, pois, a falácia da determinação através da ideia de
código, sistema de regras impostas, que é utilizada por Certeau para também
pensar as maneiras de usar o sistema cultural dominante, através das bricolagens
e invenções cotidianas dos sujeitos (Certeau, 1994, p. 40). Apesar de eleger o
cotidiano como objeto de estudo e dar atenção à performance, o autor ressuscita,
sem nenhum questionamento, a velha dicotomia saussuriana. Partir da ideia de
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É preciso entender de uma vez por todas que a atividade discursiva, mesmo
em situações banais do cotidiano, revela lutas por representações, lutas estas
que manifestam tensões que precisam ser problematizadas devidamente, por
conta das hierarquias que revelam, para que nossas ações político-discursivas
operem no sentido de conduzir um mundo social marcado por fortes tensões,
muitas delas reveladoras de fortes antagonismos, a um mundo social menos
tenso, menos antagônico e mais agonístico, no sentido dado a esse termo pela
cientista política Chantal Mouffe. (Ferreira, 2010, p. 438)
em cena não com essa unidirecionalidade épica, mas com o sentido con
traditório e ambíguo dos que padecem a história e ao mesmo tempo lutam nela,
dos que vão elaborando, como em toda tragicomédia, os passos intermediários,
as astúcias dramáticas, os jogos paródicos que permitem aos que não têm
possibilidade de mudar radicalmente o curso da obra manejar os interstícios
com parcial criatividade e benefício próprio. (Canclini, 2003, p. 280)
Considerações finais
Referências
O primeiro texto que me chamou a atenção para isso não era exatamente
um texto pós-colonial sobre identidades, mas uma referência fundamental para
os demais textos que eu vinha mapeando. Trata-se de dois textos do filósofo
franco-argelino Jacques Derrida (1990a; 1990b).
Já é conhecido o debate entre Derrida (1990a; 1990b) e Searle (1977)
sobre a obra de Austin (1976). Diversos autores (Culler, 1981; Felman, 1980;
Gorman, 1999; Pinto, [no prelo, 2009]; Rajagopalan, 1990, 1996, 2000; Santos,
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pelo paradigma dominante, portanto são anomalias evitadas nos manuais das
teorias tradicionais sobre identidade? Com o tempo, percebi que a resposta era
ao mesmo tempo sim e não. Não, porque não é um dado ou fenômeno que
é estranhado nas críticas das identidades. Os dados ou fenômenos explicados
parecem ser da mesma natureza daqueles analisados por tantos textos
tradicionais sobre identidades. Sim, porque a anomalia não é, nesse caso, um
dado ou fenômeno a ser analisado, mas é o próprio sistema analítico que é
estranhado.
Exatamente como no caso da crítica de Derrida (1990b) a Searle, o estranho
é usado para se referir aos pressupostos utilizados por quadros explicativos das
identidades postos em crise. O estranhamento de tais pressupostos é, então, a
base para a crítica.
Ruitenberg (2004) também afirma isso, quando estabelece uma forte
relação entre a crítica e o unheimlich (estranho) de Freud (s.d.). Ruitenberg (2004)
oferece uma crítica da oposição entre crítica domesticada e não domesticada,
arguindo que uma clara separação conceitual entre as duas é impossível, e que
ambas sempre carregam traços uma da outra. A crítica não domesticada se
constrói dentro da estrutura da crítica domesticada, pois estranha o que lhe é
mais familiar.
Dois pequenos trechos do famoso artigo de Freud (s.d.) sobre o tema, Das
Unheimlich, ajudam a pensar sobre o assunto: “[Jentsch] atribui o fator essencial
na origem do sentimento de estranheza à incerteza intelectual; de maneira que
o ‘estranho’ seria sempre algo que não se sabe como abordar” e “‘Unheimlich’ é o
nome de tudo que deveria ter permanecido... secreto e oculto, mas veio à luz”.5
Freud [s.d.] mostra, no desenvolvimento desses dois trechos, que o “estranho”
é a contraparte reprimida do familiar. Ele conclui que unheimlich (estranho)
é um tipo de heimlich (familiar), possuindo ambos internamente a estrutura
reprimida encontrada no seu oposto, sendo, portanto, palavras de significado
ambivalente. Aproveitando essas observações de Freud, pude perceber que a
ambivalência, a incerteza e a confrontação do oculto integram a discussão sobre
como teorizar identidades nos textos analisados, explorando, para isso, os atos
de fala infelizes das teorias tradicionais.
2. Deslocamentos e desnaturalizações
Para entender os efeitos de falha nos atos de fala identitários, cujos exem
plares críticos apresentei na seção anterior, farei uma relação entre a noção
de infelicidade em atos de fala, de Austin (1976), e a noção de atos corporais
desfeitos, de Butler (2004).
Austin defendeu que “as dimensões chamadas de ‘infelizes’ afetam perfor
mances cerimoniais em geral e enunciados em geral” (p. 25-26). Enquanto
os enunciados tratados por Austin são os já conhecidos performativos, o
que poderia ser incluso na expressão performances cerimoniais? O que essas
performances e os enunciados têm em comum para se submeterem às mesmas
regras de falibilidade? De outro ponto de vista, qual a natureza dessa falibilidade
que afeta tanto enunciados quanto performances?
Em confronto com a literatura crítica sobre identidades (Bhabha, 2003;
hooks, 1994; Anzaldúa, 1999), levantei algumas hipóteses para tentar responder
a essas perguntas: 1) os atos de fala falhos ou abusivos apresentam elementos
explicativos sobre identidades e seus atos corporais reguladores; e 2) atos de fala
felizes e atos corporais normativos podem ser compreendidos pela análise do
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funcionamento dos atos de fala infelizes (falhas ou abusos) e dos atos corporais
desfeitos (incompletos ou inacabados).
Desde as primeiras páginas de suas conferências, Austin apresenta uma
preocupação especial com casos “estranhos” nas análises de enunciados. Ele
focaliza sua análise nas “coisas que podem dar certo e dão errado” (Austin, 1976,
p. 14) nos atos de fala – o que ele chamou de doutrina das infelicidades. Dialogando
com a longa tradição filosófica de tratamento de enunciados descritivos, Austin
seleciona o problema dos pseudoenunciados, grupo de enunciados que não
podem ser verificados nos termos de verdade/falsidade – como proposições que
evidenciam uma emoção ou prescrevem uma conduta ou manipulam de algum
jeito. Todas elas são consideradas desde Kant como “falácias descritivas”. Esses
pseudoenunciados são também chamados por Austin de “variedades especiais
de non-sense”, enunciados “mascarados” e “disfarçados” de constativos (p. 4).
Esses primeiros argumentos do autor são reconhecidos como a abertura
da exposição sobre os performativos. Enunciados “estranhos” são os que não
descrevem ou relatam, não podem ser verdadeiros ou falsos, e fazem uma
ação. No entanto, Austin não encerra aí a sua preocupação com os enunciados
“estranhos”: depois de argumentar sobre algumas características do performativo
e sobre a necessidade de circunstâncias apropriadas para a realização de um ato
e de suas ações consequentes (p. 7-8), ele ainda apresenta dúvidas em relação às
condições inadequadas de funcionamento dos enunciados.
A partir desse ponto, o autor inicia uma estranha, mas muito produtiva
forma de apresentar argumentos: ele promete apresentar “as coisas necessárias para
o funcionamento regular e ‘feliz’ de um performativo [...] e então dar exemplos de
infelicidades e seus efeitos” (Austin, 1976, p. 14). Portanto, sua proposta sobre
as condições de felicidade contém apenas exemplos de atos de fala infelizes. Seu
principal argumento para essa estranha estrutura explicativa é que todos os atos
estão sujeitos a infelicidades, ainda que nem todos estejam sujeitos a todo tipo de
infelicidade.7 Para isso, são listadas seis condições e, logo no parágrafo seguinte à
lista, ele inicia a discussão sobre como podemos quebrar tais condições. Assim,
dois conjuntos são formados. Um deles é composto por aqueles atos realizados
com procedimentos adequados, mas de forma insincera, chamados por isso de
abuses ou abusos que são atos insinceros ou sem valor. Um conhecido exemplo de
abuso de ato de fala é a promessa feita sem a intenção inicial de cumpri-la.
O outro conjunto é formado por aqueles atos que quebram procedimentos
e, por isso, não concluem ou alcançam a ação (não dizer certas palavras de certa
forma correta e completa; ou tais palavras não serem ditas por participantes
adequados em circunstâncias adequadas), chamados de misfire ou falhas.
Observo que a tradução de misfire pode ser a expressão verbal “não dar certo
um plano”, versão bastante adequada à explicação de Austin. Nas falhas, os atos
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são vazios ou sem efeito, pois foram mal invocados (participantes inadequados
e/ou circunstâncias inadequadas) ou foram mal executados (palavras ditas de
forma incorreta e incompleta). Um dos exemplos para esse tipo de ato de fala
é um ato de divórcio. Austin afirma que alguém pode dizer “eu me divorcio de
você”, mas as normas – expressão usada pelo próprio Austin – podem não aceitar
esse ato como realizado com sucesso. Pode-se alegar que são precisos outros atos
documentados e julgados para que o divórcio ocorra, ou pode-se alegar que não
se aceite o divórcio de nenhuma forma, pois o casamento seria indissolúvel.
As conferências sobre falhas e abusos apresentam importantes conclusões:
1) não há como simplificar ou sempre distinguir casos de infelicidade; 2) em um
mesmo enunciado, diferentes infelicidades podem ser sobrepostas; 3) alguns
tipos de infelicidade estão ligados a qualquer tipo de enunciado, portanto, são
constitutivos do funcionamento do ato de fala; 4) para compreender como as
coisas “dão errado” no enunciado, é preciso considerar a situação total do ato
de fala.
Dessa forma, vale apresentar, também brevemente, alguns pontos para
articular essas afirmações de Austin com atos corporais, especificamente os
desfeitos. Butler (2004) procura compreender gênero e sexualidade analisando
o que significa “desfazer” identidades normativas. Sua análise aponta que os
esquemas de reconhecimento normativo do “eu” – atos corporais normativos –
estão evidentes em situações de identidades desfeitas, nas quais o “eu” pode
ser desfeito pela outorga do reconhecimento de gênero ou sexualidade, ou pela
negação desse reconhecimento. Butler argumenta que a identidade desfeita é um
efeito da produção normativa do gênero e da sexualidade – efeito constitutivo
das práticas performativas improvisadas na cena coercitiva do reconhecimento
de gênero e sexualidade.
A viabilidade do “eu” depende da inteligibilidade de gênero em relação
à vida coletiva – este “eu” é aqui uma falácia descritiva, um performativo mas
carado. Essa inteligibilidade mostra sempre que o ato de fala que diz “eu” está
submetido a falhas exatamente porque contém a palavra “eu”. Sua força vem
das normas coercitivas que permitem o reconhecimento, portanto, o efeito
de “eu” depende da realização de atos corporais normativos que ele repete ou
contesta. A autora afirma que “[...] se a norma torna o campo social inteligível e
normaliza esse campo para nós, então estar fora da norma é em algum sentido
estar definido ainda em relação a ela” (Butler, 2004, p. 42).
A estrutura argumentativa de Austin – aquela sobre regras e exemplos
inadequados às regras – mostra uma propriedade importante da regulação tanto
do ato de fala quanto dos atos do corpo: a regulação, que consiste em promover
os padrões de normalidade, organiza-se contra as infelicidades de todo tipo.
Explico melhor: as normas reguladoras – quase sempre implícitas e difíceis de
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ler – são visíveis ao responderem aos atos de fala infelizes. Como no exemplo de
Austin sobre o ato de divorciar-se, uma identidade de mulher desfeita com um
ato de fala do tipo “Eu sou lésbica” opera uma força de visibilidade das normas
reguladoras do gênero e da sexualidade. Seu efeito é fazer repetir atos de fala
que estruturam a regulação: atos de fala como “a sexualidade da mulher existe
para completar a sexualidade do homem” ou outros desse tipo, que normalizam
o “eu” que diz “mulher”, serão iterados em resposta explícita ou implícita ao
ato que fala a identidade lésbica – uma “mulher incompleta” ou “inacabada”.
Esta visibilidade operada pelo ato falho é explorada nas teorias críticas sobre
identidades, como na ambivalência de Bhabha (2003), na incerteza de hooks
(1994) e na retirada do “véu de silêncio” de Anzaldúa (1999).
O efeito do ato de fala em identidades desfeitas parece operar num limite
ou numa fronteira entre um ato de fala intencionalmente feliz e outro ato de fala
infeliz, pois sua força excede a de uma descrição identitária que ele pretende com
o uso do “eu”. Como todo ato de fala infeliz, não é possível sempre distinguir
ou identificar com certeza qual o tipo de infelicidade desses atos identitários.
O que se desfaz nessas identidades desfeitas não é somente seu pretenso status
descritivo (cf. hooks, 1994), mas também – e talvez especialmente – seu aparente
afastamento da regulação (cf. Anzaldúa, 1999), já que a força para desfazer
identidades, desautorizá-las e classificá-las como inacabadas ou incompletas
(cf. Bhabha, 2003) opera no mesmo campo regulador das forças para constituir
e manter identidades normativas. E ainda assim, como a regulação opera no
espaço da infelicidade, e algumas infelicidades – especialmente as falhas –
constituem o funcionamento de qualquer ato, então qualquer ato identitário,
de identidades desfeitas ou não, está sujeito a exceder o limite da sua força e
confrontar-se com os atos normativos.
Finalizo observando que, apesar de tudo o que se possa dizer ou desejar,
a reflexão sobre a relação entre as condições críticas de funcionamento de
atos de fala e as falhas e os abusos nas normas performativas que governam
as identidades talvez não chegue jamais a se constituir como um quadro
teórico coeso. Se o estranho – como incerteza, como revelação do oculto, como
ambivalência – fundamenta essas críticas da identidade, ele o faz porque essas
críticas evidenciam a falha no projeto de modernização cultural a que a noção
de identidade serviu.
A falha, ao contrário do abuso, não se pretende infeliz desde o início;
ela ocorre porque uma ou mais das condições de execução do ato de fala não
é cumprida, em geral, quanto às convenções. Nesse caso, é possível descrever
a crítica presente nestas obras mapeadas como lugar de confrontação das
convenções do projeto moderno de identidade em contato com a falha dessas
convenções nos atos de fala que estruturam tal projeto – o ato de fala colonial
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falha para que o projeto seja exposto à crítica. Em outras palavras, a teoria da
identidade polarizada, naturalizada e coerente proposta pela modernidade como
solução de desenvolvimento cultural e subjetivo, será estranhada, expostos seus
pressupostos à crítica, trazendo à tona sua contraparte reprimida na história dos
processos colonial, machista e racista.
Dessa forma, a produtividade do “estranho” na crítica de identidades
apresenta uma resistência teórica fundamental ao projeto cultural moderno.
Para as melhores palavras conclusivas possíveis, escolho as de Grosfoguel (2007,
p. 213):
Notas
Referências
ANZALDÚA, G. Borderlands/La Frontera: the new mestiza. 2. ed. San Francisco:
Aunt Lute Books, 1999.
AUSTIN, J. L. How to do things with words. 2. ed. Oxford: Oxford University
Press, 1976.
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et al. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-
modernismo”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-42, 1998.
BUTLER, J. Undoing gender. New York: Routledge, 2004.
CULLER, J. Convention and Meaning: Derrida and Austin. New Literary
History, v. 13, n. 1, p. 15-30, 1981.
DERRIDA, J. Limited inc a b c... Limited Inc. Paris: Galilée, 1990a. p. 61-197.
DERRIDA, J. Signature événement contexte. Limited Inc. Paris: Galilée, 1990b,
p. 15-51.
FELMAN, S. Le scandale du corps parlant: Don Juan avec Austin ou la seduction
en deux langues. Paris: Édtions du Seuil, 1980.
68
Considerações
Figura 1
Imagem: Lalo de Almeida/Folha Imagem
Foi válido fazer essa ressalva, pois, muitas vezes, uma proposta crítica
pode esvaziar, senão desvalorizar, outros lados de construtos identitários que
trabalham para o fortalecimento de uma identidade nacional. Sem a pretensão
76
2. Territorialização e historialização
Figura 2 Figura 3
Letreiro em Cabaceiras8 Centro da cidade de Cabaceiras
Figura 4 Figura 5
Letreiro em Los Angeles9 Cercanias de Los Angeles,
(letreiro ao fundo na colina)
81
3. Interculturalidade
Figura 6 Figura 7
Set cinematográfico Bollywood, Set cinematográfico Hollywood,
Mumbai, Índia Los Angeles, USA
Figura 8
Set cinematográfico Cabaceiras,
Cariri, Paraíba, BR
83
O autor amplia sua discussão afirmando que há modos e razões para que
processos de hibridação sejam impulsionados e gerados, muitas vezes por
Considerando
Notas
Referências
1. Introdução
Relacional
Ter
r Identidade Sim
Te uto bo
rib liza
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p o r ta m e ntal
92
autor, a linguagem se faz presente em todos os níveis do social, o que pode ser
visualizado no Quadro 1:
(Silva e Ramalho, 2012). Nesses casos, quem fala e escuta, ou quem escreve e lê,
produz as imagens ou as vê, o que inclui os leitores ou viewers, os quais muitas
vezes não se dão conta das representações que balizam a construção social de
identidades, assunto tratado a seguir.
4. Momentos analíticos
Segmento 1
“[...] entidades de assistência social buscam dar apoio aos programas de
melhoria de vida dos catadores de lixo [...]”
Identifica-se um processo material abstrato, precedido de um sujeito/
ator, cuja agência quanto à forma “operativa” é representado por assimilação
mediante uma referência genérica no sintagma “entidades de assistência social”.
Segmento 2
“[...] a maioria vivendo em condições miseráveis [...]”
Trata-se de um processo material concreto (viver), mas que se aproxima
bastante da fronteira de um processo comportamental, sobretudo, por aparecer
seguido do complemento circunstancial “em condições miseráveis”. O ator
social, de acordo com a categorização de van Leeuwen (1997), é incluído no
100
como uma publicação gratuita, essa revista tem sua produção, bem como a
distribuição e o consumo, voltada para uma parte da elite brasiliense.
Entre os meios para que se faça uma reflexão analítica relacionada a práticas
discursivas, destaco um panfleto cuja composição textual ilustra uma mescla tanto
de formas quanto de funções, o que evoca uma “intergenericidade”, definida por
Marcuschi (2008) como um gênero com a função de outro. No panfleto, há um
texto híbrido que envolve fragmentos de notícias jornalísticas e de propagandas
políticas interligadas, ou melhor, amalgamadas entre duas expressões que
tangenciam contextos de situação diferentes: uma, voltada para uma forma de
saudação próxima ao cotidiano e a outra, pertinente a uma estratégia direcionada
para angariar votos eleitorais.
do ator social (candidato) com órgãos da imprensa, mas, sim, com outros órgãos
de poder, vale considerar, de acordo com Marcuschi (2008, p. 168), que “é bastante
comum que nos órgãos de imprensa se usem as contaminações de gêneros ou se
proceda à hibridização como forma de chamar mais a atenção e motivar a leitura”.
Parece que foi essa a intenção do autor da propaganda eleitoral, a de provocar
efeitos que acarretem mudanças. Mas, como lembra Moreira (2009, p. 66), “tais
efeitos têm duração flexível, podem ser de longo ou curto prazo”.
Os fragmentos de textos jornalísticos que aparecem justapostos, numa
espécie de montagem patchwork, mesclados com recortes de manchetes,
evocam uma relação articulada de vozes quanto à intertextualidade. De acordo
com Resende e Ramalho (2006, p. 65-66),
Considerações finais
O estudo terá alcançado seu objetivo se tudo o que foi aqui discutido
servir para frear processos de exclusão, bem como se houver o enfraquecimento
108
Notas
1 Trata-se de uma analogia tecida por mim com base em Halliday (1994), assim
como em Halliday e Mathiessen (2004, p. 172), para explicar tipos de processo em
português a partir de outra construção metafórica.
2 O referido corpus constitui parte do projeto de pesquisa do Grupo Brasileiro de
Estudos de Discurso, Pobreza e Identidades, registrado no Diretório do CNPq desde
2008, mas que integra a Rede latino-americana de estudos de discursos voltados para
a pobreza extrema (REDLAD) desde 2006.
Referências
Introdução
(1) “Está tudo muito verde. Está faltando cor. Isso aqui estava sem graça”.
Ivan trouxe então a policromia [...].
(2) Esta não é a primeira vez que Ivan constrói jardins na 307 Sul. Há
cinco anos, ele esteve por lá, conta o motorista de táxi José Mendonça,
71 anos, 37 de praça, 26 no mesmo ponto. “Fez um jardim, só que,
coitado, era época de seca, mas mesmo assim ele fez. Agora voltou
e do mesmo jeitinho, não ficou nem um pouquinho mais velho”. Da
vez anterior, Ivan não falava do vovô ilustre.
Mas contava que Deus estava “umbicando o planeta”. (Nem o Houaiss
nem o Aurélio registram o verbo “umbicar”. O que mais se aproxima,
foneticamente, é “imbicar”, dar rumo certo, dirigir).
3. Avaliação
(6) Ana Luiza Rodrigues diz que ela e o marido se encantaram quando,
num passeio de fim de tarde pela quadra, viram o cuidado com
que Ivan põe tampinhas coloridas de garrafas sobre as pedras que
delimitam um dos jardins. Que capricho! Que delicadeza a dele, ela
diz. “Ele é muito carinhoso. Fica na chuva cuidando das plantas”.
4. Identificação relacional
(8) Fez um jardim, só que, coitado, era época de seca, mas mesmo assim
ele fez (fala do taxista).
(9) Passava pouco das 11h, quando uma moradora da quadra trouxe para
Ivan, na volta do supermercado, dois sacos plásticos: um com metade de
um frango assado e outro com uma garrafa de iogurte de morango.
(10) Outra moradora [...] traz um saco plástico com pães. Conta que todos
os dias passa por ali e leva algo para Ivan comer.
(11) Ivan agradece e comenta [...]: Comer não é problema. Recebo a
solidariedade dos moradores dos edifícios.
5. Metáfora
Para um/a leitor/a que conheça o clássico Dom Quixote, não é difícil
perceber a associação sugestiva entre “o Cavaleiro da Triste Figura” e “o
jardineiro das flores de tampa de garrafa” (excerto 21). Essa maneira particular
de identificar Ivan dissimula relações de dominação, ocultando, obscurecendo
o sério problema da desigualdade social, na medida em que se reconhece como
“feito” a sua luta incessante pela sobrevivência.
Nos demais excertos, temos apreciações sobre o que ele consideraria ruim
(excertos 13 e 14), na forma de metáforas orientacionais que apontam “para
baixo”, já que na cultura ocidental, em geral, o que é ruim é compreendido pela
espacialização para baixo, conforme Lakoff e Johnson (2002). E, ainda, temos
metáforas ontológicas, pelas quais se compreende a vida de Ivan em termos de
um objeto (“pedaços”, excerto 16), cuja existência é assegurada pelo “lixo”, que,
ao contrário da vida de Ivan, é personificado.
Considerações finais
ANEXO
Ivan, o andarilho-jardineiro, constrói jardim em gramado da 307 Sul
Ele conta histórias delirantes, mas planta arbustos e flores de verdade. Depois,
pendura nelas objetos coloridos. Tudo para controlar a ansiedade e “humanizar a
estupidez”.
Publicação: 3/4/2009 8:00 Atualização: 2/4/2009 22:12
É para driblar a ansiedade que Ivan da Cunha, carioca, 57 anos, quixotescamente
magro e inquieto, constrói um jardim de plantas naturais enfeitadas com peças de
plástico, de metal, de papel que o lixo lhe oferece em sua vida de morador de rua. Ivan
entremeia natureza e objetos, realidade e delírio no seu errático viver.
O andarilho-jardineiro começou a criar seu jardim há pouco mais de um mês, ao
lado do Bloco K e em frente ao Bloco J da SQS 307. Tem por ferramenta apenas uma
pá de pedreiro, presente de um motorista de táxi do ponto ao lado. Acocora-se na
grama e vai retirando entulhos (“isto aqui estava feio demais”) e abrindo pequenas
covas com as mãos de dedos longos e ossudos.
Retira mudas de jardins abandonados nas proximidades e monta o seu próprio
paraíso verde. A verdejante monotonia o intriga. “Está tudo muito verde. Está faltando
cor. Isso aqui estava muito sem graça.” Ivan trouxe então a policromia: pegou tampas
coloridas de garrafas pets e fez delas botões de flor. Embalagens vazias de amaciante,
por exemplo, se transformaram em flores penduradas na ponta de um galho. “A cor
anima o estado de espírito, humaniza a estupidez”, diz com surpreendente fluência de
vocabulário.
“Faço isso pra passar o tempo, pra não ficar muito ansioso, enquanto espero
Fernando Henrique Cardoso, meu vovô, vir me buscar. Ele vem com minhas irmãs
Gisele Bundchen, Celine Dion e Juliana Paes. Vamos para Toronto, no Canadá, Celine
tem uma propriedade lá. Eles vão me trazer um belo par de tênis, roupa limpa, mas
antes vou ter de tomar um banho de sabonete.”
Pedaços da vida
Há uma coerência interna no delírio de Ivan. Ele repete a mesma história diversas
vezes para quem se dispuser a ouvir. Em alguns momentos, conta pedaços de sua
vida que parecem estar conectados com a realidade. Diz que nasceu no Rio de Janeiro
quando ainda se chamava Estado da Guanabara, que morou em Laranjeiras. O
sotaque carioca é a prova de que Ivan não vive apenas na imensidão da fantasia. Conta
que teve mãe, mas não teve “papai humano”. Que tem duas irmãs “de carne e osso”,
Rosinha e Teresinha, “mais as três outras que eu não sabia (Gisele, Celina e Juliana),
as celebridades”.
Que já foi operador de máquina, servente de pedreiro e vigilante. Que veio de
Vilhena, Rondônia, “a dois mil quilômetros daqui”. Que conhece a América Central
(“Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Panamá, El Salvador”). Diz que não entrou
no México porque “a imigração não deixou”, mas que agora vai à Polícia Federal
providenciar o passaporte “com uma foto cinco por sete”. De Toronto vai para Tóquio
e Bagdá, ele, o vovô e as três irmãs.
126
Esta não é a primeira vez que Ivan constrói jardins na 307 Sul. Há cinco anos, ele
esteve por lá, conta o motorista de táxi José Mendonça, 71 anos, 37 de praça, 26 no
mesmo ponto. “Fez um jardim, só que, coitado, era época de seca, mas mesmo assim
ele fez. Agora voltou e do mesmo jeitinho, não ficou nem um pouquinho mais velho”.
Da vez anterior, Ivan não falava do vovô ilustre.
Mas contava que Deus estava “umbicando o planeta”. (Nem o Houaiss nem
o Aurélio registram o verbo “umbicar”. O que mais se aproxima, foneticamente, é
“imbicar”, dar rumo certo, dirigir). Ivan continua crente que Nosso Senhor está
umbicando a Terra, o que significa “levando para baixo tudo o que não presta, ladrão,
traficante, assaltante”. Ele conta que, dia desses, um adolescente se sentou ao lado dele,
no banquinho do seu jardim, e perguntou se ele “não tinha um bagulho pra vender”.
Ivan lembra o episódio com alguma indignação. Diz que as únicas coisas de errado
que faz são fumar (“cigarro de palha porque não tem nicotina”) e tomar café. Que já
bebeu cerveja, mas hoje quer distância.
Moradores solidários
Passava pouco das 11h, quando uma moradora da quadra trouxe para Ivan, na
volta do supermercado, dois sacos plásticos: um com metade de um frango assado
e outro com uma garrafa de iogurte de morango. Ana Luiza Rodrigues diz que ela
e o marido se encantaram quando, num passeio de fim de tarde pela quadra, viram
o cuidado com que Ivan põe tampinhas coloridas de garrafas sobre as pedras que
delimitam um dos jardins. “Que capricho! Que delicadeza a dele”, ela diz. “Ele é muito
carinhoso. Fica na chuva cuidando das plantas.” Outra moradora, Walkyria Oliveira,
81 anos, 47 morando em Brasília, na mesma quadra, traz um saco plástico com pães.
Conta que todos os dias passa por ali e leva algo para Ivan comer. “Ele alimenta os
passarinhos.” Ivan agradece e comenta, depois que dona Walkyria sai: “Comer não é
problema. Recebo a solidariedade dos moradores dos edifícios. Já fiz muitas amizades.
Se as pessoas estão gostando de mim, isso é muito bom”.
Ivan divide o mundo entre o bem e o mal, Deus e “aquele” (Ivan pronuncia o nome
Lúcifer só uma vez e com uma expressão de repulsa). O jardineiro das flores de tampa
de garrafa diz que, quando Nosso Senhor umbicou o mundo, separou os bons dos
maus, porque “esse progresso todo, carro, moto, micro-ondas, amaciante de roupa,
não serve para nada. A responsabilidade é pessoal. Ninguém é julgado pela cabeça de
ninguém”. Avisa que, depois que Deus umbicou o mundo, “só vai cair quem estiver
com perfume podre por dentro”.
O “Chifrudo” o impediu de ter filhos de carne e osso. “Ele estava me roubando,
mas Nosso Senhor mandou me pagar. Me deu uma linda mulher e cinco filhos, três
meninas e dois meninos” — todos em outro plano, o imaterial. E sorri sorriso de
plenitude. A essa hora, se não for tarde da noite, Ivan está plantando flores de verdade
e de mentira no seu jardim.
Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/html/sessao_13/2009/04/03/
noticia_interna,id_sessao=13&id_noticia=95242/noticia_interna.shtml>. Acesso
em: 13 abr. 2009.
127
Notas
1 Pesquisas a respeito da situação de rua com base na Análise de Discurso Crítica têm
sido realizadas no âmbito da Red latinoamericana de análisis crítico del discurso de las
personas sin techo y en extrema pobreza (REDLAD). Ver, por exemplo, Pardo (2008),
Montecino (2010), Coracini (2011), Resende e Marchese (2011).
2 A análise apresentada neste capítulo é aprofundada com outras categorias analíticas
em Ramalho e Resende (2011).
3 Em todos os exemplos, os grifos são nossos e indicam o elemento em análise.
4 Aqui, não faremos distinção entre tipos de avaliação relacionada à teoria da
avaliatividade. Sobre o assunto, ver Martin & White (2005).
5 Veja Ramalho e Resende (2011), em que apresentamos uma análise da intertex
tualidade nesse texto.
Referências
Introdução
1. Fundamentação teórica
2006. Tais delegados eram representantes das etnias Terena, Guarani, Kaiowá,
Kadiwéu, Guató e Ofayé.4 Dessas discussões também surgiu um texto escrito
oficial que contemplava as pautas e agendas da FUNAI.
Trazemos o discurso da (CR), de 2005, que mobiliza as seguintes
temáticas: 1) terra e regularização fundiária; 2) gestão territorial e meio
ambiente; 3) atenção à saúde indígena; 4) educação escolar indígena; 5)
autonomia, tutela e autodeterminação; e, 6) perfil do profissional indigenista.
Nos objetivos citados pela conferência, no bojo do tema “Terra e Regularização
Fundiária”, ao longo de 10 itens específicos, o enunciador ressalta as iniciativas
que procuram garantir ao povo indígena a demarcação, a homologação
e o registro das terras indígenas pelo Governo Federal. Ancorada num
discurso regulador, a CR (esta, 32 anos depois do Estatuto do Índio)5 surge
com um conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos
e procedimentos a serem observados, para atenderem ao que manda a lei
(a Constituição, em especial, cujo discurso fundador está na Declaração
Universal dos Direitos do Homem), cuja meta é instituir o exercício da
cidadania e transformar a prática social.
É pertinente dizer que o discurso desses textos finais da CR marca um
funcionamento do direito oficial que silencia o fato de os povos indígenas se
constituírem no espaço urbano e rural do nosso país como sujeitos há muitos
séculos. Os sujeitos indígenas são silenciados, uma vez que, para a legislação
específica e, como efeito do seu funcionamento como discurso, para o poder
público, os indígenas legalmente estabelecidos continuam a ser interpretados
pela lei como intrusos, aqueles que causam problemas e conflitos. O que causa
esse conflito do indivíduo com a sua coletividade merece estudos profundos,
visto que envolve questões de identidade, nacionalidade e cidadania. Marcas
dessa formação ideológica dos dominantes podem ser observadas por meio
dos itens lexicais “grupo técnico”, “antropólogo” e “titular do órgão federal
indigenista” que mobilizam o outro, o governo, a ciência e a própria lei,
configurando um dispositivo de exclusão social, de confronto entre as duas
formações ideológicas.
Sabemos que a repetição formal do texto legal trabalha na constituição
de um espaço de memória, que se sustenta no funcionamento do corpo das leis
como arquivo escrito. Trata-se de cobrir o fato singular pela generalidade da lei,
isto é, de aplicar uma regra jurídica a fatos já constituídos no espaço do Direito
Positivo. Nesse sentido, o funcionamento do arquivo de textos legais na formação
de uma memória, que trabalha como espaço de interpretação, vem utilizar
nominalizações6 tais como “demarcação”, “reconhecimento”, “homologação” e
“ampliação” para sedimentar um gesto de interpretação apoiado na vaguidão,
na generalização, na referência aos índios de maneira abrangente, sem o
140
fazer, se tanto, é dar voz, é tornar inteligível a questão da origem dos conflitos
interculturais. Para ela, não há como “zerar os antagonismos culturais”, pois a
resolução de um dado conflito intercultural apenas desloca a tensão para outros
lugares; em qualquer tempo, ele voltará a emergir, assumindo novas formas.
“Não se trata de tentar escamotear a diferença, mas se preparar para com ela
conviver de forma mais informada, respeitosa possível. [...] Esse processo
implica estranhamentos mútuos, ajustes, negociações, muitas idas e vindas,
enfim” (Maher, 2008, p. 425).
Em relação às políticas públicas, de outra perspectiva, o Ministério da
Cultura tem promovido reuniões com o Grupo de Trabalho para Identificar
Políticas Públicas para as Culturas Indígenas. Quatro eixos têm norteado a atuação
do grupo: fortalecimento das manifestações culturais indígenas, valorização das
culturas indígenas e luta contra o preconceito, acesso aos bens culturais do país,
numa tentativa de romper com a marginalidade, visando à elaboração de uma
política cultural em parceria com os povos indígenas. Outras ações também
buscam discutir a aplicação de políticas públicas nas populações indígenas,
quilombolas, ribeirinhas, entre outras. O intuito é unir os programas de inclusão
social e cidadania, criados por diversos ministérios, e adaptá-los às comunidades,
avaliando também a integração entre comunidade, governo e sociedade civil.
Essa tentativa de redução de distâncias e diferenças viria a provocar rup
turas, que se materializariam em práticas sociais e discursivas do Governo,
consolidadas (ou melhor: visíveis e audíveis) em políticas públicas e em
discursos de saber/poder, em que se inscreve aquilo que devemos fazer/ser,
numa espécie de controle dos corpos (aquele a que se referiu Foucault). O Estado
põe em circulação programas que o promovam e garantam a sua “atuação” em
campos sob seu domínio. Vista de outra perspectiva, a institucionalização de
direitos civis, por meio de documentos oficiais, pode surgir como o aspecto
fundador da cidadania. O objeto dessas propostas são o idoso, o índio, o negro,
de modo que os enunciados não preveem réplicas ou objeções e sua [deles]
autonomia ou “libertação” são formações discursivas que, quando surgem nos
documentos, apontam para sua negação (falta de). Esses dados são constatados,
já de início, nos dois textos aqui analisados: o enunciador que “escreve” o texto
das Conferências é um autor anônimo, pretensamente neutro e que representa
uma comunidade invisível: há “assinaturas”, as formulações são elaboradas
localmente, mas emergem de um lugar institucionalmente restrito, em busca
de um mundo homogêneo. Em CR, essa neutralidade pretendida pode ser
observada a partir dos logotipos da FUNAI e da I Conferência Regional em
que procuram construir uma imagem de cidadania, de institucionalização de
direitos civis para legitimar o que vem estabelecido no discurso como políticas
públicas. Assim temos as marcas, as assinaturas dos enunciadores de CR (p. 8):
143
Uma tecnologia de poder que não exclui a técnica disciplinar, mas que a
embute, a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-
la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças
a essa técnica disciplinar prévia. Essa nova técnica não suprime a técnica
disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra
superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes.
de Proteção ao Índio), que tinha uma política clara em relação aos povos
tradicionais: “integrar” e proteger (proteger contra quem?).
O índio, enquanto índio, não era considerado brasileiro. Ele devia aban
donar seus hábitos, usos, costumes e suas formas de organização para poder
se considerar brasileiro. A Constituição chegaria para acabar com isso, e
reconhecer o direito de o índio ser índio, manter sua língua e seus costumes,
assim como o discurso da CN garantiria que os povos indígenas mantivessem
sua identidade étnica, sendo ao mesmo tempo índios e brasileiros, como se o
índio já não fosse brasileiro!
Destacamos, nesse tipo de discurso, a ênfase pejorativa quando o discurso
oficial fala das aspirações indígenas, apontando sempre o papel dos opostos
binários: moderno/primitivo, civilizado/selvagem, de acordo com Foucault
(1992). Nessa concepção binária, o argumento do discurso oficial é parte da
ideologia da suposta mobilidade social de um polo para outro. Dessa forma, os
discursos das elites intelectuais e dos setores de esquerda tendem a justificar o
atraso e a marginalidade de grande parte da população indígena em critérios
sócio-históricos e econômicos.
Outro argumento que se destaca nesse discurso é a heterogeneidade
da população indígena e o perigo de se fazer generalizações. A diferença do
indígena das comunidades, que tende a conservar suas raízes e a visão ecológica
do mundo, para os indígenas dos latifúndios é que estes constituem uma
população com inúmeros problemas sociais, em virtude da ancestral prática
de exploração já sofrida. E o discurso da CN tenta passar essa imagem de
preocupação com essa heterogeneidade indígena, a saber:
produz como efeito de sentido certa restrição do escopo de aplicação da lei, o que
implica um funcionamento universal do texto legal. Isso porque, ao explicitar
as condições que levaram à promulgação da lei, a CN estabelece um espaço de
validade, um espaço de interpretação que configuram gestos de interpretação
para a aplicação efetiva do texto jurídico. Por exemplo, ao dizer em CN 2.48
“respeitando os costumes e tradições de cada comunidade”, o discurso oficial
afirma “reconhecer” que os povos indígenas não são respeitados no que se refere
à autonomia e à especificidade de suas etnias e culturas.
Esse funcionamento discursivo do texto da CN permite visualizar os
processos de designação, referência e interpretação que (re)configuram os
sentidos, em que a CN introduz a referência aos sujeitos sociais e “reconhece” sua
especificidade como agentes históricos de determinadas práticas discursivas. No
entanto, também ressoam no silenciamento discursivo indícios das relações de
continuidade que os enunciados da CN estabelecem com a memória discursiva.
Ao mesmo tempo, no discurso da CN ressoam os sentidos de violência e
desordem que vimos ao longo da história dos nossos povos indígenas e que
vemos também no funcionamento no discurso midiático.12
O desconhecimento/apagamento dos fatos e enunciados exteriores ao
arquivo oficial é característico dos processos de textualização da escrita da lei,
o que lhe propicia, segundo Zoppi-Fontana (2005, p. 104), “funcionar como
discurso paralelo que, se projetando prospectiva e retrospectivamente no
tempo, sobredetermina os fatos sociais, a partir do simulacro de um ponto zero
enunciativo”. Assim, os enunciados “Criar dentro da estrutura da Funai uma
assessoria parlamentar composta por índios para atuar no Congresso Nacional”,
“Garantir a participação efetiva das comunidades indígenas nas discussões”
ou “Criação de um programa de educação ambiental” perdem concretude e
ganham um estatuto de pura potencialidade. Esse apagamento vem camuflar as
posições de confronto dos sujeitos que representam, no interdiscurso, as lutas
políticas e ideológicas que dividem o social e que estabelecem a distribuição e a
regulamentação do direito às terras.
Em seu livro sobre o silêncio, Orlandi (1999) distingue as formas de
silêncio. O silêncio fundador que existe nas palavras, que significa o não dito
necessariamente excluído; e a política do silêncio, que se subdivide em silêncio
constitutivo e local. O constitutivo é o que nos indica que, para dizer, é preciso
não dizer, ou seja, ao dizer uma palavra é preciso “silenciar” outras; e o silêncio
local se refere à censura, àquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura.
Desse modo, observando os enunciados produzidos pelo discurso oficial,
verificamos uma restrição ao dizer dos indígenas, que se manifesta pela ausência
de sua formação ideológica, pelo apagamento, e que pode ainda ser verificado
nos excertos, a seguir:
153
Considerações finais
Esta pesquisa vem apontando que a voz mobilizada pela história mostra
que o índio que fala procura ter voz, mas, para isso, não hesita em apropriar-se
da voz do branco para manter-se no espaço social reservado a ele, repleto de
restrições. Põe-se a descoberto a presença do outro em todas as representações
do sujeito, em que diferentes discursividades concorrem para a complexidade
discursiva que encerra o “dizer” do índio, circunscrito no âmbito do estável
horizonte da visão ideológica e do engessado processo espelhado de construção
da imagem do outro, a partir da imagem que se tem de si mesmo. Assim, à
luz dos teóricos mobilizados, verificamos algumas regularidades nos excertos
155
Notas
Referências
vida de cada um. Na maior parte das vezes, eles se misturam, se combinam, se
(con)fundem, constituem uma rede, fios emaranhados, cuja origem heterogênea
e mestiça permanece desconhecida no inconsciente (Coracini, 2010a).
Assim, esses arquivos resultam dos acontecimentos que escolhemos
e acolhemos sem saber o porquê, no acaso de nossas experiências. Quanto
aos relatos dos desabrigados ou dos sem-teto (Coracini, 2010b), coletados e
transcritos parcialmente até o presente momento, é possível afirmar que eles
apontam inevitavelmente para essa memória, para esse arquivo que se faz
história e história sempre outra, transformada a partir das experiências pessoais
de sofrimento, de angústia, de desprezo e até de apatia, esquecimento, silêncio.
Sabe-se que a experiência do outro, do diferente, pode ser acolhida de
modo diverso por cada um. A questão, como afirma Sibony (1991, p. 52), a
respeito do imigrante que se vê entre línguas e culturas, “é saber o que cada
um pode arriscar de seu fantasma e se ele pode vê-lo partilhado pelo outro”.4
Parece-me que esta citação pode ser muito bem compreendida no caso daqueles
que se encontram em situação de rua. Mas, aqui, a questão vai mais longe do
que simplesmente permitir que o outro habite no migrante (hóspede) e em
nós (hospedeiros?), do que permitir se desfazer, ou se destituir, ainda que seja,
até certo ponto, de sua origem considerada como única e se abrir para outros
modos de ser, para o diferente. Afinal, como se abrir para o diferente se aquele
que recebe, que hospeda não se abre para o estranho, para o foragido, para
aquele que incomoda, desaloja, cria conflitos?
No caso daqueles que se encontram em situação de rua, pode haver neles
uma memória – de um passado mais longínquo ou de um passado recente –
que lhes traga ressentimentos, resultantes de sentimentos de tristeza do que foi
e que poderia não ter sido, do que não foi e que poderia ter sido, sentimentos
de frustração, de profunda decepção, de humilhação, de ódio pelo outro que é
sempre o outro de si (Haroche, 2004, p. 334; Kristeva, 1988), o que leva, muitas
vezes, à anulação de si. A pesquisa de Machado (2003) dá testemunho desse
sentimento, a partir de diálogos com meninos de rua, abordando o tema, por
exemplo, da família, “[a]s respostas são, em sua maioria, cercadas de silêncio”
(p. 97) ou seguidas de frases como “Não sei dizer [se família é bom ou não é
bom]” (p. 98). A situação em que vivem não lhes permite falar de “sua” família,
mas de família, de modo geral e teórico, segundo o imaginário da sociedade
predominante, que atravessa a escola, por exemplo.
Mas o ressentimento pode provocar, em outros, um mal-estar, uma
amargura, um malquerer que pode, dependendo da situação, gerar vingança, ou
melhor, um sentimento de vingança, sem que, de fato, ela aconteça. Nietzsche
([1887]2009), em Genealogia da moral, defende que o ressentimento se refere
sempre aos fracos, aos que não conseguem reagir, aos que se contentam
165
S1 - Beto: Pr’aquilo que: você dava tanto: tanto p/ primor e: acaba deixando
de lado mas nem tanto pelo seu querer você acaba sendo leVAdo né sendo
leVAdo/ Você vai sendo levado quando há um despertar assim que você abre
166
Beto enuncia uma representação que joga com termos que se opõem:
“moradores” e “situação de rua”; é bem verdade que a expressão “moradores
de rua” é bastante recorrente; mas como pode alguém morar na rua? A rua
não pode ser uma moradia. A expressão “em situação de rua”, expressão que
denuncia a voz de ONGs, de albergues ou de quem deles se aproxima, refere-se
àqueles que não têm casa para morar, mas que, um dia, tiveram, o que guarda a
contradição da primeira expressão. Porém, Beto realiza uma junção: “moradores
EM situação de rua”, expressão que parece condizer mais com a realidade: são
moradores, mas que, no presente momento, se encontram na rua, por terem
perdido o que tinham de mais valioso. Observe-se a ênfase na preposição “em”
que provoca o efeito de sentido de uma situação passageira.
Ao lado de certo sentimento de culpa (“acaba deixando de lado”), prevalece
o discurso da vítima, que decorre do ressentimento: vítima da droga ilícita, do
álcool: ainda que resista, “você acaba sendo leVAdo”, carregado pela avalanche
do líquido que passa pelo corpo, impondo-lhe um dado comportamento. De
um lado, a culpa; de outro, a fatalidade. Em qualquer um dos casos, persiste a
discriminação da família, da sociedade, que, se dá oportunidade de trabalho
para uma pessoa que deixou a droga, “fica com o pé atrás”, não confia nela.
E aí continua perdendo amizades, família, tudo. Quando o entrevistado usa o
pronome “você” (eu, os colegas, todos), há uma generalização que atinge todas
as pessoas que se encontram em situação semelhante. “Você” funciona como
um apelo à cumplicidade do interlocutor. Além disso, há o emprego de verbos
167
S3 - Tonho: tive uma esposa/ que me traiu [...] e: pra num fazer nada
eRRAdo: // eu vim na rua
S4 - Jonas: [...] foi depois que eu larguei da minha mué/ aí: [vozes ao fundo] /
até que a primeira vez / que eu dormi num albergue / foi no ri:o // fiquei dois
168
anos é: / [inc.] depois da catedral / lá [inc.] [...] fica difícil / MAS paREce que
tem horas/ também que isso vira um vício / sabe?
P: de dormir / em albergue?
Jonas: é / de: / RUa // tem hora que vira um vício / tem uns que é: / vamos
supor / ti / tipo o meu né // depois que larguei da minha mué: / tive problema
/ era: // nem um / nem meu filho / era enteado/ era droGAdo / tal tal [...] até
que mataram Ele / antes de matar ele/ eu saí de casa/ abandonei tudo.
S5 – Jonas: [barulho de moto e carros] [inc.] dessa última vez que eu fui fiquei
dois dias / [inc.] / três dias / e já falou [o irmão] que não queria ninguém
na casa de:le / que nu:m / entendeu? [...] // aí qué dizer: / significa que
num é nada meu // entendeu? / tem duas filhas mi:nhas / moram aqui em
Hortolândia [inc.] / me colocou na justiça / pr’eu deixar uma casinha pra elas:
/ [inc.] [...] num SAbem / que eu durmo em rua na rua
negando seu parentesco, ao afirmar para si mesmo que “ele num é nada meu”?
Resta-lhe o ressentimento e, talvez, um desejo de vingança contido, recalcado.
Jonas tem família: duas filhas que ignoram o seu destino na rua e, por isso, o
processam; essa é, ao menos, a desculpa que ele encontra. Injustiçado, tal como
muitos outros, ele continua culpando os outros por sua desgraça.
Segundo Mané, o destino da maioria dos sem-teto, sobretudo dos que
migram, é semelhante: problemas de mulher, de filho, de pobreza, que os faz
saírem de sua terra, de sua região para tentarem a vida em outro estado:
S7 - Mané: Eu acho que a alta sociedade // devia dar algum apoio ao morador
de rua // vêm cinco seis [...] / [batê na] cabeça / [pra] matar // mas agora
parou um pouco// [inc.]
P: E a polícia?
Mané: Polícia não tá nem aí // aí um dia que mataram um rapaz aí no banco
[inc.] ficou umas duas horas aí / que nem um porco lá / cheio de sangue /
depois de duas horas que veio a: // negócio [inc.] // depois pegaram / depois
de duas horas [inc.] o rapaz aí / por quê? morador de rua // sem valor
P: Isso foi de madrugada?
Mané: Não:/ é oito horas da noite [...] / tava jantando// [inc.] // entendeu?
[inc.] Então pode matar outro que eles não tão nem aí// com os morador de
rua // [inc.] que vai acontecer aqui de madrugada [inc.] gente tomando droga
170
aí / briga / roubo não tão nem aí / [inc.] mata o outro / entendeu [inc.] uma
mata o outro / não tão nem aí // quando um mata o outro pra eles é melhor
ainda/ se não tiver / se não tiver documento// que a maioria não tem / não
tem mesmo // acho que / [vai] continuar a mesma coisa [inc.]
Mané repete três vezes “não tão nem aí” com a violência, droga, briga,
morte, “um mata o outro”, alguns desconhecidos mataram um sem-teto deitado
no banco e os outros – policiais, transeuntes, “a alta sociedade” – nada fizeram. O
ressentimento está claro: os sem-teto não valem nada (“sem valor”), se morrerem,
se a droga os derrubar, não tem importância, se um mata o outro, “é melhor
ainda”. Observe-se, nesse enunciado, uma gradação crescente de vantagens com
relação ao que precede, em que o pronome de relatividade “ainda”5 denuncia, ao
lado do superlativo “bom”, um grau a mais na escala de valoração dos atos citados
(morte natural, droga, assassinato por colegas do mesmo grupo) e de indiferença
ou desvalorização dos sem-teto. Há ainda outra denúncia: a “alta sociedade” quer
eliminá-los e o único modo é exterminando ou deixando que um acabe com o
outro. A esperança de mudança, de algum respeito do/ao outro, acabou; restam
apenas o desânimo e a desesperança (“acho que vai continuar a mesma coisa”).
Mas, há gente “boa”, segundo Pedro:
S8 - Pedro: Ah:/ tem uns povo que tem dó [...] / coitadinho/ mas tem outros
que passa aí ó / vagabundo aí/ bêbado / vai trabalhar vagabundo / acho que
pelo menos é assim / porque o pessoal não sabe o problema que a pessoa tem
né? / sentimento / [...] eu acho que // pessoal [inc.] / maltrata / vai trabalhar
vagabundo [inc.]/ não tem documento/ tá desempregado/ [inc.] a família/
não tem dinheiro pra ir pra:/ pra / lá pra lá nordeste/ Pernambuco [...] Mas
a maioria num [inc.] a maioria [inc.] mas tem alguns que são bom[...] //
mas a maioria não gosta/ eles acham que morador de rua são vagabundo//
[conversa com outro] [inc.] morador de rua [inc.] tem sentimento no coração
né/ longe da família/ não tem [inc.] alguém rouba os documentos entrega
lá/ na bebida se joga/ dá problema de cabeça/ é atropelado / entendeu? //
Eu acho que:/ a maioria/ [inc.] não gosta// poucos / é poucos que apoia //
a maioria não gosta / Não gosta / Eu vejo hein // eu vejo / são maltratado /
mas são maltratado // entendeu? // [inc.] maltratado // principalmente pela
Guarda Municipal // esse aí // bate [inc.] bate mesmo/ [inc.] / cê viu? [...] //
mas tudo // tem hora que eles bate mesmo // eles quer acabar com a turma de
rua / quer acabar / mas como que vai acabar?
Pedro denuncia os maus tratos imputados pelos civis e pela polícia aos
que vivem na rua, servindo-se o tempo todo da terceira pessoa (a turma da rua;
os moradores de rua). A primeira pessoa fica para os verbos que introduzem
uma opinião e, sobretudo, um testemunho (“eu acho”; “eu vejo hein // eu vejo”);
a repetição do verbo “ver”, na primeira pessoa, reforça a veracidade do fato
171
que Pedro testemunha. Aliás, a narrativa das histórias que presencia e de que,
portanto, dá testemunho (Derrida, 1998) segue uma sequência cronológica e
mostra como, pouco a pouco, um migrante, que não encontra emprego, que
não pode retornar para a sua terra, porque não tem dinheiro, vai perdendo a
esperança e se entregando ao vício e ao desânimo (“longe da família/ não tem
[inc.] alguém rouba os documentos entrega lá/ na bebida se joga/ dá problema
de cabeça/ é atropelado / entendeu?”).
Além disso, percebe-se a revolta pelo outro e por si, pelo desprezo,
pela anulação de si pelo outro, seja pela piedade (“coitadinhos”), seja pela
agressividade e violência (maus tratos, assassinatos, xingamentos – “bêbado”;
“vai trabalhar vagabundo”, frase que Pedro repete duas vezes). E assim ele vai
construindo representações depreciativas do outro, que “não estão nem aí”, que
querem o desaparecimento dos moradores de rua, mas como desaparecer? Esta
é a pergunta de Pedro, buscando uma resposta, sugerindo apenas um efeito de
sentido: não há como acabar com os chamados moradores de rua, se não há
emprego para eles, se não têm apoio, se os que vêm de outras regiões do país
não são acolhidos; pelo contrário, são enxotados como lixo ou como bichos
perigosos, nocivos ao bem-estar da sociedade hegemônica. A solução – se é que
assim se pode designar –, que a sociedade hegemônica busca para tal situação,
afinal de contas, de responsabilidade social, é, como aponta Jonas (S7), a morte,
o extermínio dessas pessoas, como forma de higienização das cidades.
Representações semelhantes também emergem da fala de Tonho:
S10 - Mané: Um colega do Aguaí // ó sua mãe morreu / quando? / faz dois
anos atrás [...] Casa Branca / pertinho lá // daí fiquei / seis anos sem ir lá // aí
[inc.] aí morreu / faz dois anos atrás / é / não tem mais jeito / aí o que eu vou
ter que fazer ir lá: / no túmulo dela pedir desculpa / porque ó: // entendeu? /
[inc.] / isso é uma coisa que me segura para não ir... não ia / aí é que eu não
vou mesmo / tá vendo // [...] tinha irmão // [inc.] meus irmãos não gostam
muito não / mas eu não convivo com eles [...]
Alguns alinhavos
a) fazer parte, ainda que recusem – que vivam ou que morram. Muitas vezes,
a sociedade considerada hegemônica prefere a última alternativa, para que
se restaure a “limpeza” nos centros urbanos. Assim, um dos participantes da
pesquisa afirma que a vida não tem sentido, eles não têm sentido, o mundo não
faz sentido.
Como foi possível perceber nos excertos aqui apresentados, o ressen
timento serve bem à passividade que não se confunde com a imobilidade, pois
o ressentido acredita estar agindo, quando, na verdade, está apenas reagindo,
incapaz que é de se responsabilizar, de dar uma resposta por si mesmo, de lutar
para recuperar o que lhe foi tirado ou o que ele permitiu que lhe fosse tirado.
Segundo Khel (2004, p. 19), “é no lugar da vítima que se instala o ressentido,
cujas queixas e acusações dirigidas a um outro funcionam para reassegurar sua
inocência e para manter sua passividade”. E, por isso, não raro se refugia no
álcool e em outras drogas.
Apesar do desânimo, do ressentimento, fazer com que o ressentido fale
de sua vida, fale de si, especialmente aquele que se encontra em situação de rua,
quando a perda de tudo e de todos parece irreversível, uma vez que tamanhas
e numerosas são as “quedas”, funciona como a escrita, com efeito catártico,
permitindo que o sujeito se inscreva, se mostre, desabafe (Foucault, 1973, 1992,
2002; Coracini, 2008b), perceba sua dignidade e sua capacidade, para que, em e
por suas palavras, surja o desejo de lutar e de mudar de posição, tornando-se –
quem sabe? – capaz de (re)traçar a sua vida, não sem antes afastar a passividade
reafirmada por frases como “Deus quis”; “Deus sabe o que faz”; “Deus me
protege”, frequentemente encontradas nas narrativas ou histórias de vida e que
funcionam como reforçadoras do sentimento de impotência que acomete o
ressentido.
Por fim, é preciso reconhecer que o ressentimento, sobretudo o dos sem-
teto, constitui um sintoma de que as coisas não vão bem, de que algo de muito
podre mina a sociedade que os exclui (sem excluí-los, porque eles aí estão, ao
nosso lado, nas nossas calçadas); além disso, é preciso que a sociedade mude,
também, de posição, sendo menos narcísica, para ser capaz de enxergar as
consequências de seus próprios atos, para que tome a decisão (cisão, corte,
ruptura) da responsabilidade social, em que o sentimento de impotência tão
característico dos ressentidos, posto que, de acordo com Rancière (1996),
também o somos e nos vingamos naqueles que consideramos inferiores, não
permitindo que saiam de onde estão, transforme-se em força, em energia vital
e transformadora.
175
Notas
1 Tradução minha.
2 A palavra francesa testimonialité não se encontra dicionarizada (cf. Le Petit Robert);
constitui, portanto, um neologismo criado por Derrida. Por isso, ousamos manter
neologismo semelhante em português, indicando, nas duas línguas, a possibilidade
de testemunhar.
3 Tradução minha.
4 Tradução minha.
5 “Já” e “ainda” constituem o que se denomina pronomes de relatividade. A esse
respeito, ler Coracini (1981).
6 Embora a expressão “a gente” inclua o enunciador, inclui também o outro; daí o efeito
de sentido de primeira pessoa do plural (nós=eu e outros).
Referências
1. Introdução
vivendo uma vida normal. Isso gerava uma dúvida e uma suspeita: Amir estava
mesmo doente? Ou seria ele um impostor? E, se estivesse doente, poderia cuidar
dos filhos? Conforme veremos na análise da entrevista com Flávia, ela apresenta
uma série de situações que colocam em xeque a possibilidade de Amir exercer a
paternidade de forma responsável ou adequada.
Estabelece-se, assim, uma dinâmica oculta entre afetos/posicionamentos
de inclusão e de exclusão em relação a direitos e deveres associados à paternidade
de Amir, que esta pesquisa quer revelar. Assim, essa injunção de situações
promove uma associação direta entre a doença de Amir, sua capacidade de ser
pai, sua possibilidade de exercer esse papel, de forma mais amiúde, tal como
solicitava no processo, e os sentimentos de todos em relação a essa associação:
os de Flávia em relação a Amir, os dele em relação à Flávia e os dele para com ele
mesmo; também, indiretamente, os da mediadora Sonia em relação a ambos,
uma vez que ela estava incumbida de redigir um relatório, a pedido do Juiz, com
o seu parecer sobre o caso.
As seguintes perguntas orientam a pesquisa: 1) quais são as expectativas de
desempenho emocional em relação ao exercício da paternidade problematizado
neste contexto? e 2) Que emoções são construídas no discurso em torno dessa
questão pelos participantes – Amir, Flávia e Sonia?
Com base em uma perspectiva discursiva/antropológica das emoções,
discutimos as diferentes e, por vezes, conflitantes narrativas que emergem
das falas dos três participantes, tendo como foco principal a maneira como
emoções, afetos e sentimentos são usados para posicionar Amir em relação a
sua reivindicação de um maior contato com os filhos. Daí justificarmos aqui
a nossa opção pelo tema das emoções no recorte teórico e metodológico da
microanálise qualitativa de dados de fala-em-interação em um estudo de caso.
Nossa proposta é a de microanálise interacional do discurso, reconhecendo o
lugar da ordem interacional (Goffman, 1983) nos estudos sobre a vida social, em
relação de interface direta com a área de Antropologia das Emoções (Rezende e
Coelho, 2010; Coelho e Rezende, 2011).
O tipo de atividade, objeto deste estudo, representa uma nova abordagem
de mediação que não tem como meta principal a mera resolução de conflito,
mas uma mediação “transformadora” que visa a trabalhar questões de afeto/
emoções implicadas no conflito. Como o caso analisado foi enviado pelo juiz
da vara de família ao serviço de assistência social, adjunto do Fórum, esse caso
presta-se ao exame das emoções dos participantes, visto que elas são permitidas
e até mesmo encorajadas.
Dessa forma, partimos do princípio de que as emoções são socialmente
construídas. Outro aspecto importante diz respeito ao fato de a evocação e
atribuição de emoções serem práticas discursivas de natureza eminentemente
179
4. Emoções e a fala-em-interação
5. Metodologia de pesquisa
Reportamos aqui uma pesquisa qualitativa, focada na elucidação de
processos de construção de sentidos, tendo na linguagem o celeiro desta produção
(Denzin e Lincoln, 2000). Utilizamos gravações em áudio (primeiramente
gravadas em fitas K-7, depois digitalizadas) e transcrições de fala, de acordo
com o modelo Jefferson,5 da Análise da Conversa (ver Sacks, Schegloff e
Jefferson [1974] 2003). Fazem parte do processo de pesquisa, entrevistas com a
mediadora e notas de campo realizadas durante a geração de dados,6 que durou
aproximadamente de setembro a dezembro de 2007. Adotamos uma postura
socioconstrucionista e microinteracionista para a realidade social, entendendo-a
como construída em ação concertada com o outro, isto é, em atitude colaborativa
de coconstrução, no fluxo de eventos interacionais (Berger e Luckmann, 1966).
Nosso desenho de pesquisa é o de caso único, de acordo com Stake (1995).
Trata-se de um caso bastante peculiar de mediação familiar, em que o tema da
paternidade é centralmente debatido, conforme descreveremos adiante. Dado
o elevado grau de conflito em torno dessa questão e a dialética aí estabelecida
entre movimentos de inclusão e exclusão, ele nos permite analisar os temas
focais emoção, paternidade e exclusão/inclusão de maneira quase que única, a
partir do tema analítico7dos atos de posicionamento no discurso, tendo como
base a evocação/atribuição de emoções.
185
6. Análise de dados
Nos excertos a seguir, mostramos como os participantes das “cenas”
analisadas evocam/atribuem emoções na construção de storylines, usadas
retoricamente em atos de posicionamento e em movimentos discursivos de
inclusão/exclusão, relativos ao exercício de paternidade por Amir. No Excerto
1, na linha 289, Sonia inicia a fala com uma pergunta que abre o tópico sobre a
relação de Amir com a filha Íris:
186
0339 Amir tão, eu sempre fui pai e mãe deles. não fui só pai↓ ela
0340 tava com febre, eu cuidava, e:: trocava, eu fazia dormir,
0341 eu acordava de madrugada eu-, às vezes ela tava dormindo eu
0342 tava lá no banheiro tirando febre dela, e tava cuidando,
0343 dele, (.) quando ela ficou internada ela ficou o tempo
0344 inteiro sem dormir, ela ficou trinta dias internada, aí-
0345 Sonia ºé eu lembro que o senhor falou.º
0346 (.)
0347 (quando) ela não dormia ficava com ela, eu ficava rezando,
Amir
0348 ficava conversando,
((foram suprimidas duas sequências; na primeira, a
mediadora introduz a preocupação de Flávia com a doença de
ouvido da filha; na segunda, ela indaga sobre a origem da
falta de coragem de Amir. Segue abaixo o final da segunda
sequência.))
0402 Amir [me prepara:r pra agressão.]
0403 Sonia [( e se ela não tratar bem)] o senhor vai ter que
0404 racionalizar isso aí, olha- =
0405 Amir = é::
0406 Sonia ela tá com muita raiva, né?,
0407 (.)
0408 Sonia isso não é:: da natureza dela, porque o senhor conhece, né?
0409 Amir [tem hora que eu fico pensando]
0410 Sonia [as fotos mostram que ela fica] alegre com o senhor, sim↓
0411 (2.0)
0374 Flávia = era visita dele, pegou a menina quer dizer ensaiou a
0375 menina, a menina não falou na:da comigo (.) nada, eu não sabia
0376 de nada. ele experimentou a roupa fez tudo armado,
0377 tudo bonitinho pegou a menina de manhã (0.2) eu tinha
0378 bina em casa, duas horas da tarde tava lá na minha bina
0379 a Íris tentou falar comigo, eu acho que ela caiu em si e queria
0380 me avisar antes. mas eu não sabia o que que era,
0381 não retornei e ficou por isso mesmo. eu em casa minha
0382 mãe falou “Flávia, cê não vai ver sua filha desfilando
0383 de baliza aqui não?” eu falei “quê?”, eles nem me
0384 avisaram eu achei assim passar por cima- da mãe dela.
((Linhas supressas. Segue o final da sequência.))
0403 Flávia [e não me avisar] que ia, ne (.) e não me
0404 avisar? =
0405 Sonia = pois é, isso, isso não é legal pra iris (.) porque
0406 afinal de contas ela guardou um[ segredo da senho::ra. ]
0407 Flávia [segredo mentiu pra mim.]
0408 Sonia que não é legal [guardar].
0409 Flávia [ é::. ] mentiu pra mãe, desde o ini-
0410 né:? ensinou uma coisa errada. =
0411 Sonia = (ensinou o errado.) =
0412 Flávia = ele ensinou uma coisa errada. =
0413 Sonia = com certeza (.) mas olha, eu acho que de maneira geral
0414 ela ta- ela tava feliz (0.2) se ela tivesse:: emburrada
0415 com o seu, amir-
Na linha 357, Sonia formula primeiramente qual história Amir teria lhe
contado sobre uma determinada foto – “era um desfile?”, confirmada por
Flávia – “i:sso.” (linha 358). Em seguida, Sonia prossegue sua formulação,
mas agora sobre o ponto da história – “que a senhora não tinha deixado
ela participar mas que [ela queria muito participar.]”,
versão que não é confirmada por Flávia – “[ não:::: nã:o, nã:o,
] não foi isso não, não foi isso não.” (linhas 361-362). Aliás,
de modo enfático, é mostrado o desacordo sobre isso e, em seguida, há uma
justificativa (account) na forma de uma sequência narrativa, cujo ponto alto é
demonstrar sua indignação, como podemos mostrar através de várias ações
interligadas. Flávia usa um discurso reportado com a mãe de Amir, em que não
autorizava a filha a fazer baliza (linhas 366-369). Também formula o estado de
coisas para ela – “e acabou morreu o assunto ali ninguém me falou
mais na:da, não foi falado mais nada”. Depois, acusa indiretamente
o marido de ter feito tudo às escondidas, e fazendo da filha sua aliada, ou seja,
incentivando-a a manter a atividade em segredo da mãe – “pegou a menina
quer dizer ensaiou a menina, a menina não falou na:da
191
Flávia, a versão de Íris é outra: o pai é quem a excluiu – “ele pegou ela no
colo não me pegou” (linha 424), referindo-se à sua meia-irmã.
Em estrutura retórica de contraste, “[mas aí]”, (linha 431), a
mediadora se apoia na informação dada por Flávia sobre a filha – “[mas aí]
a senhora também fala que ela tem o coração- que ela
também é emburradi::nha,” (linhas 431, 432, 434), para atribuir parte
da responsabilidade pelo problema à própria criança, ou seja, incluí-la na
própria formulação do problema. Flávia refuta o posicionamento da filha como
“emburradinha”, sugerindo um outro posicionamento de ordem racional “não
ela tem opinião.” (linha 435).Ela recorre outra vez ao discurso reportado
para mostrar que somente após a exclusão, feita pelo pai, é que se formou uma
forte decisão de a filha se excluir da relação com o pai – ““eu só vou se
você me arrastar pelo portão” (linhas 436-437); surge, então, um jogo
de reciprocidade de exclusão.
Na narrativa de Flávia, há um espaço importante para ela incluir a parte
em que aborda indiretamente a ordem moral subjacente, em que ela, como mãe,
posiciona-se como alguém que promove sentimentos de aproximação entre o
pai e a filha que estão separados por uma briga. Esse é um jogo de inclusão.
Flávia inclui-se, assim, na ordem moral de mãe que cumpre com seu dever de
cultivar nos filhos os sentimentos de afeto pelo pai e, também, exime-se de uma
possível atribuição de responsabilidade por essa decisão, quando oferece uma
justificativa, que atribui exclusivamente à filha essa atitude – “ela decidiu
que não ia (.) entendeu?” (linhas 437-438).
Após esse episódio, Sonia recorre novamente às fotos – “olha assim
como que ela tá:: aqui nessa foto por exemplo” (linhas 441-442)
para tentar negociar com Flávia a storyline, pois, como mediadora de conflito,
parece estar empenhada em construir, como já foi visto, uma storyline com
posições reconciliáveis. Flávia não legitima essa tentativa de Sonia com base em
fotos, demonstrando que seus argumentos são “irrelevantes” – “[isso é uma
foto isso aí não me] diz muita coisa não.” (linha 443). A conversa
termina com Flávia e Sonia em discordância quanto ao recurso das fotos como
prova de bom relacionamento entre pai e filha. Assim, passamos para o quarto e
último excerto de análise, o da 1ª SM, ocorrida entre Amir, Flávia e Sonia.
Vale lembrar que a mediação, e mais especificamente a 1ª SM, oferecia a
Amir e Flávia a oportunidade de estarem frente a frente pela primeira vez desde
a separação, mantendo trocas de turnos de fala contínuos, sem que um dos dois
deixasse a interação e sustentando, portanto, o envolvimento por certo período
de tempo. Só que agora seus papéis mudaram: não são mais marido e mulher,
mas sim ex-marido e ex-mulher e sempre pai e mãe da prole em comum. A isso,
sobrepõem-se também os papéis de mediandos.
194
0140 Amir = inclusive na- na- agora esses dias ela tava num: posto de
0141 saúde, ͦe eu fui lá oferecer pra-ͦ pra passar o cartão no- num
0142 médico particular pra ela poder ir-
0143 Flávia eu estava >no posto [(também)]↓
0144 Amir [ficaram ] as duas:: rindo::, fazendo um
0145 monte de bobeira, lá=
0146 Flávia = bobeira NÃO. [a íris tava con::]versando comigo.
0147 Amir >[fazendo careta e-].<
0148 Flávia ninguém fez careta.=
0149 Amir = tive que ir embora. [tava no lugar e tive] que ir embora.
0150 Flávia [ ninguém fez careta.]
0151 Amir [então é- é difícil]↓
0152 Flávia [ninguém fez careta]:.
0153 Sonia você já tava lá coincidentemente?
0154 Flávia coincidentemente, ninguém fez careta, a íris ficou nervosa,
0155 [ela: queria q- desconversar], ai a Iris começou a contar=
0156 Amir [ai tive que ir embora (sabe)].
0157 Flávia = >casinhos do colé:gio-< =,
0158 Sonia = uhum. =
0159 Flávia ela >começou a contar caso do colégio pra se descontrair<
0160 (.)ela estava se sentindo mal naquela situação. =
0161 Sonia = uhum. =
0162 Flávia = >porque o vitor correu, abraçou, ele só dá ideia pro
0163 Vitor::.<quando a íris parou de ir lá, ela tinha no:ve
0164 a::nos, ele NUNCA procurou, passou aniversário, passou TUDO.
0165 ele NU:NCA procurou ela, ele NUNCA foi no colégio procurar,
0166 ele procura o menino, mas não procura ela, ela só tem nove,
0167 ele tem trinta e tantos anos:.
0168 Sonia é: mas o seu amir tá- ta mesmo com algumas:: =
0169 Amir = > [é que as vezes vou pedir a::< =
0170 Sonia = < [ questõ::es, >
0171 Sonia = que ele [ele tá indo devagar em relação a isso]
0172 Amir [>vou pedir a psicóloga pra poder::<]ver se
0173 faz esse primeiro encontro aqui.
0174 Flávia Ah::
0175 Amir vou [pedir ajuda a ela] porque::-
0176 Flávia [eu falei também. ]
0177 Amir porque é difícil eu- eu ir de encontro: sabendo que alguém
0178 va::i (.) me agredi:::r. =
0179 Flávia = >[ela não vai te agredir]<.
0180 Amir = [vai me ofende:r, va:i-]=
0181 Sonia = o senhor ta dizendo:: fazer um primeiro encontro
0182 [ < entre o senhor e a iris? > ]
0183 Flávia [um primeiro encontro (e a [iris)]
0184 Amir [ é::],
0185 Sonia [uma boa ideia a do senhor.]
pior – “= ele men::te”. Em uma palavra, ela o exclui, o rejeita – “eu não
conheço essa pessoa aqui” (linhas 109-110). Em resposta, Sonia tenta
mais uma vez legitimar sua storyline de Amir, pleiteando a aceitação (uma
forme de inclusão) de Amir, com base em fatos irrefutáveis, apelando para o
caráter permanente e irrevogável do papel de pai – “não tem como FUGIR::
[esse é o pai dos meni]nos” (linhas 115-116).
A pergunta que deflagra o tema da relação de Amir com a filha é feita
de forma direta e “à queima-roupa” – “[ você é pai da íris? ]” (na
linha 117), uma pergunta polar (do tipo sim/não), que toca no tema rejeição
(exclusão) por meio do tema da paternidade. Em seguida, sem deixar tempo
para Amir responder, Flávia insere uma segunda pergunta – “você considera
a íris como sua fi:lha?” (linha 118), novamente uma pergunta polar.
Indiretamente, ela contém a acusação de Amir rejeitar (excluir) a filha, como
ficará evidenciado adiante. Agora, note-se que, se Flavia era quem rejeitava
Amir há segundos, agora cobra dele sua inclusão no eixo pai e filha.
Após uma breve intervenção da mediadora, controlando os direitos de
fala (linhas 120-124) e assegurando-os para Amir, ele responde à acusação com
uma provocação – “a não ser que você fa:le o:: contrário, mas
>parece que sou né” (linhas 125-126).
Agora, então, podemos ver aonde as perguntas de Flávia queriam chegar:
a um pedido de prestação de contas explícito a Amir pelo aspecto social da
paternidade – “e por que que você não liga mais pra íris?” (linha
127), e acusando-o indiretamente de ter excluído (rejeitado, abandonado) a
filha. Essa elocução aponta também para o caráter moral vigente: é o pai, adulto,
mais velho quem deve procurar a filha, criança, a quem não se pode atribuir
esse papel. No restante dessa conversa, veremos uma série de elocuções voltadas
para a prática de prestação de contas (accountability) em relação a esse tópico.
Amir dá uma resposta em que coloca o poder de decidir o encaminhamento da
relação na filha – “ela que não quer: conversar comigo.” (linha 128),
eximindo-se de qualquer responsabilidade sobre isso. Trata-se, na verdade, de
uma escusa (Sclott e Lyman, 1968).10 Ou seja, a filha é quem o exclui da relação.
Porém, essa storyline proposta por ele não é aceita por Flávia, que
intervém com uma nova pergunta – “[você procu]rou ela? (0.5) pra
conversar?” (linhas 132-133), reforçando a mesma ordem moral anterior e
é de novo um pedido de explicação. Amir apresenta novamente uma escusa –
“e:: as vezes que eu encontro com ela, ela desvia.” (linhas
134-135), atribuindo a responsabilidade à filha pela rejeição (exclusão), mas
esse argumento é rejeitado por Flávia, com uma justificativa – “é porque ela
ta[esperando que você] chegue nela.” (linha 137), o que demonstra
posições de direitos e deveres e atribui a responsabilidade a Amir pela iniciativa
de procurar a filha . Assim, são estabelecidas duas storylines em choque: “eu
197
não procuro porque ela me rejeita” (Amir) versus “Ela não te procura porque
ela está esperando você dar o primeiro passo” (Íris na voz de Flávia). Ou seja,
Flávia apresenta argumentos e evidências a favor de uma storyline oposta em
que Amir não faz os movimentos necessários para reconquistar o afeto da filha.
Sonia permite, nesse espaço de tempo, que as partes direcionem seus turnos de
fala um ao outro sem a sua intermediação.
Retoricamente, em seguida, temos um movimento importante, o de
dar evidências daquilo que se fala, o que Amir faz por meio de uma história
iniciada na linha 140 – “inclusive na- na- agora esses dias ela
tava num: posto de saúde, ͦe eu fui lá oferecer pra-ͦ pra
passar o cartão no- num médico particular pra ela poder
ir-”. Amir se coloca como protagonista de um gesto generoso – ir acudir a filha
em momento de dificuldade e de doença. É uma nova refutação da storyline de
Flávia e a evidência concreta em favor de seu argumento – o de que ele é bom
pai. Amir retrata Flávia e Íris como duas pessoas agindo no mesmo patamar,
isto é, a mãe aliada à filha na atividade de fazer pouco do pai – “[ficaram] as
duas:: rindo::, fazendo um monte de bobeira, lá=” (linhas 144-
145). O uso retórico da história pode ser visto claramente no ponto da narrativa
(Labov, 1972), quando Amir formula as consequências da situação – “tive que
ir embora. [tava no lugar e tive] que ir embora.” (linha
149), também na forma de uma escusa, porque transfere a responsabilidade
para filha e para a mãe, que desemboca em uma avaliação - “[então é- é
difícil]↓” (linha 151), novamente se referindo ao aspecto psicológico do fato
– sua dificuldade em lidar com essa situação.
A narrativa de Amir coloca Flávia em um papel errado, nos termos de
Goffman (1983), quanto ao seu dever de mãe para com a filha em sua relação
com o pai. De novo, há uma ordem moral: uma mãe não deve incentivar uma
filha a caçoar do pai. Discursivamente, se na sequência anterior era Flávia
quem fazia as perguntas e colocava Amir “na saia justa”, sempre na posição de
respondedor (via explicações), agora é ele quem a coloca nessa posição, ou seja,
o jogo se inverte, como podemos ver em uma série de explicações de Flávia –
“= bobeira NÃO. [a íris tava con::]versando comigo.” (linha
146), “ninguém fez careta.=” (linha 148, cuja elocução é repetida com
ênfase, mais duas vezes, nas linhas 150, 152 e 154), que rejeitam essa versão.
Aqui, podemos afirmar que “o clima esquentou”. A partir da linha 154, até
o final dessa sequência, Flávia inicia um relato com explicações (narrative
account) que trazem a voz da filha e funcionam como justificativas que realocam
a responsabilidade a Amir – “a íris ficou nervosa, [ela: queria
q- desconversar], ai a Iris começou a contar=” (linhas 154-
155) “>casinhos do colé:gio-< =” (linha 157), “ela >começou a
198
Discussão final
Notas
Referências
1. Introdução
4. Contexto e participantes
pela agente, traz uma performance intensificada desta projeção: “é deus na pessoa
de quem? na ↑minha pessoa”. Ao utilizar o pronome possessivo minha para
designar a pessoa através da qual Deus parece agir, e ao dar ênfase na entonação
neste recurso, a agente não apenas alinha-se ao discurso religioso, mas constrói-se
como a própria voz religiosa. O conteúdo da ação complicadora, nessa narrativa,
também sugere uma intensificação dessa projeção do eu ao descrever as ações
realizadas por ela para solucionar a situação-problema: a agente projeta-se, em
suas ações pessoais, tanto como agente de saúde, como também agente de Deus.
trabalhar↑ que aí você vai ver com quantos paus se faz uma canoa”) e que, agora,
configura-se como caso real.
No final da narrativa, ela retorna ao “eu” avaliativo. A avaliação externa
ao final (“gente falar da saúde e dizer que vai levar é muito fácil agora VAI pro
campo trabalhar↑”), através da escolha de verbos que representam o processo
cognitivo (“eu já sei”), o perceptivo (“eu já vi”) e o desiderativo (“que eu quero
dizer”), demonstra que a construção dessa avaliação é resultado de experiência
da própria narradora: “que aí você vai ver [...] essa reportagem antes”. Há assim a
projeção do eu avaliador crítico consciente, concebido por Duranti (2004) como
agência enquanto autoafirmação.
É possível observar a avaliação indicando o ponto desta narrativa que
remete também às dificuldades do trabalho das agentes de saúde do Instituto
Vila Rosário e é realizado explicitamente pelo uso de adjetivos, como fácil (em
oposição ao adjetivo difícil na Narrativa 1). O uso do vocativo (gente) também
sugere um uso estratégico deste recurso como performance narrativa, dirigindo
a avaliação diretamente à audiência como forma de apelo. Agência aqui remete a
ações em relação à responsabilidade social do grupo de agentes de saúde.
a sua narrativa e realizam a função avaliativa: “ao ponto↑ de eu botar sangue pela
boca↑” e “já era o pulmão↑ que tava saindo já”. A ênfase no cansaço causado
pela perda do pulmão também intensifica a dramaticidade da narrativa: “se eu
subir o ↑morro, eu eu fico cansada qualquer coisa eu fico cansada↓ ... tudo que
eu faço”, indicando o ponto – o tratamento errôneo na adolescência é a causa
dos problemas atuais. É importante ressaltar a subida de entonação (↑) em
alguns momentos, conferindo um ritmo também mais dramático na narração.
No turno 41, Adélia avalia a Dra. Vanda, sua última médica em Curicica:
“=então ela eu sei lá↑ ela é muito ruim eu não gostei muito não”, com a
intensificação do adjetivo pelo advérbio muito, a ênfase prosódica em ruim, e
sua opinião realizada pela dupla negação. Após a avaliação, a ação complicadora
revela que a Dra. Vanda foi também um dos motivos que a levaram a abandonar
o tratamento e a resolução apresenta o resultado dos eventos e a relação de
causa e efeito (a médica era ruim → não iria dar mais para ir → abandono do
tratamento): “aí ◦não fui mais◦, nem colhi mais sangue não”. Cabe destacar a
diminuição de volume ao declarar o abandono (“◦não fui mais◦”), mitigando a
agência da construção do abandono do tratamento.
Vemos novamente a codificação da agência avaliativa e de denúncia,
sobretudo, por meio da transitividade nas narrativas de Adélia, em que o eu
agentivo está subordinado à agência do outro, através das ações que prejudicaram
e continuam a prejudicar Adélia. Contudo, o Segmento 6 traz uma performance
narrativa com ênfase em recursos que aumentam a carga dramática dos eventos
narrados, pelas imagens construídas e pela prosódia. Adélia ainda apresenta a
estratégia evasiva com o uso do referente eles, que remete ao contexto macro
(o poder público). Entretanto, os médicos são os únicos nomeados em suas
narrativas, o que aponta para uma identificação mais direta com aqueles
que estão mais próximos de seu problema, embora as projeções dos médicos
nomeados não sejam ao todo positivas.
Considerações finais
Notas
4 <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=31109>.
Acesso em: 29 ago. 2011.
5 A pesquisa está relacionada ao projeto de pesquisa de Pereira (2009), Vila Rosário:
Práticas discursivas da comunidade e representação social na prevenção e educação
no combate à tuberculose e à dissertação de mestrado de Cortez (2011) Práticas
profissionais e discursivas de agentes de saúde no tratamento da tuberculose junto à
comunidade no Instituto Vila Rosário.
6 O Instituto Vila Rosário é uma organização não governamental, filantrópica, que se
originou da Sociedade QTROP de Química para o Combate a Doenças Tropicais.
No final de 1997, a Sociedade estabeleceu Vila Rosário - Duque de Caxias, como sua
área de atuação, buscando desenvolver um modelo de intervenção para o controle da
tuberculose (Costa Neto, 2003, p. 26).
7 O autor cita os trabalhos de Giddens, 1979, 1984; e Bourdieu, 1977, 1990, 2000.
8 “(1) Agency is here understood as the property of those entities (i) that have some
degree of control over their own behavior, (ii) whose actions in the world affect
other entities’ (and sometimes their own), and (iii) whose actions are the object of
evaluation (e.g. in terms of their responsibility for a given outcome).”
9 Tradução nossa.
10 Ver também Briggs, 1988.
11 O primeiro projeto é Vila Rosário: práticas discursivas da comunidade e representação
social na prevenção e educação no combate à tuberculose, coordenado por Maria das
Graças Dias Pereira, ao qual está vinculada a dissertação de mestrado Narrativas
como práticas de agentes comunitárias de saúde e de moradores de Vila Rosário:
práticas profissionais e discursivas no atendimento à tuberculose (2011), de Cinara
Monteiro Cortez; Vila Rosário: O discurso institucional e profissional na prevenção e
educação no combate à tuberculose, com as coordenadoras Clarissa Rollin Pinheiro
Bastos e Maria das Graças Dias Pereira. O segundo projeto é Vila Rosário: o discurso
institucional e profissional na prevenção e educação no combate à tuberculose, com as
duas coordenadoras anteriores.
12 A narrativa com o caso real foi analisada em Pereira e Cortez (2011, p. 90-92).
13 Em Curicica, situa-se o Hospital Raphael de Paula Souza – HRPS, para onde, em
geral, são enviados os casos mais resistentes de tuberculose detectados na rede
pública de saúde, especialmente os casos que precisam de internação.
Referências
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THORNBORROW, J.; COATES, J. The sociolinguistics of narrative. Amsterdam/
Philadelphia: John Benjamins, 2005.
Consumo e cidadania: exclusão e resistência em
audiências de conciliação
1. Introdução
4. O encontro da mediação
(l. 01-02), chamando assim, para si, funções próprias do papel da orquestradora da
atividade – a mediadora Vivian. Ele faz isso justamente buscando a comprovação
daquilo que daria ao consumidor Lucas o direito de reclamar: o documento
provando o cumprimento pelo consumidor do dever de dar ao comerciante o
prazo de 30 dias para resolver o problema apresentado pelo produto.
01 Flávia: bom, ô: seu Pedro eu não sei se você se inteirou na carta do que estava acontecendo.
02
03 Pedro: não, mas eu sei o que está acontecendo já faz tempo já a gente sabe
04 [o que está] acontecendo.
05 Flávia: [hum, hum]
06 Pedro: olha, nós fomos indicados pra prestar um serviço ( ) tá,
07 Sandra infelizmente, né.
08 Pedro: não, aí::você vai entra num[mérito que não vai ser julgado ].
09 Sandra [não, isso também não tem a ver ]( ).
10 Pedro: num va:i, é infelizmente, nós já temos( )que fala felizmente também. já tenho [dezesseis
11 anos ].
12 Flávia [n ã o, per]aí num vão, num vão entrar no mérito.
13 Pedro então fala pra ela. não deixa eu falar, ela já teve oportunidade de falar
14 Flávia hã hã, mas depois ela vai falar[também]
15 Pedro: [va:i] lógico.
16 Flávia deixa que ele fala agora depois( )
sua empresa pelo tempo de mercado (linha 11). Abre-se a partir daí um conflito
que dará o tom do encontro.
A mediadora intervém de forma fraca, mostrando-se despreparada para
mediar uma situação de conflito e orquestrar o próprio encontro. É o reclamado
(linha 13) quem lhe ensina a tarefa: “então fala pra ela. Não deixa eu falar, ela já
teve oportunidade de falar”.
A partir desses fragmentos, já se verifica que a mediadora não se apresenta
nem como tal, nem como porta-voz e defensora do consumidor; o reclamado
aproveita a oportunidade para dominar e manipular o script do encontro; a
consumidora não revela uma capacidade para se autoapresentar de maneira
apropriada ao tipo de atividade. A resistência da reclamante é apenas emocional.
A abertura anuncia, portanto, que a falta de habilidades comunicativas
relacionadas ao controle emocional e relacionadas a estratégias argumentativas
legais favorece a exclusão da consumidora do exercício eficiente da cidadania, o
que é agravado pela conduta interacional pouco efetiva da mediadora.
29 Flávio é
30 (1.3)
→ 31 Cristina aí amanhã se tiver um outro modelo o senhor compra de
32 novo a blóquia?
→ 33 ((Todos riem))
→ 34 Cristina tem que prometer [é i:sso aí::!]
→ 35 Maria [vai lançar:] vai lançar mais um
36 modelo, heim? ((rindo))
37 Cristina aí ó!
38 Roberto ta vendo?=
39 Maria =prepare-se[porque tem modelo novo]
40 Roberto [já tem modelos novos?] ((rindo))
41 Cristina cada dia diminuindo?
42 Joana mais, né?
43 Maria agora é a intenção. né? ((rindo))
44 Cristina eu acho que o dela é menor que o seu
45 Maria É
46 Cristina aí!
→ 47 Flávio depois de ler essa reportagem é que eu:
48 Cristina han?
mais elevada em que foi colocada, pois a reclamada aceita o poder decisório que
lhe foi conferido.
A mediadora reforça o tratamento do consumidor como pessoa ao falar
em sentimentos e não em direitos atendidos, quando ela constrói sua resposta
em relação à presteza da reclamada, ao dizer que o atendimento do pedido
“deixa um consumidor feliz::”, e também quando perguntou ao consumidor se
ele ficaria “satisfeito”.
Uma terceira e última ação da mediadora ratifica o enquadre de favor,
muito embora o faça dentro de uma conversa do tipo small talk, ocorrido no
tempo de espera da volta da reclamada, e através de um account. Assim, se,
como previsto por Mauss (1974), o favor prestado deve ser retribuído e pode
ser, por isso mesmo, cobrado, logo após uma pausa na interação de 1.3 minutos
(linha 30), a mediadora toma o turno, na linha 31, e cobra do consumidor
uma prestação de contas, pede-lhe o compromisso com a fidelização enquanto
cliente dos produtos da fabricante: “aí amanhã se tiver um outro modelo o
senhor compra de novo a blóquia?” (linha 31). Esse pedido da mediadora é
ainda reforçado pela solicitação de comprometimento explícito do consumidor/
reclamante para com a retribuição: “tem que prometer [é i:sso aí::!]” (linha 34).
O que se observa, nesse caso, é que a mediadora tenta estabelecer
aparentemente uma negociação do tipo “ganha-ganha” em que o consumidor
recebe o que deveria ser seu direito e a reclamada ganha em troca a fidelização
do cliente. O jogo do favor é endossado, numa fala justaposta (linhas 35 e 36)
àquele pedido de promessa de retribuição feito pela mediadora (linha 34).
Porém, ainda que todos os participantes, (linha 33), incluindo aí o
próprio consumidor, enquadrem o pleito da mediadora como uma brincadeira
(Abritta, 2007), o que se percebe, na troca de turnos seguintes, são movimentos
de resistência do consumidor em ratificar a definição imposta para a situação
como uma troca de favores. A todas as falas que incitam à fidelização, ele
responde com um silêncio que se estende pelos próximos onze turnos. Sua fala
só emerge (linha 47) quando ele muda o tópico da conversa e retoma uma fala
sobre uma reportagem lida.
Considerações finais
Notas
Referências
Introdução
1. Reflexões teóricas
A seguir, apresentamos o quadro de referências teóricas que guiaram
nossas análises, a começar pelo entendimento da instituição das prisões e
do mundo dos internos. Em seguida, em virtude dos sinais da disposição
estruturada e hierarquizada com que os internos se manifestam na condição
de apenados, reagindo contra o sistema prisional, dedicamos especial atenção
à formação de identidades de resistência, construídas sob fortes indícios de
organização coletiva. Prosseguimos com os estudos sobre a interação face a
face, a situação de entrevista e os estudos sobre narrativas, por constituírem
elementos fundamentais para a análise dos dados.
Nossa análise das narrativas dos apenados se faz com base em uma
perspectiva sociointeracional do discurso, entendendo que a fala é socialmente
organizada. Seguindo Goffman ([1964]2002), consideramos que a comunicação
interpessoal se faz em encontros sociais, orientados por um pequeno sistema
de ações face a face que está necessariamente articulado a condições sócio-
históricas e culturais. Dessa maneira, a fala de cada participante, impregnada
de valores, preconceitos, desejos, dúvidas e traços representativos de estruturas
sociais e de poder, contribui para (mas não define, necessariamente) o
desenrolar da comunicação estabelecida em um encontro social. Sendo assim,
o envolvimento de cada participante e a sua predisposição em participar das
entrevistas contribuem para a manutenção ou não da conversa.
Nesta pesquisa com apenados, consideramos a entrevista como um
encontro social, nos moldes de Goffman. Diferentemente do modelo tradicional
de entrevista, que adota questionários estruturados, fizemos, aos entrevistados,
sugestões de temas a serem desenvolvidos, que os levassem a apresentar histórias
de vida.
260
A narrativa vem ocupando um lugar cada vez mais central nos mais
diversos campos de estudo das ciências humanas e sociais. De acordo com
Bastos (2005), na “atividade de narrar, não apenas transmitimos o sentido de
quem somos, mas também construímos relações com os outros e com o mundo
que nos cerca” (p. 74). Nessa mesma linha de pensamento, Barbara Johnstone
(2001, p. 635) indica que a tendência do ser humano em dar sentido ao mundo
por meio da racionalidade transformou-se, de forma crescente, a partir da
metade do século passado, como uma tendência em contar histórias, dando
sentido ao mundo por meio de narrativas.
Observe-se também que, nos estudos da narrativa, a questão da
identidade é um tema frequente. Nesta pesquisa, interessa-nos a perspectiva
construcionista da identidade em narrativas, apresentada em Moita Lopes
(2001). Assim, De Fina (2006) analisa relações entre identidades e ações para
identificar a natureza das autorrepresentações de um determinado grupo, ou
seja, com base nas descrições que os indivíduos fazem de si mesmos e dos outros,
examina o efeito que a enunciação de pertencimento a uma categoria tem para
a ação social. É por intermédio de histórias que os narradores desenvolvem e
constroem autorrepresentações, ou imagens, sobre identidades coletivas.
Neste trabalho, utilizamos construtos do modelo clássico de Labov e
Waletzky (1967) e Labov (1972), observando os componentes estruturais da
narrativa por eles definidos, para analisar as narrativas das histórias contadas
261
2. Metodologia de pesquisa
fragilidade e desânimo. Estava bem mais magro, segundo ele, de acordo com o
seu peso normal antes de ter sido preso. João reclamou do pouco espaço para
praticar exercícios físicos, de estar sempre exposto ao contágio de doenças e
da fraca alimentação que os internos recebem no presídio. Também se sentia
incomodado por não poder implantar um dos dentes frontais, que perdeu em
um confronto físico. Informou-nos ter concluído o Ensino Fundamental, mas
não pôde dar continuidade aos seus estudos, por ter entrado no mundo do
crime muito cedo. Contudo, considerava ter um bom nível de instrução.
A entrevista foi realizada em duas etapas. Após o gravador ter sido
desligado, continuamos conversando informalmente. Ao percebermos que o
interno estava motivado a contar mais histórias, Liana perguntou se poderia
religar o gravador e João concordou. Porém, essa segunda etapa teve que ser
apagada, pois alguém entrou e falou alto o nome verdadeiro dele. O gravador foi
mais uma vez ligado e solicitamos que as histórias fossem recontadas. Tentamos
auxiliar João a se lembrar dos fatos narrados. Liana segurava o gravador e
conduzia a entrevista, mas Marcelo e eu estávamos livres para fazermos qualquer
pergunta ou intervenção.
A primeira etapa da entrevista durou aproximadamente 24 minutos. João
falou sobre sua família, seu primeiro delito, sua relação com o crime organizado
e a interferência do contexto prisional em sua vida. Na segunda etapa, com
duração aproximada de 7 minutos, o interno relatou as situações de perigo em
que ele esteve envolvido, sua vida amorosa e a consequente repercussão desses
acontecimentos em sua vida. As duas etapas da entrevista foram marcadas
por críticas e avaliações em relação ao poder público, mais especificamente à
atuação da polícia e aos órgãos governamentais, no que diz respeito à prevenção
do crime, aos programas sociais e ao processo de ressocialização dos apenados.
3. Análise de dados
Passaremos agora à análise de narrativas do apenado João que, como
veremos, integram sua história de vida. É importante esclarecer que, antes de
iniciar a gravação das entrevistas, tivemos uma reunião com os internos “faxinas”,4
na qual apresentamos nossa proposta de pesquisa e nosso interesse por suas
histórias. É possível que tal circunstância tenha estimulado as narrativas de João,
que tematizaram sua vida no mundo do crime e a sua condição de apenado.
As três narrativas que serão analisadas a seguir não foram apresentadas por
João, durante a entrevista, na ordem em que estão dispostas neste texto. Decidimos
organizar cronologicamente os acontecimentos de sua trajetória de vida conforme
indicações da época em que ocorreram, obtidas ao longo das falas do entrevistado.
Dessa forma, observaremos com mais clareza a sequência dos eventos (conforme
ordenação do narrador), a coerência e a construção de sua história de vida.
265
Excerto 1
1 Liana aquilo de:: grana mesmo?
2 João não. na realidade, eu entrei nessa vida aos catorze anos, quando eu queria
3 possuir uma moto... entendeu?=
4 Liana = tinha um tinha um objetivo. =
5 João = isso. sendo que a minha família por ter uma posição boa, e tal, eu achava
6 que eles tinham que me dar aquela moto. eles não quiseram me dar. e:: eu até
7 ir morar em um local assim:: tranquilo, sem muita criminalidade, mas... todo
8 lugar tem existe de uma forma ou de outra (di) diretamente ou indiretamente
9 existe, né? o crime. [ (que acontece?)
10 Liana [era comunidade?]
266
11 João é. próximo à comunidade. eu tinha um primo meu que já:: fazia, né? certas
12 coisas, tinha uns certos conhecimentos, foi onde ele me chamou pra realizar...
13 entendeu? um ato de crime.=
14 Liana = huhum=
15 João = aonde que:: eu consegui comprar essa moto, aí foi daí pra frente que eu dei
16 continuidade a essa vida...
17 Liana (aí foi uma bola de neve.)=
18 João = uma bola de neve. depois que:: já era, entendeu?
Excerto 2
1 Liana ° entendi.° e aí a a: última eu deixei por último assim pra ver se a gente ficava
2 mais à vontade, também porque eu tinha te pedido da outra vez, pra você me
3 contar a história de quando você foi foi: foi preso. a que tá no processo. não
4 precisa contar nada além disso, né? e: e aí você começou a me contar, você
5 podia repetir a história pra gente?
6 João (sim) fui preso, é: >onde eu fui cometer um crime<, lá (no lugar) onde eu fui
7 cometer esse crime, é: tinha um policial, mas infelizmente ele se sentiu
8 ameaçado, né? > de ver eu tar praticando o crime e estar lá< ele achou que eu
9 ia: >sei lá: tirar a vida dele, ou alguma coisa assim< coisa que não: que não
10 iria acontecer. ele me deixou=
11 Liana =você tava tranquilo↓
12 João não, eu tava tranquilo. sempre fui- eu sou uma pessoa tranquila, [uma pessoa]
270
Das linhas 1 a 5, Liana solicita que João reconte a história do crime que
causou a sua condenação. Sensibilizada pelo fato de que repetir a referida história
poderia lhe causar constrangimento, Liana esclareceu que ele não precisaria
fornecer mais informações além das que constam em seu processo penal.
Na linha 6, João iniciou uma narrativa na qual resume o ocorrido com
apenas duas palavras: “fui preso”. Em seguida, acelerou o ritmo da fala ao
introduzir a orientação. João não relata detalhes sobre a natureza do crime que
iria cometer, também não informa o local, ou o tipo de estabelecimento em que
atuaria. Com a aceleração na fala, usando termos genéricos, “onde” e “lá”, e a
fala não compreensível (linha 6), o apenado continua a evitar a introdução de
elementos que possam identificar as circunstâncias de sua ação criminosa. A
única informação mais precisa é que havia um policial no local (linha 7).
Ao introduzir a primeira oração narrativa “ele [o policial] se sentiu
ameaçado” (linhas 7 e 8), com a avaliação explícita “infelizmente”, João constrói
sua posição diante do evento. Na oração narrativa seguinte, “ele achou que eu
ia: >sei lá: tirar a vida dele, ou alguma coisa assim<” (linha 9), João supõe, pelo
uso das expressões “sei lá” e “ou alguma coisa assim”, que o policial “achou” que
ele, João, fosse tirar a sua vida. Também nesse momento, empregou um ritmo
acelerado para a sua fala. Em seguida, ele apresenta uma orientação (linhas 9 e
10), indicando que não iria atentar contra a vida do policial.
Neste momento da entrevista, Liana (linha 11) perguntou se João estava
“tranquilo”. Ao responder “eu tava tranquilo. sempre fui- eu sou uma pessoa
tranquila”, em uma estrutura sintática de repetição (“tava, sempre fui, sou
tranquilo”), ele resiste ao padrão criminoso do senso comum, frequentemente
identificado como um indivíduo nervoso, agressivo ou, supostamente, de índole
assassina. João não só informa estar tranquilo, como também desassocia o ato
do crime ao de um assassinato, premeditado, de um policial. Em processo de
coconstrução da narrativa, Liana solicitou uma informação sobre o local onde
ocorreu o fato, perguntando se era em um banco (linhas 13 e 14), e João se
negou a narrar mais detalhes, tornando a empregar a expressão “outra coisa”
(linha 15), não concedendo a informação solicitada.
Ao retomar a sequência da narrativa com “aí o que acontece↑...”, João
relatou que o policial tentou impedir sua ação, o que gerou uma troca de tiros.
271
Note-se que João não relata ter atirado contra o policial, mas que o policial
“não foi feliz” (linha 16). Ele encerra a narrativa com a coda “infelizmente ele
faleceu” (linhas 16 e 17), sugerindo que não ficou satisfeito com o desfecho da
experiência vivida.
Retomemos agora as orações narrativas em análise para observar como
João constrói a agência na sequência das ações:
1 - “ele [o policial] se sentiu ameaçado”;
2 - “ele achou que eu ia: >sei lá: tirar a vida dele”;
3 - “ele tentou me impedir”;
4 - “houve uma troca de tiros”;
5 - “onde ele não foi feliz.”
O sujeito das orações narrativas 1, 2, 3 e 5, “ele”, remete ao policial, e a
oração narrativa 4 é impessoal. Na orientação, João é, ainda, o sujeito gramatical e
o agente da ação: “onde eu fui cometer um crime” (linha 6). A partir daí, o policial
morto passa a ser o agente da ação. O narrador, e também autor do disparo
fatal, não se apresenta como o sujeito da ação. João transfere para o policial a
responsabilidade de não ter sido feliz no combate e, por essa razão, ter falecido.
Segundo Ewick e Silbey (2003), a resistência se realiza discursivamente de
diferentes formas, indo muito além da declaração explícita de crítica e rejeição
a um determinado estado de coisa. Em narrativas de resistência, segundo
as autoras, com consciência de oportunidade, os narradores muitas vezes
apresentam situações desfavoráveis revertendo-as em seu próprio proveito.
Parece-nos ser esse o movimento de João, que narra o evento como um combate
em que, agindo em legítima defesa, foi vitorioso ao final, ainda que lamente a
morte de seu oponente.
João demonstra ser um narrador habilidoso, que se utiliza de recursos
narrativos de resistência para contar como, após vivenciar muitos conflitos para
decidir sobre os caminhos de sua vida, adota o mundo do crime como forma
de sobrevivência na sociedade. Ele trata o mundo do crime como uma escolha
profissional, ameniza a violência da ação criminosa generalizando e obscurecendo
elementos contextuais e desloca a agência do crime para a própria vítima.
Excerto 3
1 Liana entendi. você:: é:: quê que você acha que a cadeia mudou na sua vida? assim,
2 na sua maneira de:: de enxergar o mundo?
3 João bom. a cadeia, ela me transformou em algo que eu não era.
4 Liana você esperava↑ que fosse ser preso =
5 João = nunca =
6 Liana = um dia? =
7 João = nunca. eu fazia minhas coisas e nunca imaginava que poderia ser preso. eu
8 achava que eu era intocável...
9 Liana Huhum
10 João entendeu? mas a cadeia, o que ela mudou em mim, ela me transformou em
11 algo, é:: como é que eu vou explicar? em algo que eu nunca pensei que eu ia
12 me tornar, entendeu? no sentido de quê? o governo, ele não está preparado,
13 nem tá capacitado pra:: ressocializar ninguém. entendeu? não está preparado.
14 então você chega num num complexo penitenciário, você é um jovem,
15 cometeu um delito, pequeno e tal... ou grande, dependente que às vezes é
16 forçado, entendeu? que às vezes >uma atitude que você vai fazer cê pensa que
17 é uma coisa, mas é outra,< então você acaba sendo forçado a cometer um
18 ato que você não queira cometer, MAS quando você chega aqui dentro, é:: a
19 forma de você se expressar muda, >a forma de você pensar muda,< por quê?
20 porque você tá em convívio com pessoas com mentes altamente criminosas,
21 altamente voltadas para o crime, entendeu? então você de uma certa forma
você <aprende MAIS>
22 Liana Sei
23 João você evolui aquilo que você tá vivendo. =
24 Liana = você fica sabendo. tem tem um saber de cadeia. =
25 João = [tem::
26 Liana [né? tem um conhecimento =
27 João = tem. maioria aqui, digamos que trinta por centro dos presos realmente
28 queiram se ressocializar, quarenta por cento. mas têm muitos que a revolta, o
29 massacre é:: no caso:: (3.0) as humilhações, tudo mais, os familiares passam,
30 alguma coisa assim,
31 Liana Huhum
32 João ... acaba revoltando alguns, né? algu algumas pessoas, e i:sso influi mui:to pra
33 ressocialização. por isso que não há- eu creio eu no meu ponto de vista que
34 não há condições de ressocialização, prendendo dessa forma =
35 Liana = quando o [cara passa pelo (presídio)
36 João [ que]
273
37 João isso. que a pessoa pague pelo que fez, tudo bem. <fez, paga, ótimo.> mas da
38 forma que paga, °entendeu?° da forma que paga, é que muda =
39 Liana = é sofrido, né? =
40 João = entendeu?
Considerações finais
ANEXO
Convenções de transcrição
... pausa não medida
(2.3) pausa medida
. entonação descendente ou final de elocução
? entonação ascendente
, entonação de continuidade
- parada súbita
= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas
sublinhado ênfase
MAIÚSCULA fala em voz alta ou muita ênfase
°palavra° fala em voz baixa
>palavra< fala mais rápida
<fala mais lenta> fala mais lenta
:ou :: alongamentos
[ início de sobreposição de falas
] fim de sobreposições de falas
( ) fala não compreendida
(palavra) fala duvidosa
(( )) comentário do analista, descrição de atividade não verbal
“palavra” fala relatada
↑ subida de entonação
↓ descida de entonação
Hh aspiração ou riso
hh inspiração
/.../ corte na transcrição
Notas
3 O professor Marcelo trabalha na escola que funciona no presídio onde foi realizada a
pesquisa. Evitamos dar mais detalhes sobre sua identidade, mas é importante destacar
sua colaboração no acompanhamento aos pesquisadores pelas dependências do
presídio e a sua representatividade perante os internos.
4 No segundo encontro com os internos, Julio e Liana se reuniram com o professor
Marcelo, que ajudou na convocação dos chamados “faxinas” (internos que representam
lideranças entre seus companheiros no presídio e auxiliam na organização do espaço
físico escolar), para uma conversa sobre a relevância do nosso projeto de pesquisa.
Esses apenados foram os mediadores da nossa proposta dentro do presídio.
5 A propósito de outros tipos de narrativas não canônicas (hipotéticas, difusas,
incompletas, etc.), ver Norrick, 2000; Georgakopoulou, 1997; Bastos 2005 e 2008.
6 As humilhações e o massacre, aos quais Goffman ([1961] 2007) se refere como
processos de mortificação do eu, não foram descritos por João nem por outros
apenados durante as entrevistas gravadas. Possivelmente, o medo de retaliações por
parte da segurança do presídio, por saberem que as informações seriam ouvidas pela
direção da instituição, inibia os internos em suas elocuções.
Referências
Introdução
professora de História da turma aceitou colaborar com nossa pesquisa, visto que
ela própria tinha inquietações relacionadas às questões de natureza identitária
e estava desenvolvendo o projeto Os outros com a turma. Ela tinha interesse
em trabalhar com os significados sexistas e racistas com os quais seus alunos
operavam; portanto, mostrou-se, desde o início, muito interessada no projeto.
Os alunos tinham entre 10 e 12 anos de idade e se encontravam na fase da
educação escolar em que o currículo começa a apresentar um número maior
de matérias ministradas por professores/as diferentes, o que acarreta outras
demandas cognitivas e vivências em práticas pedagógicas diferenciadas.
Tratava-se, portanto, de um momento de muitas descobertas e novidades,
inclusive sobre a questão da própria sexualidade, que, neste contexto, em geral,
vão ao encontro dos significados essencializados e biologizados do gênero
e da sexualidade, especialmente por serem frequentes no mundo evangélico,
um ramo religioso em franco desenvolvimento no Brasil, abraçado por muitos
alunos, professores e técnicos naquela escola. Não foram raros os comentários
de desagrado ou surpresa que a professora enfrentou de colegas sobre seu foco
em questões de gênero e sexualidade, inclusive alguns que a alertavam para
o perigo de algum/a estudante vir a entender a homossexualidade como algo
“normal”. Apesar disso, a professora não esmoreceu. Estava, de fato, ancorada
nos Princípios dos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Sexualidade, do
Ministério da Educação, assim como em textos da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do mesmo ministério e no Programa
Brasil sem Homofobia, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República; além disso, era movida, sobretudo, pela sua própria
vontade de construir outros significados para a vida social.
Com a permissão da diretora da escola, os pesquisadores e a professora
trabalharam em conjunto na elaboração de ações pedagógicas para o ano letivo,
que incluíam decisões não só quanto ao conteúdo curricular, mas também em
relação às atividades de sala de aula – possibilitadoras de “momentos queer”
sobre diferentes identidades sociais. Assim, a metodologia de pesquisa era
intervencionista e colaborativa e incluía instrumentos etnográficos como gravação
em áudio e vídeo e a elaboração de diários de campo de modo a poder gerar dados
que possibilitassem compreender o que estava acontecendo naquele contexto.
Dessa forma, foram decididos, por exemplo, os seguintes procedimentos
pedagógicos vigentes durante toda a intervenção:3
1. Reformulação do conteúdo das disciplinas da grade curricular,
abrindo espaço para temas e discussões inicialmente sobre sexua
lidades e gêneros; depois, sobre linguagem, cultura, raça, etnia, idade,
padrões de beleza etc. – temas que foram articulados, de alguma
forma, ao currículo oficial;
291
realizado de forma enfática, projeta uma posição assertiva do grupo, que confere
um grau de certeza para a resposta (linha 217).
Em seguida, quando a pesquisadora, mantendo o posicionamento
provocador, questiona a posição de convicção do grupo (linhas 218-219), Clara,
Maria e Eric, trabalhando em conjunto e se posicionando com pares mais
competentes, constroem a ideia de que o gênero é aprendido socioculturalmente
(linhas 220-234). O resumo da reflexão encaminhada que Clara faz ao final (230-
234) mostra como os alunos, em seus próprios termos, podem problematizar
conceitos biologizantes e essencializados sobre as diferenças entre os gêneros,
e gerar algum tipo de entendimento sobre a natureza socioconstrucionista das
identidades sociais.
Essas contribuições, referentes às experiências pessoais dos próprios
alunos, ilustram, assim, o seu engajamento em um processo reflexivo que os leva
a explorar práticas familiares envolvendo performances de gênero e sexualidade
e a abordá-las sob uma ótica menos estereotipada. Podemos dizer que uma série
de manobras e embates intersubjetivos rearranjou a rede discursiva habitualizada
desses participantes, constituindo outro mosaico de sentidos que, mesmo frágil e
momentâneo, sinaliza um alto grau de performatividade local. Podemos reputar
às “táticas de guerrilha” e aos posicionamentos desestabilizadores da professora
e da pesquisadora parte da responsabilidade pela dinâmica detectada.
Contudo, a relação não é de causa e efeito. Podemos dizer que o emprego das
ações estratégicas configura um tipo de andaimento (scaffolding) caracterizado
simultaneamente por apoio e desafio. Aquele ocasionava ratificação da voz dos
alunos, como é o caso da pergunta feita pela professora nas linhas 227-228,
que estimula a continuidade da reflexão sendo encaminhada pela turma. Este
consistia em “ataques” discursivos contínuos ao senso comum. O diálogo dessas
ações instigou certo alvoroço no repertório de sentidos habitual dos alunos,
cujos efeitos emergentes conduziram a turma focalizada a questionar, pelo
menos, localmente, sentidos naturalizados.7 Desse modo, os reposicionamentos
coletivos identificados, redescrevendo a sala de aula como um espaço de reflexão
crítica, figuram como uma entre muitas outras possibilidades de um fazer-dizer
diferenciado, mas que de forma alguma indicam resultados reproduzíveis em
contextos diferentes.
Notas
1 Não seria este o motivo pelo qual, nas eleições para prefeito (em 2008) de duas grandes
cidades do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) e de uma pequena (Juiz de Fora), a
possível bi/homossexualidade de alguns candidatos tenha sido usada pelos adversários,
em propagandas políticas, para criticá-los? Não seria essa uma reação raivosa sobre a
quebra de fronteiras ao parecer questionar nossos tempos em que se pode aventar a
possibilidade de votar em homens e mulheres homoeróticos/bissexuais?
2 Não seriam as narrativas tradicionais de masculinidades muito exacerbadas e
fechadas sobre o que os homens são e podem fazer-dizer em relação às mulheres
que continuam a conduzi-los à violência doméstica e aos crimes contra as mulheres
que a mídia não cansa de mostrar? Como desafiar tais narrativas é uma das tarefas
que temos de enfrentar em nossas práticas contemporâneas, sobretudo, no campo da
educação e da vida institucional em geral.
3 Essa é uma seleção de alguns itens do conjunto de procedimentos pedagógicos
listados em Fabrício e Moita Lopes (2010, p. 293-294).
4 Em relação a uma visão queer da raça, ver Melo e Moita Lopes (no prelo) e em relação
a uma visão desessencializada de língua e linguagem, ver Makoni e Pennycook (2007)
e Moita Lopes (2013).
5 Foram utilizadas as seguintes convenções de transcrição: (=) indica engatamento da fala;
[.] indica pausa breve e [...] pausa mais longa; ([) indica sobreposição de falas; sublinhado
indica ênfase e MAIÚSCULAS sinalizam ênfase acentuada; (parênteses) identificam
comentários do pesquisador ou sinalização não verbal e (@) refere-se a risos.
6 É interessante notar aqui os atravessamentos identitários de gênero e sexualidade.
7 Esse movimento já fora apontado em outro contexto de investigação (cf. Santos e
Fabrício, 2006).
Referências
Introdução
Naquele tempo a escuridão ia se dissipando, vagarosa. Acordei,
reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que
boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno
mundo incongruente.
(Graciliano Ramos, Infância)
1. Gesto teórico
ciências como “ciência piloto”, cujo método de descrição poderia ser abarcado
pelas ciências e garantiria a “verdade” ao descrever as estruturas. Entretanto,
para ocupar esse lugar, teve um preço a pagar: o apagamento da relação entre
linguagem e exterioridade, o que gerou uma imagem de homogeneidade no seu
objeto de estudo, a língua. Com isso, vemos, nas teorias com base estritamente
estruturalista, uma concepção de língua estável, transparente e descritível por
meio de métodos predeterminados, cuja tarefa básica do analista “consistiria em
revelar as leis internas de um sistema determinado” (Peters, 2000, p. 22). Essa
postura levou o campo da linguística à defesa da homogeneidade da língua,
como modo de garantir a cientificidade.
De acordo com Serrani-Infante (1997), um grande número de estudos
em Linguística Aplicada que aborda a questão da língua sustenta-se em uma
“concepção de sujeito intencional, indivíduo ‘dono’ de seu dizer’” (p. 1). Tal
sustentação, logicamente, traz implicações à concepção de língua adotada; em
outras palavras, se o enunciador é dono de seu dizer, pressupõe-se uma língua
transparente e controlável, seguindo sistematicidades preestabelecidas. Essa
ilusão, sustentada pelo discurso científico, leva a uma definição de língua como
um sistema fechado e unívoco.
As tendências logicistas e formalistas tendem a rejeitar o aspecto político
na discussão sobre a língua. Entretanto, para nós, essa questão parece central,
pois “tudo é político” (Arendt, 2006). Aqui, quando discutimos o político, não
o reduzimos às intervenções do Estado, mas o tomamos a partir de Hannah
Arendt, como acontecimento, como ruptura do previsível. “A política surge
entre-os-homens” (p. 23), no social; portanto, precisa da relação com o outro
para se efetivar e produzir seus efeitos. Com base nessa concepção de política,
podemos inferir que a identidade não é algo dado, mas se realiza no espaço
público da contingência, que é o espaço do ato político. Tendo em vista isso, a
relação dos enunciadores com a língua também passa por uma relação política
entre-os-homens que buscam gerir o seu uso e a sua circulação.
O reconhecimento da língua como heterogênea, em que se imbricam
os aspectos estruturais, subjetivos e sociais, permite um deslocamento nas
reflexões linguísticas. Para isso, será necessário o contato da linguística com sua
exterioridade, com outras áreas, sem, com isso, perder sua especificidade.
Para Pêcheux e Gadet (2004, p. 63),
depois de Galileu, Darwin, Marx, Freud... o que aparece com Saussure é da
ordem de uma ferida narcísica. Um saber aí se libera, o qual, sob o peso do
que a ciência da linguagem acreditava saber, a obcecava sem que ela aceitasse
reconhecê-lo: a língua é um sistema que não pode ser fechado.
2. Gesto analítico
que seja “uma” língua. Destas, vale destacar que, no século XIX, ganha impulso
um processo de imigração em massa de europeus para o Brasil, em virtude da
abolição da escravatura e da necessidade de constituição de uma nova mão de
obra. Eles trouxeram consigo sua cultura, sua língua e seu sistema educacional.
Em especial, os alemães que não aderiram ao sistema público de ensino
brasileiro, por considerá-lo ineficiente, e criaram suas próprias escolas, seus
métodos de ensino e seus materiais didáticos (Luna, 2002, p. 63).
Historicamente, a convivência dos imigrantes, e de seus descendentes,
em grupos relativamente coesos e o isolamento de suas colônias em relação aos
demais centros de povoamento, nas primeiras décadas do processo imigratório,
contribuíram para a manutenção dos dialetos, sobretudo em regiões rurais.
Ajudaram, também, a manter o espírito que fazia com que as pessoas se
considerassem vinculadas a uma Nação e não, necessariamente, a um Estado
(Arend, 2001). Para promover esse imaginário, “escolas e igrejas são fundadas,
em nome da preservação da identidade religiosa e linguística” (Magalhães,
1998, p. 41).
Entretanto, a interdição oficial de algumas línguas estrangeiras no Brasil,
durante o Estado Novo (1937-1945), sob a influência do nacionalismo, inibiu
a prática dessas línguas tanto nas cidades (sobretudo na imprensa escrita e nas
escolas), quanto na zona rural. Foram realizadas campanhas de nacionalização
do ensino primário, com o objetivo de criar um sentimento de brasilidade entre
os imigrantes.
Algumas leis específicas tiveram papel importante no processo de
silenciamento das línguas alóctones e na produção de um imaginário de país
monolíngue:
• Decreto Lei 88 de 31 de março de 1938 - obrigava as escolas parti
culares a terem autorização do governo para funcionar sob uma série
de regras que previa a não permissão de uso de outras línguas que a
Lingua Portuguesa;
• Decreto Lei 1.006 de 30 de dezembro de 1938 - proibia a produção
de livros didáticos não escritos em Língua Portuguesa;
• Decreto-Lei nº 124 de 18 de junho de 1939 - cria a “Inspetoria Geral
das Escolas Particulares e Nacionalização do Ensino”, e também cria
a “Liga Pró-Língua Nacional”;
• Decreto-Lei 3.580 de 3 de setembro de 1941 - proibia a importação
de livros didáticos para o ensino primário; o fechamento de escolas
particulares administradas pelos imigrantes, as quais foram substi
tuídas por escolas públicas (mais ou menos 2.000 escolas).
Assim, ocorre, por efeito, um gradual silenciamento dessas populações
pela interdição do uso da língua materna do aluno (Luna 2002, p. 71). Vale
destacar que essa discursividade sobre a nacionalização e a interdição da língua
309
(RD1)3 todo final de ano eu ia para Curitiba, então lá eu ficava 40, 60 dias
então foi uma experiência bem legal, só que eles riam que nem fosse os meus
“r” eu falava “caro”, “caroça”, “tera” e eu, é do jeito que o povo daqui fala
mesmo e a gente usa bastante o tu vai, trocando o verbo e o pronome, então
isso eu tive que ir me criticando sozinha e mudando. [...] teve uma menina
que estudou comigo praticamente a vida inteira, ela era de Porto Alegre,
então, no começo ela ria da minha cara mas dizia: não, mas não é assim que
se fala, é assim que se fala, aí ela me corrigia e foi com ela que eu aprendi a
me autocorrigir. Então hoje, eu me considero assim que eu não “falu” um
português assim perfeito, um português padrão, mas que falo bem melhor
do que eu falava. (T5, p. 3)
(RD 2) Língua materna é aquela que nasce com a gente / no meu caso é
aquilo que eu falei / nasceu com o meu pai // ele aprendeu essa língua e // veja
bem // a mãe dele também veio da Itália / ele é descendente de italiano // mas
ele não aprendeu a língua italiana / porque ela veio pra cá e aqui / na época,
era proibido falar outra língua / então ela aprendeu a falar / os meus avós
aprenderam a falar português e ensinaram os filhos a falar português // então
a /// eu diria que a língua materna do meu pai /// ela tem uma mistura de
italiano com português / porque foi um período de transição / de mudança
de língua da minha avó. (E6; p. 1)
encontramos na superfície da fala”. Nos RDs, ela não foi esquecida ou silenciada,
apesar de gestos de interdição que pretenderam apagar os sentidos para formar
o “um”, mas o que era para ser apagado acabou reforçado, como desejo.
Esses sentidos da história ressoam nos efeitos de memória do enunciador,
como podemos perceber no exemplo a seguir:
(In)conclusões
Notas
1 Criar bordas não significa criar linhas fixas; ao contrário, implica a porosidade e o
movimento do entre, do contato, do hibridismo, do entrelaçamento.
2 Quando abordamos o “eu”, neste texto, referimo-nos à construção imaginária de si
(moi), à cristalização de imagens ideais com as quais o indivíduo se identifica.
3 A sigla RD corresponde a Recorte Discursivo.
4 Referimos, nesse jogo de significantes, à impossibilidade de a linguagem recobrir o
Real, algo sempre escapa, falha, falta; por isso, ao falar, a falta se instaura.
Referências
Solange M. de Barros
consistiria apenas de indivíduos, mas da soma das relações dentro das quais
os indivíduos se situam. A emancipação envolveria, na visão desse pensador, a
transformação do próprio indivíduo. Ao organizar filosoficamente o Realismo
crítico, Bhaskar (1998, p. 410) sugere uma proposta emancipatória: (i) conhecer
os reais interesses; (ii) possuir habilidades e recursos, e oportunidade de agir
sobre eles; (iii) estar disposto a fazer isso. Essa proposta oferece uma promessa
para a ciência social, uma vez que apresenta condições para a emancipação, pois
os mecanismos que geram um problema poderão ser removidos ou bloqueados.
A socióloga e também realista crítica Margaret Archer (2000, p. 7)
argumenta sobre a necessidade de compreender as propriedades e os poderes
dos seres humanos; como eles emergem através de nossas relações com o
mundo, que não podem ser construídas apenas como “sociedade”, “linguagem”,
“discurso” e “diálogo”. Uma das mais importantes propriedades que nós temos,
conforme a autora, é a de nos conhecer, e isso depende da prática do diálogo
na sociedade. Para Archer (2000, p. 318), cada um de nós precisa descobrir-se
através de práticas do “diálogo interior”, distinguir o “eu” e a “diversidade”, o
“sujeito” e “objeto”, antes de chegar à distinção entre o “eu” e “outras pessoas”.
O “diálogo interior” não seria apenas uma janela sobre o mundo, e, sim, o que
determina o nosso “ser no mundo”. O mais importante, para ela, é conhecer-nos
profundamente.
Nessa linha de raciocínio, o sociólogo Touraine (2004, p. 14) assegura
também que, se quisermos compreender o mundo, “é preciso que compreendamos
melhor a nós mesmos”. O nosso ideal é o de libertação do sujeito pessoal,
com capacidade de refletir sobre si mesmo para poder reconhecer-se na vida.
Conforme esse autor, a relação do sujeito consigo mesmo “é mais fundamental
do que a relação do sujeito com o outro”(p. 118) e essa relação não pode ser
abolida.
Assim como o pensamento dos sociólogos, o “mito da caverna” também
nos convida a refletir sobre a transformação dos homens e da sociedade, bem
como nos faz aspirar, como formadores de educadores de línguas, a um mundo
mais humano e solidário. Apesar dos avanços já conquistados na área de
formação de educadores de línguas, há ainda muitas algemas que nos fazem sentir
incapazes de mover, em virtude dos grilhões. Conseguiremos alcançar o ideal
de uma sociedade fraterna e justa? Como formadores de educadores de línguas,
seremos capazes de nos libertar das pressões da sociedade? Conseguiremos ser
mais felizes nesse novo paradigma de “modernidade líquida”?
Pensar na formação de educadores de línguas, sob o viés emancipatório,
é refletir sobre o reconhecimento de quem somos nós e como é a relação do
nosso “eu” interior com o mundo exterior. Sabemos que existe uma realidade
independente do conhecimento que temos sobre ela. Contudo, se não formos
320
conta não apenas as questões de sala de aula, mas também o contexto social
mais amplo. De acordo com esses autores, a formação de educadores críticos
envolveria três níveis de reflexão: (i) estrutura interna; (ii) relações microssociais;
(iii) relações macrossociais.
No primeiro nível – estrutura interna –, ao educador crítico cabe voltar-
se para as questões atinentes a valores humanos, emoções, sentimentos etc. Para
isso, ele precisa engajar-se em projetos sociais, por meio de um ato de vontade.
É relevante também comprometer-se com as causas sociais e reconhecer que as
mudanças não podem se dar apenas na consciência, mas, fundamentalmente,
através da ação, num exercício coletivo de solidariedade.
No segundo nível – relações microssociais –, o educador crítico deve
envolver-se com questões inerentes à sala de aula, identificando os problemas
que afetam a aprendizagem em sala de aula. Feito isso, deve saber compreender
suas causas e seus efeitos,propondo atividades práticas que removam os
obstáculos apresentados em sala de aula.
No terceiro nível – relações macrossociais –, o educador crítico deve saber
olhar para além dos muros e portões que se fecham em torno da escola. Nesse nível,
é fundamental considerar questões mais abrangentes, inerentes aos problemas
vividos pelos alunos, como a violência, o abuso sexual, a discriminação racial,
a homofobia, que devem ser inseridos em projetos vinculados ao currículo da
escola, arquitetados por todo o corpo docente. Além disso, faz-se necessária
a participação dos professores em grupos de estudo sistematizados na escola,
posto que esses grupos são cruciais para fomentar frutíferas discussões acerca
dos problemas vividos no cotidiano da escola.
Esses três níveis de reflexão poderiam contribuir para unir a estrutura
social escola com as estruturas mais amplas de poder, com o objetivo de haver
ações efetivas e coletivas, que resultassem em mudanças significativas para os
envolvidos nesse processo. Assim, a comunidade escolar conseguiria promover,
além da consciência crítica, um sentido de responsabilidade social.
Mariza: As atividades com eles que eu trabalho ... essa coisa de honestidade...
tanto com eles quanto eu...eles têm mania de pegar folha de caderno ...
esconder... eu falo gente... comigo professora ... eu escrevo meu nome ... não
esconda folha de caderno... pede pra mim que eu aviso para o orientador
...vocês estão aqui para ser recuperado... vocês continuam roubando ... não
quero ninguém pegando folha escondido [...]
entre eles. Esse tipo de atitude parece ser uma prática social cotidiana na sala de
aula. Ao se referir à avaliação, Mariza afirmou:
Se eu falo oh Breno amanhã eu trago sua avaliação corrigida... eu trago...
nem que eu não durma a noite mas eu tenho que cumprir com ele pra
mostrar que eu tenho palavra com eles... então eu trabalho isso aí [...]
Mariza usa frases afirmativas como “eu trago”, “eu tenho palavra” para
reforçar a sua honestidade perante os alunos. Ao dizer “eu tenho que cumprir”,
a professora utiliza a modulação “ter que”, pois quer cumprir o prazo estipulado
por ela mesma, para a entrega da avaliação. A atitude dela nos remete, conforme
Bhaskar (1998, p. 410), ao nível de estrutura interna, posicionando-se como
uma educadora que deseja engajar-se em ações de responsabilidade solidária
por meio de um ato de vontade. Seus enunciados desvelam comprometimento
com esses jovens. Ela reconhece a necessidade de trabalhar os valores humanos,
colocando-se como protagonista da experiência cotidiana da sala de aula, para
os alunos compreenderem que a honradez é um valor que deve ser exercido
plenamente pelos cidadãos.
Com uma postura semelhante, a professora Leda expõe o que faz com os
alunos antes do iníco das atividades na sala de aula:
Ao entrar na sala de aula eu converso ... não tem como você chegar e começar
com o conteúdo com ele ...primeiro eles querem ouvir o que o professor tem
pra eles... entendeu? e muitas vezes não é nem professor... eles querem falar
com a Leda... eu quero falar com a Leda... porque eu chego neles eu pego na
mão dele... outra hora eu passo a mão nele... porque é uma afetividade... às
vezes tem que fazer isso [...]
...eles querem dar a mão ... aí tem uns que passam assim né? ... aí você vai lá
próximo deles... eles adoram... adoram... primeiro lugar vocês têm que ver
eles como uma pessoa humana ... porque eles estão ali dentro... eles acham
que estão fora ...que eles não fazem parte da sociedade... aí sim... aí você
começa como a Leda tocou ... aí funciona [...]
Notas
Referências
HOMANS, G. Social behavior: its elementary forms. New York: Harcourt, Brace,
1961.
IANNI, O. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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profissional político. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 59-85.
PAPA, S. de B. O Professor reflexivo em processo de mudança na sala de aula de
língua estrangeira: caminhos para a autoemancipação e transformação social.
Tese (Doutorado) – LAEL/PUC/SP, 2005.
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ZEICHNER, K. 1992. El maestro como profesional reflexivo. Cuadernos de
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Marcas identitárias de professores e de adolescentes
das Unidades Educacionais de Internação (unei)
sul-mato-grossenses: vozes silenciadas e resistentes
Introdução
Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
de qualquer coisa. [...]: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se
cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que
não cessa de se modificar. (Foucault, 1998, p. 9)
R (2): “olha, a gente sempre busca falar de coisas saudáveis, a gente sempre
tá buscando uma transformação neles...a gente não alcança em todos [...]
a gente não vê eles como bandidos, a gente vê eles como aluno... você
incentiva eles a estuda... incentiva eles a ir pra frente... eu acho que isso ajuda.
Eu não posso falar bandido né, eu tenho que falar infrator, então a gente
acaba incentivando eles para que quando eles saírem daqui eles se tornem
melhores... isso acaba ajudando a sociedade.” (P2)
[...] a gente não vê eles como bandidos [...] não posso falar bandido né”, por
dupla negação/afirmação, pela denegação, o sujeito aponta outros sentidos, pré-
construídos, marcas do interdiscurso no intradiscurso: “a gente não vê” e “eu
não posso falar” (Authier-Revuz, 1998, 1990), ou seja, eu o vejo “como bandido
e a sociedade também”, mas esse dizer não está na “ordem do discurso”: isso não
pode ser dito nessas condições de produção.
Nessas diferentes formas de defesa, emerge uma falha da ordem da
linguagem que vem do seu inconsciente, em face do que deve ser negado,
escondido, rechaçado. Para a Instituição, lá dentro funciona uma “escola normal”,
e os adolescentes devem ser vistos como alunos. Tal ato falho é explicado por
Scherer (2006, p. 44) a partir da leitura de Lacan: “um ato falho, de fato, não é
falho, mas um ato bem-sucedido porque desvela uma verdade do sujeito”, e esse
ato falho é a marca de que o sentido se constitui historicamente e movimenta
uma rede de filiações que permanecem existindo mesmo quando da escolha de
outro significante. Assim, nesse espaço, emerge o lapso produzindo a falha, o
“buraco” no discurso.
No enunciado “Eu não posso falar bandido”, com o uso do auxiliar
deôntico “posso” relacionado a uma não permissão, e em “eu tenho que falar
infrator”, ele tem a ilusão de se colocar como sujeito do seu discurso pelo
emprego do pronome na primeira pessoa, seguido do auxiliar deôntico, que
indica obrigatoriedade, “tenho”, desvendando o discurso da Instituição/Escola
(diretor, coordenador e agente socioeducativo), que se refere aos adolescentes
como “internos” ou “infratores”. Mas, afinal, quais os sentidos da palavra
“infrator”? De acordo com o Houaiss eletrônico (2009), “infrator” é aquele que
infringe, em que o valor é de adjetivo, qualificador que equivale a “desobediente,
“violador”, “transgressor”, “desrespeitador”.
Também o relato de (P3), no Recorte (3), é perpassado pelo discurso
do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) e do Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE) (Brasil, 2006) – o discurso da
ressocialização: a “missão” das medidas socioeducativas é a reinserção do
adolescente na sociedade, sustentada nos princípios dos direitos humanos e
da ética (Nascimento; Moretti; Bonfim, 2011). Segundo Volpi (2010, p. 14),
esse processo de ressocialização se dá “a partir de um conjunto de ações que
propiciem a educação formal, profissionalização, saúde, lazer e demais direitos
assegurados legalmente”. Esse professor tem o desejo da “recuperação” dos
alunos, ao contrário da professora de Língua Inglesa pesquisada por Reis (2011),
pelos dizeres “pessoas que já aprontaram... jovens que já mataram... jovens que já
roubaram... jovens que estupraram...”, pois, para ele, é possível a (re)integração,
se é que se pode falar dessa forma, uma vez que a família, com o passar dos
tempos, sofreu profundas alterações “mutiladas por feridas íntimas e violências
341
R (5): “olha, é assim... engraçado porque eles não são muito de se ajudar
não... eles não gostam que o outro olha a resposta... que vê eles querer
morrer se um copia e a resposta estiver igual... eles acham isso o fim... eles
não gostam de dividir.” (P2)
No Recorte (4), o professor diz que eles “interagem”, o que pode significar
que eles se relacionam de forma satisfatória e há atividades compartilhadas em
sala de aula; porém, ao usar o verbo auxiliar “procuram”, na terceira pessoa do
plural, ele se coloca fora desse processo interativo, tornando-se assujeitado pelo
discurso da Escola e da UNEI. Ainda quando (P1) diz que “eles interagem”,
ancoramos nossa reflexão nos pressupostos de Cardoso (1999, p. 53) por afirmar
que “qualquer ambiente pode ser mais reprodutor que transformador de ideias e
de sujeitos, por meio da interação entre os participantes. Portanto, a construção
da identidade vai acontecer na interação com o outro quando há interlocução
entre alteridade e identidade”.
Já (P2) manifesta diversas vezes que os alunos não gostam de ajuda
mútua; nesse caso, existem contradições, por emergir o efeito de sentido de que,
enquanto um professor tenta reproduzir o discurso da Instituição, o outro não o
faz; tenta mostrar como é a prática em sala de aula, escapando ao controle feito
pela Escola e pela Instituição UNEI, ou seja, foge do discurso que está na “ordem
das leis”. O discurso de (P1), portanto, é ao mesmo tempo controlado, selecionado
e pode ter como função conjurar seus poderes e perigos. Sobre interação, de
342
R (9): “eu acho que menino é igual em toda parte... adolescente... de uma
forma geral... são iguais... o que diferencia esses meninos dos lá de fora
é que o processo de aprendizagem deles é mais lento por uma série de
problemas que eles têm... então às vezes você não avança muito em questão
de conteúdo porque você fica meio parado porque você tem que ir e voltar
várias vezes... eles não têm uma compreensão como muitos lá fora têm...
então... assim... o trabalho fica meio truncado... mas enquanto assim... não
tenho medo de trabalhar com eles... gosto de trabalhar com eles... procuro
não ver nada de errado que eles fizeram porque aqui é sala de aula e o
que conta é a aprendizagem... só não é fácil nesse aspecto... uma coisa que
parece simples e eles têm muito dificuldade em responder... em entender...
de compreensão... mas é porque falta leitura... falta escolaridade... muitos
saíram da escola muito cedo... então tem tudo isso... mas não é difícil... é
tranquilo trabalhar aqui... só não avança muito”. (P2)
lado de uma “ótima rotina que os ajuda a refletir sobre os atos praticados”,
além de se sentirem “capazes pelo fato de proporcionarmos o aprendizado de
profissões que poderão incentivar esses a deixarem a vida do crime por uma
existência digna”.
Nota-se, também, que o professor estabelece uma oposição entre “lá”
(escola regular de ensino) e “cá” (escola da Instituição UNEI), em que o método
de abordagem é o tradicional: “você não avança muito em questão de conteúdo
porque você fica meio parado porque você tem que ir e voltar várias vezes”. É o
discurso do ensino tradicional focado no produto, no livro didático, conteudista.
Para Grigoletto (1999, p. 69), o livro didático é o “discurso da verdade”, e “o
aluno não é concebido como um sujeito que deva ser informado sobre os
propósitos de cada atividade ou de cada texto [...]”. Essa abordagem contraria as
orientações dos Parâmetros, em que se pretendeu eliminar costumes do ensino
tradicional, como não considerar a realidade e o interesse do aluno, valorizar
excessivamente a gramática normativa e usar o texto como expediente para
ensinar valores morais (Brasil, 1998, 1999).
Sobre essa questão, Geraldi (1993, p. 119) comenta que “confunde-se
estudar língua com estudar gramática”, e ainda a escola esquece que o aluno
traz para a escola “[...] o conhecimento prático dos princípios da linguagem”;
ou seja, possui uma gramática internalizada, um sistema de regras que formam
a estrutura linguística. Por isso, pretende-se que se ensine a língua e não a
gramática, pois a língua constitui “um dos meios para alcançar o objetivo que se
tem em mira” (p. 121), conforme previsto nos PCN (Brasil, 1998, 1999).
Quando (P2) diz que os alunos têm “dificuldade em responder... em
entender... de compreensão... mas é porque falta leitura... falta escolaridade...”, o
uso dos verbos “responder”, “entender” e “compreender” e os dizeres “tem que ir
e voltar várias vezes”, “só não avança muito” e “eles não têm uma compreensão
como muitos lá fora têm” silenciam como se dá o processo ensino-aprendizagem
de leitura e de escrita naquela escola, que não ocorre, por sua vez, fora da
historicidade que marca o processo interativo dos alunos com a linguagem. Sabe-
se que o processo de compreensão vai acontecer na relação entre o sujeito que
produz e interpreta a linguagem pela materialidade linguística perpassada pela
história e ideologia. Para Coracini (2007, p. 11), “urge redefinir a aprendizagem
[...] como um processo que se dá no corpo do sujeito constituído na e pela
linguagem, sujeito do inconsciente, múltiplo e cindido”. Nessa óptica, o ensino
de língua portuguesa deveria centrar-se na leitura, compreensão, interpretação
e produção de textos; porém, muitas vezes essa prática torna-se artificial, uma
vez que esse aluno não se coloca como sujeito do seu texto, sua escrita é dirigida
ao professor, almejando a nota, não aparecendo aí o imaginário do sujeito, a sua
singularidade.
345
R (12): “Uai é gente fina né, ajuda nois né se a gente erra... às vezes a gente
num tá entendenu alguma coisa ele explica certo, como que é, atencioso... ele
deixa a gente dá a nossa opinião, ele ouve também, que cada um tem a sua
opinião né, ele é bem legal, ela num é chato não.” (A12)
aquele sujeito que “não consegue descrever o seu real ou como gostaria de se
mostrar para o outro”, sendo visto como uma “nova construção de si”, uma vez
que se trata de identidade “cindida” e “fragmentada”.
A partir desses dizeres, recorremos também às reflexões feitas por
Scherer (2006), para quem a voz é marcada pelas identificações e o sujeito é
marcado pelo que ele é e pelo que ele pode falar pela voz. Assim, “se se mostrar
pela voz, a partir das marcas discursivas, é estar situado geograficamente e
discursivamente, é também ter uma existência individual em uma coletiva, e
é o que vai constituir a historicidade de um discurso e de um sujeito” (p. 19).
A relação de poder está presente também quando questionamos o adolescente
“como se vê enquanto estudante”:
R (13): “Ah eu tenho que ouvi né, sou aluno dele, num posso fazê nada de
errado, vô apenas ouvi ele que ele vai me ensiná”. (A5)
R (14) : A verdade... na verdade eu não gosto de estudá... é... porque sei lá...
eu acho meio cha:::to acordá de manhã... esse é meu pobrema... eu não gosto
de acordá de manhã...
P: você vem na escola todo dia? Vem... mas quando eu to ruim assim... aí...
eu peço remédio... aí eu entro pra dentro... P: e todos vêm todo dia? É quando
num tá doente vem né... (A1)
R (16): Ah!!! ((breve silêncio))... eu num... num tem nem como falá isso
não! (A4)
348
Algumas reflexões
Notas
5 Os trechos estão organizados por recortes (R1, R2, R3...) e os grifos foram feitos por
nós, conforme os nossos objetivos.
6 Indivíduo que tem a autoridade para comandar ou coordenar outros; pessoa cujas
ações e palavras exercem influência sobre o pensamento e comportamento de outras,
segundo o dicionário Houaiss eletrônico da Língua Portuguesa, 3.0, 2009).
7 O coordenador pedagógico estava sentado de costas, voltado para o computador,
enquanto o professor nos concedia a entrevista e, nesse momento, ele se vira com
uma postura firme e uma fisionomia séria e pronuncia tais enunciados, como se fosse
um aviso, um alerta ao professor.
8 Consultar a dissertação de mestrado desenvolvida por Douglas Pavan Brioli (2009) e
Brioli; Nascimento (2010).
9 Apesar de sabermos que os alunos são avaliados pelos professores/coordenadores/
escola, houve regularidade entre os adolescentes ao silenciarem, talvez por temerem
a repressão da Instituição, ou por usufruírem do direito (legal) de se manterem em
silêncio para não produzirem provas contra si. Estratégia de poder, portanto.
10 O castigo, dependendo da atitude praticada, pode ser a suspensão do uso do telefone
para falar com a família ou a permanência na cela “solitária”, um espaço pequeno e
fechado.
11 Com dificuldade, a custo, mal; somente, unicamente, exclusivamente (Houaiss,
2009).
Referências
Izabel Magalhães
1. Introdução
Professor José
(a) Sou formado em Educação Física né [...] Não fiz uma pós-graduação,
acho que eu tenho que fazer, não fiz um Mestrado e muito menos um
Doutorado, acho que é importante, mas a gente acaba se acomodando
[...] então foi um curso já de 200 horas, mas não era um curso a nível de
pós-graduação né [...]
(b) Você não encontra muitos cursos específicos pra atividade do EE
[Ensino Especial] isso aí é nossa realidade, a gente faz um curso pra
clientela normal, pra atender a criança, o adolescente normal, aí você
tem que adaptar esses cursos, essas atividades que não são passadas pra
atendimento da criança especial né. Funciona muito assim [...]
Dentro da área de Educação Física específica, nós fazemos várias
atividades, nós temos uma atividade anaeróbica, ou melhor, aeróbica,
que seria uma atividade de caminhada que nós fazemos nas mediações
da escola, nós fazemos fora da escola, então quer dizer nós temos
contato direto com a nossa vizinhança, então é uma atividade que a
gente faz colocando nosso aluno em contato é (p) a fim de melhorar né
essa socialização do aluno e também de mostrar que esse aluno, que esse
deficiente existe né, então tem essa atividade de caminhada, nós fazemos
uma atividade na piscina [...]
Veja bem a gente faz a leitura, acho que a leitura é importante em todos
os aspectos, ela não tem só esse sentido em relação a minha atividade
específica profissional, é uma leitura ampla, é uma leitura como eu te
disse em todos os níveis (p) repetindo a questão da Olimpíada a gente
monta um mural aqui na escola das Olimpíadas, monta mural traz pra
cá quer dizer uma coisa que acontece, a gente tinha um mural, como
aconteceu no Pan (Americano), então quer dizer (p) a gente traz aquilo
pra dentro pra que as crianças, os alunos tomem conhecimento de uma
forma ou de outra, independentemente de eles saber ler ou não, mas eles
vão ver as figuras, tem a imagem da televisão que eles já viram em casa
e chegam aqui eles fazem aquela relação, então eu acho que a leitura ela
vem assim pra gente fazer as nossas adaptações. (Magalhães, 2010)
fugir da escravidão a qualquer estímulo” (Holland et al., 1998, p. 35). Para ele,
a forma de lidar com isso está ligada a símbolos; portanto, é semioticamente
mediada. Proponho aqui, seguindo o pensamento de Vygotsky, que a mediação
semiótica seja examinada na (re)construção das representações identitárias. No
caso das identidades posicionadas como deficientes, a alternativa é a transgressão
dessa posição, ou seja, a (re)construção dessas identidades não em relação às
dificuldades ou pela falta de habilidades, mas quanto à afirmação de qualidades.
Bakhtin, em sua teoria dialógica, concebe a pessoa humana em termos
da enunciação, já que “as pessoas coexistem, sempre em orientação mútua,
no movimento para a ação; não há ação humana que seja singularmente
expressiva” (Holland et al., 1998, p. 169). A concepção de Bakhtin (1981)
apresenta uma base teórica para compreender a natureza dialógica, contínua
e conflitante, em que se constroem as identidades. No mundo dialógico, a
autoidentidade representada na primeira pessoa do singular (“eu”) associa-
se à autoria do enunciado, mas as palavras derivam da experiência coletiva.
As diversas experiências complementam-se ou contradizem-se na relação
dialógica, existindo na consciência das pessoas. Assim, elas contribuem para a
representação de si e da alteridade:
escrita como performances, no sentido dado aos atos pragmáticos por Austin
(1962), e como formas de participação social. Uma política da diferença precisa,
antes de tudo, assentar-se no direito à educação e à cidadania, um direito
consagrado na Carta Magna.
4. Considerações finais
Notas
Referências
Ubiratan Vieira
Introdução
para apaziguá-lo, mas para mudar o foco no público designável para o foco na
instituição normalizadora. No conflito entre “educação especial” e “educação
inclusiva”, perde-se de vista a educação como uma instituição social.
Referências
Introdução
2. Os caminhos teóricos
3.2. Lei 8069/1990, Art. 54, Incisos III e V (Estatuto da Criança e do Adolescente)
regra, graças à topicalização que este termo recebeu na oração, e, somente como
último termo da oração, aparece a possibilidade da Inclusão no Ensino Regular.
A expressão “sempre que [...] não for possível [...]” nos traz a percepção de que a
impossibilidade é a regra, e não o seu contrário. A ênfase aqui é na capacidade física
do aluno, no quanto ele é capaz de se integrar na escola por seus próprios méritos,
deixando a sociedade e o poder público isentos de sua parcela de responsabilidade
para com a questão, pois, quando a razão da não integração reside nas condições
físicas do estudante, não há nada que a sociedade e o poder público possam fazer.
Thompson (1995) trataria da ideologia presente nesse parágrafo, como
uma estratégia de dissimulação por meio de eufemização, um processo de
desvio da nossa atenção, passando por cima de processos e de situações
existentes. A mesma expressão, sempre que não for possível, é o que mascara a
ideia expressa em intertextualidade velada, já indicada nos outros textos, de que
é responsabilidade do aluno a sua integração efetiva. O pensamento ideológico
completa-se, por meio da eufemização, por haver uma valorização da Escola
Especial, que foi reescrita, como “em classes, escolas ou serviços especializados”.
A negação presente em “sempre que não for possível” chama a atenção
para uma segunda voz que diz que a Inclusão pode ser possível; assim, a ênfase
na negação tentaria calar a voz da resistência. Segundo Fairclough (2003), a
negação revela que a asserção está em “outro lugar” daquilo que está sendo
negado. A ordem discursiva de Inclusão que se apresentava no mundo, naquela
época, começa já a ser pensada, mas de forma ainda bastante sutil, dentro do
contexto educacional.
Thompson (1995) fala sobre o processo de reificação como a alavanca
de conservação da ideologia, já que é uma construção histórica o fato de uma
pessoa com deficiência ser educada em uma Escola Especial, assim, aquilo que é
estabelecido no curso sócio-histórico se tornou algo natural e atemporal dentro
das práticas sociais.
Apesar do avanço do texto legal, ainda de uma forma velada, ele coloca
o encargo do sucesso escolar sobre o aluno, enfatizando a responsabilidade
pessoal. Isso também se enquadra na operação da ideologia da dissimulação por
meio da eufemização. Ainda é naturalizado o fato de que o fracasso escolar do
sujeito com deficiência se interconecta com as suas condições físicas; mais uma
vez a ideologia opera por meio da reificação por naturalização, como expõe
Thompson (1995).
Nota-se que o movimento de tornar a inclusão semelhante à integração
no texto estimula o reforço dessa perspectiva educacional, pois, como é atestado
mais adiante, há o predomínio da palavra integração em detrimento da palavra
Inclusão. Assim, pode-se perguntar também por que aparece no texto legal
primeiro a integração e não a Inclusão, pois mais uma vez é topicalizada a
integração, ao mesmo tempo em que são colocadas como sinônimas as duas
palavras, revelando o apagamento da proposta de Inclusão.
Nesse texto, outro ponto significativo é a mudança nas práticas sociais
nas escolas indicando todas as transformações pelas quais elas devem passar. No
entanto, de acordo com o PNE, isso é algo contraditório, pois mesmo com a visão
de avanço presente aqui, o texto ainda retoma aspectos do Ensino Especializado,
392
Considerações finais
Referências
Sweldma Lima
Kleyena Nunes
Guilherme Rios
Introdução
gêneros, visto que, para a autora, o letramento é entendido como uma variante
complexa, um processo transcendente à alfabetização (que de uma forma
mimetizada poderia ser descrita como aquisição da técnica de leitura e escrita),
ou ainda, o letramento pode ser apreendido como um
Todo o trabalho com crianças rende muito mais se o que está sendo
desenvolvido fomente a sua curiosidade e criatividade e isso envolve, indire
tamente, o lúdico. Com o estudante autista não é diferente. A produção do “livro
de recados” (scrapbook), escolhida como ferramenta para o desenvolvimento da
socialização e da escrita, foi aceita por Felício e ele se dispôs a registrar o que
comumente apenas desenhava de modo aleatório.
Com o início dos trabalhos, a criança passou a fazer seus registros em
locais próprios (em vez de cantos de caderno ou orelhas de livros), ora em um
caderno de notas destinadas à mãe dele, ora em folhas A4, ora em papéis do
bloco de construção. O que foi registrado partiu exclusivamente dele. Vejamos
um exemplo:
Agora vou contar uma história... o Felício conta e a Suca ouve: [enquanto
pegava um papel em branco para desenhar].
– Era uma vez, o tempo em que era tuuudo escuuuuro. Escuro escuro, não
tinha nadaaaaa, nada, nada. Aí surgiu um pontinho, piquititinho inho inho
inho – grito. E então apertou apertou apertou e veio o BUUUUUUMMMM.....
Então, 45 milhões de anos depois surgiu a Terra...quente quente quente
quente.....foi aí que chuvei (SIC), chuveu, chuveu.......
Considerações finais
origem da vida, ora lendo para desenhar e datar os diferentes tipos de telefones
na história desse meio de comunicação. Isso nos remete à discussão de Kress
(1997), segundo a qual, muito do que uma criança realiza de escrita, na fase da
pré-alfabetização, são nomeações de objetos representados visualmente por ela,
objetos com os quais tem um forte envolvimento e interesse.
Os resultados preliminares nos surpreenderam, e os esboços dessa
sequência de “letramento lúdico-instrucional”, no ambiente escolar, propor
cionaram um desenvolvimento progressivo de socialização da criança, que se
estende até o presente momento. Essa sequência já foi inserida como prática
metodológica na ação de ambas as educadoras.
Notas
1 Sobre esse assunto, Paulo Freire (1981) nos diz: temos que, como educadores, nos
entender como parte ativa na formação de pessoas, de forma que elas aprendam a
fazer a sua leitura de mundo, e dizer sua própria palavra, pois, para ele, educação per
si não muda o mundo. Educação muda pessoas, e pessoas mudam o mundo.
2 A expressão “fala em volta de texto escrito” foi cunhada por Heath (1983) e a
distinção entre “fala em volta de” e “fala sobre texto escrito” pode ser observada em
Moss (1996), conforme Barton e Hamilton (1998).
3 Este conceito de gênero discursivo é uma formulação adaptada de Bakhtin (1997),
Swales (1990) e Fairclough (1995, 2003).
4 Nomenclatura usada de acordo com a Resolução MEC/CNE n. 2/2011, que institui
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial.
5 A criança identificada neste artigo, com o nome fictício de “Felício”, é portadora de
autismo do tipo alto nível funcional, o menor nível de autismo e maior de socialização
(Vasques, 2008, p. 65).
6 Trata-se uma elevada utilização da capacidade cerebral: autistas fazem mais sinapses
que as demais pessoas, isto é, os autistas pensam quatro vezes mais do que não autistas.
Referências
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2000.
406
pesquisas tem como foco os estudos do corpo, gênero e intersecções, atos de fala
e estudos pós-coloniais das línguas. Entre suas publicações, destacam-se artigos
em periódicos nacionais e internacionais sobre corpo e atos de fala. Atualmente
é Editora Assistente da revista Signótica e membro do Conselho Consultivo da
Associação Internacional Linguagem e Gênero (International Language and
Gender Association).