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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARIANA BRAGA CLEMENTE

MODA MODOS E
de consumo no Brasil do século XX:
revistas e a construção de aparências

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

MARIANA BRAGA CLEMENTE

MODA MODOS E
de consumo no Brasil do século XX:
revistas e a construção de aparências

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a
orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves
de Oliveira.

SÃO PAULO
2015
FOLHA DE APROVAÇÃO

BANCA EXAMINADORA
À minha amada avó, Dona Maria Braga,
que me fez ver que a beleza da moda não estava
somente nas linhas, cores e tramas das roupas,
mas também nas linhas, cores e tramas da vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente à minha mãe, Sidônia, pelo amor e apoio incondicionais e por sem-
pre me incentivar a “bater as asas” para fora do “ninho”.
Ao meu pai, Ivando, pelo amor também incondicional e por todo o carinho e apoio em
todos os momentos.
Amo vocês.

Ao meu padrasto, Sávio, por todo o apoio e por nos emprestar o seu “cantinho” paulistano.
À minha irmã, Carol, e à toda a minha família, que de alguma forma participaram desse
processo.

Ao Pedro, meu querido companheiro, por compreender minha ausência, por me acalmar e
me ajudar nos momentos de ansiedade, por me dar broncas nos momentos necessários e,
simplesmente, por me acompanhar.
Amo você.

E agradeço também à sua linda família, pelos encontros especiais.

Às minhas queridas Old but Gold, Cris, Didi, Mari e Natih, amigas mineirinhas desde sempre,
que carrego no coração e que fazem das idas à Uberlândia tão extraordinárias. Em especial,
à Isabela, pela recepção à mineira no que me parecia a “selva de pedra”. Obrigada a todas
vocês por essa grande amizade e pelos momentos vividos. Também agradeço a todos os
amigos de lá que fazem com que eu me sinta sempre em casa.
Aos amigos que tive o prazer de conhecer e conviver no tempo vivido em Londrina, em
especial à Lizie, Thaina, Flora, Betina, Isadora e Iakyma, pelas conversas, pelos encontros,
pelos cafés.

Ao CPS, pelas ricas oportunidades, pelos bons encontros e por me fazer conhecer e expe-
rienciar São Paulo.
Aos queridos colegas do CPS, com os quais tanto aprendi, só tenho a agradecer pelas tro-
cas. Em especial aos tão queridos membros do ateliê “de moda” que me recepcionaram tão
bem, Tula Fyskatoris, Kathia Castilho, Raquel Maia, Geni Rodio, Marcelo Martins, Jô Souza,
Vera Pereira-Barretto e Taísa Vieira. E também aos colegas do ateliê “dos imigrantes”, Alexan-
dre Bueno, Carol Garcia e Liana Costa.
Aos queridos companheiros do grupo de estudos, pelos momentos de aprendizado e des-
contração.
Aos que tanto me ajudaram na finalização desse trabalho, Marc Bogo e Rafael Lenzi.

À Ana Claudia de Oliveira um agradecimento muito especial, pela excepcional orientação,


pela confiança e pela paciência no construir deste trabalho.
À Kathia Castilho e Valdenise Martyniuk, pelas ricas contribuições.

Aos professores da PUC-SP que, de uma forma ou de outra, fizeram parte desse percurso.
Ao CNPq e à PUC-SP pelo apoio essencial à essa pesquisa.

Obrigada.
O sujeito S1 que só era até aí um /querer-ser/,
encontra-se transformado agora, graças à mediação
do saber adquirido, em sujeito de um novo querer,
o /querer-poder/ e este constitui o atrativo de
uma nova narrativa [...].

A. J. Greimas
“Maupassant – A semiótica do texto”, 1993.
RESUMO

A presente pesquisa investiga como as revistas atuaram na construção da moda enquanto


feições da aparência nos vários e recorrentes modos de consumir e, também, como a visi-
bilidade midiática anunciada tornou-se partícipe da construção identitária dos sujeitos no
Brasil. Objetiva-se investigar a moda enquanto um fazer estético que vai além da vestimen-
ta e, hipoteticamente, a construção desses modos de vida, ou dos modos de parecer, seria
o próprio fazer da moda. Compreendendo que a construção de identidades pressupõe a
construção de alteridades, objetiva-se também analisar como as alteridades são presentifi-
cadas nos discursos midiáticos e como são articuladas para construir e delinear identidades
dos sujeitos na e pela moda. Apreende-se a moda em seu sentido mais amplo, enquanto
uma moda do social e, testa a hipótese de que a moda seria constituinte do social. O corpus
é formado por um vasto corpo de anúncios, levantados em 36 edições de três revistas brasi-
leiras e ilustradas do século XX: Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete, pois nelas são presentifica-
das não somente a moda stricto sensu, mas a moda que ultrapassa a vestimenta e constitui
estilos de vida. Essas análises cobrem o objeto de estudo desde 1910 até 1990, compondo
um período representativo do século XX, no qual a sociedade passou por drásticas (trans)
formações sócio-histórico-culturais. Recorreu-se à semiótica discursiva de A. J. Greimas e a
continuidade dada por Eric Landowski com a sociossemiótica. Para compreensão da moda
enquanto objeto da semiótica, são abordados estudos de Ana Claudia de Oliveira e Kathia
Castilho. Para um aprofundamento na sincronicidade do objeto e nos processos de incor-
poração da moda e dos modos, utilizam-se os mecanismos de intertextualidade e interdis-
cursividade de Norma Discini e José Luiz Fiorin. Para a análise da plasticidade das mídias, os
estudos de Jean-Marie Floch e Ana Claudia de Oliveira. Por um mapeamento dos anúncios,
encontramos cinco categorias de consumo que determinam modos de consumir; encarados
enquanto modos de presença do sujeito, foram delimitados em cada categoria os que pre-
sentificam corpos-vestidos. Averiguamos que é com e pelas rupturas programadas da moda
vestimentar que a moda ou modos de parecer também se rompem, nos vários modos de
consumir, desenvolvendo ciclos de “novas” práticas e (re)construções de efeitos de sentido.
Nesse contexto, as revistas tiveram papéis enquanto formadoras de sujeitos consumidores
de moda e de modos. O sujeito, assim, desenvolve seu gosto pela aparência, construindo-se
pela moda e seus ciclos de consumo, enquanto ser social para si e para o outro.

Palavras-chave: moda; mídia impressa; consumo; identidade; semiótica das práticas


sociais; semiótica discursiva.
ABSTRACT

This research investigates how the magazines act in building fashion as the features of
appearance in the several and recurrent modes of consumption, and how the announced
media visibility has become a part of the individuals ‘identity in Brazil. The main goal is to in-
vestigate fashion while an aesthetic making that goes beyond clothing and, hypothetically,
would build these ways of life by the appearance. Understanding that the construction of
identities implies the construction of alterities, this research also examine how those al-
terities come out at media discourses, and how are they articulated to build and delineate
through fashion the individuals identities. It seizes the fashion in its widest sense, while
a fashion from the social and tests the hypothesis that fashion would be a social builder.
The corpus consists of an extensive amount of ads, raised in 36 editions of three Brazilian
illustrated magazines of the 20th century: Fon-Fon, O Cruzeiro and Manchete, because in
them it can be found not only stricto sensu fashion, but also the fashion that goes beyond
clothing, and delineate lifestyles. These analyses reach the object of study from 1910 to
1990, composing a representative period of time, when society has been through drastic
socio-cultural-historical (trans)formations. For these purposes, we resorted the discursive
semiotics of A. J. Greimas and the continuity given by Eric Landowski with socialsemiotics.
For understanding fashion as an object of semiotics, are approached some Ana Claudia
de Oliveira and Kathia Castilho studies. For a deeper study in the object synchronicity and
in the incorporation processes of fashion and its manners, are used the mechanisms of
intertextuality and interdiscursive by Norma Discini and José Luiz Fiorin. For the plasticity
analysis of media, the studies of Jean-Marie Floch and Ana Claudia de Oliveira. By mapping
those ads, five categories of consumption were find and determined as modes of consump-
tion; regarded as individuals modes of presence, were stablished in each category those who
show dressed bodies. We concluded that is with and by the ruptures of the ways of dress-
ing up that the fashion or the modes of appearance also disrupt in the various modes of
consuming, developing cycles of “new” practices and (re)constructions of meaning. In this
context, the magazines had important roles while forming those consumers of fashion and
manners. Thus, the individual develops its taste for appearance, building itself by fashion
and its consumption cycles, while a social being for itself and for another individuals.

Keywords: fashion; press media; consumption; identity; semiotics of social practices;


discursive semiotics.
SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................................. 11

2 MODA (RE)VISTA NO BRASIL ......................................................................................... 21


2.1 Modos de Revista .................................................................................................................... 22
2.2 Histórias da moda no Brasil enquanto histórias da mídia impressa brasileira .. 34
2.3 Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete: apresentação das revistas ................................... 50
2.4 Os modos das revistas e os hábitos de leitura reativos ............................................ 79

3 OS MODOS DE VIDA DA MODA .................................................................................... 87


3.1 A vida anunciada: as propagandas em Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete ........... 88
3.2 Prescrições de práticas de vida: modos de consumir ............................................... 96
3.3 A moda anunciada: os corpos-moda nos diversos modos de consumir ............ 107
3.4 Modos de anunciar: relações topológicas das propagandas
nas páginas das revistas .............................................................................................................. 148

4 A MODA NOS MODOS DE VIDA: A CONSTRUÇÃO DE APARÊNCIAS ....................... 153


4.1 A construção de aparências na Fon-Fon ........................................................................ 157
4.2 A construção de aparências na O Cruzeiro ..................................................................... 180
4.3 A construção de aparências na Manchete ..................................................................... 213
4.4 Os modos de vida em ciclos: moda, aparências e consumo .................................. 246

5 MODA, CONSUMO E URBANIDADE .............................................................................. 255


5.1 Fon-Fon: da Belle Époque da República ao Estado Novo (1910-1930) ............... 257
5.2 O Cruzeiro: da Segunda Guerra Mundial aos Anos Rebeldes (1940-1960) ........ 275
5.3 Manchete: da Ditadura Militar brasileira ao Governo Collor (1970-1990) .......... 284

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 291

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 298

8 APÊNDICE A – Revista Anexos (anúncios) ................................................................... 306


1

Considerações
iniciais
12 “[...] a moda abarca globalmente modos de conduta,
estilos de vida, formas de gosto, correntes de ideias e de
Considerações iniciais

opiniões que nucleiam os agrupamentos humanos”.


Ana Claudia de Oliveira (2002, p.126)

Iniciamos o trabalho de pesquisa por essa epígrafe que elucida um trecho do capítulo
Por uma semiótica da moda, de Ana Claudia de Oliveira (2002), no qual a autora explora a
amplitude da moda nos e pelos vários segmentos de consumo da sociedade capitalista, que
constroem as modas do viver, bem como as várias estratégias da moda que veste e da moda
que constrói aparências. Nesse conceituar, a moda é encarada enquanto um processo pelo
qual se constroem aparências do corpo (in)vestido, quer no âmbito individual, quer no cole-
tivo. Nesse processo, os sujeitos operacionalizam todas as suas composições, dentre as quais
as de ornar suas vestes, acessórios, cabelos, etc., composições que constroem seus modos
de estar num dado contexto e nos espaços urbano, cultural e social. Muito dessa constru-
ção passa pelas ações mediáticas nas quais a imprensa teve uma significativa participação.
Assim, nos questionamos sobre o papel das revistas: como elas atuaram na construção da
moda enquanto feições da aparência nos vários e recorrentes modos de consumir? De que
modo a visibilidade midiática anunciada tornou-se partícipe na construção identitária dos
sujeitos no Brasil? Esses questionamentos delineiam o escopo dessa investigação.
Iniciamos esclarecendo o que entendemos por moda e por modos, bem como abor-
dando quais são suas diferenças e como se relacionam, pois somente a apreensão desses
conceitos permitirá compreender o fenômeno recortado para estudo. A princípio, parti-
mos da conceituação do substantivo feminino moda no dicionário1:

Moda (1654)
1 maneira, gênero, estilo prevalente (de vestuário, conduta etc.);
1.1 conjunto de opiniões, gostos e apreciações críticas, assim como modos de agir, vi-
ver e sentir coletivos, aceitos por determinado grupo humano num dado momento
histórico;
1.2 conjunto de usos coletivos que caracterizam o vestuário de determinado grupo
humano num dado momento;
1.2.1 a alteração de formas, o uso de novos tecidos, cores, novas matérias-primas etc.
sugeridos para a indumentária humana por costureiros e figurinistas de renome;
1.2.2 conjunto das principais tendências ditadas pelos profissionais que trabalham no
ramo da moda;
2 a indústria ou o comércio da roupa;
3 história, desenvolvimento e produção da roupa;
4 a crítica da moda (acp. 1.2.1);

1  De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss Beta. Disponível em: <http://houaiss.uol.
com.br/>. Acesso em: 29 Jun. 2015.
5 um grande interesse; fixação, mania;
13
6 valor que ocorre mais vezes em uma distribuição de frequência;

Considerações iniciais
Depreendemos que a moda, por si, abarca muitas definições, ao mesmo tempo dife-
rentes e complementares: maneira, estilo, conjunto de opiniões e gostos, modos de agir,
viver e sentir coletivos, conjunto de usos coletivos, conjunto de tendências, indústria ou
comércio, história, desenvolvimento e produção de roupas, grande interesse, mania, va-
lor, frequência, etc. Todos esses conceitos compreendem a moda enquanto uma complexa
construção social, econômica (pré-industrial e industrial), comercial e cultural que envolve
o vestuário, mas não apenas, pois o abrange num dado contexto, em dadas construções e
composições de gostos e aparências, com determinados conjuntos de valores prescritos e
intrinsecamente relacionados com os contextos social, cultural, urbano e comercial. Nessa
abrangência conceitual é que se apreende o estar do sujeito em sociedade.
Assim é que somos levados a considerar como Oliveira (2002, p.127), para quem o vo-
cábulo moda:

[...] define as maneiras de conduta, o jeito de fazer, o estilo, a adoção de um uso vesti-
mentar ou de uma outra voga proclamada como a do momento, quer essa seja a de
um modo de fazer política, a do esporte da onda, a do que comer, quer a de onde fazer
plástica, turismo, divertir-se, uma vez que, na atualidade, quase nada escapa de ser
tomado pelas indústrias de imposição de modos, ou de modismos [...].2

Por essa citação delineia-se com mais clareza a estreita e importante relação – que
constrói tanto as diferenças quanto as similaridades – que a moda tem com os modos. O
vocábulo latino modus foi inicialmente utilizado enquanto medida de demarcação de ter-
ras, e após, como uma “medida que não se deve ultrapassar, moderação, meio termo, co-
medimento [...] maneira de fazer”3. Dele originou-se, em português, tanto o vocábulo moda
quanto o vocábulo modos. Esse último, enquanto substantivo masculino no plural, carac-
teriza “conduta social; modo habitual de falar, de gesticular, de agir em sociedade; boas
maneiras; educação, traquejo social, refinamento, arranjo, disposição”, bem como “forma
ou maneira de expressão, estilo”4.
Tanto um quanto outro são formas de expressar-se, enquanto construções de estilos,
maneiras de portar-se e apresentar-se na sociedade, construindo-se perante o outro. No
entanto, a moda se faz pelos modos de disposição e arranjo de todos os elementos que a
compõem. De demarcação de terras, a moda passou a demarcar, delinear e até emoldurar
corpos vestidos e ornados, que se colocam de vários modos e se identificam em interação

2  Grifo nosso.
3  De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss Beta. Disponível em: <http://houaiss.uol.
com.br/>. Acesso em: 29 Jun. 2015.
4  Idem. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Acesso em: 29 Jun. 2015.
14 com o corpo social e cultural, bem como com o corpo da cidade, pois não há como abordar
os modos da moda sem abordar os corpos que os relacionam.
Considerações iniciais

Compreendemos, portanto, que os modos são as maneiras de fazer tanto a moda


quanto a vida, sendo delineadas por composições, interações e sazonalidades. Assim, mo-
dos serão usados no plural, pois, justamente, configuram-se como as sazonalidades e cons-
truções das formas plurais de consumir a moda. Já a moda, será empregada no singular,
pois concordamos com Landowski (2012, p.94) que a moda “é, de fato, e provavelmente
sempre foi, por natureza, plural”.
Em outras áreas de estudos, como por exemplo na filosofia, na sociologia, na história e
na antropologia, há obras que identificam esse fazer da moda pelos modos de vida, bem
como há estudos que elucidam os modos de vestir-se enquanto construtores de identida-
des. Gilberto Freyre (1997) realizou estudos sobre os modos e a moda pelo viés sociológico
e antropológico; considerou que as modas – no plural por considerar a moda principal-
mente por seu aspecto sazonal – seriam características do universo feminino, consideradas
efêmeras, enquanto os modos ditariam as modas e pertenceriam ao universo masculino,
de aspecto mais durativo. Tal abordagem elucida o caráter heteronormativo5 de sua visão,
a qual, como veremos, se faz muito presente nos discursos analisados. Gilles Lipovestky
(2009) abordou a moda por seu caráter efêmero, mas longe de abordar a moda enquanto
um aspecto fútil da sociedade que serve apenas à distinção de classes, encarou-a como
uma produção cultural da sociedade que tem sua importância justamente por sua efeme-
ridade; a moda seria então aspecto construtor e motor da sociedade.
Num estudo realizado em meados do século XX, Gillo Dorfles, em seu livro Modas e
Modos (1979, p.15), encara estes termos de maneira mais abrangente, em “uma pesquisa
essencialmente sincrônica”. Para o autor (DORFLES, 1979, p.14-15), a moda é “uma das de-
positárias daquele estilo e daquela maneira que numa determinada época guia e orienta o
design aplicado ao vestuário”, no entanto, sua visão aproxima-se de nossa abordagem ao
considerá-la, bem além do vestuário, como um “fator sociológico e estético” que permeia
diversas áreas do fazer estético e intelectual das sociedades, sendo relacionados, assim, as
modas e os modos de uma sociedade.
A história, por sua vez, é tomada como metodologia ou mesmo como coadjuvante nas
análises que as obras citadas desenvolvem. Esses importantes estudos diacrônicos realiza-
dos sobre a moda permitem a compreensão de como se deram seus ciclos através da his-
tória, por isso, são estudos que percorrem essas várias outras áreas do conhecimento. Tais
estudos nos servirão para a contextualização do objeto obras que alinhavaram as histórias
da moda e da sociedade, incluindo a brasileira, como Fogg (2013), Prado e Braga (2011),
Feijão (2011), Mendes e Haye (2009), Nery (2009) e Fausto (2002).

5  A heteronormatividade é assumida aqui enquanto delineadora dos papéis sociais de gênero, definindo as-
sim o papel social do homem e o papel social da mulher nos modos da sociedade brasileira.
Na filosofia, Georg Simmel (2008, p.24) discorre sobre a moda enquanto manifestação 15
da vida, “uma forma particular entre muitas formas de vida”, sendo, dessa forma, paradoxal:

Considerações iniciais
Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, con-
duz o indivíduo ao trilho que todos percorrem [...]. E satisfaz igualmente a necessidade
de distinção, a tendência para diferenciação, para mudar e se separar.

Nas várias áreas em que foi estudada, a moda é encarada como resultado ou manifesta-
ção dos modos de viver em sociedade, como algo que ao mesmo tempo une e diferencia os
sujeitos em relação. Não são visões contraditórias à deste trabalho, entretanto, à luz da se-
miótica discursiva desenvolvida por A. J. Greimas (1976, 2002, 2011) e da sociossemiótica es-
truturada por E. Landowski (1992, 1997, 2012, 2014), não a compreendemos como resultado
desse estar no mundo, mas enquanto processos de construções de sentido, da pluralidade
do parecer para a singularidade do ser. Esses são processos intrínsecos ao desenvolvimento
dos modos de consumir. Enquanto consideram-na qualidade de manifestação, que une e
diferencia, consideramo-la como um processo no qual há recorrências e alternâncias, cons-
truindo identidades e alteridades. Dessa maneira, compõe o objeto paradoxal e complexo,
que abordamos nessa pesquisa, a moda no Brasil enquanto modos de vida dos brasileiros.
Enquanto objeto estudado pela semiótica, a moda pode ser tomada como uma to-
talidade de sentido que pode ser traduzida, interpretada, lida e relida. A moda enquanto
construção de significação abarca tanto o corpo vestido quanto os modos de agir, viver e
sentir desse corpo do sujeito, em interação com o corpo social (OLIVEIRA 2002, 2007,2008b;
CASTILHO, 2009; CASTILHO E MARTINS, 2005). Talvez mais do que qualquer outra constru-
ção cultural, a moda é o que faz com que o sujeito se sinta em seu próprio tempo e espa-
ço (LANDOWSKI, 2012). Nesse âmbito, entendemos a moda dos modos de vida enquanto
construções das maneiras dos sujeitos estarem no mundo.
A semiótica, desde a proposição da disciplina por Algirdas Julien Greimas, no final da
década de 1960, foi concebida como ancilar das Ciências Humanas. Enquanto campo te-
órico-metodológico, de acordo com Oliveira (2007, p.5), “a semiótica pode estar a serviço
de distintas disciplinas, como dela nos servimos para edificar uma semiótica para entendi-
mento da moda e da aparência”. A disciplina oferece recursos não somente para analisar
“como a moda propõe os modos de se vestir, mas também tipos de corpo e, por correlação,
como a moda faz ser o sujeito”6.
No desempenho dessa ação, Greimas em Da Imperfeição (2002, p.75), considera a moda
“‘estética’ [...] presente em nossos comportamentos de todos os dias”, que qualquer sujeito
pode lançar mão em seu cotidiano, com o propósito de nesse inserir a estética. Não a grande
estética das artes que produzem o que ele denomina “A fratura” na primeira parte da obra,

6  Grifo nosso.
16 mas a estética cotidiana das “As escapatórias” desenvolvidas na segunda parte. Plurais são
esses atos vários que o sujeito comum edifica sob a regência da estética que recobre todos os
Considerações iniciais

arranjos significantes de toda e qualquer linguagem. É nessa perspectiva de uma estetização


do cotidiano que ele acresce que a moda é uma das escapatórias, acessível a todos. O ato de
vestir-se no dia-a-dia constitui-se como uma “sequência de vida ‘vivida’”, na qual o sujeito ope-
racionaliza sintagmaticamente o seu ornar-se, o que “conduz pouco a pouco à construção de
um objeto de valor”, e também se mostra como uma prática que pode conduzir o sujeito a se
descobrir no e pelo ato de vestir-se que o faz sentir-se significando em ato (GREIMAS, 2002,
p.75). Escapatória que faz o sujeito descobrir-se na força estetizante de sua aparência. Desse
modo, constrói-se enquanto sujeito de corpo (in)vestido em relação a outros corpos (in)vesti-
dos, os quais, em seus fazeres cotidianos, compõem os jogos de aparências.
São muitos os caminhos para se estudar a constituição da moda no Brasil, tais como: pe-
las coleções de trajes e vestimentas dos museus nas suas composições plásticas; verbalmen-
te pela literatura e sonoramente pelo rádio – nas suas contextualizações dos modos de vestir
da personagem como qualificadores do seu caráter e da sua função social –; pela construção
verbo-matérico-visual da mídia impressa; e, mais recentemente no século XX, pela composi-
ção visual da fotografia, bem como pelas elaborações audiovisuais do cinema e da televisão.
Dentro desse grande espectro de estudo, a nossa escolha pela mídia impressa, com as
revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete, justifica-se porque essas atravessam todo o século
XX, com configurações e materialidades similares, possibilitando um estudo panorâmico
da formação do vasto corpus de constituição e desenvolvimento da moda e dos modos
de consumo brasileiros. Além disso, a imprensa no Brasil, enquanto um país de origem
colonial, pôde tirar proveito de culturas “aptas para incorporar os agregados metonímicos
provenientes dos mais diversos códigos” (PINHEIRO, 2009, p.19) – no (re)traduzir do mundo
em linguagem, reescritura em que o global passa por operações de apropriação de vários
níveis entre um polo e outro, até resultar em uma “nova” escritura, do global ao local e vi-
ce-versa. Nesse cenário, é possível analisar as traduções e incorporações de outros modos,
presentificados nos prescritos da moda e dos modos de vida mediatizados no Brasil.
A pesquisa se debruça sobre os anúncios das 36 edições dessas revistas ilustradas se-
manais que circularam no Brasil no decorrer do século XX, que se complementam em seu
tempo histórico e possibilitam um estudo representativo de um século da moda e dos
modos de vida, mais precisamente do ano de 1910 a 1990. Estas três revistas podem ser
utilizadas como parte de um mesmo corpus, pois além dos fatores supracitados, se assimi-
lam em outros aspectos, como o direcionamento ao público geral – revistas de entreteni-
mento “para toda a família” –, e além de retratarem aspectos da vida social de seu tempo,
explicitam e constroem padrões estéticos, padrões de vestimentas e de comportamento
para homens e mulheres.
Essas revistas ilustradas eram compostas por uma grande variedade de discursos e ex- 17
pressões, presentes na organização e produção de suas reportagens e fotorreportagens, na

Considerações iniciais
extensa publicidade, charges, notícias, colunas literárias, colunas críticas, entre outros. Con-
siderando que buscamos analisar a moda nos diversos modos de consumir, percebemos
que nas três revistas as propagandas eram partes primordiais da composição do todo, ocu-
pando boa parte de suas páginas até meados do século, e diminuindo em número e aumen-
tando em qualidade gráfica já no final desse mesmo século. Assim, a escolha dos anúncios
enquanto corpus de pesquisa se justifica tanto por sua representatividade – qualitativa e
quantitativa –, quanto por dar as dimensões das práticas de vida pelos modos de consumir.
Nessas propagandas, práticas das urbes eram traduzidas em construções verbo-espa-
ço-visuais, nas quais a moda era um componente tanto dos modos de presença, nos mun-
dos da época, quanto dos modos de consumo, quer de produtos de uma industrialização
acentuada pelo desenvolvimento econômico, quer de novos fazeres que se incorporaram
à vida diária – como passeios por cidades, eventos sociais, viagens, etc. –, compondo cená-
rios nos quais a publicidade foi se tornando patrocínio da indústria e da economia, assim
como patrocínio da mídia impressa.
Em relação a esse papel motriz da publicidade, Oliveira (2007, p.16) diversifica-o ao
colocar que:

Desde o início dos meios de comunicação, a moda vai circular nas mensagens como
um complexo processo de construção da aparência que se organiza de modo a dar
legitimidade às fórmulas de estar socialmente por meio da visibilidade das figuras dos
corpos vestidos que se tornam notícias e penetram o nosso contexto como padrões
de modo de ser. Afora as formulações vivificadas das mídias impressas, jornais, revistas
gerais e as especializadas, no século XX, essas vão proliferar com as mídias audiovisuais,
em especial, na primeira metade, no cinema com os novos deuses, seguido, na segun-
da metade, pela televisão, quando os deuses passam a habitar a casa de todos [...].

As revistas semanais conversam e divulgam com esses outros meios de comunicação e


entretenimento, abrangendo todas as práticas de vida do brasileiro. Elas vão além do cará-
ter informativo e se colocam em posições doutrinárias, prescrevendo esses modos aos seus
enunciatários, conforme Prado (2005), mas em grande parte elas fazem circular os corpos
vestidos desejantes, que podem ou não manipular por sedução o leitor a querer ser como
o corpo visto. Em meio às duas posições do regime de junção, o programado e o manipu-
lado podem aderir à descoberta no encontro com o corpo vestido ao virar as páginas, em
uma união que faz ser o sujeito. Na teoria de Landowski (2014), é pelo regime de união que
o princípio da sensibilidade faz o sujeito se encontrar com o outro, reinventando-se. Mas
como prevê o autor, é pela mediação da mídia impressa que essa operação de descoberta
ocorre, daí chamá-la de contágio reativo (LANDOWSKI, 2014). Todo o conjunto de teses e
dissertações orientado por A. C. de Oliveira leva-nos a depreender essa dinâmica triádica,
18 regente de circulação de valores nas revistas. Como um modo de atrair pela manipulação
por sedução e de fazer o sujeito sentir-se parte pelas descobertas, as fórmulas da mídia im-
Considerações iniciais

pressa se repropõem reguladas por uma aparência de “novo”. Nas revistas, portanto, seria
possível encontrar não só a moda vestimentar e segmentada, mas justamente essa moda
que ultrapassa a vestimenta e passa a construir, em união com o sujeito, as aparências que
culminam no delineamento de estilos de vida: modos de parecer para ser.
As revistas selecionadas correspondem, respectivamente, à Fon-Fon, analisada nos
anos de 1910, 1920 e 1930, O Cruzeiro, nos anos de 1940, 1950, 1960 e Manchete analisada
nos anos 1970, 1980 e 1990. Abaixo, temos um esquema que ilustra a relação dos anos que
são analisados, em cada uma das três revistas do corpus:

Fon-Fon O Cruzeiro Manchete

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

Esquema 1: Esquematização dos anos e das revistas que são analisados.

Assim, a cada ano selecionamos quatro edições. Tal delimitação se deu por buscarmos
uma edição a cada estação e meia-estação do ano e, também, por observarmos que as
edições do início de cada estação e de cada década nos apresentavam construções e tran-
sições representativas das passagens da moda e dos modos de vida encenados em suas
páginas. Para documentar essas edições, recorremos à coleta das revistas do início de cada
década, nos vários sebos, hemerotecas e arquivos públicos.
A tiragem das revistas foi algo que contribuiu para sua delimitação. Sendo distribuí-
da pelo Brasil e no além-mar, como veremos, a Fon-Fon iniciou seus trabalhos, no Rio de
Janeiro, em 1907 com a incrível tiragem de 100 mil exemplares – cifra destacada em sua
primeira edição –, algo inédito para uma revista nacional até então. Foi a revista de público
geral de maior circulação até meados da década de 1930, período em que outras revistas,
como a Cruzeiro, começaram a ganhar maior destaque. O Cruzeiro, outra revista carioca, por
sua vez, começou a circular em 1928 com a tiragem de 50 mil exemplares, um número que
logo aumentou, mas que não se sustentou por muito tempo. Foi somente com a entrada
de Antonio Acciolly Neto na edição da revista, em fins de 1930, que essa voltou a crescer,
melhorando a qualidade dos materiais e das reportagens, e assim ultrapassando, além de
outras concorrentes, a revista Fon-Fon, à qual restou pouco tempo de vida em circulação.
Nesse cenário O Cruzeiro cresceu (e muito), principalmente nas décadas de 1950 e 1960, 19
quando investiram massivamente nas fotorreportagens e na qualidade de impressão, in-

Considerações iniciais
corporando a seu editorial caraterísticas de revistas internacionais renomadas, como as
norte-americanas Life a revista cinematográfica Photoplay, além da francesa Paris Match.
Inaugurou-se, assim, um novo modo de se fazer e vender revistas no Brasil, chegando à
marca de quase 60 mil exemplares só em território nacional. Tal sucesso foi também patro-
cinado por grandes empresas que estampavam seus produtos e anúncios nas páginas da
revista, chegando às casas de milhares de brasileiros. Igualmente à Fon-Fon, boa parte de
suas páginas eram revestidas por anúncios de produtos diversos, no entanto, como vere-
mos no desenvolver deste trabalho, a qualidade gráfica e de construção de anúncio dá um
grande salto de 1940 a 19507.
Na década de 1950, mais precisamente em 1952, surge a revista Manchete, declarada-
mente com o objetivo de desbancar a líder O Cruzeiro, o que não foi alcançado. Somente
em meados de 1950 a Manchete toma outro rumo editorial, incorporando características
de outras revistas norte-americanas e aumentando o volume de suas edições, porém ainda
sem destronar a Cruzeiro. Somente em 1970, ao acompanhar os novos rumos da política
brasileira e se estabelecer em outras mídias – como na televisão com a Rede Manchete –, a
revista Manchete cresce em número de tiragens, deixando a grande concorrente para trás,
que encerra seus trabalhos na década de 1970.
Há ainda outro ponto que culminou na escolha desse corpus de análise, pois essas revis-
tas de público geral foram um fenômeno quase exclusivo do séc. XX; um período de muitas
(trans)formações sócio-econômico-histórico-culturais tanto no Brasil quanto no mundo. O
país, no início do século, encontrava-se em sua Primeira República. No decorrer das déca-
das passou por golpes e ditaduras, e teve instituída uma nova capital, deslocada do litoral
para o centro do país. No final desse mesmo século houve, após mais de 20 anos, a primeira
eleição direta para presidente, que determinou os rumos mercadológicos e industriais do
país com a abertura do mercado – tudo isso, de uma forma ou de outra, documentado nas
páginas dessas revistas.
Delimitado o objeto de estudo e dadas as justificativas de sua segmentação, bem como
os fundamentos teórico-metodológicos e contextualizações, relembramos a questão de
pesquisa: como as revistas atuaram na construção da moda enquanto feições da aparência
nos vários e recorrentes modos de consumir? De que modo a visibilidade midiática anuncia-
da tornou-se partícipe na construção identitária dos sujeitos no Brasil?
Nesse contexto, temos como objetivo principal investigar a construção identitária
que se faz pela moda enquanto modos de vida – tomada enquanto um fazer estético que

7  Informações sobre tiragens de O Cruzeiro e Manchete foram retiradas do site Observatório da Imprensa. Dis-
ponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/ascensao-e-queda-de-o-cruzeiro
-e-manchete/>. Acesso em: 09 set. 2015.
20 constrói aparências e vai além da moda vestimentar. Compreendendo que a construção de
identidades pressupõe, necessariamente, a construção de alteridades, objetiva-se também
Considerações iniciais

analisar como as alteridades são presentificadas nos discursos midiáticos, e como são arti-
culadas para construir e delinear identidades dos sujeitos na e pela moda.
Na estruturação do trabalho de pesquisa, as hipóteses que serão testadas para tentar
explicar as problemáticas, são: (1) que a construção desses modos de vida, ou dos modos de
parecer, é o próprio fazer da moda; (2) que nas encenações da moda e dos modos de vida,
nas páginas das revistas, está plasmada a construção da sociedade capitalista; (3) que as re-
vistas têm papéis enquanto formadoras de sujeitos consumidores de moda e de modos de
vida; (4) que a construção dos modos de vida é correlata à construção e valoração dos mo-
dos de consumir; (5) que a construção das aparências pelos modos de consumo é correlata
à construção dos modos de vida brasileiros; e por fim, (6) que os ciclos da moda tão relacio-
nados aos ciclos socioeconômicos, políticos e culturais, ou seja, ao desenvolvimento social.
A edificação da dissertação centra-se em quatro momentos. No primeiro deles, a moda
é (re)vista no Brasil, ao analisarmos os regimes de interação e sentido que regem as rela-
ções entre corpo-revista e corpo-vestido do leitor, passando a uma breve contextualização
que relaciona certas histórias da moda e da imprensa brasileiras, para, em seguida, apre-
sentarmos as revistas que compõem o corpus, bem como explorar como cada uma dessas,
com seu corpo-revista programado, modela hábitos de leitura reativos.
No segundo, analisamos como se dá a compreensão da moda enquanto modos de
vida, partindo de análises quantitativas dos anúncios para averiguar recorrências e ruptu-
ras das práticas de consumo que acabam por delinear cinco modos de consumo anuncia-
dos nas revistas.
No terceiro, analisamos a moda nos modos de vida anunciados, partindo da delimita-
ção dos anúncios pela seleção de apenas um para cada modo de consumo de cada ano,
tomando-o enquanto parte constituinte do todo da aparência e buscando analisar a moda
nos vários modos de consumo, os quais constituem os modos de viver do sujeito. Para
acompanhar a leitura desse capítulo [A moda nos modos de vida: a construção de aparên-
cias], disponibilizamos aos leitores uma revista que denominamos Anexos, a fim de facilitar
a leitura e torna-la mais confortável8. Nesse apêndice, os anúncios são categorizados e exi-
bidos por anos e por gêneros, masculino e feminino, sinalizados pelos ícones de Marte e de
Vênus, respectivamente.
Por fim, em um quarto momento, são concluídas as análises, relacionados os modos, e
são delineadas suas temáticas englobantes: moda, consumo e urbanidade.

8  Na edição impressa para a biblioteca, esse apêndice foi encadernado junto ao volume, podendo ser encon-
trado no final do mesmo.
2

Moda (re)vista
no Brasil
22 Por muitas razões, fáceis de referir e de demonstrar,
a história da imprensa é a própria história do
Moda (re)vista no Brasil

desenvolvimento da sociedade capitalista.


Nelson W. Sodré (1999, p.1)

A moda estudada a partir das revistas impressas pode ser abordada, no transcurso do sé-
culo XX, em seu delinear-se como uma das principais áreas da economia, enquanto motriz
da produção industrial e comercial, bem como do social, sendo a sociabilidade estímulo aos
modos de consumo incorporados pelos brasileiros no decorrer desse período. No início, a
revista tratava-se de um impresso no limiar entre o jornal e o livro, mas no decorrer da histó-
ria foi se construindo, se desenvolvendo e se diferenciando, tanto do jornal quanto do livro,
como um objeto específico na qualidade de gênero impresso. As revistas surgiram no Brasil
já nos primeiros anos da Imprensa Régia e foram rapidamente incorporadas ao cotidiano
das brasileiras e dos brasileiros letrados. Diferentemente dos jornais, as revistas veiculavam
uma variedade de reportagens, usavam como recurso o humor e as curiosidades sobre o
cotidiano, aproximando-se do público-leitor, uma vez que esta mídia “dispunha as informa-
ções de maneira interpretativa e envolventes” para esse (RIBEIRO; SANTANA, 2011, s/n).
Mas, que objeto é esse? Que sentidos a revista constrói pela reunião sincrética de seus
formantes plásticos para concretizar conteúdos? Quais são as interações entre corpo-revis-
ta e o corpo-vestido do leitor? Como seus modos de revista relacionam-se com os modos
de consumir?
Essas são algumas das questões a serem respondidas no decorrer deste capítulo, pri-
meiramente pelo esclarecimento e definição do objeto revista que interage corpo a corpo
com seus destinatários. Em seguida, será abordada uma certa história da imprensa bra-
sileira, particularmente a história da revista, em paralelo com histórias da moda no país
– em uma revis(i)ta da moda – , para então chegar à apresentação das revistas, nas quais
encontramos o corpus do trabalho desenvolvido: as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete
e, assim, analisar os procedimentos de interação que elas regem com seus corpos-revistas.

2.1 Modos de Revista

Iniciamos pela busca da definição de revista nos dicionários, pois a palavra é um tanto
curiosa para designar um gênero de impresso, o que nos faz indagar sobre sua origem. De
acordo com os dicionários consultados, algumas de suas primeiras definições1 seriam:

1  HOUAISS BETA, Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Aces-
so em: 29 Jun. 2015.
23
Revista (1446)

Moda (re)vista no Brasil


1. Segunda vista; novo exame, mais minucioso, atento; reexame2.
2. Ação ou efeito de revistar, inspeção, exame; passar revista, revistar, fazer revista ou
exame, mandar processar de novo a ação no todo ou em parte3.
3. Peça de teatro, com quadros de música e dança, com anedotas, alegorias, sketches,
etc., na qual se criticam os fatos mais em evidencia da época4.

A segunda definição é relativa à conotação mais recente que foi dada ao substantivo
revista, quando passou a denominar um gênero de publicações:

Revista (1833)

1. Publicação periódica, destinada a grande público ou a um público específico, que


reúne, em geral, matérias jornalísticas, esportivas, econômicas, informações culturais,
conselhos de beleza, moda, decoração, etc.5.
2. Nome de algumas publicações periódicas que estampam artigos originais sobre
assuntos especiais ou divulgam informações, de ordinário ilustradas, sobre assuntos
gerais em caráter de reportagem6.
3. Publicação periódica em que se divulgam artigos originais, reportagens, etc., sobre
vários temas, ou, ainda, em que se divulgam, condensados, trabalhos sobre assuntos
variados já aparecidos em livros e noutras publicações.7

Ao homologarmos as duas definições, podemos depreender que o vocábulo revista – se-


gunda vista; revisar; revistar ou revisar criticamente – se configura como o próprio modo de
construção do objeto revista, enquanto uma publicação em que “se divulgam condensados,
trabalhos sobre assuntos variados já aparecidos em livros e noutras publicações”. Encontra-
mos ainda que a designação mais recente (de 1833) é oriunda do inglês, mais especificamen-
te da palavra review, a qual caracteriza: “um exame de algo com a intenção de mudá-lo se ne-
cessário; um relatório em um jornal ou em uma revista, [...], no qual um sujeito dá sua opinião
sobre um livro, peça de teatro, filmes do cinema, etc.; o ato de escrever esse tipo de relatório8”,
A origem da palavra revista, portanto, designa um tipo de texto com caráter opinativo, crítico
e de revisão de outras mídias para que algo seja modificado, ampliado e/ou aprofundado.

2  HOUAISS BETA, Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Aces-
so em: 29 Jun. 2015.
3  CALDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguêsa. 1987. Rio de Janeiro. Editora Delta.
4  FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5  HOUAISS BETA, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, op. cit.
6  CALDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguêsa, op. cit.
7  FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, op. cit.
8  De acordo com o dicionário Oxford Learners Dictionaries Online. Disponível em: <http://www.oxfordlearners
dictionaries.com/definition/english/review_1?q=review>. Acesso em: 22 Jun. 2015. Traduzido livremente do
original: “an examination of something, with the intention of changing it if necessary; a report in a newspaper or
magazine, or on the Internet, television or radio, in which somebody gives their opinion of a book, play, film/movie,
etc.; the act of writing this kind of report”.
24 Revista é o termo que se popularizou no Brasil, contudo, o termo utilizado em inglês
para denomina-la é magazine (termo oriundo do francês), que tem a mesma construção
Moda (re)vista no Brasil

lexical se comparado ao português, entretanto, não têm significados similares. Em inglês,


sua definição seria “um tipo de livro, fino e grande, com uma capa de papel que pode ser
adquirida toda semana ou mês, contendo artigos, fotografias, etc., geralmente com um
tema particular9”. Já em português, magazine é definido como: “1. Um estabelecimento co-
mercial que expõe e vende grande variedade de mercadorias organizadas de acordo com
o gênero delas. / 2. Publicação periódica, em formato de revista, geralmente ilustrada que
trata de assuntos diversos10”. O vocábulo magazine, no Brasil, acabou sendo mais utilizado
em sua primeira definição, que também existe na língua francesa (na construção lexical
similar: magasin); sua segunda definição foi destinada, por certo tempo, a revistas bem ilus-
tradas e recheadas de propagandas, que traziam principalmente os preços e informações
sobre lojas e vendas e, por vezes, continham catálogos de produtos.
Outro termo, que se destina especificamente às revistas semanais, é hebdomadário –
em francês hebdomadaire, termo designado à revista na língua francesa –, do latim, hebdo-
madarius, palavra que denominava as tarefas semanais nos mosteiros. O significado mais
comum, todavia, é o mesmo tanto em francês quanto em português: semanário ou sema-
nal.11 No Brasil, o termo passou a designar publicações semanais de cunho mais científico,
técnico e/ou político, mas não se popularizou – talvez por sua maior complexidade lexical,
se comparado à revista.
As primeiras revistas de temas mais gerais que foram publicadas normalmente eram
semanais, e tinham a função, se é que esse seria um termo cabível, de sintetizar as notí-
cias da semana abordando-as de maneira mais aprofundada e/ou minuciosa. Basicamente,
selecionavam informações importantes, notícias banais e de entretenimento relacionadas
aos fatos que ocorreram durante a semana, além de novas informações e novos textos
literários, organizando-os em um caderno, quase como um pequeno livro. Esses cadernos
eram distribuídos por meio de assinaturas ou vendidos nos lugares mais populares da vida
urbana. Portanto, é dessa prática da revista de revisar, de rever as informações, que surge
a sua construção enquanto mídia impressa. O fato de que a denominação revista se popu-
larizou, aparentemente não se deve apenas a sua pronuncia e escrita mais fáceis e rápidas,

9  De acordo com o dicionário Oxford Learners Dictionaries Online. Disponível em: <http://www.oxfordlearners
dictionaries.com/definition/english/review_1?q=review>. Acesso em: 22 Jun. 2015. Traduzido livremente do
original: “a type of large thin book with a paper cover that you can buy every week or month, containing articles,
photographs, etc., often on a particular topic”.
10  De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss Beta. Disponível em: <http://houaiss.uol.
com.br/>. Acesso em: 01 Jul. 2015.
11  De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss Beta. Disponível em: <http://houaiss.uol.
com.br/>. Acesso em: 29 Jun. 2015.
mas também ao fato de que, no Brasil, as revistas se consagraram e se popularizaram no 25
século XX como publicações com conteúdo de seleção e revisão de informações, não im-

Moda (re)vista no Brasil


portando o público ao qual se destinassem, além de abarcar várias definições e destina-
ções num só objeto.
Como dito anteriormente, nesta pesquisa trabalharemos com as revistas semanais Fon-
Fon, O Cruzeiro e Manchete. Dada a grande variedade temática e periódica das revistas no
Brasil, iremos nos deter em características gerais das revistas, entretanto, nos ateremos às
semanárias para estabelecer uma padronização mais sólida.
Segundo Vilas Boas, as revistas semanais:

[...] preenche[m] os vazios informativos deixados pelas coberturas dos jornais [...]. Com
mais tempo para extrapolações analíticas do fato, as revistas podem produzir textos
mais criativos, utilizando recursos estilísticos geralmente incompatíveis com a veloci-
dade do jornalismo diário. A reportagem interpretativa é o forte. (1996, p.9)

Os jornais, sendo diários, não poderiam ser compostos com textos muito elaborados –
verbais ou não –, ou mesmo muito longos, contendo análises aprofundadas, instaurando
seu leitor num simulacro de concomitância. Já as revistas, sendo no mínimo semanais, po-
deriam revisar, revisitar, e (re)elaborar, suas construções textuais, tanto verbais quanto não-
verbais, sendo atuais mas de uma atualidade mais duradoura, digamos, pois necessita de
no mínimo uma semana para sua construção e elaboração. Seguindo o raciocínio até então
delineado, podemos apreender a aspectualidade da enunciação da revista. A enunciação,
de acordo com Greimas e Courtés (2002, p.168), é o próprio “ato de linguagem”, na qual são
colocados – debreados – os elementos do discurso: atores, tempo e espaço, compondo a
aspectualização. Assim, enquanto os jornais são predominantemente operados pela de-
breagem enunciativa – com eu/tu, aqui e agora –, as revistas são predominantemente ope-
radas pela debreagem enunciva – ele/ela, lá, então. São consideradas em predominância,
pois na enunciação são sempre instauradas a debreagem e a embreagem, as quais o enun-
ciador opera, passando de uma à outra – por exemplo, quando há furos de reportagem ou
reportagens especiais nunca antes feitas, o enunciador da revista aproxima o enunciatário
aos fatos que traduz.
O enunciador, ao enunciar e construir seu discurso, seja em qual mídia for, sempre o
fará pela tradução do mundo – já considerado linguagem – em linguagem midiática. En-
tendemos por tradução, como fora conceituado por Greimas e Courtés (2002, p.508-509),
“a atividade cognitiva que opera a passagem de um enunciado a outro” e, enquanto uma
“atividade semiótica”, pode ser considerada por um fazer interpretativo do enunciador que,
ao fazê-lo, constrói seu enunciado. Por meio desse fazer é que o enunciador interpreta o
mundo enunciado – moda, cidades, pessoas, fatos, notícias, modos de consumir, cotidiano,
etc. – e o transforma em linguagem no jornal ou em qualquer outro meio.
26 Quanto mais complexo o “texto” original, mais sedutor será enquanto possibilidade
aberta de recriação, e esse – o original que vem a ser traduzido –, exprime de maneira fi-
Moda (re)vista no Brasil

gurativa suas possíveis traduções, enquanto o texto traduzido é uma forma de reinvenção
ou de recriação do original, como num “processo retilíneo” de traduções. Nesse contexto,
podemos considerar que o jornal, por exemplo, seria uma “vista” do mundo, aqui e agora, à
medida que a revista seria, justamente, uma “revista” ou uma nova visão do mundo que já
fora “notícia”, que já fora colocado em discurso, mas não só: quando a revista se aprofunda
em assuntos já noticiados, não apenas traduz o que já foi traduzido, mas também a com-
plexidade do texto original. A revista cria e recria modos de linguagem, por isso considera-
mo-la enquanto um modo de (re)tradução do mundo em linguagem.
A partir da operação da sintaxe do nível discursivo do percurso gerativo de sentido da
revista, passaremos agora à semântica discursiva pela análise da plasticidade da revista
e, assim, poderemos apreender que sentidos ela constrói pela reunião de seus formantes
plásticos para concretizar seus conteúdos.
Como vimos, as revistas são diferenciadas pela sua estrutura de reportagem, pela pro-
fundidade das notícias, pela capacidade de informar e entreter ao mesmo tempo, bem
como por seus modos de tradução do mundo. Essas são algumas das características que
diferenciam as revistas das outras publicações impressas, como o jornal e o livro. Para Ana
Luiza Martins (2001, p.43), no início desse tipo periódico, definir as revistas como gênero
de impresso:

[...] esbarra nas fronteiras quase conjugadas às do jornal, periódico que lhe deu origem
e do qual, no passado, se aproximava tanto na forma – folhas soltas e in folio – como,
por vezes, na disposição do conteúdo, isto é, seções semelhantes. Por outro lado, suas
variações no tempo, presididas por circunstancias de produção (técnica) e recepção
(público), conferiram-lhe traços temporais específicos, mutáveis diante das transforma-
ções da sociedade à qual serviu.

Inicialmente essa não era uma diferenciação muito clara, as primeiras revistas se dife-
renciavam em poucos aspectos enquanto objeto-suporte, como no tamanho e organiza-
ção das folhas, se comparadas aos jornais; algumas edições pouco se diferenciavam dos
livros, sendo organizadas e encadernadas, e com pouca periodicidade. Mas, com o passar
dos anos as circunstâncias de produção, como o tempo para redigir e produzir, maiores
condições de impressão de imagens e papéis de maior qualidade, a composição de capas
– as quais não existiam nos jornais – e um público mais amplo, permitiram ao gênero uma
construção visual e identitária mais adornada e elaborada para os padrões da época, fatos
que ajudaram na consagração da revista enquanto gênero informativo impresso.
Notoriamente, a composição plástica das revistas é fator primordial para o sucesso que
obteve. De acordo com Ana Claudia de Oliveira (2004, p.11), a análise semiótica plástica
se trata da vertente da semiótica que “se ocupa das manifestações visíveis”, assim, tanto 27
sensíveis quanto inteligíveis. A revista, até então um novo gênero de publicação impressa,

Moda (re)vista no Brasil


trata-se de objeto semiótico cuja significação é constituída pelo semissimbolismo. Tal pro-
cedimento, segundo Oliveira (2004, p.118), seria um tipo de relação entre os dois planos
que organizam a significação: plano de expressão e plano de conteúdo. Na análise do que
a semiótica denomina “semiose” entre um plano e outro, o semissimbolismo se diferencia
do simbolismo na medida em que, no último, essa semiose ocorre termo a termo, defi-
nindo o símbolo, enquanto no semissimbolismo os termos ou formantes são agrupados,
definindo as figuras da expressão que se homologam às figuras do conteúdo, pela con-
venção que o destinador partilha com o destinatário. No semissimbolismo o destinatário é
conclamado a participar fazendo as articulações dos traços, e sentindo no e pelo seu fazer
o brotar do sentido.
No plano da expressão, para Oliveira (2004, p.118), têm-se os ícones que são manifestos
em seu nível mais superficial, enquanto as figuras manifestam-se no nível intermediário,
chegando então ao nível mais profundo do plano da expressão, os formantes não-figura-
tivos. As figuras seriam “as unidades mínimas constituintes dos dois planos de linguagem”
(OLIVEIRA, 2004, p.120), sendo então resultantes das combinações dos formantes no nível
intermediário do plano da expressão, os traços mínimos de toda e qualquer configuração
plástica. Em suma, ainda para a autora, “os formantes plásticos são unidades do plano de
expressão, que, quanto à sua identificação, podem corresponder a uma ou mais unidades
do plano do conteúdo” (OLIVEIRA, 2004, p.120).
Tais formantes são compostos pela articulação das dimensões não-figurativas: eidéti-
ca, cromática e matérica, as quais, em combinatória, compõem a dimensão topológica. As
figuras em articulação definem categorias, que são termos gerais reunidores das figuras
concretizadas pela articulação de formantes para compor plasticamente o objeto. As opo-
sições reto/curvo, vertical/horizontal, perpendicular/diagonal, etc., compõem a dimensão
eidética; esta é articulada à dimensão cromática, que é composta pelas cores e suas dife-
rentes tonalidades, saturações, combinações, entre outros; quanto à dimensão matérica,
também em articulação, é formada pelos materiais, suas texturas – no caso das revistas,
a gramatura, qualidade e textura do papel e a tinta para impressão seriam algumas das
qualidades matéricas do objeto. Esses três tipos de formantes são articulados e distribu-
ídos na topologia do arranjo plástico, sendo que a configuração desse e sua articulação
constituem escolhas paradigmáticas com as quais o enunciador dispõe as sintagmáticas
da manifestação.
No decorrer dessa pesquisa, o objeto revista será lido e analisado a partir da semiose
entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, que constroem a significação, dos re-
latos de sua composição plástica desde seu início, passando pelos processos de (re)cons-
28 trução e adaptação. No entanto é importante ressaltar que, nesse momento, nos detere-
mos à análise da composição dos formantes da expressão da revista, e que as revistas que
Moda (re)vista no Brasil

compõem o corpus deste trabalho terão suas devidas análises de composição plástica no
decorrer do capítulo.
Como citado anteriormente, algumas das primeiras revistas tinham folhas soltas ou “in
folio” – quando as páginas são dobradas ao meio formando uma espécie de caderno –, se
assimilando aos jornais, enquanto outras, de menor periodicidade, eram encadernadas e
costuradas ou coladas, de maneira similar aos livros.
Ao estudar como foi delineada a estrutura do livro como a conhecemos, Marc Bogo
(2014, p.148) relata que o formato habitual da leitura ocidental, com páginas escritas em
ambos os lados e dobradas ao meio, chamado de “códice”, pôde ser desenvolvido a partir
do uso do pergaminho. O “códice” permitia que o leitor pudesse segurar o objeto com ape-
nas uma mão, e que as folhas do pergaminho fossem “viradas ao invés de enroladas”, além
de diminuir os espaços ocupados pelas publicações. No ocidente, o pergaminho foi substi-
tuído pelo papel somente no século XIV e, pelo seu baixo custo de produção, possibilitou o
desenvolvimento da impressão no século XV.
A organização “in folio” – que compreendemos como um formato mais atualizado do
códice –, desencarecia e agilizava a produção em série e facilitava o aumento de sua perio-
dicidade, pois diminuía a quantidade de folhas de papel necessárias para a publicação de
todo o material.
Quando começaram a ser publicadas, as revistas se aproveitaram do mesmo papel
utilizado para os jornais, o papel jornal. Pela sua nomenclatura pode-se perceber que se
tratava de um papel exclusivamente utilizado e desenvolvido para o jornal. A materiali-
dade do papel permitia boas impressões, mas não tinha caráter de longa duração, pois
era feito com polpa de madeira por processos “grosseiros” que ainda deixavam impurezas
no material, tornando-o um material vulnerável à ação do tempo. Dos jornais, as revistas
também tomaram modelos de organização das informações e reportagens em colunas – o
que, mais tarde, se desenvolveu e propiciou à revista uma maneira própria de organizar-se
topologicamente no formato.
Já no final do século XIX e início do século XX, as novas tecnologias desenvolvidas per-
mitiram a elaboração de novos materiais e a impressão colorida. Assim, as capas passaram
a realmente envolver o miolo da revista, protegendo-o, além, é claro, de dar uma totali-
dade do escopo da revista, ou em certos momentos encenando alguma figura célebre
da sociedade, ou mesmo o que é mais comum nas capas de revista: dar um destaque à
reportagem de maior repercussão. A materialidade da revista, somada à sua configuração
eidética – de fácil manuseio – a tornava um objeto mais durável, que não precisaria ser
lida no mesmo dia ou em um só dia, o que a diferenciou definitivamente do jornal. Aliado 29
às formas de organização das informações, isso permitia uma leitura mais fragmentada,

Moda (re)vista no Brasil


seletiva e liberta da sequência pré-determinada dos cadernos, o que já nos diz algo sobre
seu destinatário-leitor.
Dos livros, as revistas tomaram emprestados seus formantes eidéticos. Ao analisarmos
a composição topológica das revistas, observamos que, quando fechadas, opõem a hori-
zontalidade à verticalidade, sendo a disposição da linha horizontal colocada em detrimen-
to à vertical, que cria a forma retangular da topologia na qual são distribuídas as dimensões
já exploradas. Tal formato sistematizou os modos de leitura ocidentais:

Figura 1: desenvolvida no ocidente, a organização “in folio” propiciava a leitura da esquerda para a direita e
de cima para baixo, reiterando as categorias /horizontal/ vs. /vertical/, /alto/ vs. /baixo/, /margem/ vs. /centro/,
/direita/ vs. /esquerda/, oposições que são dispostas e articuladas para dispor os elementos das páginas. Dessa
maneira, a espacialidade retangular é organizada topologicamente por textos verbais e/ou não verbais, cons-
truindo composições carregam o olhar do leitor pelas páginas. Fonte: produzido pela autora.
30
Moda (re)vista no Brasil

Figura 2: ao ser aberta, a forma do objeto é duplicada, o retângulo é ampliado e permite uma diferente com-
posição e disposição dos elementos da página. Esses podem ser dispostos da mesma forma, em uma só pagina.
Entretanto, há agora outros elementos com os quais interagem na espacialidade da revista; e mais ainda, a
largura e as linhas diagonais são ampliadas permitindo uma composição e disposição dos elementos nas e
pelas duas páginas, encenando um discurso homogêneo que se abre como uma grande tela. Fonte: produzido
pela autora.

O retângulo que dá forma à revista pode ser considerado enquanto espacialidade na


qual os elementos são dispostos e organizados e, por esse âmbito, podemos sustentar
que a composição topológica do retângulo se configura como uma “tela” de construção
de sentidos, na qual são encenados os discursos das revistas. Discursos esses em que seus
enunciadores (re)traduzem o mundo e os modos de vida da urbe em suas páginas. Esses
elementos são assim plasmados nessa tela do parecer, na qual são construídos simulacros
da vida urbana.
Com efeito, a revista é compreendida enquanto um objeto sincrético, o qual, como
explicita Oliveira (2009, p.80), tem sua totalidade de sentido processada pela integração de
“formantes de distintos sistemas”; assim, revistas são construídas pela reunião de formantes
do plano da expressão de jornais e livros, além de reunir e compor linguagens diversas,
como as verbais e não-verbais. Dessa forma, o vocábulo popularizado no Brasil designado
ao objeto revista abarca essas várias definições numa só construção sincrética, ou mesmo
num só enunciado: sua construção verbo-matérico-visual compreende um objeto mais du-
radouro, que busca revisitar fatos ocorridos ou aprofundar-se em fatos já abordados, de
forma crítica e opinativa; ao anunciar uma grande quantidade de propagandas e de produ-
tos variados, por vezes com encenações que simulam as próprias vitrinas, é capaz de tor-
nar-se quase uma magazine – revista comercial ou mesmo loja “física”; sua periodicidade, 31
enquanto hebdomadário, quinzenário, mensário, etc., lhe confere uma presença constante

Moda (re)vista no Brasil


e programada na vida e nas casas de seus destinatários.
Assim, o procedimento de análise do sincretismo desses formantes plásticos da revista
permitiu a compreensão de como se deu a construção de um objeto singular em relação
às demais mídias. A horizontalidade e verticalidade do objeto, aliadas à sua composição
matérica e, mais tarde, cromática – como poderá ser apreendido nas análises do corpus – a
levaram de um objeto quase indefinido, entre o jornal e o livro, para um objeto de exclusiva
configuração e altamente reconhecível. Nesse ponto é que a revista se estrutura enquan-
to gênero impresso que não é nem livro e nem jornal, mas reunião e tradução de suas
características, produzindo o novo para novas sociedades urbanas do final do século XIX.
Entretanto, mesmo enquanto objeto reconhecível, pode exercer um fazer sensível em seus
destinatários-leitores.
Como explicita Landowski (2014, p.19), a semiótica narrativa, até certo tempo, tratava
apenas de duas formas de interação que integravam o regime de junção: a operação pro-
gramada, fundada pela regularidade e, a manipulação estratégica, que “põe em relação
sujeitos regidos por um princípio geral de intencionalidade”; no entanto, como postulado
pelo autor em sua obra Interações arriscadas (2014), para dar conta “das práticas efetivas
de construção do sentido na interação, é necessário introduzir [...] pelo menos um tercei-
ro regime, fundado na sensibilidade dos interactantes: o regime do ‘ajustamento’12”. Além
desses três, o autor desenvolve ainda o regime do acidente, um regime pautado pelo acaso;
esses dois últimos são regidos, não pela junção mediada entre os sujeitos – e objetos inves-
tidos de valores de sujeitos –, mas por uma união entre sujeitos em relação.
No delinear conceitual do regime pautado pela sensibilidade, Ana Claudia de Oliveira
(2008a; 2013) desenvolve o que denomina de interações sensíveis. Nesse desenvolvimento,
depreendemos que, mais que um objeto per se – ou mais que um suporte –, a revista torna-
se um corpo destinado a interagir com o corpo de seu leitor. Dois corpos em interação, em
que um é programado pela sua espacialidade, plasticidade e encenação e, dessa forma, é
delegado a manipular e a interagir com este outro corpo: o do destinatário, que se ajusta
sensivelmente, reagindo ao seu tamanho, peso, materialidade e composição visual, manu-
seando-o e adentrando em suas cenas.
Nessa interação, ainda segundo a autora (OLIVEIRA, 2008a, p.32), a intencionalidade
do destinador não atua mais somente sobre a volição de seu destinatário, pautado pela
manipulação, mas também por meio de um fazer sensível sobre o destinatário, estabele-
cendo contatos e determinando os modos de presença sensível, corpo a corpo; e esse, o

12  Grifo nosso.


32 destinatário, compõe uma interação na qual ele tem o papel de qualificá-la por sua voli-
ção ou estesia.
Moda (re)vista no Brasil

Ao argumentar sobre a interação sensível no fazer mediático, Oliveira (2008a, p.32)


afirma que:

As duas corporalidades, a do destinador e a do destinatário, são observadas desde o


seu deixar apreender-se um pelo outro nos modos de entrosamento dos sujeitos, mos-
trando o seu assumir posições, os seus comportamentos, gestos, estilos, gostos que
são passados como modos de presença, modos de estar no social e apreensíveis não
só por uma racionalidade, mas, sobretudo, por uma sensibilidade que deles emana e
os faz ser sentidos.

Entre corpo-revista e corpo-leitor, a interação inicialmente ocorre pelo ato volitivo, pela
vontade do destinatário que quer estar junto à revista, segurando seu corpo e virando suas
páginas, isso é o que determina esse contrato que se torna contato. Nesse último, os dois
sujeitos, em estado de união, encontram-se “junto[s] em mundos das mídias [...] enquanto
formas de vida que estão no contínuo processo de vir a ser” e, nessa união, as revistas (re)
traduzem o mundo e constroem as “cenas espetaculares da vida estetizada” que fazem ser
o sujeito das novidades da moda (OLIVEIRA, 2008a, p.33-34).
Assim, do ponto de vista narrativo, para que as revistas interajam com seus destinado-
res, devem ser objetos programados para tal. Por esse âmbito, a revista de público geral
tem um, ou mais de um papel temático, que delineia o seu campo de ação (LANDOWSKI,
2014). O papel temático seria a representação actancial de um tema ou de um percurso
temático, e esse, por sua vez, é compreendido como a manifestação isotópica de um tema
e pode ser condensado enquanto papel temático (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p. 496).
A revista, enquanto objeto programado, de acordo com Landowski (2014, p.24), teria
papéis temáticos, os quais são condicionados às situações socioculturais, mas não somente:

[...] sendo o objeto de aprendizagens e se exprimindo por práticas rotineiras, trata-se


de regularidades cujo princípio deriva da coerção social, ou mesmo se confunde com
ela [...]. nada impede de aplicar às relações entre as ‘pessoas’ o mesmo modelo de ges-
tão programática que aquele que se considera mais apropriado quando se trata da ges-
tão de nossas relações com os objetos ‘inanimados’. É precisamente o que a gramática
do fazer ser autoriza por princípio e sem reserva ao estender, sob o manto da noção
aparentemente neutra de papel temático, a ideia de estritas regularidades de compor-
tamento a todos os tipos de atores possíveis.

Mesmo conceituada, em primeira vista, enquanto um objeto “inanimado”, a revista tem


um corpo que é vestido e revestido com diversas cores e materialidades. Isso implica que
ambos, manipulador e manipulado, possuem o estatuto e as competências de sujeito, pois
só um sujeito teria condições de manipular outro. Ao ser assim investida, a revista carrega
valores e prescreve tais valores; em outros termos, as revistas de público geral teriam não
só o papel de informar e/ou entreter seus leitores, mas também, como veremos, um papel 33
educativo por seu caráter prescritivo que é manifestado isotopicamente – educando, tanto

Moda (re)vista no Brasil


por seu caráter informacional quanto por prescrever novos modos de consumir que cons-
troem no leitor o gosto pela aparência de seu tempo.
Considerando que, ainda de acordo com o autor (LANDOWSKI, 2014, p.22), “[...] mani-
pular é sempre imiscuir-se em certo grau na ‘vida interior’ de outrem”, a revista – já em um
status de sujeito – busca, estrategicamente, senão o desenvolvimento de competências de
seu leitor, o seu “‘querer-fazer’ que o levará a agir”: a revista é para fazer ser o seu destina-
tário. Essa, então, é programada por meio de um fazer manipulativo do destinador, o qual
opera os elementos do discurso que fazem ser novas realidades ao encenarem a “vida” de
corpos circulantes, com suas vestes e ornamentos.
Abaixo, ilustramos, a partir dos postulados de Landowski (2014), uma tríade que rege
essas interações:

PROGRAMAÇÃO ACIDENTE
Princípio de Princípio do
intencionalidade acaso/causalidade
Revista Termo vazio
JUNÇÃO

UNIÃO
Revisteiro Revistador
Princípio de Princípio de
regularidade sensibilidade
MANIPULAÇÃO AJUSTAMENTO

Esquema 2: Trata-se de uma tríade das relações que regem essas interações. Entre revista e revisteiro tem-se
uma implicação estabelecida entre os termos, indo da manipulação à programação, compondo relação de
complementaridade; entre revista e leitor a interação se dá da programação ao ajustamento reativo desse,
construindo uma relação bilateral entre um e outro.

O percurso dessa tríade inicia-se pela manipulação feita pelo sujeito que opera e cons-
trói o corpo revista, compõe suas páginas e discursos: trata-se do revisteiro, o “jornalista
hábil em dirigir ou secretariar uma revista13”; as revistas, sujeito construído pelo fazer-ser,

13  CALDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguêsa, op. cit.


34 programado a interagir com o corpo de seu leitor, cumprindo seu papel, e, pelos procedi-
mentos de manipulação que incorpora, pode levar o leitor a um querer-ser como os corpos
Moda (re)vista no Brasil

vestidos da moda que encena; nessa interação, cabe ao sujeito-destinatário, ao leitor, ou


mesmo ao revistador – “aquele que manipula a revista14” – uma competência estésica para
sentir esse outro corpo e sentir-se nessa relação.
As revistas tornam-se sujeitos e têm seu corpo-mídia (in)vestido, sendo delegado a elas
“o cumprimento desse gênero de operações pragmáticas: [...] o fazer ser cede lugar ao fazer
fazer” (LANDOWSKI, 2014, p.22), indo dos princípios de regularidade da programação aos
princípios de intencionalidade da estratégia. Nesse ponto, a interação se dá pelo ajusta-
mento sensível reativo, entre revista e leitor, e assim, tal relação é pautada pelo regime de
união, justamente o qual mencionamos pelo estar junto – corpo do leitor e corpo da revista.
Esta interação que vai da programação à sensibilidade, entre o corpo da revista e o corpo
do leitor, será melhor abordada e de forma mais aprofundada na análise das corporeidades
da Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete, pois serão consideradas as dimensões de cada revista,
que modificam essas interações.

2.2 Histórias da moda no Brasil enquanto histórias da mídia impressa brasileira

A moda vai muito além das vestimentas, é prática social, é texto plasmado nas páginas
que compõem as corporeidades das revistas e, hipoteticamente, é partícipe da construção
dos modos de vida das sociedades. Como nos propomos a estudar os modos da moda no
século passado, entendemos conforme Fiorin e Platão (2005, p.27) que “[...] todo texto é
um pronunciamento sobre uma dada realidade”, por isso, realizaremos em um primeiro
momento um estudo diacrônico, no qual buscamos, segundo Floch (2001, p.14), o “valor
adquirido por um fenômeno ‘através do tempo’”.
A partir desse atravessamento da história, veremos como já nas primeiras revistas ver-
bo-visuais são construídos, de acordo com Oliveira (2007a, p.16), “discursos da aparência
[que] põem em circulação um fazer estar que faz fazer”, que assim transformam-se no fazer
ser em uma sociedade cada vez mais letrada e habituada às linguagens verbo-visuais mi-
diáticas.
Iniciaremos elucidando, brevemente, alguns fatos do período colonialista. Explanare-
mos que desde o início da colonização do Brasil, a moda já era parte das trocas, identifi-
cações e diferenciações entre colonizadores e colonizados. Feito isso, para melhor com-
preensão do objeto, abordaremos as histórias da moda relacionando-as às histórias das
revistas brasileiras, indo do período do Brasil Colônia, passando pelo Império e chegando
aos primórdios da República.

14  Idem.
2.2.1 Uma retomada histórica: Colonizadores e Colonizados 35

Moda (re)vista no Brasil


Os autores Luiz André do Prado e João Braga (2011, p.20), ao retomarem o “longínquo 21
de abril de 1500, quando a frota de Pedro Álvares Cabral aportou o litoral baiano”, afirmam
que “as primeiras trocas entre portugueses e indígenas, na tarde do dia 23, já envolveram
o vestuário.
Tal trecho elucida a moda e o vestuário enquanto importantes adjuvantes nos con-
textos social, econômico e político, na construção e desenvolvimento das sociedades oci-
dentais. O choque cultural entre os índios com poucas vestes e os portugueses cobertos
por vestes e adornos, obviamente, foi enorme. Nesse âmbito, o vestuário fora sempre im-
portante como um dos meios de colonizar e ocidentalizar os países da América que foram
descobertos, ou melhor, “achados”; cobrir as “vergonhas” dos nativos que encontraram era
primordial para que pudessem dominar e catequizar.
Como conceitua Gruzinski (2001), os nativos, principalmente no período da coloniza-
ção, se configurariam em sociedades abertas ou “quentes”, aptas a incorporar característi-
cas de alteridades com as quais tinham contato. Enquanto os “descobridores” partiam da
Europa Renascentista, na qual as sociedades de seus países – considerando suas respecti-
vas diferenças – se configuravam como “frias” e fechadas, tendo como objetivo maior do-
minar e expandir seus territórios. Termias essas que podem ser relacionadas à temperatura
mesma desses continentes, sendo a Europa “fria” e a América do Sul “quente”. Nessa última,
os hábitos vestimentares desenvolvidos para proteger-se do frio europeu, eram utilizados
de altas temperaturas e com pouquíssimas adaptações ao clima sul-americano.
Assim, esse processo de ocidentalização, segundo Gruzinski (2001, p.95), “assumiu for-
mas diversas, quase sempre contraditórias [...] uma vez na América, uns e outros empenha-
ram-se em edificar réplicas da sociedade que haviam deixado para trás”. Mas tais réplicas
não seriam cópias propriamente ditas, e sim passariam por processos que poderiam ser
chamados de abrasileiramentos. Por exemplo, as construções arquitetônicas não seriam
réplicas exatas, pois seriam construídas com outros materiais, em outro terreno, sob outras
temperaturas e com um tempo diferente de exposição ao sol; são processos tradutórios fi-
gurativos pelos quais passaram todos essas construções, tanto materiais quanto imateriais,
a fim de edificar uma ideal nação fora do continente europeu.
Os indígenas passaram a reproduzir hábitos e indumentárias, incorporando técnicas e
aprimorando os produtos ao contexto em que se inseriam. Ainda de acordo com Gruzinski
(2001, p.101), “a espionagem dos menores gestos, a decomposição meticulosa das etapas
de fabricação e sua memorização” fizeram com que os índios apreendessem esses hábitos
das alteridades de maneira muito rápida e mimética, mas quase sempre por processos em
que ocorriam interpretações inventivas, traduções, adaptações. A “fabricação desses obje-
36 tos de estilo europeu” oferecia aos compradores, fossem eles indígenas ou ‘colonizadores’,
os menores preços em relação aos produtos importados. A concepção da reprodução para
Moda (re)vista no Brasil

os europeus deixava margens a diferentes interpretações, a invenção ao copiar era permi-


tida aos índios, ainda que “por essência, [a reprodução dos produtos se configurasse como]
a manifestação da superioridade dos vencedores” (GRUZINSKI, 2001, p.107).
Como explana o autor, o “mimetismo imposto pelo Ocidente” (GRUZINSKI, 2001, p.106)
se desvia e se encontra em outros territórios “sob as aparências enganosas da cópia fiel”,
como resultados típicos dessas situações em que se encontram em confronto – tanto físico
quanto simbólico – os ocidentalizadores e ocidentalizados. O impacto da colonização obri-
gou as sociedades que já se encontravam no continente a se adaptarem a fragmentos e os
decodificarem e, assim, “de tanto justaporem de maneira ocasional e aleatória os dados e as
impressões [...] recolhidos, formam conjuntos jamais fechados em si mesmos” (GRUZINSKI,
2001, p.91). Este contexto heterogêneo acaba estimulando a capacidade dessas socieda-
des, incluindo a brasileira, de se adaptar e se rearranjar diante às diferentes situações e aos
diferentes encontros.
Como uma espécie de duplicação, Gruzinski (2001, p.95) afirma que “sob outras aparên-
cias, com outros conteúdos e ritmos, a ocidentalização prosseguiu até os dias de hoje”, por
meio de um desenvolvimento sistemático do território e da sociedade. Nesse conceituar,
o Brasil é compreendido como um país composto por uma sociedade aberta, ou seja, nas
“condições de dialógica aberta” que permite essas transcriações e incorporações do outro, e
nisso estão inclusos os produtos de vestuário e a moda (MORIN, 1991, p.21).
O que há hoje nas modas que transitam pelo país, no que é comunicado sobre e pela
moda, é em parte consequência desse desenvolvimento colonialista, do tipo que permite,
e de certa maneira, incentiva a duplicação de hábitos, costumes, modos e modas. Portanto,
é importante reconhecer e compreender os traços desse desenvolvimento, desses proces-
sos tradutórios que ainda se configuram como importantes constituintes da sociedade, nas
práticas de dialogar com o outro.

2.2.2. Moda (re)vista: do Brasil colonial ao Brasil República

Dado o contexto inicial, partimos para a contextualização histórica da imprensa no Brasil,


relacionando-a à história da moda brasileira, mais especificamente, à história das revistas
e dos modos da moda que elas colocavam em circulação pelo país, desde sua criação en-
quanto gênero impresso.
As primeiras revistas brasileiras eram primordialmente eruditas e não remetiam muito
à configuração de revistas atuais que analisamos, a qual foi desenvolvida no decorrer do
século XX. No Brasil colônia as publicações eram completamente proibidas, e os locais de
impressão descobertos eram destruídos a mando da realeza. Com a chegada da corte por- 37
tuguesa ao Brasil – fugindo da ameaça de invasão de Napoleão –, logo no início do século

Moda (re)vista no Brasil


XIX, em 1808, veio, além da autorização de abertura dos portos, a permissão para imprimir
em território nacional, com a instalação da imprensa régia, autorizada por D. João VI. Com
isso, já foi iniciada a primeira publicação oficial da Corte, a Gazeta do Rio de Janeiro, o pri-
meiro jornal impresso no Brasil.
Nesse cenário, houve a “invasão do Brasil” pelos produtos importados. Assim, as
vestes portuguesas, que sempre foram referências para os modos de vestir-se no Bra-
sil, tornam-se mais presentes no dia-a-dia brasileiro. Vale ressaltar que essa moda já era
construída a partir de traduções de referências bem delineadas: as mulheres vestiam-se
à moda de Josephine (figura 3), esposa de Napoleão, como podemos ver no retrato de
Carlota (figura 4).

Figura 3: Retrato de Josephine no qual notamos tra- Figura 4: D. João VI e Carlota Joaquina em retrato de
ços que são reproduzidos nas vestes de Carlota, em Manuel Dias de Oliveira, em óleo sobre tela, datado em
seu retrato, abaixo. Óleo sobre tela, Firmin Massot, fins do século XIX. Fonte: Retratos Reais portugueses.
1812. Fonte: Web Gallery of Art.

Com traços remanescentes da moda pós-revolução francesa, as mulheres se vestiam


com mais simplicidade, os vestidos eram mais retos e de tons mais claros, a cintura era
marcada logo abaixo dos seios, apenas com mangas bufantes, poucos adornos e cabelos
presos. Os braços e o colo feminino ficavam à mostra, dando evidência a essas partes do
corpo feminino.
38 No retrato da realeza (figura 4), D. João VI veste trajes oficiais, no entanto, notamos
alguns traços da moda inglesa que vigorava sobre os modos de se vestir masculinos, pois
Moda (re)vista no Brasil

os homens portugueses não poderiam vestir-se aos moldes de uma nação que ameaçava a
soberania de seu país (a França). A cintura era marcada por coletes curtos e calças cobertas
por meias até a altura dos joelhos, tudo bem ajustado ao corpo, delineando um corpo mas-
culino que deveria ser volumoso; o colarinho alto e engomado expressava a austeridade e
virilidade exigida aos homens.
Um pouco depois da liberação de impressão e do vasto e variado número de produtos
importados, tem-se conhecimento da primeira revista brasileira, a Variedades ou Ensaios de
Literatura (figura 5), criada em 1812 na cidade de Salvador. De acordo com Íria Baptista e
Karen Abreu (2010, p.2), a revista seguia os “modelos de revistas utilizados no mundo edi-
torial da época”; costumava publicar autores clássicos portugueses e novelas, assim como
discursos sobre virtudes e bons costumes na sociedade. Em suma, a primeira revista publi-
cada no Brasil tratava-se de uma revista de variedades e educação social. A Variedades teve
apenas duas edições e não tinha caráter noticioso. Nela, moda e bons costumes, que eram
ditados pela nobreza, eram doutrinados e incorporados no nordeste brasileiro.

Figura 5: Fragmento da capa da revista Varie-


dades ou Ensaios de Literatura, do ano de 1812.

Em 1813, surge no Rio de Janeiro a revista O Patriota, cujo próprio nome já nos dá indícios
de seu cunho partidário, mas sua intenção, de acordo com Nelson Sodré (1999), era forjada,
assim como a revista Variedades. Tudo em busca de tentar abafar os “gritos” da Correio Brazi-
liense – a qual será mencionada a seguir. O Patriota costumava publicar autores e temas na-
cionais, mas era financiada pela elite intelectual da época, composta de maioria portuguesa.
Nesse cenário, a imprensa régia até meados do século XIX, próximo à proclamação da 39
Independência, contava com poucos diários, semanários ou mensários, pois produções

Moda (re)vista no Brasil


independentes não eram permitidas pela Corte. Aquelas que eram permitidas traziam in-
formações variadas, para o entretenimento e/ou de caráter mais funcional – como os heb-
domadários – para o limitado público-leitor, considerando que o número de alfabetizados
no Brasil era ínfimo e praticamente se limitava aos mais abastados. O país importava muitas
publicações, principalmente da Inglaterra e da França, pois naqueles tempos “a coroa não
queria saber de imprensa, informação ou discussão de ideias que pudessem contestar a
sua soberania”, ainda assim, os esforços da Coroa em proibir os impressos não foram sufi-
cientes para calar os descontentes com o cenário (ALI, 2009, p.317).
Assim como a Variedades, em 1808, surgia a revista Correio Braziliense, editada e impres-
sa em Londres por um brasileiro exilado. Com ideias revolucionárias, pregava a liberdade
de imprensa nos seus discursos ao circular pela colônia brasileira, o que é ressaltado por
sua existência datar-se até o ano da Independência, em 1822. Essa revista foi crucial para o
estopim da Independência, à medida que tinha alta circulação também na Inglaterra e em
Portugal, com a sua abordagem de novas ideias e possibilidades em meio à elite intelectual
que residia no além-mar (ALI, 2009, p.317).
Em 1815, com a Europa pós-guerra e a derrota de Napoleão, sucedem em Portugal
dúvidas sobre a necessidade da permanência da corte no Brasil. Entretanto, Dom João de-
cidiu ficar no País, e “elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves”, e
após a morte da rainha, foi sagrado o rei de Portugal, do Brasil e Algarves sob o título de
Dom João VI (FAUSTO, 2002, p.71). No cenário europeu, a restauração da monarquia fran-
cesa estimulou a volta do conservadorismo, invocando referências românticas do período
renascentista (FOGG, 2013).
Em Portugal, já em 1820, irrompeu uma revolução liberal que buscava saídas para uma
situação de crise profunda no país, fortificada inclusive pela ausência do rei e dos gover-
nantes. Dessa forma, os revolucionários estabeleceram a Junta Provisória e exigiam o re-
torno do rei a Portugal. No Brasil, os que se interessavam pela subordinação do país a Por-
tugal defendiam o retorno do rei, enquanto o “partido brasileiro”, constituído por grandes
proprietários rurais, burocratas e políticos brasileiros, procuravam a permanência do rei e o
estabelecimento do Brasil como país e reino.
Temendo perder o trono, em 1821 Dom João VI retorna a Portugal, e denomina seu
filho Pedro – futuro Dom Pedro I – o príncipe regente do Brasil. O país passou novamente à
total subordinação a Lisboa. Ao príncipe regente também era exigido o retorno a Portugal
e, não concordando com o fato, declarou que ficaria; assim se deu o “dia do fico” (em 9 de
janeiro de 1822). A partir disso, sucederam-se atos de ruptura com Lisboa, que levaram à
declaração da Independência pelo então Dom Pedro I, imperador do Brasil, no dia 7 de
40 setembro de 1822 (FAUSTO, 2002, p.73). O Imperador casou-se com Maria Leopoldina da
Áustria (figura 6), mas seu romance com a Marquesa de Santos (figura 7) foi famoso, pois,
Moda (re)vista no Brasil

além de ser nomeada pelo Imperador como dama de companhia da Imperatriz, também se
destacava pelo charme e elegância que exibia nos salões paulistanos e cariocas.

Figura 6: Trata-se de um dos poucos retratos disponíveis Figura 7: Retrato da Marquesa de Santos, amante
de Mª Leopoldina, de 1815. Nota-se o arranjo dos cabelos de Dom Pedro I. Em 1826, era conhecida por vestir-
e a brancura da pele que é destacada pelo aspecto rosa- se sempre bem. As mangas compridas e bufantes,
do das bochechas, um padrão de beleza para a pele até chamadas de Donna Maria, contavam com pre-
então. A Imperatriz apoiou as decisões políticas de seu gas e adornos, a cintura marcada pelo inovador
marido. Faleceu em 1826. Fonte da imagem: Wikipedia. recorte da linha princesa e a saia mais ampla dão
destaque a aumentam partes da silhueta feminina,
como busto e quadril. Fonte da imagem: Museu da
cidade SP.

Em tal contexto, a moda romântica inicia sua voga e determina “diferenças radicais en-
tre os gêneros, com trajes de inspiração militar para os homens e roupas para as mulhe-
res que enfatizavam a [construída] fragilidade feminina, com cinturas finas e bustos fartos”
(FOGG, 2013, p.130). Aos poucos, na primeira fase do romantismo, os modelos e saias retas
foram substituídas pelo recorte evasê que delineava a linha “A” e se estendia até o chão; seu
volume era aumentado pelas camadas de anáguas, anquinhas e crinolinas que utilizavam.
Os volumes femininos eram ampliados pelos volumes das roupas, as mangas agora eram
compridas e o uso de luvas era essencial, ainda assim, o decote foi ampliado e deixava os
ombros de fora.
Na moda masculina, as referências eram os dândis ingleses. A cintura foi bem mais 41
marcada, de tal forma que na Inglaterra e na França os homens chegaram a usar espar-

Moda (re)vista no Brasil


tilhos para afinar a cintura, os volumes eram dados por pregas nas calças e sobrecasacas
que se ampliavam a partir da cintura. As cores eram mais austeras e o colarinho permane-
cia alto e engomado. Nota-se que, até então, não são retratadas diferenças entre a moda
europeia e a moda utilizada no Brasil, num período em que ainda não havia produção
local no setor.

Figura 8: Retrato de Dom Pedro I (s/d) no qual notamos a Figura 9: Na imagem temos ilustrados os modelos
austeridade oriunda dos trajes militares, com ares de al- da primeira fase do romantismo, em que as man-
faiataria e bem ajustado ao corpo, que se abre, também gas femininas eram tinham volumes exagerados;
em linha “A” a partir da cintura. Nota-se que o Imperador nota-se a linha “A” criada pelos modelos, tanto no
guarda suas luvas entre os botões de sua sobrecasaca. corpo feminino quanto no masculino. Arranjos e
Fonte: Veja online. cortes de cabelo e barba também se assemelham
aos dos retratos do imperador e de sua amante.
Fonte: Fashion Bubbles.

Na charge abaixo, são satirizados os modelos acinturados de homens e mulheres, exal-


tando seus atributos, e já principiando uma segunda fase do romantismo, a qual chegou
um pouco mais tarde ao Brasil:
42
Moda (re)vista no Brasil

Figura 10: Trata-se de uma charge europeia, de 1822, nomeada “Monstruosidades”, na qual são retratadas de
maneira caricata a moda feminina e masculina da época. As mulheres, com suas anquinhas, mangas que já não
eram tão bufantes, seios e cintura exaltados e modelados por espartilhos; o volume da linha “A” é concentrado
na região dos glúteos pelo uso de anquinhas maiores; pés e canelas agora podiam ser vistos pelo comprimento
mais curto das saias na parte frontal. São retratadas as cores e estampas da moda do vestir masculina e, ainda,
a cintura masculina é demarcada e constrita. Na imagem, como em uma competição, parecem comparar as
maneiras de vestir-se de cada gênero.

Enquanto a moda no Brasil se mantinha aos padrões europeus, nesse turbulento ce-
nário sócio-político, a imprensa se tornara adjuvante tanto dos revoltosos quanto dos não
revoltosos. Poucas eram as publicações permitidas. Uma delas era o Diário do Rio de Janeiro,
um jornal diário que iniciou suas publicações em 1821 (circulando até 1878), e era edita-
do por um português da própria Corte. Colocou-se como a própria voz da capital e, por
consequência, do país. Tal publicação conquistou apelidos como “Diário do Vintém”, pelo
preço exacerbado e “Diário da Manteiga”, por trazer os preços da manteiga que chegavam
à Corte – por essas informações, já se pode apreender a quem a publicação se destinava
(SODRÉ, 1999, p.51).
Claramente, não se tratava de uma publicação que abordasse e informasse a popula-
ção sobre temas políticos e sociais, pois nem mesmo noticiou a proclamação da Indepen-
dência. Na ânsia por divulgar e trocar informações sobre a situação política, social e cultural
brasileira, surgem algumas publicações clandestinas, principalmente na região nordeste
do país, como o Diário Constitucional (circulando no Nordeste a partir de 1821). Esse, de
acordo com Nelson Sodré (1999, p. 51), foi “o primeiro periódico que defendeu os interes-
ses brasileiros, quebrando a monotonia da imprensa áulica” e que “apareceu com intenção
de travar luta política”. O Diário contava com a seguinte epígrafe: “A verdade que eu conto 43
nua e pura, / Vence toda a grandíloqua escritura”, assim, indo de encontro à dominação da

Moda (re)vista no Brasil


imprensa, lutava pela mudança de governo local e pela reforma política nacional, impondo
maior presença de políticos brasileiros.
Também em 1821 (e até 1822), começou a circular no Rio de Janeiro o Revérbero Cons-
titucional Fluminense, que, de acordo com Sodré (1999, p.53), “se tornaria o órgão doutri-
nário da Independência brasileira”, sendo redigido por dois brasileiros “amigos da nação e
da pátria” e composto por artigos de caráter doutrinário, acompanhando o processo de
conquista da Independência.

Figura 11: Acima, capa da publicação Revérbe-


ro Constitucional Fluminense, do ano de 1822.

Publicações como essa pululavam, principalmente após a declaração de Indepen-


dência e maior liberdade da imprensa brasileira. Antes, num grito (quase) uniforme pela
independência e reforma política e, mais tarde, em vários gritos independentes por di-
versos rumos político-sociais. Dentre esses vários clamores, muitos eram de resistência
à política de Dom Pedro I, que consideravam realizar uma política que favorecia Portu-
gal. Devido à dura resistência que enfrentava, em 1831 ele abdica do trono e retorna a
Portugal, deixando seu filho Dom Pedro II como príncipe regente, com apenas seis anos
de idade. Tendo como tutor José Bonifácio de Andrada e Silva, ele assume o poder ao
completar quinze anos (FAUSTO, 2002). Nesse entremeio, havia disputas políticas entre
44 grupos que queriam o retorno do Imperador, enquanto outros já assimilavam e prega-
vam ideais republicanos.
Moda (re)vista no Brasil

Dom Pedro II casou-se com Tereza Cristina de Bourbon, princesa do reino das Duas
Sicílias e última Imperatriz do Brasil. Por meio de um retrato, que é aqui mostrado (figura
12), o jovem Imperador aceitou o casamento arranjado para unir os dois reinos. De manei-
ra gradativa, a moda dos volumes, cores e texturas foi transformando-se em uma moda
mais austera.

Figura 12: Retrato da então Princesa Tereza Cristina de Bourbon, em 1843. Nota-se que suas vestes têm cores
mais austeras, com menos volumes e babados; seu cabelo é meio preso e meio solto, deixando seu rosto em
maior evidência. Fonte da imagem: Wikipedia.

Nesse cenário, jornais e revistas tornaram-se instrumentos informacionais de teor mais


político e que buscavam discutir temas considerados importantes à nação. Os jornais, rá-
pidos na distribuição de informações diárias, e as revistas – com temas um pouco mais
variados –, continham informações e construções mais elaboradas, abordando muitos dos
temas da semana ou do mês de maneira mais completa e, por vezes, mais complexa (MAR-
TINS, 2001, p.39).
Em tempos nos quais a moda feminina transforma-se, surge outra das primeiras revis-
tas brasileiras de que se tem conhecimento, a revista pernambucana O Espelho Diaman-
tino (1827-1828), a primeira revista feminina do Brasil que abordava temas como política,
literatura, moda e artes, destinada às “senhoras brasileiras”. A mesma revista ressurge mais
tarde sob o nome de Espelho das Brasileiras, de cunho mais político e feminista, com textos 45
e literatura feministas, mas com circulação restrita ao ano de 1831 (ALI, 2009, p.319-322).

Moda (re)vista no Brasil


É possível conceber que as revistas no Brasil eram ligadas à produção literária e, em
1849, essa relação se estreita com a Marmota Fluminense (1849-1864) – que se colocava
como um “jornal de modas e variedades”. Nesta revista é publicado o primeiro trabalho de
Machado de Assis, sendo considerada “ponto de encontro dos escritores da época” e con-
firmando a vocação das revistas literárias que se estendem à primeira metade do século
seguinte (ALI, 2009, p.325).
A moda no ocidente, na medida em que se torna mais simplista nos tecidos e adornos,
tanto nas vestes masculinas quanto femininas, prevê o retorno dos grandes volumes nas
saias femininas: é o estilo vitoriano que se refere à moda do reinado da Rainha Vitória e de
Eduardo VII na Inglaterra (figura 13). São desenvolvidos novos e ágeis métodos de costura
e fabricação de tecidos, o que agiliza a produção de roupas; o molde de papel, ainda uma
novidade, também permitiu o início da fabricação “em série” das roupas (FOGG, 2013, 146-
147). Como buscavam volumes para as saias femininas, as novas tecnologias também pro-
piciaram a criação de uma crinolina mais moderna – uma armação extremamente ampla
e pouco prática que, no entanto, permitia maior movimentação e leveza se comparada às
estruturas utilizadas anteriormente.

Figura 13: Modelo de crinolina utilizada na era vitoriana da moda. As mulheres precisavam de várias auxiliares
para vestir-se. Nesse período foi estipulado e regulamentado o uso do preto para o luto e do branco para o
casamento. Fonte da imagem: Getty Images.
46
Moda (re)vista no Brasil

Figura 14: Retrato da família imperial em 1857, no qual se encontram o Imperador D. Pedro II, a Imperatriz
Maria Tereza e as princesas Isabel e Leopoldina. Nessa imagem, notamos que a moda masculina já é muito dife-
rente e muito mais austera que a dos dândis no início do século; é a partir desses anos que as vestes masculinas
tornam-se, quase obrigatoriamente, pretas. O volume da saia da Imperatriz evidencia o uso da crinolina, bem
como as vestes de suas filhas, em que podemos observar o volume arredondado que criava ao redor do corpo.
Poucos eram os adornos e o cabelo era simples.

Em 1858, Charles Worth funda sua empresa de costura na França e inova com técnicas
de produção, desenvolvendo a chamada “alta costura”. Com o desenvolvimento das indús-
trias e do comércio, a nobreza, e agora a burguesia, tinham dinheiro para consumir (FOGG,
2013). Foi a partir de Worth e seus trabalhos inovadores com marketing e vendas que a alta
costura:

[...] passou a identificar técnicas de roupas feitas sob medida e moda sofisticada [...]
[houve] a transformação de uma arte basicamente doméstica em uma indústria inter-
nacional (FOGG, 2013, p.172).

Assim surgiram os grandes e renomados estilistas da alta costura, a quem antes não
era dado crédito. Para promoverem-se, esses estilistas começaram a publicar seus “novos”
modelos em revistas da área, e identificavam sua marca, seu nome. Nesse cenário, emergiu
uma das primeiras revistas ilustradas que circularam no Brasil, o “Jornal das Famílias” (1863) 47
(figura 15) que era editada em Paris e trazia de lá os figurinos em voga, os moldes desses,

Moda (re)vista no Brasil


receitas, conselhos de beleza, notas religiosas, textos literários, entre outros (ALI, 2009). A
França, com seus grandes estilistas, volta a ser referência principal dos modos da moda,
ao menos para o público feminino, pois a moda masculina padroniza-se pelo smoking ou
sobrecasaca com modelagem um pouco menos acinturada, cartolas para a noite e chapéu
homburg para o dia, bengalas e sapatos ponteagudos. Para eles, a referência continua sen-
do o corte perfeito das alfaiatarias inglesas.
“O Brasil é o café e o café é o negro” (FAUSTO, 2002, p.104): essa é a frase que ecoava pelo
país que tinha sua economia baseada na fabricação de café e sua mão de obra essencial-
mente escrava. O país adiava a abolição da escravatura enquanto outros países já o faziam.
A “Inglaterra não cruzou os braços diante da inércia do governo brasileiro” e autorizou sua
frota da marinha a considerar qualquer navio negreiro como um navio pirata, impedindo
sua chegada ao Brasil. Somado a isso, a Inglaterra, um país referência, ameaçava cortar
suas alianças e subsídios fornecidos. Em 1871, a Princesa Isabel (figura 16) torna-se regente
e, aos poucos, o Brasil foi cedendo pela Lei do Ventre Livre e pela extinção do tráfico de
negros. Sua catolicidade fervorosa estreitou ainda mais as relações entre Igreja e Estado. À
moda, empregou mais austeridade, distanciando-se um pouco das referências.

Figura 15: Capa da revista “Jornal das Famílias”, de Figura 16: Fotografia da Princesa Isabel em 1867. In-
1866, retratando senhoritas com suas gestualidades e corporava austeridade às suas vestes e na sua regên-
suas vestes da moda. Fonte: Mercado Livre. cia, mas mantendo características do estilo vitoriano
em voga. Fonte: Revista de Hsitória.
48 Em 1887, já num período de decadência do Império, surge a Revista Ilustrada, a primei-
ra revista ilustrada e de caráter noticioso do Brasil. Era quinzenal e suas ilustrações eram
Moda (re)vista no Brasil

feitas por Ângelo Agostini, considerado o primeiro e ainda um dos maiores caricaturistas
brasileiros. Seu modelo era inspirado na revista francesa L’Illustration. Continha apenas oito
páginas e sua tiragem foi a de maior número até então na América do Sul, com quatro mil
exemplares, sendo a primeira revista brasileira de alcance nacional. Sua principal caracte-
rística, a ilustração, permitia que não-letrados também pudessem “ler” as edições, o que
possibilitou o aumento considerável de suas publicações. Em suas páginas foi retratada a
abolição da escravatura, proclamada por Isabel em sua terceira regência, e assim iniciaram-
se as grandes imigrações para o Brasil, um país que estava em busca de uma nova mão-
de-obra. Essa revista foi importante adjuvante político e social, propiciando espaço para
discussões importantes como a própria abolição e a proclamação da República, sempre
convergindo diferentes linguagens de manifestações verbo-visuais.
No final do século XIX, o mercado aumenta para as revistas ilustradas com ilustrações
de qualidade e, muitas vezes, coloridas. O Brasil, em 15 de novembro de 1889, tem sua Pri-
meira República proclamada. A instabilidade política ainda era muito intensa, os interesses
não mais eram bipartidários, mas pluripartidários, os interesses e intenções eram diversos,
e muitas vozes queriam falar, agora que a imprensa se tornara “livre” (FAUSTO, 2002).

Figura 17: Capa da Revista Ilustrada de 1887. Detalhe Figura 18: Capa da revista A Cigarra, de agosto de 1895.
para a ilustração de Agostini que retrata o Imperador
Dom Pedro II dormindo, figurando sua posição em re-
lação à política na época.
Nos Estados Unidos, a expansão econômica pós-guerra civil propiciou o desenvolvi- 49
mento de diversas tecnologias para a publicação de periódicos. Em países europeus como

Moda (re)vista no Brasil


a França e a Inglaterra, a economia também ia bem e, da mesma forma, novas tecnologias
foram desenvolvidas. Assim, a impressão rápida e a cores permitiu uma maior tiragem das
revistas, ainda em pequeno formato, o que somado aos patrocínios dados por empresas
que queriam suas propagandas impressas nessas revistas, barateou os custos de produção
e permitiu que as revistas ilustradas chegassem a um público mais amplo.
Algumas dessas mesmas tecnologias chegaram ao Brasil e, a partir daí, formaram-se
pequenas empresas com essa capacidade de maquinaria. Assim houve o surgimento de
revistas como A Cigarra (1895), uma revista carioca, com editoração similar às publicações
parisienses. Seu redator chefe era Olavo Bilac, que publicava suas crônicas sobre o “cotidia-
no, costumes e pensamento da elite carioca” (ALI, 2009, p.344). A Cigarra tratava de temas
gerais que envolviam, além de temas do cotidiano, artes, literatura, política e economia, se
destinando, portanto, a um público mais geral.
No decorrer do século XIX, a revista entrara em moda na Europa. Em um cenário pro-
pício, o gênero ascendeu pelo “mérito de condensar, numa só publicação, uma gama dife-
renciada de informações, sinalizadoras de tantas inovações propostas pelos novos tempos”
(MARTINS, 2001, p.40). Esse novo gênero periódico começava a se consolidar no panorama
brasileiro, principalmente por ser um meio disputado por escritores renomados e por con-
centrar diversas propagandas – o que indica o grande número de destinadores privados;
dessa forma, acabava por abranger um maior público e tornava-se um negócio lucrativo.
Esses escritores, como por exemplo Machado de Assis e Olavo Bilac, “tinham, nas páginas
avulsas do jornal e da revista, [um] espaço alternativo para divulgação de seus escritos”
(MARTINS, 2001, p.40).
Em um cenário moderno, o século XX pedia nova moda e mais simplicidade, principal-
mente às mulheres. No final do séc. XIX, os volumes das saias começam a diminuir e, em
1889, inicia-se a Belle Époque, a bela época dos modos, da tecnologia e da expansão da bur-
guesia, exigindo novos modos da moda. Esses eram construídos e plasmados nas páginas
de revistas ilustradas como a Fon-Fon. As referências das vestes deixavam, aos poucos, de
pautar-se na nobreza para chegar à burguesia, que construía seus modelos da moda pelos
modos de consumo propagados.
Neste tópico, discorremos sobre as revistas brasileiras e sua relação com a moda e os
modos de vida, por isso, destacamos em seu título as histórias, pois tratamos de uma cer-
ta história da imprensa e de uma certa história da moda, pertinentes ao nosso trabalho.
Procuramos relacionar, diacronicamente, os modos de revista às maneiras de vestir-se e às
mudanças sócio-político-histórico-culturais desses períodos no Brasil, com a finalidade de
traçar, na construção dessa pesquisa, a noção de que a moda não seria simplesmente um
50 “reflexo” da sociedade, mas uma das construções do social que interage com outros aspec-
tos e, nessa interação, delineiam essas sociedades. Damos sequência ao capítulo com as
Moda (re)vista no Brasil

revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete e, assim, adentramos o corpus do trabalho.

2.2 Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete: apresentação das revistas

Buscaremos adentrar o escopo do trabalho ao abordar as revistas que compõem o recorte


da pesquisa, analisando suas construções e composições enquanto publicações impressas.
Para isso, partimos de seus textos inaugurais, de quando começaram a ser publicadas, pas-
sando por suas construções visuais, a fim de encontrar variantes e invariantes que formam
sua identidade midiática.
Como delineado no dimensionamento histórico das revistas no Brasil, o uso e impres-
são das ilustrações se deu como um marco na imprensa, inaugurando o século de moderni-
zações e, por esse âmbito, se faz como primordial para o estudo da construção dos modos
de viver para os brasileiros. É no início do século XX, de acordo com Patrícia Nascimento
(2002, p.16), que “as revistas começam a ganhar definição e espaço diferenciado em rela-
ção aos jornais”, passando por “mudanças estruturais”. Nesse momento, as relações entre o
capitalismo em ascensão e a imprensa estreitam seus laços.
Sobre essas relações, Nelson W. Sodré (1999, p.3) afirma que:

O desenvolvimento das bases de produção em massa, de que a imprensa participou


amplamente, acompanhou o surto demográfico da população ocidental e sua concen-
tração urbana; paralelamente, a produção ascensional provocou a abertura de novos
mercados, a necessidade de conquistá-los conferiu importância à propaganda, e o
anúncio apareceu como traço ostensivo nas ligações entre a imprensa e as demais for-
mas de produção de mercadorias.

Assim, a corrida pela difusão de informações e de propagandas torna-se cada vez mais
algoz, ampliando e aplicando nesses meios os valores burgueses, como a democracia po-
lítica e a educação da população, ampliando consideravelmente a clientela. Tem-se aí, por-
tanto, a mídia impressa não somente em seu papel modalizador do fazer-saber, mas num
papel enquanto adjuvante e articulador de valores outros, o que leva aos fenômenos sócio
-histórico-culturais da imprensa no Brasil no decorrer do século XX.
Marcando o primeiro decênio do século, o fim recente da monarquia e a instauração
da Primeira República se caracterizaram por um grande período de incertezas políticas e,
consequentemente, sociais. Os vários grupos que disputavam o poder eram divergentes
em suas intenções e concepções de como organizar a nova República (FAUSTO, 2002). Com
os processos benéficos à infraestrutura nas principais cidades do país – decorrentes da es-
coação do café e riqueza proporcionada pela sua exportação –, sugiram espaços na esfera 51
pública para que a burguesia pudesse discutir questões que abrangiam a sociedade civil

Moda (re)vista no Brasil


como um todo, de acordo com suas visões e expectativas, o que exigiu outros meios para
que se expusessem tais visões. Por esse viés, de acordo com Patrícia de Melo (2005, s/n),
“o espaço público gerou uma demanda pela troca de informações, intensificada cada vez
mais pelo acesso da população à leitura e à escrita” e, assim, a expansão e desenvolvimento
de espaços públicos propiciaram e facilitaram o encontro dos cidadãos de grandes cidades,
como nas reformas no Rio de Janeiro e na modernização de São Paulo. Nesse cenário, a
imprensa foi a “primeira instancia mediadora” da população para a discussão dos e nos
espaços públicos.

2.2.1 A revista Fon-Fon

Em meio à modernização do país, ou melhor, à “inserção compulsória do país na Belle Épo-


que” (SEVCENKO, 1999, p.25), surge a revista Fon-Fon – uma revista para o lar. Tratava-se de
uma revista literária e ilustrada, um veículo de comunicação midiática que surge em abril
de 1907 – dezoito anos após a proclamação da República – como um símbolo do progres-
so, um “ruído novo para a cultura da classe média” no Brasil (NAHES, 2007, p.14). Segundo
Mira (2013, p.14), as primeiras revistas ilustradas no Brasil, assim como mencionado acima,
tiveram suas “origens nos magazines ilustrados ou revistas de variedades do século XIX, de
inspiração europeia, sobretudo francesa”. Fora um francês, chamado Plancher, que trouxera
a tecnologia da litografia para o Brasil, o que propiciou a reprodução de imagens.
Segundo Ribeiro e Santana (2011, s/n), a revista “abordava tudo que era urbano, mo-
derno e cotidiano”, favorecendo um cenário no qual se espalhavam os valores da moderni-
dade. Assim, a Fon-Fon “emergiu sob os anseios da alta sociedade carioca em ter um veículo
de comunicação” de qualidade, visto que buscaram inovações gráficas para a revista. Como
considera Fátima Ali (2009), a Fon-Fon é um importante documento do registro da vida
sociocultural do Brasil durante a Belle Époque.
Considerando-se que, na virada do século XIX para o século XX, 84% da população resi-
dente no Brasil era analfabeta, pode-se concluir que o público letrado da Fon-Fon no Brasil
era relativamente seleto e pequeno, mas, assim como as primeiras revistas ilustradas, ela
conquistava seu público não-letrado pela linguagem verbo-visual. Para Mira (2013, p.18),
“a leitura [dos textos verbais] só fazia parte dos hábitos de uma pequena elite culta e rica,
cujos filhos eram educados por preceptores e concluíam seus estudos na Europa”; nesse
cenário, o público feminino era ainda menor, pois, o analfabetismo entre as mulheres ainda
era considerado uma virtude.
52
Moda (re)vista no Brasil

Figura 19: Capa da primeira edição da revista Fon-Fon, no ano de


1907. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Eram revistas que procuravam suprir os anseios por informação advindos de um pú-
blico seleto, abordando assuntos como a “preocupação com os bons costumes, referên-
cias a discussões mundanas da época ou às intrigas dos gabinetes ministeriais, em suma,
essas publicações indicavam tudo o que se devia saber para fazer parte da ‘boa socieda-
de’” (SEGUIN DES HONS, 1986, p.27). Consideradas como usufruto da imprensa brasileira,
transformam-se em tendência, com discursos sobre novos modelos de comportamento
em todos os âmbitos do cotidiano (NARRES, 2007, p.100). Entretenimento, moda, humor,
recreação, entre outros, tornam-se profundamente ligados ao hábito da classe burguesa
brasileira. Esse novo modo de fazer imprensa no Brasil buscava aproximar-se dos modos
franceses e, com as chamadas “historietas ilustradas”, introduziram a caricatura como nar- 53
rativa no Brasil (MARTINS, 2001).

Moda (re)vista no Brasil


Apesar de ter sua sede de publicação no Rio de Janeiro, a sua distribuição englobava
São Paulo, Paris e Londres, além de muitas outras cidades e capitais do Brasil, o que am-
pliava consideravelmente o público ao qual se destinava (MIRA, 2013, p.17). Para Narres
(2007, p.100), este intercâmbio entre os países deve-se ao fato de que grande parte da
intelligentsia brasileira da época situava-se na região Sudeste no Brasil e no eixo cultural
Londres-Paris. Foi uma revista que passou de geração em geração, e permaneceu em voga,
passando por diversos grupos de editores e proprietários, até seu fim em 1958.
Na sua primeira edição, em 1907 (figura 19), apresenta-se como um “Semanário alegre,
político, crítico e esfuziante / Noticiário avariado, Telegraphia sem arame, Chronica Epidemica”
com “Tiragem [de] 100.000 kilometros, por ora”. A partir dessa apresentação, percebe-se que
a colocação da revista enquanto um semanário de entretenimento é expressada verbal-
mente, utilizando figuras de linguagem que elucidam seu caráter “alegre” e “esfuziante”. Em
seu texto de apresentação, os trocadilhos que remetem à velocidade, aos carros e à quebra
com os “velhos hábitos e [...] velhos costumes”, remetem, assim, às várias inovações tecnoló-
gicas que inauguram o século.
Seu nome, uma onomatopeia que figura o som feito pela buzina dos automóveis,
anunciava a chegada do século XX com toda a sua inovação tecnológica, a industrialização,
e o ritmo cada vez mais rápido dos novos carros. Essa dinamicidade e conjuntura com os
novos tempos é também percebida pela não padronização das capas; até mesmo seu título
é expressado de maneira única em cada edição.
54 Abaixo, apresentamos as capas das edições da Fon-Fon15 que são analisadas:
Moda (re)vista no Brasil

Figura 20a: 26 Mar 1910 – n.13 Figura 20b: 25 Jun 1910 – n.26

Figura 20c: 24 Set 1910 – n.39 Figura 20d: 24 Dez 1910 – n.52

Figuras 20a, 20b, 20c, 20d: Capas das quatro edições selecionadas da Fon-Fon,
referentes ao ano de 1910. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

15  É importante ressaltar que as edições originais das capas – e apenas as capas – da Fon-Fon são coloridas. No
entanto, não nos foi permitido o acesso a todas as edições em cores. Temos apenas a versão digitalizada da
Biblioteca Nacional e, algumas das edições foram disponibilizadas apenas em preto e branco, além de ter sua
marca d’água inscrita sobre as imagens. Mantivemos as capas coloridas que conseguimos juntamente com
as capas sem cores.
Essas capas são referentes às quatro edições selecionadas do ano de 1910. Seleção que 55
foi feita a partir da delimitação que explicitamos nas Considerações Iniciais. Em todas há

Moda (re)vista no Brasil


ilustrações desenhadas (não há fotografias), temos plasmadas as cenas da urbe, como na
Figura20a, na qual uma senhora sozinha e bem vestida – com seu vestido, chapéu e luvas,
segurando um leque em uma das mãos e uma sombrinha em outra – senta-se à mesa do
que parece um café ou uma confeitaria; são aí encenados os novos hábitos da população.
A cena tem um título: “A força do hábito”, nela, a senhora faz seu pedido ao garçom, per-
guntando: “Tem sorvete de pistache?” e, esse, vestido com seu uniforme preto e tradicional,
se mostra prestativo ao atender a senhora. O garçom é descrito como “o antigo atendente
do armarinho”, e responde: “Agora não temos, Exma., mas estão a sahir da alfândega meias
confecções de diversos padrões”. Parece uma cena cotidiana bem comum, não fosse a evi-
dente quebra dos hábitos, não só do garçom que costumava vender em um armarinho,
mas de toda uma sociedade, que agora não mais consome apenas artigos de confecção e
produção, como também consome serviços, busca novos modos de alimentar-se aliados a
modos de divertir-se. Tal cena é posta sobre o título da revista, com letras brancas e emol-
duradas de vermelho, destacando-se do fundo amarelo, e assim é colocada como uma en-
cenação que se dá na própria revista, como um espaço no qual ocorrem as cenas cotidianas
e no qual elas são retratadas.
Na segunda capa (figura 20b), temos uma cena em que crianças brincam de acender
balões e de soltá-los no ar na noite de São João – são as comemorações juninas na cidade
–, uma festa tradicional típica de cunho religioso, especificamente católico, que em seus
primórdios tratava-se de uma festa para comemorar a época das colheitas e mudanças de
estação. Sendo no início do inverno, a festa tem suas fogueiras e brincadeiras com fogo
para que os festeiros possam se aquecer; essa termia é figurativizada pelos tons quentes
como o amarelo e o vermelho, contrastando com o fundo escuro do céu à noite. O fogo das
fogueiras, por sua vez, é figurativizado nas cores, formas e fluidez da tipologia do nome da
revista “em chamas”: Fon-Fon.
Na terceira capa (figura 20c), nos deparamos com uma figura feminina, colocada sobre
uma partitura musical, a qual parece em deleite ao ouvir a música tocada, a mesma da
partitura ao fundo. Seu rosto é emoldurado por essa, é delineado pela mesma linha preta
que contorna sua face e as extremidades da partitura, com fundo em tom coral. O tema
é a música, figurativizada pela partitura ao fundo, que se revela na narrativa como o que
parece ser um momento de prazer e deleite ao ouvi-la. Seu cabelo e as notas musicais se
confundem no preto, como se um desse continuidade ao outro. Nessa capa o nome da
revista toma o lugar do colo da senhora, e se coloca em formas similares às notas musicais
que estão encenadas.
56 Por fim, na edição próxima ao natal (figura 20d), em “Um número de Natal” é retratada
uma cena da bíblia, tematizando o nascimento de Jesus; é como se retratassem não só
Moda (re)vista no Brasil

a cena bíblica, mas também o final do ano de 1910, como num quadro em que homens
caminham em direção à luz, emoldurados por anjos nus envoltos por suas próprias asas e
iluminando o caminho. O branco que emoldura os anjos é continuado pelo nome da re-
vista, dessa vez numa tipografia mais reta e estática, como se seu nome se confundisse em
meio à moldura. Tal encenação parece remeter ao renascimento, ao ressurgir e transformar
de uma sociedade, que deixa seu passado colonial para trás e inicia uma nova década com
novos hábitos, caminhando junto à caravana “divina”.
A partir das descrições pudemos perceber que os títulos Fon-Fon em 1910 são re-
almente dinâmicos e adaptáveis a cada temática expressada, e as capas não necessa-
riamente englobam uma temática específica da revista, mas sim compõem a cena ao
apresentar a nova vida das urbes, em que há diversão e deleite num país iluminado pela
nova fase republicana.
A seguir, apresentamos as quatro edições de 1920: 57

Moda (re)vista no Brasil


Figura 21a: 29 Mai 1920-n.22 Figura 21b: 10 Jul 1920-n.28

Figura 21c: 23 Set 1920-n.39 Figura 21d: 18 Dez 1920-n.51

Figuras 21a, 21b, 21c, 21d: Capas das quatro edições selecionadas da Fon-Fon,
referentes ao ano de 1920. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
58 Nas imagens acima temos uma variedade temática e, diferentemente do que vimos em
1910, essa multiplicidade evidencia a temática que permeia todo o conteúdo da revista. Na
Moda (re)vista no Brasil

primeira edição selecionada (figura 21a), temos o retrato de uma artista francesa em cena,
e trata-se de uma foto oficial da ópera “‘Ópera Comica’ de Paris”, em cartaz no “Theatro Mu-
nicipal” do Rio de Janeiro, e da qual muito se fala nessa edição. Mais uma vez, o nome da
Fon-Fon parece emoldurar a imagem em destaque, quando até mesmo o hífen que com-
põe seu nome está na direção vertical. Assim, apesar da serifa e das letras mais estáticas, a
verticalidade de seu nome gera um efeito de continuidade.
Na segunda capa (figura 21b), temos um desenho caricato do pesquisador que ideali-
zou o primeiro censo demográfico realizado no Brasil, e ao fundo, o próprio mapa do país
– é narrado: “Quantos somos?”. A tipografia e serifa são as mesmas da última capa, exceto
pela maneira que o título é posicionado e, assim, podemos perceber pela primeira vez uma
invariante na construção e composição do nome da revista.
Na terceira capa (figura 21c), temos a fotografia do então Embaixador da França no
Brasil, o qual acabara de chegar ao país e sua chegada havia sido documentada nas pági-
nas da Fon-Fon. Sua vinda foi de grande impacto, pois teve como propósito fazer acordos
comerciais com os governantes, e foi a primeira vez que uma figura política imponente
veio fechá-los pessoalmente. O Embaixador se coloca sozinho no retrato, numa posição
centralizada, enquanto o nome da Fon-Fon encontra-se ao seu lado, no canto inferior direi-
to e acompanhando a pose do sujeito. A tipografia retoma as formas dos anos anteriores,
mais fluida e dinâmica, com pontos centralizados no interior da letra “O”, remetendo-nos
às rodas dos carros que buzinam “fon-fon” pelas ruas da cidade, mas, nesse ano, já sem o
típico ponto de exclamação do ano de 1910 – seriam essas buzinas menos vibrantes?
Na última capa do ano de 1920 (figura 21d), temos uma cena urbana do Rio de Janeiro
fotografada que explora, justamente, a modernidade e rapidez na nova sociedade brasi-
leira, com suas ruas agitadas nas quais pedestres e carros “brigam” por espaço. O nome da
revista é um pouco mais padronizado, com serifas similares umas às outras, mas figurativi-
zadas de forma que chegam a se confundir com alguns dos passantes da rua.
Pelo uso de fotografias em três das quatro capas em 1920, podemos perceber as novas
tecnologias da época sendo utilizadas. Nos tempos em que a fotografia ainda era um re-
curso restrito, a Fon-Fon se apropria dessas para colocar-se, novamente, como uma revista
moderna e que acompanha os “avanços da sociedade”.
Abaixo, as capas da Fon-Fon do ano de 1930: 59

Moda (re)vista no Brasil


Figura 22a: 29/03/1930-n.13 Figura 22b: 21/06/1930-n.25

Figura 22c: 27/09/1930-n.39 Figura 22d: 27/12/1930-n.52

Figuras 22a, 22b, 22c, 22d: Capas das quatro edições selecionadas da Fon-Fon,
referentes ao ano de 1930. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Em 1930, temos capas bem diferentes das que foram apresentadas até então. Em todas
essas temos desenhos de figuras femininas, vestidas e em ação num dado contexto: uma
passeia durante o dia vestindo um chapéu clochê, saia pregueada na cor preta e blusa ver-
60 melha de mangas compridas, ornados com um cinto próximo ao quadril que evidencia e
acintura essa região de seu corpo (figura 22a); outra, também vestindo um chapéu clochê,
Moda (re)vista no Brasil

um lenço estampado em seu pescoço, com seus cabelos curtos e face maquiada, nos olha
de maneira oblíqua e aparentemente insinuante (figura 22b); a terceira, com seu corte de
cabelo “à la garçonne”, brinca com a figura de um homem como se brincasse com um fan-
toche (figura 22c), e na última capa da Fon-Fon (figura 22d), é figurativizada uma mulher
trajando um maiô, que se diverte nadando no mar.
Nesse ano, também parece ocorrer certa padronização na tipografia do nome da revista,
com letras mais retas e cheias e, por vezes, com formas mais gemétricas. São todos desenhos
muito bem coloridos, com tons fortes e contrastantes, como o vermelho e amarelo, bem como
o preto, o branco e o vermelho. O uso constante de figuras femininas, sozinhas, bem vestidas,
divertindo-se e/ou em poses altivas parece construir uma representação de uma “nova” mu-
lher, num período pós-guerra, mais independente e com as pernas à mostra em seu cotidiano.
A impressão a cores tão vivas e sangradas (quando a impressão se estende até a borda
da página) era ainda algo muito inovador no cenário brasileiro, mesmo que seu interior
continuasse impresso em folhas de papel jornal e sem cores. Mais uma vez, a Fon-Fon rei-
tera seus valores ao retratar esse novo modo do feminino na sociedade, utilizando-se de
estéticas atuais e de ótimas tecnologias para impressão. Essas capas, quando comparadas
às capas de revistas internacionais de períodos próximos, elucidam uma estética glocal,
que se movimenta entre o que é global e local, como podemos observar na capa da cine-
matográfica norte-americana Photoplay (figura 23) e da “romancista” francesa La Garçonne
(figura 24), que tem modos de posicionar, ilustrar e “colorir” as figuras femininas de formas
muito similares. Isso seria algo muito característico dos modos de revista, que permitem
com maior elasticidade essas transições.
Como veremos a seguir, a Cruzeiro ainda manteve esse tipo de composição de capa por
certo tempo.
61

Moda (re)vista no Brasil


Figura 23: Capa da revista romancista La Figura 24: Capa da revista Photoplay do ano de
Garçonne, do ano de 1922. Fonte: Blog Phi- 1927. Fonte: Blog Moda Histórica.
lippe Poisson.

2.2.2 A revista O Cruzeiro

O Cruzeiro foi a primeira revista ilustrada que alcançou distribuição nacional, de norte a
sul do país. Inovou o conceito de revista ilustrada, dando muito mais espaço à fotografia,
e consequentemente, revolucionou o fotojornalismo brasileiro, sendo assim de extrema
importância para uma melhor compreensão da sociedade e de seus costumes na época.
Uma revista declaradamente em prol do “progresso” e da “modernidade”, com seu slogan “A
revista contemporânea dos arranha-céus”, manteve-se sediada no Rio de Janeiro desde seu
nascimento em 1928, até seu fim, no ano de 1978. Era uma das revistas do grande grupo Di-
ários Associados, comandado por Assis Chateubriand, considerado um dos grandes nomes
da imprensa brasileira. Seus primeiros anos foram difíceis, a quebra da bolsa de Nova York
em 1929 propiciou uma crise em todo o mercado financeiro, incluindo no Brasil. Mas o pe-
ríodo getulista com suas políticas nacionalistas, instalado em 1930, fez com que o mercado
nacional se desenvolvesse. Em meados de 1950, a revista O Cruzeiro chegou a tiragens de
750.000 exemplares por semana, sendo que a população brasileira era inferior a 50 milhões
de habitantes. É considerado um dos mais importantes meios de comunicação do século
XX do país (POLIDORO, 2008).
62
Moda (re)vista no Brasil

Figura 25: Capa da primeira edição da revista O Cruzeiro, do ano de 1928, que chega inovando com novos
recursos gráficos no Brasil. Fonte: memóriaviva.com.br.

A revista O Cruzeiro, segundo Sant’Anna (2008, p.58), exercia um papel não só de en-
treter ou informar, mas também como determinante na construção de padrões de com-
portamento e consumo. Esta revista “ditou” o modo de vida vigente na “boa sociedade”
enquanto foi publicada e, assim como a Fon-Fon, tornou-se parte do cotidiano da classe
média brasileira. Sua abordagem consistia em diagramações que priorizavam as imagens
e fotografias, fato de extrema importância para que se tornasse realmente impactante nos
hábitos da sociedade brasileira “moderna”.
O mercado das revistas de público geral no Brasil foi dominado por muitos anos pela
revista O Cruzeiro. Somente nos fins de 1940 e durante a década de 1950, época em que
O Cruzeiro alcançou sua maior tiragem, é que surgiram outras revistas brasileiras. Algumas
dessas eram de caráter segmentado, não buscavam competição direta, assim como a revis-
ta Capricho, que surge em 1952, com edições quinzenais e trazendo fotonovelas italianas e
norte-americanas, destinada às moçoilas brasileiras (ALI, 2009, p.364).
Em seu texto de apresentação16, O Cruzeiro alega que surgiu como a “mais moderna
revista brasileira”, dizendo que “nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições
do Rio colonial, através de cujos escombros a civilização traçou a reta da Avenida Rio Bran-
co: uma reta entre o passado e o futuro”. Colocando-se então como uma revista inovadora,
e se comparando em relação de superioridade com suas “irmãs mais velhas”, com revistas
como a Fon-Fon. Mas, assim como essa, se coloca como a nova voz do futuro: “Cruzeiro

16  Apresentação da revista O Cruzeiro, transcrita pelo site Memória Viva. Acesso em: 22 Jun. 2015. Disponível
em: <http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/>
encontra já, ao nascer, o arranha-céo, a radiotelephonia e o correio aéreo: o esboço de um 63
mundo novo no novo mundo”. Nesta última frase se coloca exatamente como é, do ponto

Moda (re)vista no Brasil


de vista semiótico, (re)tradução do mundo em linguagem.
O seu nome – à época Cruzeiro, ainda sem o artigo definido “O” –, era descrito como
“um título que inclue nas suas tres syllabas um programma de patriotismo”, o cruzeiro seria
“timbre de estrella na bandeira da Patria”, era uma revista do Brasil e para o Brasil.
Destacamos o seguinte trecho do texto do editor, o qual inaugura a primeira edição da
O Cruzeiro:

Uma revista, como um jornal, terá de ter, forçosamente, um caracter e uma moral. De
um modo generico: princípios. Dessa obrigação não estão isentas as revistas que se
convencionou apelidar de frívolas. A funcção da revista ainda não foi, entre nós, suffi-
cientemente esclarecida e comprehendida. Em paíz da extensão desconforme do Brasil,
que é uma amalgama de nações com uma só alma, a revista reune um complexo de
possibilidades que, em certo sentido, rivalisam ou ultrapassam as do jornal. O seu raio
de acção é incomparavelmente mais amplo no espaço e no tempo. Um jornal está ads-
tricto ás vinte e quatro horas de sua existencia diaria. Cada dia o jornal nasce e fenece,
para renascer no dia seguinte. É uma metamorphose consecutiva. O jornal de hontem
é já um documento fóra de circulação: um documento de archivo e de bibliotheca. O
jornal dura um dia. Essa existencia, tão intensa como breve, difficulta os grandes per-
cursos. É um vôo celere e curto. O jornal é a propria vida. A revista é já um compendio
da vida. A sua circulação não está confinada a uma area traçada por um compasso
cujo ponteiro movel raro pôde exceder um círculo de raio superior á distancia maxima
percorrivel em vinte e quattro horas. A revista circula desde o Amazonas ao Rio Grande
do Sul, infiltra-se por todos os municipios, utilisa na sua expansão todos os meios de
conducção terrestre, maritima, fluvial e aérea; entra e permanece nos lares; é a leitura
da familia e da visinhança. A revista é o estado intermedio entre o jornal e o livro.

Por isso mesmo que o campo de acção da revista é mais vasto, a sua interpretação
dos acontecimentos deve subordinar-se a um criterio muito menos particularista do
que o do jornal. Um jornal póde ser um órgão de um partido, de uma facção, de uma
doutrina. Uma revista é um instrumento de educação e de cultura: onde se mostrar
a virtude, animá-la; onde se ostentar a belleza, admirá-la; onde se revelar o talento,
applaudi-lo; onde se empenhar o progresso, secundá-lo. O jornal dá-nos da vida a sua
versão realista, no bem e no mal. A revista redu-la á sua expressão educativa e esthetica.
O concurso da imagem é nella um elemento preponderante. A cooperação da gravura
e do texto concede á revista o privilegio de poder tornar-se obra de arte. A politica par-
tidaria seria tao incongruente numa revista do modelo de Cruzeiro como num tratado
de geometria. Uma revista deve ser como um espelho leal onde se reflecte a vida nos
seus aspectos edificantes, attraentes e instructivos. Uma revista deverá ser, antes de
tudo, uma escola de bom gosto17.

O Cruzeiro, enquanto revista, se diferencia do jornal e reafirma o caráter mais durável


e elaborado da revista, é instrumento de educação e meio em que se ostenta a beleza. Ela
mesma, sujeito-revista, se coloca como uma expressão estética, uma espacialidade na qual
são plasmados os modos da vida moderna e ensina aos seus leitores o gosto pela aparên-

17  Grifo nosso.


64 cia. Tem como meta acompanhar todos os acontecimentos e manifestações da “civilisação
ascensional do Brasil”, com seu vasto “annuncio illustrado”, prescrever modos de consumir
Moda (re)vista no Brasil

e retratar as semanas do país como em um filme, nas cenas que constrói.


A seguir, apresentamos as capas das edições de O Cruzeiro analisadas:

Figura 26a: 20 Jan 1940- Ano XII - n.12 Figura 26b: 09 Mar 1940- Ano XII - n.19

Figura 26c: 31 Ago 1940- Ano XII - n. 44 Figura 26d: 25 Nov 1940- Ano XIII – n. 4

Figuras 26a, 26b, 26c, 26d: Capas das quatro edições selecionadas da revista O
Cruzeiro, referentes ao ano de 1940. Fonte: as revistas.

Já em uma primeira vista é possível notar semelhanças entre as capas de 1940 e as


capas de 1930, pois são mulheres figuradas em situações diversas. Enquanto uma “esco-
la de bom gosto” em tempos das divas do cinema Hollywoodiano, a Cruzeiro cultivava e
desenvolvia o gosto pelo cinema norte-americano e pelo estilo de vida de suas estrelas.
Apesar da semelhança com a Fon-Fon, notam-se muitas diferenças na sua composição: são 65

fotografias coloridas artificialmente e com tons um pouco mais frios; além disso, nota-se o

Moda (re)vista no Brasil


formato fixado da logo nas diferentes edições, com o artigo “o” minúsculo e seu nome em
letras cursivas, sendo um modelo de difícil reprodução. É ainda impresso sempre em tom
contrastante – principalmente em vermelho – e sempre no topo da página. Essa padroniza-
ção permitiria aos leitores da revista um reconhecimento mais rápido. Tal reconhecimento
era buscado não somente por essa padronização, mas também pela incorporação de ou-
tros modelos de revista.
A Cruzeiro, principalmente nessa década, incorporava não só as atrizes às suas capas,
mas literalmente reproduzia a capa de revistas norte-americanas como a Life e a Photoplay,
como vemos ao lado (nas figuras 27, 28a e 28b). Essa última era uma revista voltada apenas
para filmes, trazendo resumos e novidades sobre as estrelas do cinema.

Figura 27: Capa de uma edição da Figuras 28a e 28b: Capas idênticas entre O Cruzeiro e a norte-americana
revista norte-americana Life, uma Photoplay que foram exibidas na exposição: “As origens do fotojornalis-
revista também de atualidades e mo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro”, com curadoria de Helouise Cos-
voltada ao público geral. Foi um ta. Fonte: Acervo próprio.
modelo de revista inovador, incor-
porado por várias revistas ao redor
do mundo. Fonte: Pinterest.com

A Life, de acordo com Fátima Ali (2009, p.358), foi “a [revista] mais imitada de todos os
tempos” e, logo que surgiu em 1936, já foi um grande sucesso. Tendo como objetivos não
somente informar, mas também entreter, levava as dicas do cinema à casa de seus leitores.
A Cruzeiro foi se delineando por valores similares, dialogando entre o cinema, rádio, en-
tretenimento e informação numa mesma revista. Diferentemente da Fon-Fon, que, desde
1920 trazia em seu miolo, pontualmente, algumas novidades do cinema, a Cruzeiro soube
66 utilizar-se da fama e estilo de vida das estrelas do cinema, trazendo seu dia-a-dia, suas dicas
de beleza e de vestuário, sempre construindo os valores da novidade e da exclusividade,
Moda (re)vista no Brasil

algo ainda novo no Brasil.


Claramente, apesar de ser uma revista que explorava muitos valores “nacionais” – como
vimos em sua primeira edição –, incorporava valores outros ao dialogar com outras cultu-
ras. Nesse fluxo, produtos culturais e bens de consumo eram também anunciados em suas
páginas e, aos poucos, incorporados também do dia-a-dia de seus leitores e leitoras. Como
veremos, os cenários em suas capas vão mudando aos poucos, como nas capas das edições
de 1950, a seguir.

Figura 29a: 07 Jan 1950 - Ano XXII – n.12 Figura 29b: 18 Fev 1950-n. Ano XXII – n.18

Figura 29c: 23 Set 1950 - Ano XXII – n.49 Figura 29d: 16 Dez 1950 - Ano XXII – n.9

Figuras 29a, 29b, 29c, 29d: Capas das quatro edições selecionadas da revista O
Cruzeiro, referentes ao ano de 1950. Fonte: as revistas.
Em 1950 podemos perceber uma maior pluralidade nas temáticas abordadas e nos 67
modos de figurativizar a mulher. Apenas a edição de setembro (figura 29c) retrata uma

Moda (re)vista no Brasil


atriz de cinema, e as duas primeiras edições elucidam temáticas que acabariam por se tor-
nar constantes, construindo uma certa “brasilidade”, como a ida à praia e a vida ao ar livre
(figura 29a), e principalmente o carnaval (figura 29b). Nessa capa da primeira edição, temos
uma pipa com formato de uma pomba branca, uma figura simbólica da paz, e a mulher
que a segura parece se divertir, prestes a “soltar” a pipa, tematizando nessa composição o
desejo pela paz nesse novo início de década, após passar pela Segunda Guerra Mundial na
década de 1940.
Nesse ano ocorre uma grande mudança em sua logo, toda em caixa alta e com serifas,
criando uma espécie de “corredor horizontal” que facilita a leitura (ALI, 2009, p. 114). O ver-
melho ainda é a cor mais recorrente no título, que contrasta com as outras cores com que
compõem a imagem, saltando aos olhos. A logo se mantém a mesma, mas há variantes na
segunda e na quarta edições, respectivamente, a edição próxima ao carnaval, que constrói
uma cena de festa, diversão e fantasias de carnaval, na qual uma mulher se diverte – seu
deleite nos remete ao mesmo deleite da terceira edição da Fon-Fon de 1910 –, e na qual
o nome da Cruzeiro acompanha as cores dos confetes; e a edição próxima ao Natal, que
encena uma temática religiosa, em que a Virgem Maria segura o Menino Jesus – nessa cena,
o “O” e o “C” parecem retomar as aréolas que envolvem as cabeças das figuras divinas, en-
quanto “ruzeiro” aparece com tipografia que nos remete às primeiras impressões da bíblia,
como a de Gutenberg18, retomada na frase bíblica na parte inferior da página: “Glória a
Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”.
Assim, o ano de 1950, para a Cruzeiro, começa e termina abordando a temática da paz,
figurativizada de diferentes maneiras e, no seu entremeio, a diversão e o entretenimento
são presentificados – tanto em um caso como em outro, a figura da mulher atua nessas
cenas quase enquanto “representante” da paz –, tentando deixar para trás os momentos
difíceis gerados pela guerra.

18  De acordo com a Biblioteca Digital Mundial: “Johannes Gutenberg nasceu em Mainz, na Alemanha, por vol-
ta de 1400 [...]. Em meados da década de 1450, ele aperfeiçoou um sistema de impressão com tipos móveis,
que usou para criar o que se tornou o livro mais famoso do mundo, a tradução em Latim da Bíblia (Vulgata),
geralmente conhecido como a Bíblia de Gutenberg. Os estudiosos têm pesquisado exaustivamente todos os
aspectos do trabalho de Gutenberg: a tipologia elaborada, com seus 290 caracteres diferentes oriundos da
escrita missal gótica, a forma pela qual ele dividiu o texto no processo de composição, e o papel que usou
para a impressão. [...] A data em que a impressão foi concluída baseia-se, unicamente, na anotação “1455” na
encadernação do exemplar em papel que se encontra em Paris. Acredita-se que foram impressas 180 cópias
da Bíblia [...] Originalmente, Gutenberg desejava imprimir os títulos dos livros da Bíblia em vermelho, mas
abandonou esta idéia, usando, ao invés disso, uma tabela impressa em separado, que serviria como modelo
para que essas linhas fossem inseridas manualmente”. Disponível em: < http://www.wdl.org/pt/item/4102/>.
Acesso em: 11 Out 2015.
68 Abaixo, as capas das edições da O Cruzeiro de 1960:
Moda (re)vista no Brasil

Figura 30a: 13 Fev 1960 – Ano XXXII – N. 18 Figura 30b: 05 Mar 1960 – Ano XXXII – n. não disp.19

Figura 30c: 23 Jul 1960 – Ano XXXII – n 41 Figura 30d: 10 Dez 1960 – Ano XXXII – n. não disp.

Figuras 30a, 30b, 30c, 30d: Capas das quatro edições selecionadas da revista O
Cruzeiro, referentes ao ano de 1960. Fonte: as revistas.

Uma diferença notável em uma primeira vista nessas capas, se comparadas às dos anos
anteriores, é o uso de manchetes – tópicos que resumem as principais temáticas abordadas
no interior da revista – bem como as fotografias exibidas, que estão relacionadas à essas
temáticas. Isso era algo ainda novo no Brasil para as revistas ilustradas, e assim, a Cruzeiro
firmava seus valores de uma revista que traz sempre o novo a seus destinatários, e os educa
a apreciar essas novidades.19

19  Informação não disponibilizada.


Além disso, na primeira edição (figura 30a), temos figurada uma mulher engendrada 69
em uma temática um pouco diferente da que vimos até então, pois encenam uma mulher

Moda (re)vista no Brasil


profissional que não é uma atriz, mas uma aeromoça. A “profissão do futuro” em tempos
que as viagens de avião se popularizavam. Seu papel é concretizado ao se colocar em pose
“profissional”, vestida com um uniforme, usa pouca maquiagem e tem os cabelos presos;
poderia ser qualquer outra profissão, mas o modelo de avião que “sobrevoa” a cena não
nos deixa dúvidas.
Na figura 30b, temos uma edição próxima ao carnaval – a temática se reitera –, mas
nessa capa temos um retrato tirado durante o “Carnaval do Baile da Gloria”, um baile num
antigo bairro nobre e central na cidade do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, temos pessoas
negras colocadas em cena, e em um momento de descontração e diversão durante o des-
file no baile de carnaval.
Na capa da terceira edição (figura 30c), temos a fotografia da então recém-titulada
Miss Universo, a Miss EUA, Linda Bement. A foto em preto e branco é sobreposta por algu-
mas fotos coloridas relativas à cobertura do concurso de miss universo de 1960, e também
pela logo de O Cruzeiro, em vermelho. Era, mais uma vez, uma das primeiras revistas bra-
sileiras a realizar uma cobertura completa do concurso, algo que mais tarde seria incorpo-
rado pela Manchete.
Na última capa das edições selecionadas do ano de 1960 (figura 30d), são retratados
dois momentos da atriz brasileira Tônia Carrero, em cena no teatro. Nessa reportagem fa-
lam sobre seu estilo de vida, seu estilo de atuar – é a construção das primeiras estrelas do
entretenimento no Brasil.
Nota-se que a logo na revista ainda se manteve em caixa alta e com serifas bem deline-
adas, no entanto, a largura das letras aumentou, o espaçamento entre elas diminuiu e elas
se tornaram mais verticalizadas, formando uma espécie de “bloco” de letras. É perceptível
ainda uma maior preocupação com a composição cromática, suas tonalidades e seus con-
trastes, compondo cenas em que as mesmas cores aparecem em pontos diferentes e carre-
gam o olhar pela página. Essa é uma característica que permanece nas revistas no decorrer
do século, como veremos adiante com a Manchete.

2.2.3 A revista Manchete

Em 1952 surge a revista Manchete, lançada em 26 de abril daquele ano por Adolpho Bloch,
que, de acordo com Fátima Ali (2009, p.365), realizava o seu sonho de desenvolver “um
semanário de âmbito nacional para concorrer com O Cruzeiro”. A família Bloch já era reno-
mada por seus trabalhos gráficos com a Editora Bloch, e assim, lança-se ao considerar-se
70 habilitada para “entregar ao Brasil uma revista de atualidades, correta e modernamente
impressa”, como deixa claro na carta do editor em sua primeira edição20:
Moda (re)vista no Brasil

[...] Depois de trinta anos de trabalho como gráficos, resolvemos condensar numa revis-
ta semanal os resultados da nossa experiência técnica, convocando, para aproveitá-la,
uma equipe de escritores, jornalistas, fotógrafos e ilustradores de primeira ordem [...].
Em todos os números, daremos páginas a cores – e faremos o possível para que essas
cores se ponham sistematicamente a serviço da beleza do Brasil e das manifestações
do seu progresso.

Nitidamente a revista coloca a tecnologia a seu favor e faz disso seu maior trunfo, prin-
cipalmente quando afirma que todas as edições terão páginas impressas “a cores” e, para
tal, teria uma ótima qualidade de impressão para que essas “cores se ponham sistematica-
mente a serviço da beleza do Brasil”. Assim, o texto inaugural prossegue insinuando estar
mais apta que as outras revistas no mercado para “espelhar” as “várias faces” do País:

[...] O Brasil cresceu muito, suas mil faces reclamam muitas revistas, como a nossa, para
espelhá-las. Manchete será o espelho escrupuloso das suas faces positivas, assim como
do mundo trepidante em que vivemos e da hora assombrosa que atravessamos. Neste
momento os fatos nacionais e internacionais se sucedem com uma rapidez nunca re-
gistrada. Os jornais nunca tiveram uma vida tão curta dentro das vinte e quatro horas
de um dia. Este é o grande, o sonhado momento dos fotógrafos e dos repórteres exci-
tados para colher o instantâneo, o irrepetível.

Os editores também sugerem que as revistas líderes do mercado, como, por exemplo,
a O Cruzeiro, não conseguiam mais cumprir sozinha seu papel informativo, e ainda que
não teria mais capacidade tecnológica de acompanhar a modernidade em que se via o
Brasil (SILVA, 2004, p.62). Assim como o texto inaugural da Cruzeiro, a Manchete compara a
capacidade da revista à capacidade dos jornais, ao dizer que os acontecimentos são cada
vez mais acelerados e um dia já é pouco para que um jornal consiga noticiar tudo, assim
é o papel da revista, no caso, da Manchete, em reportar e ilustrar os furos de reportagens.
Manchete expressa em seu próprio nome o objetivo de destacar-se, um substantivo
feminino (datado de 1935) que significa21: “título principal, de maior destaque, no alto da
primeira página de jornal ou revista, alusivo à mais importante dentre as notícias contidas
na edição; notícia de destaque em jornal, revista, rádio ou televisão”. Seu nome a colocava
com qualidades de “maior destaque”, “no alto”, a “mais importante” e, com esses valores
entravam no competitivo mercado das revistas no século XX.

20  Texto obtido em artigo do site Observatório da Imprensa. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.
com.br/diretorio-academico/ascensao-e-queda-de-o-cruzeiro-e-manchete/>. Acesso em: 10 Set. 2015.
21  De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss Beta. Disponível em: <http://houaiss.uol.
com.br/>. Acesso em: 15 Set 2015.
71

Moda (re)vista no Brasil


Figura 31: Capa de edição da revista Manchete, datada de ju-
lho de 1952. Fonte: Blog Ilha Anchieta.

Inicialmente com uma equipe reduzida e com volume da revista também reduzido,
buscaram trilhar novos caminhos no jornalismo, a fim de alcançarem seu objetivo de lide-
rar o mercado. Buscaram reportagens originais, fotos de grande impacto, grandes colabo-
rações literárias, enfim, buscavam exclusividade. Sem sucesso ao tentar desbancar a con-
corrente, em 1957, decidem não mais se calcar em O Cruzeiro, mas sim se opor à estrutura
dela e buscam outros parâmetros para constituir-se. Passam então a se pautar na estrutura
de revistas norte-americanas como a Time, bem como a francesa Paris Match. Após essas
mudanças, a revista consegue o alcance que desejava e emergiu juntamente com a “nova
Brasília”, grande símbolo de modernidade e prosperidade na época. E assim continua até
seu fim em 2004.
A Manchete ficou conhecida como uma revista de grandes furos de reportagem e gran-
des reportagens sobre a vida social da burguesia brasileira – muito bem documentadas
pela fotografia de alta qualidade –, assim como grandes festas e viagens, além de cobrir
vários concursos de misses. Seu apoio ao ex-presidente da República, Juscelino Kubitschek
– mais conhecido como JK – muito ajudou em sua ascensão, mas após o golpe militar de
72 1964 praticamente silenciou-se em seus posicionamentos políticos, dando apoio a alguns
militares em certos momentos. Manteve-se uma revista de sucesso, chegando a tiragens
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de mais de 200.000 edições semanais (NASCIMENTO, 2002) em meio a pouca – ou quase


nenhuma – liberdade de imprensa.
A seguir, as capas das edições analisadas da Manchete do ano de 1970:

Figura 32a: 25 Jan 1970 – n. 923 Figura 32b: 02 Mai 1970 – n. 941

Figura 32c: 26 Set 1970 – n. 952 Figura 32d: 05 Dez 1970 – n. 972

Figuras 32a, 32b, 32c, 32d: Capas das quatro edições selecionadas da revista
Manchete, referentes ao ano de 1970. Fonte: as revistas.
Nas capas acima, nota-se que a Manchete manteve a estrutura mais moderna utiliza- 73
da nas revistas ilustradas e de público geral a partir de meados do séc. XX, com o uso de

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tópicos e imagens relacionadas às temáticas do miolo da revista. Na primeira (figura 32a),
temos uma edição especial em comemoração ao aniversário da cidade de São Paulo, a qual
intitulam “Retrato de São Paulo”, ilustrada por uma fotografia aérea da cidade com o icônico
edifício Copan, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, o mesmo que projetou a fundação da
cidade de Brasília.
Na segunda capa (figura 32c), temos ilustrado o artigo principal da revista, o fracasso
do Apollo 13 – operação da NASA para tentar chegar à lua –, na qual os austronautas sobre-
viventes acenam aos jornalistas. É possível relacionar esta capa a uma das capas da revista
Time, naquele mesmo período do ano de 1970 (figura 33), que tratou a mesma temática:
“como estes homens ecaparam da morte”; além disso, é notável a mesma composição cro-
mática das capas da revista norte-americana e da Manchete, sobretudo o contraste entre o
vermelho e o amarelo, uma característica invariante de ambas.
No topo desta capa de Manchete são colocados ainda outros elementos importantes
da revista. Destaca-se a faixa vermelha contínua, uma variante que compõe a capa de ma-
neira diferente, mas sem perder as características usuais da revista, principalmente ao man-
ter o contorno retangular em seu nome. Pode-se relacionar essa configuração com uma
das capas de 1970 da francesa Paris Match, a qual costuma manter seu nome emoldurado e,
em uma de suas edições (figura 34), ela extrapola essa moldura usual e compõe uma faixa
vermelha contínua, o mesmo artifício utlizado pela Manchete alguns meses depois.

Figura 33: Capa da edição de 1970 Figura 34: Capa de edição de 1970 Figura 35: Capa de uma edição de
da revista Time que trata da mes- da revista Paris Match. Nota-se a 1967 da revista Paris Match, que
ma temática que a segunda edição mesma faixa vermelha da capa de traz Elizabeth Taylor em sua capa.
de Manchete: o fracasso de Apo- Manchete aqui mostrada. Fonte: Fonte: Pinterest.
lo-13. Fonte: google.com. google.com.
74 Na terceira capa desse mesmo ano (figura 32c), uma cena esteticamente similar é retra-
tada – a revista reitera sua atuação no fotojornalismo nacional. Trata-se do retrato de um
Moda (re)vista no Brasil

momento pós-pouso forçado devido à uma ameaça de bomba em um avião da SwissAir. Na


última capa (figura 32d), temos uma estética similar em relação aos anos anteriores com a
Cruzeiro, principalmente, ao retratar uma atriz brasileira em sua capa, desnuda e em pose
sensual, sendo essa atriz a temática do principal artigo de seu miolo. Nesse caso, a manche-
te e as chamadas de capa – elementos também característicos dos jornais – são colocadas
em locais diversos da página, compondo e completando os espaços “vazios” da fotografia,
no entanto, a atriz não é nomeada na capa. Essa capa ainda nos remete à algumas capas
da Paris Match (figura 35), retratando figuras famosas e em poses sensuais, compondo os
tópicos principais em torno de seus rostos e corpos.
Com efeito, ao colocarmos em relação a Paris Match e a revista que estudamos, é im-
possível não notar, entre outros fatores, a similaridade entre as logos e os nomes de ambas.
A Manchete constrói-se e constrói sua logo claramente baseada na revista francesa, incor-
porando além do formante cromático (a cor vermelha), os formantes eidéticos e topológi-
cos, ao utilizar um retângulo na horizontal, no canto superior esquerdo, no qual a primeira
letra “M” destaca-se dentre as outras, figurativizando o local de destaque em que procura
se colocar no cenário nacional. Ademais, as próprias construções das palavras “match” e
“manchete” podem ser comparadas por sua construção lexical e pronúncias similares.
Como veremos, nos próximos anos a Manchete pouco modificou a estrutura de sua 75
logo, como colocado abaixo, nas capas das edições analisadas no ano de 1980:

Moda (re)vista no Brasil


Figura 36a: 05 Jan 1980– n. não disp. Figura 36b: 28 Jun 1980 – n. 1471

Figura 36c: 23 Ago 1980 – n. 1479 Figura 36d: 27 Dez 1980 – n. 1497

Figuras 36a, 36b, 36c, 36d: Capas das quatro edições selecionadas da revista
Manchete, referentes ao ano de 1980. Fonte: as revistas.

É possível notar que a Manchete muda um pouco seu rumo editorial em 1980, se com-
parado ao ano anterior que é analisado. Mantém os contrastes e combinações entre o ama-
relo e o vermelho, além do uso da faixa vermelha estendida enquanto elemento variante,
e realiza mudanças sutis na logo – diminuindo a altura e aumentando a largura da letra
“M”. No entanto, concentra mais informações verbais na composição da capa, e são mais
recorrentes as notícias sobre a vida (e a morte) de celebridades nacionais e internacionais.
76 Na edição de janeiro de 1980 (figura 36a), o cantor brasileiro Roberto Carlos tem sua
foto estampada no momento em que fuma seu cachimbo – num ano em que, como vere-
Moda (re)vista no Brasil

mos, há a presença de muitos anúncios de cigarros –, uma prática ainda muito bem aceita
então. Nas chamadas trazem ainda uma retrospectiva dos “anos 70”, o ano de “79” para o
cantor, além de algumas matérias especiais e a reportagem completa sobre o “crime da
casa das pedras”.
Na segunda capa (figura 36b), temos uma das clássicas edições da revista que fazem
uma cobertura completa do concurso de Miss Brasil, com a foto do rosto da vencedora
deste ano estampado na página, e com a chamada verbal “ainda se fazem misses como anti-
gamente”; ao redor de sua face são posicionadas as chamadas de capa, com temáticas que
envolvem transexualidade com “O pai que deu à luz”, o “Brasil 80” e uma matéria que faz a
cobertura de um assalto a Janete Clair, autora de telenovelas brasileiras.
Na terceira edição de 1980 (figura 36c) há a fotografia do casamento da princesa Caro-
line de Mônaco e um questionamento sobre a separação do casal. Aborda outras temáticas
da atualidade de então, como o uso abusivo de drogas, valores de imóveis em São Paulo,
bem como o “novo ciclo do Ouro” do Brasil na região de Serra Pelada – mais um momento
polêmico na história brasileira. Nessa capa a faixa vermelha é utilizada para destacar es-
ses tópicos, mas em posição perpendicular ao título e à esquerda do ex-casal fotografado,
criando uma capa que dispõe os elementos de forma mais harmoniosa.
Na última edição analisada de 1980 temos como headline (temática principal da revista)
a cobertura do assassinato do ex-Beatle, John Lennon. São dispostos dois retratos do músi-
co: um que ocupa maior parte da composição, em que ele está com sua então esposa, Yoko
Ono; e outro, mais acima sobre a faixa preta, uma fotografia momentos antes de sua morte,
em que seu assassino aparece ao seu lado. A faixa preta, em lugar de uma (possível) faixa
vermelha, remete ao uso simbólico do preto para o luto nas sociedades ocidentais. Junto
às imagens, há alguns tópicos que, além da headline, abordam outras temáticas como a
Usina Hidroelétrica de Itaipu, então a “maior usina do mundo”, além do que denominam “a
revolução agrícola” de São Paulo.
Por fim, vejamos as capas das edições de Manchete de 1990: 77

Moda (re)vista no Brasil


Figura 37a: 20 Jan 1990 – n. 1970 Figura 37b: 21 Jul 1990 – n. 1996

Figura 37c: 08 Set 1990 – n. 2004 Figura 37d: 15 Dez 1990 – n. 2018

Figuras 37a, 37b, 37c, 37d: Capas das quatro edições selecionadas da revista
Manchete, referentes ao ano de 1990. Fonte: as revistas.

Nessas capas não observamos nenhuma ocorrência do uso da faixa vermelha e nem
mesmo de qualquer outra cor. No entanto, a Manchete passou a dispor os tópicos principais
de forma mais ordenada, tanto topologicamente quanto cromaticamente, dispensando o
uso dessa variante. Nesse ano sua logo não sofre nenhuma modificação em comparação
ao ano anterior, mas as cores estão mais vibrantes e contrastantes, o que provavelmente
se deve ao uso de tecnologias mais atualizadas, tanto da fotografia e da fotomontagem
quanto da impressão e do papel utilizado.
78 Seu rumo editorial é mantido ao abordar ainda atualidades, fazendo uma cobertura
completa de algumas dessas, e abordando ainda questões da vida pessoal de artistas na-
Moda (re)vista no Brasil

cionais e estrangeiros. Como por exemplo, na primeira edição analisada (figura 37a), em
que é retratado o “descasamento” da atriz Myrian Rios e do cantor Roberto Carlos, além
de serem reportados de maneira educativa a epidemia da AIDS e os modos de transmis-
são dessa doença. Em seguida, na figura 37b tem-se como tema de capa uma reporta-
gem especial sobre a vida do cantor Cazuza que acabara de falecer, depois de muitos anos
convivendo com essa doença. Além, é claro, de serem tratados outros assuntos, como por
exemplo, a Copa de 1990 que foi vencida pela Alemanha.
Nas duas últimas capas desse ano (figuras 37c e 37d), torna-se evidente a dominância
midiática exercida pelas Editoras Bloch nesse momento. Abarcando além de outras revistas,
enciclopédias, livros e filmes, o grupo ainda mantinha a Rede Manchete de televisão, abran-
gendo vários meios de entretenimento do brasileiro, constituindo o chamado “império”
Bloch. Isso fica claro pela colocação em manchete das novidades da telenovela Pantanal,
um grande sucesso da Rede Manchete, retratando uma de suas principais atrizes, Luciene
Adami, e o drama de sua personagem. Assim, na última edição, a headline é a cobertura do
último capítulo dessa telenovela, retratando suas protagonistas e seus destinos no final da
trama; há ainda uma reportagem especial sobre o Pantanal, região ainda pouco explorada
no Brasil de então.
No desenrolar deste item, buscamos apresentar as 36 edições das revistas analisadas,
abordando um pouco de sua história, o contexto em que emergiram e se mantiveram, mas
principalmente, as temáticas abordadas e as formas de expressar essas temáticas em cada
edição, como cada revista se coloca enquanto corpo (re)vestido em relação ao seu leitor.
Por meio disso, pudemos explorar os mecanismos da variabilidade e da invariabilidade
do arranjo plástico das capas dessas revistas e, assim, averiguar como elas se colocam e
constroem sua identidade midiática nessa relação, pois concordamos com Oliveira (2007b,
p.79), para quem a identidade midiática “é um modo de presença e de estilo que se define
na estética da sintagmática quer do nome, quer da primeira página”.
Tais variantes e invariantes imprimem ritmos na construção da plasticidade, e cada re-
vista constrói-se em um determinado compasso. A Fon-Fon, como vimos, constrói-se pra-
ticamente pelo descompasso, mas num descompasso controlado que tem uma certa me-
dida de regularidades, principalmente em 1930, ao presentificar estéticas mais “universais”,
e também por parecer acompanhar o ritmo tão rápido com que se desenvolvia e se modi-
ficava a sociedade brasileira – como a adaptação à Primeira República, a Primeira Guerra
Mundial e, mais no fim desse triênio, a implementação do estado getulista.
Em outro passo, a Cruzeiro manteve-se num mesmo ritmo a cada ano em que anali-
samos, com poucos elementos variantes, mas sempre em correlação. Entre 1940, 1950 e
1960 houve variações consideráveis, causando uma quebra nesse ritmo. No entanto, esse 79
descompasso ainda manteve algumas invariantes, como as figuras humanas mais centra-

Moda (re)vista no Brasil


lizadas, sendo essas em sua maioria atrizes e/ou celebridades, seguindo, de certa forma, o
compasso dos meios de entretenimento como o cinema e o teatro, bem como da televisão,
mais adiante. São variantes que, assim como a revista anterior, articulam-se com o plano
do conteúdo, bem como com a cadência das mudanças da sociedade, como o suicídio do
então presidente Getúlio Vargas, uma Segunda Guerra Mundial e uma rápida retomada da
democracia.
A Manchete, diferentemente dessas, utilizou-se de poucos elementos variantes na sua
plasticidade; a invariância predomina e caracteriza uma construção identitária mais firma-
da na permanência, quase “independente” das mudanças no contexto. Entretanto, suas te-
máticas são muito mais variáveis, o que permitia a essa revista abordar e traduzir, sobre um
“fundo” de permanência rítmica, todos os compassos do mundo que lhe coubessem.
Essas revistas também acompanharam as mudanças e inovações tecnológicas. Tal fator
provavelmente foi crucial para que alcançassem maior sucesso de tiragens que as concor-
rentes – fato que justifica nosso recorte. A Fon-Fon já na primeira publicação imprimiu 100
mil edições, o que somente foi possível pelo seu pequeno tamanho e pelos novos modos
de impressão disponíveis; a Cruzeiro inovou com algumas páginas de seu miolo em cores
e, em 1960, trouxe a possibilidade de imprimir algumas páginas num papel melhor que o
papel jornal, além de conseguir tiragens numerosas com um modelo de revista grande; e
a Manchete que, já em 1952, foi capaz de imprimir, em um tamanho igual ao da Cruzeiro,
todas as suas páginas coloridas e impressas num papel de maior qualidade que o papel
jornal e pouco disponível até então, o couchê.
Contudo, essa identidade midiática não se constrói apenas a partir dessas manifesta-
ções e arranjos plásticos, mas ainda nas articulações que constroem um modo de presença
corpóreo, que é sentido e experienciado pelo todo sincrético do corpo-revista. É esse pon-
to que procuraremos explorar a seguir.

2.4. Os modos das revistas e os hábitos de leitura reativos

Ao abordar os mecanismos sensíveis e corpóreos da mídia, mais especificamente dos jor-


nais, Ana Claudia de Oliveira (2007b, p.79) afirma que a “forma de expressão verbo-visu-
al-espacial apresenta o jornal plasticamente ao leitor”, permitindo-lhe, antes do conteúdo
lido, já entrever algo desse conteúdo, por meio da apresentação sensível. Nesse conceituar,
ainda de acordo com a autora:

[...] a visualidade performática que o projeto gráfico e a diagramação fazem o leitor vi-
ver na experiência da sua estética é para ele apreender a presença sensível e inteligível
do jornal. As suas formas de mostrar-se são, pois, a evolução de um só, do jornal, que
80
move os contatos e encontros que dão inteligibilidade sensível ao mundo da notícia.
(OLIVEIRA, 2007b, p.79)
Moda (re)vista no Brasil

Com as revistas, procuramos delinear a construção de sua corporeidade, passando por


suas características gerais, sua contextualização, além de, nas revistas que compõem o cor-
pus, termos abordado as cores e a disposição de seus elementos. No entanto, há ainda um
elemento importante de sua construção corpórea: sua dimensão e volume.
Pautados ainda nas interações sensíveis de Landowski (2014, p.48), compreendemos
que é no encontro desses corpos que emergem os princípios da interação. Nesse encontro,
no entanto, o sujeito que se ajusta sensivelmente – o leitor –, não está limitado a um papel
temático, mas “suspenso às reações abertas de uma ‘competência’”, tanto a modal, de cará-
ter mais pragmático, quanto a estésica, que diz respeito às capacidades sensíveis. No caso,
a primeira seria a competência modal de saber-ler e saber manusear aquele corpo da revis-
ta seguindo os hábitos de leitura ocidentais institucionalizados, virando as suas páginas da
direita para a esquerda; a segunda refere-se ao sentir-se juntos, corpo-revista que reage ao
manuseio do leitor e, corpo-leitor que sente e reage às materialidades, cores, disposições
das informações, altura, largura e peso do corpo que segura em suas mãos.
Mencionamos que a composição plástica da revista a tornava um objeto mais durável,
e a forma de organização das informações dispostas nas páginas, permitia ao seu leitor
uma leitura mais fragmentada, seletiva e liberta de predeterminações. Ao nos depararmos
com dimensões de publicações tão diversas quanto as da Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete,
não deixamos de nos questionar como essas configurações plásticas determinam os hábi-
tos de leitura de seus destinatários.
Nesse contexto, talvez uma revista de pequeno tamanho permitisse maior liberdade
de escolha para o leitor em eleger seu local de leitura, em casa ou num restaurante, por
exemplo. Se a revista era revendida primordialmente por assinatura ou se era revendida
em locais de lazer, são também alguns fatores que imprimem modos de leitura. Essas são
algumas das hipóteses que temos para averiguar como a revista é programada, por suas
formas de apresentar-se ao leitor para que esse se ajuste sensivelmente às suas proporções,
pois, ainda de acordo com Oliveira (2007b, p.79), essa “presença corpórea sensiente impõe-
se sobre o leitor para ser sentida ao ser tocada com as mãos e aproximada” tanto de seus
olhos quanto de seu corpo.
A partir disso, partimos para a análise dessas configurações que delineiam esse contato 81
sensível. Na figura abaixo, temos as medidas do corpo-revista da Fon-Fon:

Moda (re)vista no Brasil


27cm

18,5cm

Figura 38: Medidas da revista Fon-Fon. Correspondem a 27 cm de altura e 18,5 cm de largura. Fonte: produzido
pela autora.

Vimos que a Fon-Fon foi uma revista dinâmica, sempre se transformando junto a suas
capas e acompanhando as mudanças da sociedade cada vez mais urbanizada. No entan-
to, no período analisado, seu tamanho permaneceu o mesmo. Era revendida em cafés e
restaurantes, locais característicos dos novos hábitos da sociedade na qual se inseria, mas
também era vendida por assinatura.
Nesse contexto, seu pequeno tamanho, por um fazer sensível, daria liberdade a seu
leitor para que ele escolhesse o local de leitura, ou mesmo para que já saísse do restauran-
te lendo a revista no caminho até sua casa. Além de ter um custo de produção mais baixo,
dava maior liberdade ao leitor, que poderia levar a revista consigo onde quer que fosse. Na
figura 39 podemos notar os hábitos de leitura mais libertos que esse tipo e tamanho de
publicação permitiam.
82
Moda (re)vista no Brasil

Figura 39: Trata-se de um retrato feito pelo fotógrafo de street style da Belle Époque londrina Edward L. Sambourn.
No retrato uma mulher caminha pelas ruas de Londres e faz a leitura de sua revista. Fonte: The Camera Club.

Apesar de não ser uma fotografia local, consideramos que, sendo a Inglaterra um país
de referência da época e também que a Fon-Fon era revendida por lá, esses hábitos eram
similares. Nota-se que as roupas da mulher, vestida com um chapéu, uma blusa com man-
gas bufantes, e, pressupomos que usa também um corset que afina a cintura e, ainda, veste
uma saia mais reta e ajustada ao corpo. Suas roupas remetem aos trajes da mulher sentada
ao café, na capa da primeira edição analisada (figura 20a). A Fon-Fon, assim, acompanha o
ritmo de seus leitores que andam pelas novas ruas do Rio de Janeiro e do país durante a
Primeira República, frequentando restaurantes e cafés, e essa própria vivencia é prescrita
nas páginas da revista.
A revista O Cruzeiro também mantém as mesmas medidas em todos os anos analisados,
no entanto, tem uma proporção bem diferente da Fon-Fon, como vemos a seguir:
83

Moda (re)vista no Brasil


34,5cm

25cm

Figura 40: Medidas da revista O Cruzeiro. Correspondem a 34,5cm de altura e 25cm de largura. Fonte: produzi-
do pela autora.

O Cruzeiro era revendido principalmente por assinatura, chegava semanalmente e pon-


tualmente à casa de seus leitores. Como uma de suas grandes inovações eram as fotorre-
portagens, imprimia suas imagens em uma enorme “tela”, sendo uma revista de grandes
proporções, a maior brasileira de então – com a grandiloquência que se apresenta em seu
texto de inauguração, apresenta-se também em suas proporções. Suas proporções e peso
– suas edições chegavam a ter 150 páginas –, não permitiam que seus leitores circulassem
muito com as revistas em mãos. Suas grandes cenas deveriam ser observadas e lidas nas
próprias casas dos leitores; há relatos de famílias e amigos que se reuniam nas suas casas,
aos finais de semana, para ler e “assistir” juntos as cenas trazidas por “O Cruzeiro”.
Por essas medidas percebe-se a grande diferença dos tamanhos da Fon-Fon e da O Cru-
zeiro. Essa última, por sua vez, tinha seu corpo-revista quase proporcional ao tamanho do
tronco do corpo do leitor e, assim, ficavam os dois frente a frente, corpo a corpo. Na figura
41 temos anunciado um modo de leitura dessas revistas: a menina está sentada de forma
relaxada na poltrona de sua casa, mas veste seu vestido laranja, seus sapatos de salto, usa
maquiagem e um penteado feito e amarrado com um laço – ela está bem vestida para estar
junto ao mundo da revista que lê, a qual também está (re)vestida, de cores, materialidades
e corpos circulantes. Em união, da mesma forma que na Fon-Fon, encontram-se o corpo
vestido do leitor e corpo vestido da revista.
84
Moda (re)vista no Brasil

Figura 41: A imagem acima é um dos anúncios que são analisados nessa pesquisa; trata-se de uma propaganda
da revista A Cigarra, do mesmo grupo Diários Associados de Chateaubriand. Fonte: as revistas.

Para competir com O Cruzeiro, a Manchete lançou-se como uma revista ainda maior.
Trazemos, abaixo, as proporções dessa:

35cm em 1970

33,5 cm em 1980

30,5 cm em 1990

26cm em 1970/80

24,5cm em 1990

Figura 42: Medidas da revista Manchete em cada ano analisado. Correspondem a 35 cm de altura e 26 cm de
largura em 1970, 33,5 cm de altura e 26 cm de largura em 1980, e 30,5 cm de altura e 24,5cm de largura em
1990. Fonte: produzido pela autora.
Com essas proporções, a Manchete mantém-se aos moldes da Cruzeiro, sendo ambas 85
revendidas principalmente por assinaturas e, assim, ainda direciona seus leitores a buscar

Moda (re)vista no Brasil


lugares mais confortáveis para folhear e ler suas páginas. No entanto, com o passar dos
anos diversificou seus pontos de venda e foi aos poucos diminuindo o tamanho – diminuí-
ram quase 5 cm de altura e 2 cm de largura de 1970 a 1990 – acompanhando os modos de
vida desenvolvidos entre os brasileiros.
A população, principalmente a feminina, começa a ter mais liberdade para circular, tra-
balhar fora de casa, entre outras mudanças. Igualmente, o frequentar de salões de beleza
é mais popularizado. Na figura 43, têm-se retratados esses hábitos que são explorados nas
diversas mídias, como na televisão. Uma das personagens da telenovela retratada lê sua
revista enquanto faz seus tratamentos de beleza. Seu tamanho ainda é proporcional ao
tronco, mas pode-se perceber que essas revistas passam a ser disponibilizadas como forma
de passatempo e entretenimento em locais como esses.

Figura 43: Nessa imagem temos retratada uma cena da telenovela Dancing Days, exibida pela Rede Globo entre
os anos 1978 e 1979. Foi uma das novelas de grande sucesso da TV e uma das primeiras a qual o público pedia
informações sobre as roupas de suas personagens. Fonte: Blog Cidadão Quem.

Em 1990, os pontos de venda e locais que as disponibilizam são diversificados e seus


leitores passaram a ter maior liberdade de onde ler suas revistas. Aos poucos, a Manche-
te parece retomar alguns valores presentificados nas revistas de menores proporções do
início do século, ao compasso da sociedade que, cada vez mais, identifica-se com essas
mídias, e por elas, apreende um gosto pela aparência, tanto do corpo-revista, quanto de
si mesmo. Assim, as revistas ajustam-se à vivência de seu leitor, e esse também sente e se
ajusta às mudanças desse corpo midiático que noticia “as metamorfoses do mundo” (OLI-
VEIRA, 2007, p.79).
86 Nessa apreensão, o consumo é o que delineia essas construções de aparências, da
moda e seus ciclos, tanto de um corpo quanto de outro. Para o sujeito leitor, é consumir as
Moda (re)vista no Brasil

roupas para frequentar novos locais, as roupas para estar junto à revista, bem como utili-
zar os serviços oferecidos pelos locais nos quais essas revistas estão. Retomamos aqui um
trecho da epígrafe de Nelson Sodré (1999, p.1) que deu início a esse capítulo: “[...] a história
da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista”, pois o que
tentamos demonstrar nesse capítulo foi, justamente, que toda a construção, composição
e vendas dessas revistas está relacionada ao desenvolvimento da sociedade urbana brasi-
leira e, esse desenvolver-se se faz em relação direta com os modos de consumir. São nesses
modos que nos aprofundaremos no capítulo que segue.
3

Moda enquanto
modos de vida
88 Não há como falar em modos de consumir, neste trabalho, sem falar da publicidade e
seu papel motriz na construção de consumidores desejantes do “novo” ou do que seria,
Moda enquanto modos de vida

no discurso publicitário, revestido pelos valores da novidade. São práticas de vida, primor-
dialmente da vida urbana, que são traduzidas em construções verbo-espaço-visuais e nas
quais a moda é elemento fundamental por estar presentificada, por vestir um corpo que
anuncia, construindo as aparências desse corpo anunciado. Assim, adentraremos o corpus
de anúncios das revistas que analisamos: Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete.
Nessas, a publicidade ocupa uma boa parte das páginas que as compõem, tanto que,
em 36 edições, nos deparamos com o incrível número de 1.995 anúncios. Na construção
do corpo das edições analisadas, cerca de duas a cada três páginas contêm pelo menos
um anúncio, isso é muito significativo na construção do papel temático dessas revistas.
Por essa significância, a análise desses objetos de consumo que são anunciados por diver-
sas encenações nas “telas” da revista é de extrema importância se buscamos compreender
como elas atuaram na construção da moda enquanto feições da aparência nos vários e
recorrentes modos de consumir.
Para isso, neste capítulo, em um primeiro momento, vamos expor a estruturação do
corpus de propagandas e como se deu sua delimitação, para que, no próximo capítulo, se-
jam analisados os efeitos de sentido das peças publicitárias delimitadas e as temáticas que
presentificam. Em um segundo momento, analisaremos a amostragem quantitativa do cor-
pus e como esses modos de vida podem ser considerados como a constituição da própria
moda. Por fim, vamos examinar os modos de anunciar pela análise da topo-hierarquia das
páginas da revista na sua relação com o tamanho e disposição das propagandas, categori-
zando-as para que essas relações sejam consideradas no decorrer do capítulo A moda nos
modos de vida: a construção de aparências.

3.1. A vida anunciada: as propagandas em Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete

Os anúncios, como mencionamos, ao compor uma quantidade tão significativa do cor-


po da revista tornam-se uma de suas partes primordiais. Talvez, em alguns casos, sejam a
maior fonte de renda para a produção das revistas – destinadores privados que encontram
nesses meios as formas de chegar às casas de seu público-alvo, os destinatários.
Ao observarmos e estudarmos os anúncios percebemos que se tratavam de propagan-
das de produtos que abrangiam toda a vida do consumidor, seus modos de estar no mundo.
Mas a abrangiam ao oferecer produtos, sejam eles já conhecidos ou novos produtos, em
cenas que, muitas vezes, delineavam o modo de uso, ou mesmo o modo de se portar, de se
vestir e o local para usar esse produto. Colocando de outra maneira, é como se os enuncia-
dores prescrevessem, por meio desses anúncios, as práticas de vida dos sujeitos a quem se 89
destinam, pois, compreendemos como Greimas e Courtés (2011, p.380), para quem essas

Moda enquanto modos de vida


práticas são as práticas semióticas, “sequencias significantes de comportamentos [...] cujas
realizações vão dos simples estereótipos sociais até as programações”, sendo a maneira
como se organizam os comportamentos sociais.
A partir dessas observações, delineamos uma primeira categorização pautada na fun-
ção, ou mesmo na finalidade de cada produto anunciado, uma categorização de cunho mais
comercial, digamos. Assim, chegamos a cinco grandes categorias temáticas de produtos:

• Práticas do vestir: abrangem os produtos de vestuário, como roupas, tecidos, aces-


sórios, calçados, entre outros produtos relacionados, tanto para homens e mulheres
quanto para crianças;
• Práticas da cosmetologia: abarcam os produtos para cuidados pessoais, para higiene
e beleza, bem como para cuidados gerais com a saúde, como aspirinas e xaropes, etc.;
• Práticas do lazer: se referem aos produtos e serviços voltados para o lazer e o entreteni-
mento como viagens de férias, programas e canais de rádio e televisão, revistas, jornais,
livros, brinquedos infantis, concursos promocionais, cinemas e até mesmo cigarros e
charutos, etc.;
• Práticas utilitárias: abrangem os produtos e serviços que visam a organização da vida,
tanto da mulher quanto do homem, como por exemplo, eletrodomésticos, objetos de
escritório e para o trabalho, bancos, poupanças e salões de beleza, viagens a negócios,
entre outros tantos produtos e serviços.

Com a finalidade organizar todos esses produtos anunciados construímos alguns s, de-
limitados por décadas e ao mesmo tempo por revistas, que listam todos esses produtos
que prescrevem práticas de vida. Iniciamos pela Fon-Fon (1910; 1920; 1930), passamos pela
O Cruzeiro (1940; 1950; 1960) e finalizamos com a Manchete (1970; 1980; 1990). Seguem os
abaixo:
90 • Fon-Fon (1910; 1920; 1930):
Moda enquanto modos de vida

Fon-Fon 1910 1920 1930


• Vestuário (masculino e • Vestuário (masculino; femini- • Vestuário: Look de Jean Patou;
PRÁTICAS
DO VESTIR

feminino) – corsets; roupas no; infantil) roupas de banho e para esportes;


brancas; ternos; camisas. • Tecidos roupas infantis
• Calçados (masculino) • Calçados (solas de borracha; • Calçados (feminino; masculino;
• Luvas (femininas) esportivos; feminino; masculi- solas de borracha)
• Acessórios (chapéus – no; infantil) • Acessórios (alfinetes de colari-
masculino e feminino); • Acessórios (joias; ligas masc.; nho)
joias. chapéus) • Tecidos
• Perucas

• Cuidados com a pele: • Cuidados com a pele: Pó de • Cuidados com a pele: Pó de


PRÁTICAS DA
COSMETOLOGIA

Pó de arroz; talcos; arroz; talcos; cremes rejuve- arroz; talcos; cremes rejuvenes-
cremes rejuvenescedo- nescedores e hidratantes; cedores e hidratantes; pílulas
res e hidratantes; pílulas pílulas rejuvenescedoras da rejuvenescedoras da cútis e dos
rejuvenescedoras da cútis cútis e dos seios; barbeador; seios; barbeador; adstringentes;
e dos seios; barbeador; adstringentes; cera (protetor cera (protetor solar); rouge.
adstringentes. solar). • Cuidados com o corpo: produtos
• Cuidados com os cabe- • Cuidados com o corpo: pro- para engordar, que evitam a obe-
los: Tintura; sabão para dutos para engordar e para sidade e para desintoxicar.
cabelo (shampoo); pro- desintoxicar. • Cuidados com mãos e pés: Cre-
dutos para crescimento e • Cuidados com mãos e pés: me hidratante; removedores de
regeneração dos cabelos/ Creme hidratante; removedo- cutícula; removedores de calos.
pelos. res de cutícula; removedores • Cuidados com os cabelos:
• Perfumes de calos. Tintura; produtos para crescimen-
• Cuidados para a saúde: • Cuidados com os cabelos: to e regeneração dos cabelos;
Xarope revitalizante; xa- Tintura; produtos para cres- petróleo anticaspa.
rope para a tosse; xarope cimento e regeneração dos • Perfumes
para azia; estimulantes; cabelos. • Cuidados para a saúde: Xarope
remédios para mulheres. • Perfumes revitalizante; xarope para a tosse;
• Higiene: Dentifrício; • Cuidados para a saúde: xarope para azia; sal de frutas;
sabão; sabonete. Xarope revitalizante; xarope estimulantes; revitalizantes; as-
para a tosse; xarope para azia; pirina; antiasmáticos; para dores
sal de frutas; estimulantes; renais; remédios para mulheres;
revitalizantes; pílulas para he- ferro para anêmicos; depurativos
morroidas e prisão de ventre; para tuberculose e sífilis; remé-
aspirina; antiasmáticos; para dios para crianças; pomadas para
dores renais; remédios para queimaduras; antisséptico; fortifi-
mulheres; ferro para anêmi- cantes para grávidas e lactantes;
cos; tônico para tuberculose; colírio; antigripal; vermicida;
• Higiene: Dentifrício; sabão; pastilhas para tosse/ garganta.
sabonete; antisséptico bucal; • Higiene: Dentifrício; sabão; sabo-
higiene íntima feminina. nete; antisséptico bucal; higiene
íntima feminina; absorventes
femininos.
PRÁTICAS • Barcos de pequeno porte • Cinema • Cinema (síntese de filmes)
DO LAZER
91
• Automóveis • Loterias • Tocadores de música/rádio:
• Selos para coleção • Arma de fogo e pólvora Grafonolas; vitrola; phonographos

Moda enquanto modos de vida


• Loja de brinquedos • Pianos portáteis; radio-electrola (permitia
• Tocadores de música: Pia- • Objetos de arte a gravação de discos em casa).
nola (tocador de música • Tocadores de música: Vitrolas • Discos
automático) • Cigarros • Motocicleta (Harley-Davidson)
• Charutos • Revistas sobre cinema
• Bicicletas • Fascículos ilustrados – Romances
• Revistas sobre misticismo
• Livros

• Tinta de parede • Máquina de escrever • Máquina de escrever


PRÁTICAS
UTILITÁRIAS

• Máquina de escrever • Móveis: para casas e consul- • Móveis: para casas e consultó-
• Relógio (de bolso) tórios médicos rios médicos
• “Vibrador para massa- • Automóveis e peças de auto- • Automóveis e peças de automó-
gem” móveis (pneus, velas e molas) veis (pneus, velas e molas)
• Catálogos • Relógios • Relógio de mesa (despertador)
• Seguradora • Produtos de limpeza: sapólio • Produtos de limpeza: sapólio e
• Hotel • Óculos: de grau e para dirigir sabão em pó
• Companhia de viagens • “Motocarro” locomoção • Óculos: de grau e para dirigir
(navio) mecânica • “Motocarro” locomoção mecâ-
• Cooperativa “Italo-Bra- • Papelaria nica
sileira” • Artigos para casa: enxovais e • Papelaria
• Credit foncier du Bresil tapeçaria • Artigos para casa: enxovais e
• “A Internacional: Pensões • Utilitários de cozinha: fogão tapeçaria
Vitalícias e Habitações e batedeira; prataria; talheres; • Utilitários de cozinha: fogão a
populares” porcelanas. gás; prataria; talheres; porcelanas;
• Binóculos refrigerador.
• Utilitários agrícolas • Binóculos
• Canetas • Lâmpadas
• Gerador de energia para • Utilitários agrícolas
fazendas • Canetas
• Classificados (de produtos e • Classificados (de produtos e
serviços) serviços)
• Pensões • Atendimento médio e hospitalar
• Acompanhante de compras • Aulas de italiano e francês
em Nova York • Fotografias de família
• Atendimento médico e • Decoração
hospitalar • Salão de beleza
• Alfaiataria • Companhia de viagens (navio ou
zeppelin)
• Seguradora
• Empresa de publicidade
• Laboratório farmacêutico
• Alfaiataria

• Sucos • Água gasosa • Sopas enlatadas


PRÁTICAS
ALIMENTARES

• Água gasosa • Queijo • Farinha láctea


• Farinha láctea • Bebidas alcoólicas • Massa pronta de macarrão
• Manteiga • Refrigerantes • Sal de mesa
• Chá • Molho (tempero) • Amido de milho
• Molho (tempero)
• Chiclete
• Biscoito
• Chá
• Frutas Frescas

1: Lista dos produtos anunciados na Fon-Fon, divididos por ano e subdivididos pela finalidade comercial de
cada produto.
92 • O Cruzeiro (1940; 1950; 1960):
Moda enquanto modos de vida

O Cruzeiro 1940 1950 1960


• Tecidos • Vestuário: casemiras; maiô; • Vestuário: lojas de depar-
PRÁTICAS
DO VESTIR

• Calçados (femininos - lingerie; cinta feminina; meias tamento (Renner); meias de


Acessórios: Joias; meias masculinas; blusas e echarpes; nylon; sutiã; calça jeans; robes
finas; Relógio de pulso vestidos e anáguas; camisas-esporte;
• Vestuário: lingerie; vesti- • Tecidos: de lã; linho irlandês, blusas; calças; camisas; con-
dos, manteaux. entre outros juntos; gravatas
• Calçados: solados de borracha; • Calçados: sete vidas (alpar-
calçados femininos gatas)
• Acessórios: Relógio de pulso • Acessórios: relógio de pulso
• Tecidos: estampados; amo-
rella (Rhodia); tropical

• Cuidados com a pele: • Cuidados com a pele: adstrin- • Cuidados com a pele:
PRÁTICAS DA
COSMETOLOGIA

vela antisséptica rejuve- gente; antissardas, depilação; sabonete; barbeador; talcos;


nescedora, cremes rejuve- creme rejuvenescedor; talco; vitamina A-D; petróleo para
nescedores e hidratantes; barbeador; hidratante; loção bronzear; cremes depilató-
pílulas para os seios; ads- pós-barba; estojo de cuidados rios; creme para rugas; estojo
tringentes; tônicos; creme masculinos e femininos p/ de cuidados masculinos e
de barbear; depilação presente femininos p/ presente
• Cuidados com o corpo: • Cuidados com o corpo: produ- • Cuidados com o corpo:
produto para emagrecer tos para emagrecer laxantes para emagrecer;
• Cosméticos: Batom, lápis • Cuidados com mãos e pés: para comprimidos para engordar/
de sobrancelhas, pó de remoção de calos; esmaltes emagrecer
arroz, rouge; rímel • Cuidados com os cabelos: • Cuidados com mãos e pés:
• Cuidados com os cabe- tinturas; para caspa e queda dos removedor de calos; esmaltes
los: Tintura e tonalizante; cabelos; óleo; petróleo; fixador; • Cuidados com os cabelos:
• Perfumes e águas de produtos para ondulação per- brilhantina; shampoo; fixa-
colônia manente dor; shampoo e tintura
• Cuidados com mãos e • Perfumes • Perfumes e águas de colônia
pés: Esmaltes; remédio • Cosméticos: pó de arroz; batom; • Cosméticos: pó de arroz; pó
para calos base; rímel; espécie de primer e base juntos
• Cuidados para a saúde: • Cuidados para a saúde: colírio; • Cuidados para a saúde:
sal de frutas; elixir da “ju- esparadrapo/curativo; aspirina aspirina adulta e infantil;
ventude”; colírio; estimu- e tônicos revitalizantes; sal de para hérnia; pílula anticon-
lante dos rins; antiepiléti- frutas; remédio para cólicas cepcional; leite de magnésia;
co; remédios para cólica menstruais; vermífugo; estojo de antiácidos; complementos
menstrual e fluxo; tônico emergência; anticoceiras; regu- vitamínicos; para a dor dos
para o “cérebro”; antigri- lador do intestino; óleo e creme primeiros dentes; antissépti-
pal; xarope para tosse; como protetores do sol; pomada co; pomadas para dores
Vitamina “E”; colírios; ferro para contusões; cola para denta- • Higiene: sabonete; deso-
para anemia. dura; tônico infantil dorante; sabonete antibac-
• Higiene: Pasta de • Higiene: Pasta de dentes; teriano; pasta dentifrícia;
dentes/ Creme dental; sabonete; lenço de papel; sais antisséptico bucal; lenço
sabonete antibacteriano; para banho; óleo para bebes; de papel; escova de dentes;
higiene íntima; desodo- desodorante; escova de dentes; produtos para bebês
rante papel higiênico; enxaguante
bucal; sabonete antibacteriano;
talco infantil; cinto para absor-
vente feminino
PRÁTICAS • Cigarros • Rádio difusora de SP • Novelas da rádio Tupi
DO LAZER
93
• Câmera fotográfica • Livros • Fotonovelas
• Casa de veraneio • “O Cruzeiro é a maior força • Cigarros

Moda enquanto modos de vida


• Livros vendedora do Brasil”: 1.250.000 • Brinquedos
• Outras revistas exemplares • Outras revistas
• Aparelho de rádio em • Televisão • Jornais
miniatura • Móvel com rádio e toca-discos • TV Itacolomi
• Cigarros • Livros
• Discos com histórias infantis • Rádios
musicadas; discos musicais

• Termômetro • Inseticida • Lâmpada


PRÁTICAS
UTILITÁRIAS

• Companhia Brasileira de • Cera para chão • Sabão em pó para roupas


Eletricidade • Pneus brancas e comuns
• Carrinhos de bebês • Produto de limpeza para • Geladeira
• Caneta prataria • Ventilador
• Móveis e Tapeçarias; • Máquina de costura • Supercola
itens decorativos • Borracha • Talheres; enceradeira; grill,
• Desinfetante veterinário • Gerador de energia industrial ferro de passar, rádio; porce-
(prod. Nacional) • Tinta para caneta; caneta lana
• Inseticida • Máquina de escrever • Máquina de lavar
• Refrigerador • Materiais para filmes e artes • Automóveis; óleo para car-
• Transportes Great gráficas ros; freios; caminhões; cera
Western • Durex • Canetas
• Impressão de Cartões de • Enceradeira elétrica • Cola para dentadura
Visita • Panela de pressão • Lençóis
• Viagem a Portugal para • Móveis; móveis para cozinha • Filmes rolo p/ câmera
as comemorações cente- • Tinta para paredes • Novos modelos de torneiras
nárias • Linhas de costura • Chuveiros elétricos
• Hotéis • “Presentes de Natal Singer”: • Aspirador de pó
• Loterias tesouras, lenços, panos riscados • Inseticida
• Bancos para bordar, caixas e cestas • Chuveiro elétrico
• Médico Homeopata • Refrigerador; batedeira e liqui- • Cama
• Clínica médica dificador. • Produtos de plástico para
• Advogados • Exaustor casas
• Escola • Automóveis • Ensino a distância e/ou
• Salão de beleza • Roupas de cama presencial
• Empresa de gás do RJ • Aparelho para surdez • Seguro de cargas/ seguro de
• Ensino a distancia vida/seguro de bens
• Atendimento médico • Empresa de viagens aéreas
• Aprender inglês por discos • Empresa petroleira (Shell)
• Curso de rádio e TV • Bancos
• Curso de corte e costura; dese- • Investimentos financeiros
nho; contabilidade • Empresa de viagens a navio
• Cursos técnicos
• Indústria Farmacêutica
• Empresa nacional de aviação
• Empresa de seguros de vida
• Cerveja • Leite condensado • Chá
PRÁTICAS
ALIMENTARES
94
• Creme de Leite • Toddy (Achocolatado em pó) • Rum
• Leite Condensado • Gelatina • Café solúvel
Moda enquanto modos de vida

• Farinha Láctea • Cerveja • Leite solúvel


• Gim • Marmelada • Aveia
• Mingau Infantil • Chá • Bombons de chocolate;
• Amido de milho • Tempero para carne barras de chocolate
• Mostarda • Refrigerante Coca-Cola • Vodka
• Farinha Láctea • Cestas de natal
• Chiclete • Biscoitos
• Licor de cacau • Salsicha enlatada
• Biscoitos • Amido de milho
• Óleo • Refrigerante Coca-Cola
• Ervilha enlatada • Sardinhas enlatadas
• Fermento (Pó Royal – Receita • Salsichas em conserva
para bolos)

2: Lista dos produtos anunciados na O Cruzeiro, divididos por ano e subdivididos pela finalidade comercial de
cada produto.

• Manchete (1970; 1980; 1990):

Manchete 1970 1980 1990


• Tecidos: tecidos brasileiros; escoce- • Vestuário: casemiras • Vestuário: lingerie
PRÁTICAS
DO VESTIR

ses; tecido antimanchas • Tecidos:


• Vestuário: calça; meias; vestidos; cal- • Calçados: Botas; calçados
ça jeans; roupas infantis; “O inverno da sociais e esporte masculinos
elegância”- Tecidos Parahyba Acrilan;
“Lançamento da coleção outono-in-
verno da Futura” (entre a propaganda
e o editorial)
• Fábricas e lojas: Karibê; casas per-
nambucanas; Rhodia; Club Um (moda
masculina);

• Cuidados com a pele: creme; loção • Higiene: linha infantil de • Cuidados com a
PRÁTICAS DA
COSMETOLOGIA

pós-barba; barbeador higienização saúde: remédio para o


• Cosméticos: pó de arroz fígado.
• Cuidados com os cabelos: tônico
capilar para queda e caspas; shampoo;
petróleo
• Perfumes
• Cuidados com a higiene: Sabonete;
absorvente íntimo feminino
PRÁTICAS • Câmera fotográfica; filmadora e • Rádio Manchete • Câmera fotográfica;
DO LAZER
95
projetor • Raquete e bolas de tênis filmadora
• Gravador • Toca-discos • CD da trilha sonora

Moda enquanto modos de vida


• TV Difusora; Rede Tupi de televisão; TV • Cigarros da novela
Globo • Brinquedos • Vídeos de Ginástica
• Rádio para automóveis; Rádio • Televisão em cores • Rede Manchete de TV
portátil • Gravador • Vídeo Cassete
• Toca-fitas; som • Revistas • Filmes em VHS
• Novela (Nossa filha Gabriela) • Fascículos sobre a história • Jornais
• Revistas do Brasil • Concurso cultural 100
• Livros • Dicionário anos de república
• Empresas aéreas • Enciclopédias
• Brinquedos • Jornal
• Cigarros

• Enceradeira • Produtos Walita; Britânia • Conjunto de facas


PRÁTICAS
UTILITÁRIAS

• Ventilador (ventilador, liquidificador, se- (Pantanal)


• Carpete cador, móveis, entre outros.); • Carros; uso do cinto
• Cristais valises térmicas de segurança
• Carros: óleo para automóveis; pneus • Fogão • Esteira ergométrica
• Cerâmica • Carros; pneus; óleo; lubrifi- • Supermercado:
• Lâmpadas cante; caminhão Carrefour
• Borrachas e plásticos; empresa de • Iluminação • Consórcio habita-
plásticos utilitários • Aço cional
• Móveis de aço • Refrigerador • Empresas de aviação
• Concreto • Caneta • Restaurante no Chile
• Caminhão; utilitários para fazenda • Chuveiro elétrico • Bancos
• Fogão; panelas • Equipamentos industriais • Feira Nacional de
• Copiadora • Bancos (poupança); Banco produtos escolares
• Itens para decoração: forros; cerâ- de Comércio e Indústria • Exposição cores e
mica • Ajuda de custo para cons- sons do Pantanal
• Lençóis trução do Memorial JK em • Restaurante
• Caneta Brasília • Empresa de outdoors
• Ar-condicionado • Corretora de valores mobi- • Hotéis
• Ferro de passar roupa liários
• Eletrodomésticos Ultralar; Refrige- • Usina energética
rador • Construtora
• Secador de cabelos • Editora
• Tubos de PVC • Transporte integrado (fi-
• Enciclopédia nanciado pelo Banespa)
• Navio • INCRA
• Móveis • Viagens em Cruzeiros
• Dicionário ilustrado • Serviços de previdência
• Papel de parede privada
• Bancos • Correios
• Empresas petroleiras (de São Paulo, • Serviços de exportação
Shell, Texaco) • Hotel
• Distribuidora de água • IBGE
• Marcas que passam a investir no • Construtora
“desenvolvimento e bem-estar social”: • Para anunciar na Manchete
Mitsubishi
• “Companhia brasileira de construção”
• Empresa farmacêutica
• Empresas de aviação
• Fábrica de plásticos
• Empresa de contadores
• Grêmio beneficente do exército
• Seguro de vida e de bens
• Aprender francês e inglês por discos
• Aplicar investimentos na construção
do Hotel Nacional do RJ
• Cartão de crédito
• Leite em pó • Vinho • Margarina
PRÁTICAS
ALIMENTARES
96
• Enlatados • Whisky
• Soda limonada • Chapecó: indústria de carnes
Moda enquanto modos de vida

• Whisky
• Água tônica
• Chá
• Conhaque

3: Lista dos produtos anunciados na Manchete, divididos por ano e subdivididos pela finalidade comercial de
cada produto.

Partindo dessa categorização, foi possível organizar o corpus de anúncios e encará-los


enquanto agrupamentos, como prescrições de práticas de vida generalizadas em modos,
como veremos a seguir.

3.2. Prescrições de práticas de vida: modos de consumir

Como explicitado nos s do último tópico, são cinco as denominadas práticas de vida: prá-
ticas do vestir, práticas da cosmetologia, práticas alimentares, práticas do lazer e práticas
utilitárias. Essas cinco categorias nos possibilitaram tratá-las enquanto modos de consumo
que constroem os modos de vida social das urbes.
Na abrangente e extensa publicidade presente nas revistas analisadas foram encontra-
das diversas formas de figurativização das mesmas temáticas. Figuras essas que passaram
por processos de categorização, abrangendo a análise na qual o corpus se faz adequado.
Assim, as propagandas encontradas e que foram agrupadas em cinco temáticas – as práti-
cas de consumo – são agora categorizadas em modos: os modos de se vestir, os modos de
se cuidar, os modos de se divertir, os modos de se alimentar e os modos de se organizar,
que, unidas num mesmo discurso, sincretizam os modos de estar no mundo do sujeito se-
miótico. São dados os exemplos abaixo:
97

Moda enquanto modos de vida


Figuras 44a, 44b, 44c, 44d e 44e: as figuras exemplificam as temáticas publicitárias das revistas. Elas represen-
tam respectivamente (de cima para baixo e da esq. para dir.): modos de cuidar-se com a propaganda de uma
aspirina para mulheres; modos de divertir-se com a propaganda de uma vitrola; modos de organizar-se com
a propaganda de uma geladeira; modos de alimentar-se com a propaganda de um refrigerante; e modos de
vestir-se com a propaganda de uma loja de roupas. Nota-se que em todas as temáticas apresentadas há corpos
vestidos figurativizados nas encenações das práticas, o que destaca o fazer do corpo vestido nas narrativas de
vida. Fonte: as revistas.

O corpus, de acordo com Greimas e Courtés (2011, p.104), é entendido como “um con-
junto de enunciados, constituído com vistas à análise”, mas somente as análises são ca-
pazes de explicar a seleção desse corpus. Como uma espécie de amostragem, tal corpus
deve representar os enunciados a serem analisados. Um dos meios para se averiguar tal
representatividade seria por amostragem qualitativa (o que adotamos com esse recorte do
corpus de anúncios).
A análise da representatividade do corpus de propagandas é realizada qualitativamen-
te e seus resultados serão semiotizados para que possam, justamente, representar o ob-
jeto de análise, e desse modo alcançar os objetivos da pesquisa. No entanto, vimos que
98 para auxiliar na análise do nível de amostragem do corpus, seria necessário primeiramente
um estudo quantitativo. Pois ainda de acordo com os autores (GREIMAS; COURTÉS, 2011,
Moda enquanto modos de vida

p.105), “a representatividade do corpus pode ser obtida [...] por amostragem estatística1”.
Tal estudo quantitativo, também semiotizado, permitiria a melhor compreensão do quão
representativo seria o corpus.
Como dito anteriormente, para dar continuidade a essa pesquisa e para justificar a
amostragem qualitativa – e assim poder encarar o corpus de análise enquanto representa-
tivo –, foi necessário quantificar essas peças publicitárias. Primeiramente elas foram quan-
tificadas como um todo, e depois por suas partes. Sendo a totalidade entendida como
uma categoria2, o todo seria composto pelo conjunto de cada temática por revista – por
exemplo, o número total de propagandas com a temática modos de vestir-se delimitada por
cada uma das três revistas –, as partes seriam compostas pelo conjunto de cada temática
por cada ano – por exemplo, o número total de propagandas que presentificam corpos
vestidos, com a temática modos de cuidar-se subdivida em categorias (como cosméticos
e produtos para higiene) e, em cada revista, seriam separados seus vários anos analisados
(1910-1920, etc.).
O exame por décadas dos anúncios mostrou a dominância de cada objeto de consumo
e seus usos, que podem ser vistos por gráficos de ocorrências de 1910 a 1990. Os gráfi-
cos foram escolhidos como modo de apresentar o estudo quantitativo, pois são os mais
adequados para dar visibilidade aos números encontrados, facilitando sua compreensão.
Primeiro mostramos os gráficos que contabilizam todas as propagandas e, em seguida, são
mostrados os gráficos que quantificam apenas as propagandas que serão analisadas, aque-
las que presentificam corpos vestidos em suas cenas, pois é o corpo vestido que elucida os
modos pelos quais o sujeito-actante se presentifica no mundo-linguagem da revista, em
seus discursos e em suas propagandas; esses corpos vestidos é que encenam e constroem
os padrões e simulacros das modas (OLIVEIRA, 2002).
Nesse primeiro momento, devido à quantidade de números e informações necessárias
a cada gráfico, organizamos os dados por revistas, compreendendo o período de análise de
cada uma. Sendo assim, a Fon-Fon corresponde ao intervalo de 1910 a 1930, a O Cruzeiro de
1940 a 1950 e a Manchete de 1970 a 1990. Partimos, então, para as análises dos gráficos em
cada um dos modos especificados:

1  Grifo nosso.
2  O termo categoria é aqui utilizado enquanto classe sintagmática (e...e...), ou mesmo sintagma, que seria “uma
combinação de elementos copresentes em um enunciado”. Definições retiradas do Dicionário de Semiótica,
Greimas e Courtés (2011, p. 55-56 e 469).
MODOS DE VESTIR-SE 99

Moda enquanto modos de vida


Fon-Fon Cruzeiro Manchete

20
20

20

18
17
13

11

10
9
8

7
5
4

3
3

3
3

3
2

2
1
1

1
Gráfico 1: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas dentre as categorias que se enquadram na
temática dos modos de vestir-se, delineadas pelas três revistas analisadas, Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São
elas, respectivamente (da esq. para dir.): Tecidos; Calçados (femininos, masculinos e propagandas de calçados
em geral); Acessórios (como relógios de pulso, bolsas, óculos, etc.; Vestuário (feminino, masculino e infantil); e
as propagandas de lojas de Departamento (que comercializam vestuário para públicos variados). Fonte: pro-
duzido pela autora.

Nesse gráfico temos quantificadas as propagandas referentes aos modos de vestir-se,


que incluem, além da própria vestimenta, tecidos, calçados e acessórios, que configuram o
todo das maneiras de se vestir e ornar. É notável o grande número que alcançam os aces-
sórios, os quais se mantêm com 20 propagandas na Fon-Fon e na Cruzeiro – o que corres-
ponde à mesma quantidade de publicações publicitárias no período de 1910 a 1960. É
provável que isso se deva às próprias prescrições dos modos de vestir-se ao considerarmos
que, em meio a esse período, haviam acessórios quase obrigatórios para se estar “apresen-
tável”, como chapéus, perucas, luvas e sombrinhas para as mulheres no início do século,
bem como bengalas e chapéus para os homens; no decorrer dos anos, os acessórios para
as mulheres mudaram, mas ainda eram necessárias joias e bijuterias, além de meia-calça e
“bons” sapatos, os quais não apareciam nos longos vestidos da Belle Époque.
Outra categoria que se faz notável por sua quantidade – o que semioticamente, pode-
se dizer que constrói sua representatividade – são as lojas de departamento, as quais abar-
cam um grande e variado número de produtos e as tornam um tipo de loja que propicia o
contato “direto” com os produtos pelos novos modos de exposição, assim como a media-
100 ção dos vendedores para auxiliar na apresentação e nas apreciações dos produtos. Dado
o período em que os anúncios dessas lojas se encontram com maior frequência, de 1910 a
Moda enquanto modos de vida

1930 e considerando-se o contexto em que se inserem, pode-se pressupor, por exemplo,


que essas eram em sua maioria lojas de grandes importadoras de produtos, pois a produ-
ção brasileira ainda era muito restrita e a importação muito comum, sendo muitas vezes a
única maneira de acessar produtos já prontos e de qualidade. Além disso, a importação em
média/grande escala de uma grande variedade de produtos tornava essa troca comercial
mais barata.
Mais um ponto importante a se notar é a diferença entre o número de anúncios de
vestuário para homens e mulheres: para elas, os números são muito superiores. Nas três
primeiras décadas houve sete anúncios destinados a eles, em contraponto aos dezessete
destinados a elas; mais tarde, de 1940 a 1960, a diferença se torna ainda maior, com vinte
voltados às peças de vestuário feminino em relação a três anúncios de vestuário masculino.
Podemos supor que essas propagandas se voltam para seu principal destinatário, o público
feminino, mas também que o vestuário masculino, em geral, passa por poucas mudanças
e seu público já está habituado aos seus modos de uso. As propagandas praticamente se
limitam a marcas, enquanto para o público feminino ocorreram muito mais mudanças nos
modos de se vestir e de se estar no mundo no século XX.
Notamos também um grande número de anúncios de tecidos no período de análise da
O Cruzeiro, o que mais adiante poderemos relacionar ao número de anúncios de máquinas
de costura. Tais números nos dizem algo sobre a produção industrial de vestuário na época,
pois tudo nos indica que as pessoas e, mais particularmente as mulheres, passaram a pro-
duzir suas próprias roupas e de suas famílias de forma mais frequente, se comparado aos
outros anos. Observamos que já no final do século o número de anúncios de vestuário cai
em geral, fato ao qual vamos nos atentar no desenvolvimento desta pesquisa.
Passemos agora aos números referentes aos modos de cuidar-se:
MODOS DE CUIDAR-SE 101

Moda enquanto modos de vida


Fon-Fon Cruzeiro Manchete

Gráfico 2: o gráfico acima mostra a quantidade de propagandas dentre as categorias que se enquadram na
temática dos modos de cuidar-se, delineadas pelas três revistas analisadas, Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São
elas, respectivamente (da esq. para dir.): Cuidados com a pele (cremes rejuvenescedores ou hidratantes, blo-
queadores e bronzeadores solares, entre outros produtos); Cuidados com o corpo (produtos que auxiliam na
engorda ou emagrecimento); Cosméticos (maquiagem e derivados); Cuidados com a saúde (feminina, mascu-
lina, infantil e saúde geral – como analgésicos e tônicos); Cuidados com os cabelos (shampoos, petróleo, gel,
entre outros); Perfumaria (perfumes femininos, masculinos e propagandas de perfumaria em geral); Cuidados
com a higiene pessoal (papel higiênico, sabonetes, entre outros); Cuidados Infantis (produtos específicos para
o público infantil como remédios, fraldas, hastes de algodão, higiene infantil, etc.); Cuidados com mãos e pés
(produtos para manicura e pedicura feminina, cremes específicos, produtos para calos, etc.). Fonte: produzido
pela autora.

Nos gráficos que apresentam os modos de cuidar-se temos um salto quantitativo, em


comparação com os modos de vestir-se. Isso se deve, também, ao fato de que há uma va-
riedade muito maior de produtos e de suas derivações graduais – produtos de produtos, e
assim por diante. Para exemplificar o que seriam esses derivados, notamos que, no início do
século XX tem-se como cosmético o pó de arroz; um pouco mais tarde, quando as mulhe-
res com aspecto corado entram em voga pela vida ao ar livre, aparece o rouge – ou o blush
– para acompanhar o pó cosmético. Após alguns anos surgem as bases e os corretivos,
que têm papéis enquanto adjuvantes no fazer do pó compacto, de “melhorar” o aspecto
da pele, além do batom e do rímel que têm anúncios muito recorrentes nas décadas de
102 1940 e 1950. Esses seriam os produtos de produtos, num processo contínuo de construção
de novos produtos de consumo para o embelezamento, criando novas “necessidades” aos
Moda enquanto modos de vida

consumidores a cada “novo” produto lançado.


Os cuidados com a saúde geral também são notáveis: em tempos de (re)adequação aos
novos fazeres políticos e aos novos afazeres nas cidades – entre 1910 e 1930 – o cuidado
com a saúde básica é muito marcante num contexto em que doenças assolavam a popula-
ção das grandes cidades, propagando remédios para bronquite e tuberculose, para ameni-
zar os males da febre amarela e até mesmo para doenças sexualmente transmissíveis, como
a sífilis e a gonorreia – a população ainda estava no processo de aprendizado de como se
cuidar ao remediar os seus males. Tais cuidados, aliados aos cuidados com o corpo, com
produtos que se diziam engordativos, elucidam que os novos modos da sociedade republi-
cana deveriam ser condizentes com os novos modelos de cidades.
Da mesma forma, produtos para emagrecimento começam a aparecer nas décadas de
1940 e 1950, acompanhando os constritores da “cintura de vespa”, para que os sujeitos te-
nham “o corpo ideal” para vestir biquínis, maiôs e sungas nas praias muito popularizadas
e, assim, popularizam-se também os protetores e bronzeadores solares, juntamente com
os produtos e métodos de depilação feminina. Com os cuidados básicos à saúde já bem
assimilados pela população – ao menos pelos destinatários simulacrais dessas revistas – há
uma queda considerável no número de produtos que cuidam da saúde geral, prevalecendo
nessa época as aspirinas e outros do gênero. Nesse mesmo período, os produtos para higie-
ne pessoal aumentam exponencialmente, chegando a setenta e nove anúncios no período
de 1940 a 1960, devido principalmente a essa diversificação de produtos, como os variados
tipos de sabonetes, pastas dentais e diversas escovas dentais, além de enxaguantes bucais,
antissépticos – os dentes mais bonitos e saudáveis para “cair bem” com os novos batons – e
também os desodorantes, evitando o odor pessoal durante as festas e bailes dançantes.
É nesse contexto que os perfumes se tornam, nesses anúncios, dignos de cenários sun-
tuosos; a perfumaria, principalmente feminina, salta de cinco para trinta anúncios, entre os
primeiros anos e a metade do século XX. Junto a esses novos cosméticos, se popularizam
os anúncios de esmaltes, bem como de cremes para as mãos e os hidratantes para a pele.
Continuamos abaixo com os modos de alimentar-se:
MODOS DE ALIMENTAR-SE 103

Moda enquanto modos de vida


Fon-Fon Cruzeiro Manchete

Gráfico 3: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas dentre as categorias que se enquadram na
temática dos modos de alimentar-se, delimitadas pelas três revistas analisadas, Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete.
São elas, respectivamente (da esq. para dir.): Bebidas alcoólicas (como whisky, cerveja, entre outros); Bebidas
não alcoólicas (como água gaseificada, sucos e refrigerantes); Alimentos sem receita (quando a propaganda
dos alimentos não é acompanhada por receita); Alimentos com receita (quando os alimentos são acompanha-
dos por uma receita que os incluem); e os Alimentos infantis (voltados especificamente para o público infantil
– como achocolatado em pó e farinha láctea). Fonte: produzido pela autora.

Os produtos para os cuidados com o corpo, na temática dos modos de cuidar-se, nos
trazem aos modos de alimentar-se, pois no mesmo contexto temporal em que são anun-
ciados os produtos engordativos, a quantidade de alimentos propagados aumenta consi-
deravelmente. A modernização da produção agropecuária no Brasil é notável e essas mo-
dernizações são também articuladas no meio urbano. Ao comercializarem mais produtos
e em maior variedade, a população tornou-se mais ativa e um pouco mais bem nutrida. Os
alimentos, antes básicos da cadeia nutricional, têm seus produtos cada vez mais incremen-
tados, desenvolvendo o prazer do paladar do sujeito brasileiro, que segue as receitas muito
prescritivas na Cruzeiro. Aumentam também os alimentos infantis, num cenário em que o
comer bem está relacionado aos valores do “comer em família” e em “boas companhias”.
As inovações tecnológicas durante as guerras, principalmente na área alimentícia, permi-
tiram o desenvolvimento de alimentos conservados e afins, que permitiam o estoque de
comida; tal fato é representativo no caso, pois há um aumento considerável de anúncios
dessa categoria em 1940 e 1950, sendo esses principalmente de enlatados, embutidos e
industrializados.
104 Assim, nos anos finais do século XX, os simulacros de sujeitos-destinatários já sabiam os
modos de alimentar-se bem, e é aí que as bebidas alcoólicas atingem seu ápice nas encena-
Moda enquanto modos de vida

ções publicitárias. A preocupação primordial não era mais o alimentar-se bem, mas sociali-
zar nesses momentos, o que nos leva à próxima temática analisada: os modos de divertir-se.

MODOS DE DIVERTIR-SE

Fon-Fon Cruzeiro Manchete


21
20
15
14
14

14
13
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10
10

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9
9
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4
3

3
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2
1
0

Gráfico 4: o gráfico nos mostra a quantidade de propagandas dentre as categorias que se enquadram na te-
mática dos modos de divertir-se, delimitadas pelas três revistas analisadas, Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São
elas, respectivamente (da esq. para dir.): Promoções, concursos e lotéricas, promovidos pelas revistas; Cigarros
e charutos; Jornais e revistas (enquanto fontes informacionais e de entretenimento); Viagens e passeios (in-
cluindo empresas de turismo); Fotografia (máquinas fotográficas e filmadoras enquanto fonte de lazer); Livros;
Brinquedos e bicicletas; Tocadores de música e instrumentos musicais (vitrolas, rádios, pianos, entre outros);
Discos, CD’S e fitas cassete (enquanto fontes de entretenimento); e finalmente, Rádio, cinema e televisão
(programas e canais de rádio e televisão, bem como filmes do cinema). Fonte: produzido pela autora.

Nos modos de divertir-se, destacam-se as propagandas de outras mídias como formas de


entretenimento e informação, como de jornais, revistas, canais de rádio e televisão, o que
elucida a estreita relação entre esses e, por vezes, as grandes associações empresariais que
controlam essas diversas mídias. Por exemplo, os Diários Associados de Assis Chateubriand,
que além da O Cruzeiro coordenava outras revistas como a Cigarra – revista segmentada de
público feminino; bem como a editora Bloch, que dirigia a Manchete e produzia também
várias outras publicações segmentadas, e até mesmo comandava uma rede de televisão
com abrangência nacional, a rede Manchete. Radio, cinema e programas de televisão tam-
bém aparecem em grande número e elucidam a estreita relação entre as diversas formas 105
de entretenimento que envolvem as várias mídias, tendo similares circulações de valores e

Moda enquanto modos de vida


construções simulacrais.
Nas formas de entretenimento como o cinema e a televisão, são construídas e produ-
zidas as grandes estrelas (artistas, atrizes e atores) – nacionais e internacionais –, e seus es-
tilos de vida são divulgados em anúncios e em reportagens, o que inclui tanto os produtos
que alegam utilizar, quanto os produtos para os quais são contratados para divulgar ao
encenar nos anúncios das empresas contratantes.
A música, ao considerarmos tanto tocadores quando discos e CD’s, aparece quase
como uma constante no decorrer de todo o século. Assim, a música apresenta-se enquanto
uma das principais prescrições nas maneiras de entreter-se desses anúncios, juntamente
com os jornais e revistas. Os jogos de sorte, como formas de lazer, aparecem também en-
quanto constantes, bem como os concursos promocionais, mas de formas diferentes: o
primeiro item aparece com maior frequência no início do século, já o segundo manifesta-se
com mais regularidade no final do século XX, época em que os jogos de sorte passam por
processos de regulamentação no país e são restringidos, e assim as empresas privadas en-
contram, nesses concursos, novas formas de promover seus produtos e marcas, entretendo
e/ou premiando seus consumidores.
Ao relacionarmos os modos de alimentar-se e os de divertir-se, é possível estabelecer
um certo parâmetro: juntamente com as bebidas alcoólicas, no final do século XX, os ci-
garros e charutos são muito propagados como forma de lazer e, talvez mais do que outros
produtos dessa temática, se configuram como constitutivos de modos de vida. Suas ence-
nações publicitárias apresentam formas muito mais diversas do parecer em muitos aspec-
tos da vida do sujeito-actante, como veremos melhor no decorrer das análises.
106 MODOS DE ORGANIZAR-SE
Moda enquanto modos de vida

Fon-Fon Cruzeiro Manchete

108
75

65
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43

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4
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2
1

0
Gráfico 5: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas das categorias que se enquadram na temáti-
ca dos modos de organizar-se, delimitadas pelas três revistas analisadas, Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas,
respectivamente (da esq. para dir.): Serviços (que incluem hotéis, bancos, seguradoras, operadoras de crédito,
hospitais, construtoras, salões de beleza, etc.); Utilitários (produtos para casa e escritório – produtos de limpe-
za, enxovais, louças, etc.); Mobiliário (produtos para decorar e mobiliar a casa); Eletrodomésticos (geladeiras,
fogões, aparelhos televisivos, etc.); Cursos Diversos (cursos de línguas, cursos técnicos, cursos de costura, entre
outros, presenciais ou à distância); Automóveis e acessórios (carros, caminhonetes, acessórios, etc.); além dos
Utilitários industriais e para fazendas (como tratores, refrigeradores industriais, entre alguns outros). Fonte:
produzido pela autora.

Por fim chegamos à última temática analisada, a dos modos de organizar-se, a qual abar-
ca serviços como de bancos e seguradoras – serviços esses que aumentaram consideravel-
mente e de maneira gradual no decorrer do século XX, o que sugere o processo gradativo
de educação dos consumidores à prática desses serviços prestados. Tal fato pode ser averi-
guado ao ser analisado o aumento gradual da propaganda ao consumo de automóveis e,
concomitantemente, o aumento das propagandas de financiamentos e empréstimos, bem
como de seguros para automóveis.
Os eletrodomésticos, é claro, não eram anunciados nos primeiros anos que analisamos
– encontramos apenas uma ocorrência –, mas com os avanços tecnológicos e com a popu-
larização desses produtos que facilitam os trabalhos domésticos, temos um crescimento 107
vertiginoso, chegando a vinte e dois anúncios no período entre 1940 e 1960, e que pouco

Moda enquanto modos de vida


diminui até o final do século. Junto aos novos e modernos eletrodomésticos, mantêm-se
em grande número, também, os produtos para utilizar e aprimorar o uso desses produtos
de linha branca3 – como o sabão em pó para a máquina de lavar roupas –, além dos diversos
produtos para decorar e “embelezar” a casa.
Da mesma maneira, surgem diversos cursos técnicos e profissionalizantes à distância
– feitos por cartas – muitos desses ofereciam a profissionalização de técnicos, capacitados
para realizar reparos nesses eletrodomésticos, além de outros, como cursos de línguas, de
costura, etc.. Essas diversas formas de consumo, portanto, podem ser compreendidas en-
quanto uma rede de consumo, em que novos produtos e serviços são desenvolvidos para
acompanhar o consumo de outros produtos.

3.3 A moda anunciada: os corpos-moda nos diversos modos de consumir

Buscando então analisar a construção de aparências nessa rede de consumo, e partindo


da principal hipótese da pesquisa, de que a construção desses modos de vida, ou dos
modos de ser, seria o próprio fazer da moda, são analisadas essas várias temáticas presen-
tificadas nas peças publicitárias. Dessa forma, a moda é compreendida em seu sentido
mais amplo, enquanto uma moda do social, e hipoteticamente, uma moda constituinte
do social.
Com efeito, a fim de alcançar os objetivos da pesquisa, as propagandas selecionadas
enquanto corpus de análise são as que figurativizam corpos vestidos de figuras femininas
e masculinas, seja em fotografias, seja em ilustrações, pois entendemos como Oliveira
(2008b, p.93), quando a autora conceitua que é a presença do corpo vestido que mostra os
“modos de o sujeito estar no mundo”, construindo modos de vida. Nesse âmbito, o corpo é
entendido como uma presença que, como veremos adiante, se configura isotopicamente
no discurso analisado – sendo essas isotopias figurativas e temáticas que se dão em relação
sintagmática, e garantem a homogeneidade do discurso enunciado (GREIMAS; COURTÉS,
2011, p.276). Esses corpos vestidos seriam capazes de construir simulacros da moda e dos
modos de o sujeito estar no mundo, dos seus modos de parecer. O conceito de simulacro
diz respeito à seleção de elementos significantes do mundo, digamos, “real”, e sua coloca-
ção no discurso, com seus diversos modos de enunciar – atores, tempo e espaço –, com a

3  Como estabelecido pelo BNDES, os bens de consumo de linha branca compreendem eletrodomésticos
como “refrigeradores, freezers verticais e horizontais, condicionadores de ar, lavadoras de louças, lavadoras
de roupa, secadoras, fornos de micro-ondas e fogões”. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/
export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/bnset/set206.pdf> Acesso em: 15 Out 2015.
108 finalidade de construir, ou mesmo “forjar” uma imagem, uma presença no enunciado, tanto
do enunciador quanto do enunciatário (LANDOWSKI, 1992, p.171).
Moda enquanto modos de vida

Referindo-nos à presença, tratamos da imagem-presença, pois, conforme Eric Lan-


dowski (2012, p. 126), “independentemente das concepções ou dos preconceitos refletidos
no seu modo de construção, bem como daquilo que representa, uma imagem é, [...] pre-
sença.”, e assim, a imagem do corpo vestido é sua presença constantemente reiterada, nos
aspectos da vida em sociedade e nos modos de consumo propagados nas revistas.
Nesse contexto, segundo Eric Landowski (2012, p.127), as imagens são:

Parte integrante da paisagem cotidiana, elas se impõem por um modo de presença


que lhes é específico e que depende do fato de que, afora as características puramente
plásticas que apresentam quando tomadas uma a uma, essas imagens, consideradas
em bloco, possuem certos traços ligados ao modo de figuração que exploram.

Esses corpos que integram as paisagens cotidianas são actorializados em seus pa-
péis sociais, e para Landowski (2012, p.125-127), esses papéis que cabem aos atores são
traduzidos pelas imagens, tratando-se então de “um discurso em imagens”. Tais imagens
propagadas nas publicidades têm como estratégia ocupar o “universo de simulacros fi-
gurativos”, voltados para preencher as buscas projetivas dos destinatários, ao colocar em
circulação ao redor desses um grande e variado número de corpos vestidos figurados nas
páginas impressas.
Para alcançar os objetivos deste trabalho, o corpo vestido será analisado neste ca-
pítulo enquanto um componente figurativo e temático desse universo de simulacros.
Temos como parâmetro que a moda só se faz como é, devido ao corpo, à presença do
corpo, pois de acordo com Ana Claudia de Oliveira (2002, p.93), “a roupa não veste um
suporte vazio [...], ao contrário, sendo carregado de sentido na sua malha de orienta-
ções, [...] [o corpo] interage com as direções, formas, cores, cinetismo e materialidades da
roupa”. Com efeito, corpo e roupa se configuram como dois sistemas de expressão que
se sincretizam na manifestação de um mesmo plano de conteúdo, constituindo o que
chama-se aqui de corpo-moda.
Assim, com a finalidade de averiguar se esse recorte de anúncios, dos corpos-moda
presentificados, seria representativo realizamos o mesmo procedimento de análise quan-
titativa. A partir dessa delimitação foi possível expor os dados encontrados por décadas ao
invés de agrupar pelas revistas, como vimos anteriormente. Dessa forma podemos melhor
expor a quantidade de anúncios de cada período analisado e relacionar esses dados aos
modos de presença desses corpos-moda, como explicitado a seguir:
MODOS DE VESTIR-SE 109

Moda enquanto modos de vida


20

16
14

11

9
8

3
1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 199 0

Gráfico 6: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas que encenam corpos vestidos, relativos às
categorias que se enquadram na temática dos modos de vestir-se, delimitadas por cada ano analisado, compre-
endendo as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas, respectivamente (da esq. para dir.): 1910 com 8
propagandas; 1920 com 14 propagandas; 1930 com 8 propagandas; 1940 com 4 propagandas; 1950 com 11
propagandas; 1960 com 20 propagandas; 1970 com 16 propagandas; 1980 com 9 propagandas; e 1990 com 3
propagandas. Fonte: produzido pela autora.

Nessa categoria4, em 1910 encontramos nos oito anúncios que figurativizam corpos-
moda, uma predominância de propagandas de vestuário feminino, de roupas brancas, ca-
misas e corsets, bem como acessórios, contando com apenas um anúncio de calçado volta-
do ao público masculino. Dentre esses apenas o último compreende um corpo inteiro, os
outros nos mostram face, colo e meios-corpos5 femininos. Em sua maioria são posicionadas
sem o olhar direto ao enunciatário e seus gestos são rígidos e contidos, mas exibem seus
chapéus e seus corpos moldados, prontos para vestir:

4  Compreendemos que é aparentemente paradoxal utilizarmos a denominação vestir-se nessa categoria, sen-
do que, ao trabalharmos com corpos vestidos, esse “vestir-se” estaria, justamente, nos diversos modos de
consumir. No entanto, por uma questão metodológica e de organização do trabalho, decidimos que essa
denominação seria a mais coerente e, assim, consideramos que essa categoria, denominada modos de vestir-
se, compreende somente os anúncios dos produtos de vestuário e acessórios.
5 Por meio-corpo entendemos como a figurativização do tronco humano – região que vai dos ombros ao qua-
dril – somado aos membros superiores e pescoço, cabeça e face.
110
Moda enquanto modos de vida

Figuras 45a, 45b, 45c: exemplos de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano de 1910.

Na década seguinte, em 1920, encontramos quatorze ocorrências, quase o dobro de


anúncios de 1910. Dentre esses temos propagandas de vestuário voltadas tanto para o pú-
blico feminino e masculino quanto para o público infantil, além de tecidos e um grande
número de anúncios de calçados para esses públicos variados, e também acessórios como
joias e chapéus. Nesse ano há uma diversidade maior na maneira como esses corpos são po-
sicionados, temos mulheres ilustradas com seu corpo inteiro, com gestos mais sutis insinu-
ando certa sensualidade nos momentos em que fazem compras, e homens que se mostram
tanto em corpo inteiro quanto em meio-corpo, enquanto fumam ou praticam esportes:

Figuras 46a, 46b, 46c, 46d: exemplos de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano de 1920.
O número de anúncios que presentificam corpos-moda dessa categoria retorna a oito 111
em 1930, e anuncia produtos como roupas de banho e roupas voltadas para a prática de es-

Moda enquanto modos de vida


portes, acessórios masculinos e o “look” do renomado estilista francês Jean Patou, que veste
e adorna o corpo da modelo. No anúncio de roupas de banho, temos ainda mulheres em
poses mais descontraídas, vestidas com seus maiôs e toucas de banho, e no anúncio abaixo,
um homem se posta ao seu lado, também em trajes de banho – ambos parecem alongar-se
antes do “banho de mar”. Nesses anúncios, tanto do acessório masculino quanto de um dos
looks de Jean Patou, homem e mulher encontram-se em poses mais sérias, sem olhar dire-
tamente o enunciatário, e o modo de presença do sujeito bem trajado em 1930 parece ser
mais austero, como vemos abaixo:

Figuras 47a, 47b, 47c: exemplos de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano de 1930.

Em 1940 o número é bastante reduzido, o que pode ser relacionado ao início da Segun-
da Guerra Mundial em 1939, iniciando além de instabilidades políticas, a instabilidade do
mercado internacional, do qual o varejo de moda no Brasil tanto dependia. Abaixo temos
quatro desses cinco anúncios e todos eles figurativizam mulheres vestidas e em poses di-
versas: à sombra na praia enquanto usam traje de banho e o relógio Mido “impermeável”;
com o look descontraído de Carmen Miranda ao anunciar o tecido de malha, ou mesmo a
mulher que agora deixa as pernas à mostra com as meias-calças de nylon e utiliza as roupas
íntimas inspiradas no luxo de Paris e nas das atrizes Hollywoodianas:
112
Moda enquanto modos de vida

Figuras 48a, 48b, 48c, 48d: exemplos de anúncios da categoria modos de


vestir-se do ano de 1940.

Em 1950, o número de anúncios dessa categoria mais que dobra, chegando a onze
anúncios, compreendendo também uma grande variedade de produtos, como casemiras,
cintas femininas, meias masculinas, blusas, tecidos diversos, calçados, acessórios, etc.. Nos
anúncios que seguem temos mulheres figurativizadas em corpo inteiro, exibindo seus mo-
delos de anáguas e tecidos, enquanto os homens, por sua vez, têm figurativizadas apenas
suas pernas e pés calçados, ao utilizar os solados de borracha e suas meias sport de nylon:
113

Moda enquanto modos de vida


Figuras 49a, 49b, 49c, 49d: exemplos de anúncios da categoria modos de
vestir-se do ano de 1950.

A quantidade de anúncios sobe para vinte só nessa categoria no ano de 1960. São pro-
dutos ainda mais diversos, anunciados de maneiras também diversificadas, em que ho-
mens e mulheres aparecem juntos em momentos de sociabilidade, o que ainda não fora
presentificado dessa forma; as mulheres são colocadas em poses mais descontraídas e em
múltiplas situações do que passa a fazer parte de sua vida, como o passeio despreocupado
com a sua alpargata, ou em sua viagem para Paris, ou mesmo ao exibir sua meia-calça en-
quanto lê o seu jornal, no qual é “a moda que faz a notícia”:
114
Moda enquanto modos de vida

Figuras 50a, 50b, 50c, 50d: exemplos de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano de 1960.

No ano de 1970 esse número ainda se mantém alto, com dezesseis propagandas, nas
quais o valor da sociabilidade é ainda mais marcante enquanto modo de presença des-
ses sujeitos: a maior parte desses anúncios presentificam homens e mulheres juntos e em
momentos descontraídos. Em alguns casos percebemos que o modo de vestir proposto
é similar para ambos os gêneros, ou mesmo unissex, contando com poucas propagandas
voltadas somente para homens, como é o caso do anúncio de cuecas, ou somente para
mulheres, no caso dos vestidos em promoção, como podemos ver abaixo:

Figuras 51a, 51b, 51c, 51d: exemplos de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano
de 1970.
Em 1980 têm-se nove anúncios da categoria que figuram corpos-moda. Ainda há re- 115
corrências desses momentos de sociabilidade encenados nas propagandas, mas menos

Moda enquanto modos de vida


frequentes se comparado ao ano anterior. A prática de esportes, mais especificamente, o
tênis, torna a aparecer como em 1920, no entanto, aparecem agora dois homens e duas
mulheres, com seus trajes e acessórios específicos para a prática do esporte. Da mesma
maneira aparecem novos anúncios encenados na praia – uma propaganda de um relógio
assim como vimos em 1940; há outro anúncio de relógios nesse ano, também voltado para
homens e mulheres, e em ambos nos deparamos com cenas romantizadas e protagoni-
zadas por casais (heterossexuais). Assim como em 1950, os sapatos masculinos são anun-
ciados pela figurativização apenas dos pés, mostrando ainda uma parte da calça jeans – já
oferecendo possibilidades de uso e combinações:

Figuras 52a, 52b, 52c, 52d: exemplos de anúncios da categoria modos de


vestir-se do ano de 1980.
116 Por fim, nessa categoria temos apenas três anúncios com corpos-moda em 1990, e to-
dos anunciam lingeries femininas – produtos que vimos em 1910, e também de 1940 a
Moda enquanto modos de vida

1960. Nesses anúncios a mulher é sempre encenada de forma sedutora, tanto de si mesma
quanto do outro. No exemplo abaixo, é como se sua camisa se abrisse com o virar da pági-
na – a mulher que veste Valisére seduzirá seu marido e não será intimidada pela beleza e
sensualidade das protagonistas das telenovelas do horário nobre. No entanto, o anúncio
abaixo é o único em que o rosto da mulher não é apresentado:

Figura 53: exemplo de anúncios da categoria modos de vestir-se do ano de 1990.

Feitos os apontamentos nos anúncios que compõem os modos de vestir-se, passamos


aos modos de cuidar-se:
MODOS DE CUIDAR-SE 117

Moda enquanto modos de vida


104
81

70
38

28
24

0
1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 199 0

Gráfico 7: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas que encenam corpos vestidos, relativos às
categorias que se enquadram na temática dos modos de cuidar-se, delimitadas por cada ano analisado, com-
preendendo as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas, respectivamente (da esq. para dir.): 1910 com
24 propagandas; 1920 com 38 propagandas; 1930 com 28 propagandas; 1940 com 81 propagandas; 1950 com
104 propagandas; 1960 com 70 propagandas; 1970 com 7 propagandas; 1980 com 2 propagandas; e 1990 com
1 propaganda. Fonte: produzido pela autora.

No primeiro ano analisado, a categoria dos modos de cuidar-se conta com vinte e qua-
tro anúncios que figurativizam corpos-moda. São sabonetes e adstringentes para a “cútis”
e para o banho, que encenam corpos femininos vestidos e outros que parecem sair do
banho, meio desnudos – vemos investidos novamente às figuras femininas os valores da
sensualidade; no anúncio abaixo que encena um corpo masculino, um homem bem vesti-
do, mas com pose e faces cansadas devido a uma provável doença, parece surpreso ao se
deparar com frascos do xarope Bromil, colocados dentro de seus sapatos que “descansa-
vam” nas janelas:
118
Moda enquanto modos de vida

Figuras 54a, 54b, 54c, 54d: exemplos de anúncios da categoria modos de cuidar-se do ano
de 1910.

Em 1920, como vimos, há uma variedade maior de produtos nessa categoria, chegando
a trinta e oito anúncios. Nos exemplos abaixo são anunciados cosméticos, como o talco
Williams, para quando a mulher for “a Ópera” e o pó de arroz Lady para que a mulher deixe
a pele mais clara e delicada como um “toque de um anjo” que é figurativizado – ambas se
vestem e se embelezam, cuidando de sua aparência; nos cuidados para a saúde geral, a
aspirina que evita a dor ao praticar esportes, como o tênis e, novamente o xarope Bromil,
mas que dessa vez é encenado por uma figura mítica, que em suas mãos carrega a solução
“divina” para a tosse:
119

Moda enquanto modos de vida


Figuras 55a, 55b, 55c, 55d: exemplos de anúncios da categoria modos de
cuidar-se do ano de 1920.

No ano de 1930 os produtos são mais diversos, no entanto, o número de anúncios dimi-
nui um pouco. Temos abaixo exemplos de anúncios nos modos de cuidar-se que encenam,
quase exclusivamente, corpos-moda femininos: como a “cêra” para proteger a pele do sol,
o que parece um produto anterior ao protetor solar – na cena, uma mulher com seu traje
de banho, similares aos anunciados nos modos de vestir-se, deita-se ao sol, à beira do mar,
pois estes lhe “fazem bem”, enquanto um homem a observa; há ainda o remédio para “a
saúde da mulher”, que trata de cólicas menstruais e diminui seu “sofrimento de sete dias” –
a figura feminina encenada veste seu luxuoso roupão e tem feições tranquilas, pois não so-
fre mais com tais dores; além desses, as “Pilules orientales” prometem “endurecer” os seios
flácidos, e por fim, uma figura feminina veste seu chapéu clochê e encontra-se em pose
similar ao “look de Jean Patou” que vimos anteriormente, anúncio no qual o creme Hinds é
120 indicado para não ressecar e envelhecer a pele feminina, principalmente nos dias de “chuva
e frio” – nessa categoria, a juventude é valorada constantemente, tanto na construção de
Moda enquanto modos de vida

um estilo de vida, quanto nos cuidados com a “cútis”:

Figuras 56a, 56b, 56c, 56d: exemplos de anúncios da categoria modos de


cuidar-se do ano de 1930.

Em 1940 o número de propagandas dessa categoria aumenta vertiginosamente, che-


gando a oitenta e um anúncios. Em sua maioria são voltados para o público feminino, com
cosméticos e perfumes. Nos exemplos abaixo, as mulheres são encenadas principalmente
de costas, evidenciando os fundos decotes nas costas que foram tão valorizados nesse pe-
ríodo, e elas entreolham o enunciatário; em um dos anúncios, a figura feminina tem seu
rosto em evidência e sua face maquiada provoca o interesse do homem que se posta ao
seu lado – mais uma vez, a sedução é colocada como qualificadora da mulher. No anúncio
voltado para os cuidados com a saúde geral, um cantor sertanejo é encenado cantarolando 121
suas músicas, pois “espantou seus males” com o xarope Bromil:

Moda enquanto modos de vida


Figuras 57a, 57b, 57c, 57d: exemplos de anúncios da categoria modos de
cuidar-se do ano de 1940.

O número de anúncios em 1950 aumenta ainda mais, chegando a cento e quatro


propagandas dessa categoria, ainda com a maioria voltada para o público feminino. Nos
exemplos temos o anúncio do esmalte Peggy Sage e o da Cafiaspirina, em que as mu-
lheres são figurativizadas em corpo inteiro, uma em pose mais contida, e outra em pose
mais descontraída, festejando no carnaval. Já no terceiro anúncio que encena uma mu-
lher, é divulgado um batom para que as mulheres, já “enfeitadas”, enfeitem também os
seus lábios. Em um dos anúncios que encenam corpos-moda masculinos, um homem de
cabelos meio grisalhos, bigode aparado e vestindo o seu terno, anuncia um estimulante
do apetite:
122
Moda enquanto modos de vida

Figuras 58a, 58b, 58c, 58d: exemplos de anúncios da categoria modos de


cuidar-se do ano de 1950.

Em 1960 o número de anúncios diminui um pouco, permanecendo setenta propa-


gandas que encenam corpos-moda nessa categoria. No entanto, encontramos novos
produtos como os depilatórios e o sabonete antibacteriano. Na figura 59a, um anúncio
de brilhantina para os cabelos masculinos – um tipo de produto recorrente desde 1910 –
a “juventude” dos cabelos é valorada, assim como a conquista no papel social masculino
que é anunciado; na figura 59b temos o anúncio do sabonete antibacteriano Lifebuoy,
no qual uma família (formada por um pai, uma pai, um menino e uma menina) brinca na
praia, com seus trajes de banho, e essa mãe narra: “A saúde de minha família depende de
mim”, tal anúncio elucida um dos pilares da construção do papel social da mulher nesses
anúncios. No anúncio da figura 59c tem-se o valor da conquista no papel masculino e o
valor da sedução no papel feminino, com “mais encanto para você com Cashmere Bou-
quet!”, em uma cena na qual a mulher traja um vestido tomara-que-caia luxuoso, tem os
cabelos bem arrumados e uma maquiagem que evidencia seus traços – o perfume é a se-
dução e o produto a torna mais “encantável” para o homem que a abraça. Por último, um 123
anúncio de depilatórios para o “rosto” e para o “corpo”, no qual é encenada uma mulher

Moda enquanto modos de vida


em trajes de banho e já depilada:

Figuras 59a, 59b, 59c, 59d: exemplos de anúncios da categoria modos de cuidar-se do ano de 1960.

Em 1970, já na revista Manchete, esse número cai drasticamente, chegando a sete anún-
cios, mas como dissemos no início do trabalho, a qualidade gráfica desses é mais apurada
e, em sua maioria, são anúncios que ocupam uma ou duas páginas inteiras. Nos exemplos
abaixo, temos anunciados dois perfumes (figuras 60a e 60b); no primeiro, uma mulher de
cabelos louros veste o que parece ser um robe (um tipo de roupão), e no segundo, o perfu-
me é anunciado como “marca inconfundível da mulher elegante”, e esse simulacro de mu-
lher elegante é encenado: uma mulher de cabelos louros, maquiada e com grandes brincos
de argolas. Na figura 60d tem-se o anúncio do absorvente íntimo feminino “Modess”, anun-
ciado somente no ano de 1930 até então, tratando-se aqui de uma edição de “Luxo”:
124
Moda enquanto modos de vida

Figuras 60a, 60b, 60c: exemplos de anúncios da categoria modos de cui-


dar-se do ano de 1970.

No ano de 1980, o último ano em que temos ocorrências de anúncios com corpos-mo-
da, foram encontradas duas propagandas. Uma delas, exemplificada abaixo, anuncia uma
aspirina para dores de cabeça, na qual uma figura feminina, de cabelos curtos e louros,
usando óculos de grau, é encenada com um sorriso no rosto, pois está com a cabeça “leee-
eve” após tomar o remédio anunciado:
125

Moda enquanto modos de vida


Figura 61: exemplo de anúncios da cate-
goria modos de cuidar-se do ano de 1980.

Passemos aos exemplos de corpos-moda nos modos de alimentar-se:

MODOS DE ALIMENTAR-SE
14
13
6

5
4

1
0

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 199 0

Gráfico 8: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas que encenam corpos vestidos, relativas às
categorias que se enquadram na temática dos modos de alimentar-se, delimitadas por cada ano analisado, com-
preendendo as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas, respectivamente (da esq. para dir.): 1910 com
6 propagandas; 1920 não há nenhuma propaganda; 1930 com 4 propagandas; 1940 com 2 propagandas; 1950
com 13 propagandas; 1960 com 14 propagandas; 1970 com 1 propaganda; 1980 com 5 propagandas; e 1990
com 1 propaganda. Fonte: produzido pela autora.
126 Nessa categoria, como vemos, os números são bem menos expressivos. No primeiro
ano analisado, apenas figuras femininas são encenadas. Algumas são postas enquanto
Moda enquanto modos de vida

figuras míticas, e outras enquanto mulheres “reais”, como vemos abaixo nos anúncios da
água gasosa (figuras 62a, 62b, 62d) e da manteiga “esplendida” (figura 62c):

Figuras 62a, 62b, 62c, 62d: exemplos de anúncios da categoria modos de alimentar-se do
ano de 1910.

No ano de 1920, como vimos, não há nenhum anúncio com corpos-moda, apenas
dois anúncios de bebidas alcoólicas e somente com as ilustrações dos produtos. Passamos
então aos anúncios de 1930, ano em que encontramos quatro anúncios. Dois desses são
mostrados abaixo, sendo o primeiro (figura 63a), um anúncio de chicletes, “um delicioso
confeito” que encena uma mulher de cabelos curtos e chapéu pequeno; o segundo (figura
63b), encena o jantar de uma família, formada por um homem, uma mulher e uma criança,
todos bem trajados – é o anúncio das “sopas mais sibstanciaes e saudáveis” da Quaker Oats:
127

Moda enquanto modos de vida


Figuras 63a, 63b: exemplos de anúncios da ca-
tegoria modos de alimentar-se do ano de 1930.

Em 1940 temos dois anúncios de bebidas alcoólicas: o primeiro, na figura 64a, traz uma
figura feminina anunciando a cerveja “Malzbier da Antártica”, e o outro (figura 64b), encena
uma figura masculina anunciando o “Gin Dubar”. No entanto, como são os únicos anúncios
dessa categoria nesse ano, nos ateremos apenas à sua apresentação, pois vamos analisá-los
com maior profundidade no próximo capítulo. Seguem os anúncios:

Figuras 64a, 64b: exemplos de anúncios da categoria modos de alimentar-se


do ano de 1940.
128 No ano de 1950 há um aumento considerável na ocorrência dos anúncios de produtos
alimentícios que encenam corpos-moda, chegando a treze propagandas. Abaixo, trazemos
Moda enquanto modos de vida

duas dessas, as quais, como mencionamos no após o primeiro gráfico dessa categoria, tra-
tam-se de alimentos industrializados e enlatados – nesse caso, instantâneos. Na figura 65a,
uma mulher é encenada ao cozinhar as suas ervilhas enlatadas Izilda, e no segundo anún-
cio (figura 65b), uma mãe é encenada junto aos seus filhos, para quem prepara a “Farinha
Láctea Nestlé”:

Figuras 65a, 65b: exemplos de anúncios da categoria modos de alimentar-se


do ano de 1950.

Em 1960 o número de propagandas manteve-se próximo ao ano anterior, com quator-


ze anúncios. Os produtos são variados, mas em sua maioria industrializados; como pode-
mos ver nos anúncios abaixo, são encenados momentos da vida do sujeito que consome
ou compra aquele produto, como o “chocolate Nestlé” consumido no horário de trabalho,
ou o “Mate Gelado” que será servido para as visitas, ou mesmo o “Leite Vaporizado Ideal”, no
momento em que o leiteiro acabou de chegar à casa de mais uma família:
129

Moda enquanto modos de vida


Figuras 66a, 66b, 66c: exemplos de anúncios da categoria modos de alimentar-se do ano de 1960.

No ano de 1970 o número de anúncios é bastante reduzido, limitado a apenas um


anúncio. Assim como em relação ao ano de 1940, faremos nesse momento apenas a apre-
sentação, pois tal anúncio será analisado no próximo capítulo. Trata-se aqui de um anúncio
de leite em pó fortificado para crianças, o Leite Ninho. Temos então uma recorrência desses
alimentos infantis, no entanto, os anúncios são voltados para os adultos, homens e mulhe-
res, destinatários desses discursos, por isso os consideramos enquanto objetos de análise.
Segue o anúncio:

Figura 67: exemplo de anúncio da catego-


ria modos de alimentar-se do ano de 1960.
130 Em 1980, como vimos nos primeiros gráficos, a maior parte dos anúncios de produtos
alimentícios são propagandas de bebidas alcoólicas, com apenas uma ocorrência de um
Moda enquanto modos de vida

alimento industrializado, o leite condensado Moça para as festividades juninas (figura 68b),
num anúncio que encena duas crianças vestidas a caráter. Abaixo temos ainda dois exem-
plos que anunciam bebidas alcoólicas, sendo o primeiro (figura 68a), uma propaganda do
whisky Tillers Club, que nos mostra um momento no qual é consumido, e o segundo, do
vinho tinto Baron de Lantier (figura 68c), o qual é “nobre como poucos”:

Figuras 68a, 68b, 68c: exemplos de anúncios da categoria modos de alimentar-se do ano de 1980.

No último ano analisado temos apenas um anúncio nessa categoria, e da mesma for-
ma, neste momento é apenas apresentado. Trata-se de um anúncio da margarina Mila:

Figura 69: exemplo de anúncio da categoria modos de alimen-


tar-se do ano de 1990.
Passamos agora à apresentação, com a mesma organização, dos anúncios que com- 131
põem a categoria dos modos de divertir-se:

Moda enquanto modos de vida


MODOS DE DIVERTIR-SE

20

16

15
14

12
8
7
4
1

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 199 0

Gráfico 9: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas que encenam corpos vestidos, relativos às
categorias que se enquadram na temática dos modos de divertir-se, delimitadas por cada ano analisado, com-
preendendo as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas, respectivamente (da esq. para dir.): 1910 com
1 propaganda; 1920 com 14 propagandas; 1930 com 4 propagandas; 1940 com 7 propagandas; 1950 com 8
propagandas; 1960 com 12 propagandas; 1970 com 20 propagandas; 1980 com 16 propagandas; e 1990 com
13 propagandas. Fonte: produzido pela autora.

Nos modos de divertir-se temos apenas um anúncio em 1910. Trata-se da Pianola, mos-
trada abaixo, uma das propagandas que serão analisadas no próximo capítulo:

Figura 70: exemplo de anúncio da categoria modos de


divertir-se do ano de 1910.
132 No ano seguinte, em 1920, há uma diversidade e uma quantidade muito maior de pro-
pagandas, chegando a quatorze – um dos maiores números que temos nessa categoria.
Moda enquanto modos de vida

Abaixo, alguns exemplos da categoria são os anúncios que nos mostram cenas de filmes
em cartaz no Cine Odeon, como as fadas encenadas na figura 71a, ou o anúncio com a
mulher que se arruma “toda no trinque” para ir ao restaurante A Toscana (figura 71b), ou as
armas Winchester para caçar e “gozar as férias” (figura 71c) e, por fim, o anúncio da vitrola
Victor, que encena alguns dos cantores de sucesso cujos discos podem ser tocados nela:

Figuras 71a, 71b, 71c, 71d: exemplos de anúncios da categoria modos de


divertir-se do ano de 1920.

Em 1930 temos um número de anúncios bem menor nessa categoria, com quatro pro-
pagandas que encenam corpos-vestidos, sendo que dessas, duas anunciam vitrolas e duas
anunciam produtos automobilísticos enquanto formas de diversão. Temos um exemplo de
cada caso abaixo, no primeiro (figura 72a), o anúncio da Victrola Ortophonica que encena 133
momentos de festa e diversão, e no segundo (figura 72b), é anunciado o novo automóvel

Moda enquanto modos de vida


da Chrysler, o DeSotoSix, numa composição que parece encenar um momento de passeio
de dois homens e duas mulheres – todos bem vestidos e trajando chapéus –, parecendo
pedir informações a um pescador local:

Figuras 72a, 72b: exemplos de anúncios da categoria modos de divertir-


se do ano de 1930.

Na revista O Cruzeiro, em 1940, temos uma quantidade um pouco maior de anúncios,


compondo um total de sete. São produtos diversos, que incluem revistas, rádios, prêmios e
concursos, até máquinas fotográficas, e claro, produtos relacionados à música. Nos exem-
plos abaixo há o anúncio da máquina fotográfica Cine-Kodak, para “guardar” os momentos
de diversão (figura 73a), no qual são encenados alguns sujeitos que se divertem com a
câmera; o anúncio da Liga Brasileira de Eletricidade (figura 73b) que divulga seus serviços
pelas “Ondas Musicais” que estão no ar pela rádio, sendo que nesse são encenados alguns
corpos-moda dançantes; a Revista das Lãs Sams (figura 73c) que pode ensinar e entreter
seus leitores, encenando uma leitora que esbanja um sorriso no momento da leitura; bem
como os “Lindos prêmios de Natal [para] as leitoras do O Cruzeiro” (figura 73d), os quais são
oferecidos pela Casa Sloper, na qual uma estrela de Hollywood tem sua fotografia encenada,
utilizando produtos similares aos “prêmios” oferecidos:
134
Moda enquanto modos de vida

Figuras 73a, 73b, 73c, 73d: exemplos de anúncios da categoria modos de


divertir-se do ano de 1940.

Em 1950 há oito anúncios da categoria que encenam corpos-moda. Assim como os


“Prêmios de Natal” à leitora da revista em 1940, nesse ano temos os “Presentes de Natal” da
marca de máquinas de costura Singer, anunciando promoções e opções de presentes para
a mulher, disponíveis na loja da Singer – os utensílios para costura são oferecidos enquanto
forma de lazer para as mulheres, que, encenadas, estão muito contentes com as roupas
que puderam costurar com os presentes que ganharam. Os cigarros também são encena-
dos como formas de lazer, e nesse caso, junto ao entretenimento: “Quem ama boa música
aprecia Hollywood”, sendo encenadas algumas pessoas em uma sala ouvindo músicas, num
cenário vermelho como a embalagem:
135

Moda enquanto modos de vida


Figuras 74a, 74b: exemplos de anúncios da categoria modos de divertir-se do
ano de 1950.

Em 1960 o número de anúncios sobe para doze, e dentre esses, os canais de televisão
já compõem uma boa parte. Tem-se nos exemplos abaixo um anúncio da revista feminina
A Cigarra (figura 75a), que faz parte do mesmo grupo editorial de O Cruzeiro, encenando
o “eterno feminino” ao comparar as modas da “Bela Época”, de 1900, à moda do Carnaval
de 1960, relacionando roupas e corpos femininos; no segundo exemplo, há um momento
em família dos leitores do jornal o Diário de São Paulo (figura 75b), o “Jornal predileto das
famílias” – destacamos que, ao fundo, é encenado um aparelho de televisão. No terceiro
exemplo, um anúncio da Radio Tamoio (figura 75c) para quando o sujeito “quiser descanso”,
e por fim, um anúncio da “variedade” na programação da TV Itacolomi; com esses anúncios,
todas as possibilidades da “vida midiática” do sujeito são encenadas:
136
Moda enquanto modos de vida

Figuras 75a, 75b, 75c, 75d: exemplos de anúncios da categoria modos de


divertir-se do ano de 1960.

No ano de 1970 foram levantados vinte anúncios dessa categoria. Alguns exemplos são
a Radio Tamoio (figura 76a), que é novamente anunciada nesse ano, mas agora com o “som
ardente”, no qual encena um casal (homem e mulher) que se bronzeiam e se divertem na
praia; e também a revista Desfile, uma revista voltada para a moda que pertence ao grupo
Bloch, o mesmo da Manchete (Figura 76b). Temos também nesse ano um anúncio de cigar-
ros, mas nesse exemplo os sujeitos são encenados em meio a uma paisagem, ao lado de
um conversível vermelho. Trata-se dos cigarros Monroe, que “leva mais longe seu prazer”
(figura 76c):
137

Moda enquanto modos de vida


Figuras 76a, 76b, 76c: exemplos de anúncios da categoria modos de divertir-se do ano de 1970.

No ano de 1980 foram contabilizados dezesseis anúncios. Dentre esses também são
anunciados cigarros e canais de televisão, mais temos também anunciados raquetes e bo-
las de tênis para a prática do esporte (figura 77b), algo similar ao que já vimos nos modos
de vestir-se. No anúncio de cigarros (figura 77a), o estilo de vida ao ar livre é novamente
encenado por uma figura masculina e uma feminina, que caminham em meio às flores; a
Radio Tamoio (figura 77c) é novamente anunciada, afirmando que divulga as informações
necessárias aos estudantes vestibulandos:

Figuras 77a, 77b, 77c: exemplos de anúncios da categoria modos de divertir-se do ano de 1980.

Em 1990, por fim, levantamos treze anúncios da categoria que encenam corpos-moda.
Alguns deles são exemplificados abaixo, como a revista Desfile que é novamente anunciada
nesse ano (figura 78a), ou mesmo o CD com as músicas tema da novela Pantanal (figura
138 78b), uma novela de grande sucesso da Rede Manchete – a qual já vimos tematizada nas
capas; e ainda, um anúncio de máquina fotográfica da Fijifilm, para “registrar vitórias”:
Moda enquanto modos de vida

Figuras 78a, 78b, 78c: exemplos de anúncios da categoria modos de divertir-se do ano de 1990.

A seguir, os modos de organizar-se:

MODOS DE ORGANIZAR-SE
42

32
25
23
8

6
5

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 199 0

Gráfico 10: o gráfico acima explicita a quantidade de propagandas que encenam corpos vestidos, relativos às
categorias que se enquadram na temática dos modos de organizar-se, delimitadas por cada ano analisado, com-
preendendo as revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. São elas, respectivamente (da esq. para dir.): 1910 com
5 propagandas; 1920 com 5 propagandas; 1930 com 8 propagandas; 1940 com 7 propagandas; 1950 com 23
propagandas; 1960 com 42 propagandas; 1970 com 25 propagandas; 1980 com 32 propagandas; e 1990 com
6 propagandas. Fonte: produzido pela autora.
Em 1910, nos modos de organizar-se, foram levantamos cinco anúncios que encenam 139
corpos-vestidos. Dentre esses, a máquina de escrever Smith (figura 79a), a seguradora e

Moda enquanto modos de vida


prestadora de créditos A Equitativa (figura 79b), que tem sua filial em São Paulo fotografada,
num retrato em que podemos ver o intenso movimento de pedestres, bem como as vestes
que usam; e também, o já quase extinto relógio de bolso, da Casa Standart (figura 79c):

Figuras 79a, 79b, 79c: exemplos de anúncios da categoria modos de organizar-se do ano de 1910.

O número de anúncios é mantido em 1920, com cinco propagandas. Abaixo temos


como exemplos o sabão para roupas Sunlight (figura 80a) e o produto de limpeza geral Sa-
pólio; em ambos são encenadas figuras femininas nos momentos em que realizam esses
“serviços da casa”:

Figuras 80a, 80b: exemplos de anúncios da categoria modos de organizar-se do ano de 1920.
140 No ano de 1930 esse número aumenta um pouco, chegando a oito anúncios. Temos,
dentre esses, o primeiro anúncio de um eletrodoméstico com o qual nos deparamos, tra-
Moda enquanto modos de vida

ta-se do fogão a gás Junker & Ruh (figura 81a), que encena em seu anúncio uma mulher
que prepara uma mesa de jantar, na “nobre arte de dar festas aos amigos”; são anunciados
também os móveis de decoração da Laurish-Hirth (figura 81b), numa cena em que a figura
feminina encontra-se “encantada” pela nova decoração. Há ainda o primeiro anúncio de um
salão de beleza que encontramos, anunciando os serviços de “ondulação” dos cabelos femi-
ninos (figura 81c); por fim, o único anúncio que encontramos de uma agencia publicitária
brasileira, trata-se da Eclectica (figura 81d):

Figuras 81a, 81b, 81c, 81d: exemplos de anúncios da categoria modos de


organizar-se do ano de 1930.
Em 1940 foram sete anúncios dos modos de organizar-se que figurativizam esses cor- 141
pos vestidos. Dentre esses, temos anunciados novamente os serviços de um salão de bele-

Moda enquanto modos de vida


za, a Casa Eritis (figura 82a); bem como um convite aos “consumidores de gás” (figura 82b)
para a “XIII Feira Internacional de amostras” de novas tecnologias para a casa, incluindo o
fogão a gás, o qual é encenado em uso no anúncio; e ainda o inseticida Raio-K, que é apli-
cado por uma figura feminina (figura 82c):

Figuras 82a, 82b, 82c: exemplos de anúncios da categoria modos de organizar-se do ano
de 1940.

Em 1950 esse número aumenta bastante, chegando a vinte e três anúncios. Esses pro-
dutos envolvem também novas tecnologias, como as geladeiras mais modernas, a Frigidai-
re, por cuja modernidade “Valeu a pena esperar” (figura 83d); as novas máquinas de costura
da Elna; a nova cera Paquetina para encerar o piso com as novas enceradeiras disponíveis
no mercado; e ainda os novos “móveis laqueados” para a “Cozinha, doce cozinha” do lar:
142
Moda enquanto modos de vida

Figuras 83a, 83b, 83c, 83d: exemplos de anúncios da categoria modos de


organizar-se do ano de 1950.

O número de anúncios em 1960 praticamente dobra, chegando a quarenta e dois. Nes-


ses temos anunciados produtos ainda mais tecnológicos que, em sua maioria, são eletro-
domésticos que visam facilitar o dia-a-dia da “dona de casa”. Nos exemplos abaixo, o aspi-
rador de pó Walita que foi dado como presente do marido à sua esposa (figura 84a); bem
como a nova máquina de costuras Elgin, que faz bordados automaticamente e com agilida-
de (figura 84b); além das novas máquinas de lavar roupas da Bendix, que teria um modelo
para cada “tipo” de família (figura 84c); e ainda, um carro tracionado da DKW-VEMAG, para
os homens que trabalham em lugares remotos (figura 84d):
143

Moda enquanto modos de vida


Figuras 84a, 84b, 84c, 84d: exemplos de anúncios da categoria modos de organizar-se do ano de 1960.

A Manchete, como vimos, tem a maior quantidade de anúncios dessa categoria, prin-
cipalmente nos anos 1970 e 1980, chegando nesse primeiro ano a vinte e cinco propa-
gandas. Tem-se nos exemplos abaixo um dos primeiros modelos de secadores elétricos e
domésticos de cabelos, o modelo da Arno na figura 85a; há ainda os novos móveis para a
sala – aparador e mesa de jantar – da linha Dominante (figura 85b); o novo modelo de gela-
deira da General Electric (figura 85c), num anúncio em que encenam uma figura masculina
e é narrado: “Geladeira é que nem marido, escolhendo bem dura a vida inteira”; e ainda os
novos modelos de pisos da Marcopiso (figura 85d):
144
Moda enquanto modos de vida

Figuras 85a, 85b, 85c, 85d: exemplos de anúncios da categoria modos de


organizar-se do ano de 1970.

No ano de 1980 foram levantados trinta e dois anúncios. Dentre esses estão a propa-
ganda da óptica Raul Pinho, para “gente que não se enxerga” (figura 86a); ou mesmo a fa-
mília que se “protege” ao proteger seu cachorro com a linha de “saúde e beleza” para cães
da Bayer (figura 86b), e uma outra família que pode aplicar seu 13º salário na “Caderneta
de poupança” para fazer suas viagens de fim de ano (figura 86c); e ainda o gravador de voz
portátil da National que tem um “toque profissional” para uso profissional (figura 86d):
145

Moda enquanto modos de vida


Figuras 86a, 86b, 86c, 86d: exemplos de anúncios da categoria modos de
organizar-se do ano de 1980.

Como vimos até então, o número de anúncios em 1990 em geral é reduzido, assim
levantamos somente seis anúncios nessa categoria. Abaixo seguem dois exemplos desses,
como o anúncio do hipermercado francês Carrefour, que chegara há pouco tempo no país
e “combinou rapidamente” (figura 87a), e ainda o Seguro auto Bradesco – com as segura-
doras e os bancos ampliando seu campo de ação – ao oferecer aos seus clientes prêmios
mensais como atrativo (figura 87b):
146
Moda enquanto modos de vida

Figuras 87a, 87b: exemplos de anúncios da categoria modos de organizar-se do ano de 1990.

A partir desses dados apontados e analisados, bem como dos anúncios que foram
apresentados, é possível perceber que alguns tipos de produtos se mantiveram como ocor-
rências constantes, ou seja, recorrentes, enquanto outros aparecem de vez em quando ou
ocorrem somente uma vez, desenvolvendo uma relação opositiva entre a continuidade e
a descontinuidade dos produtos anunciados. Tal oposição, contínuo vs. descontínuo, é uma
categoria aspectual e que diz respeito ao aspecto durativo, acabado/inacabado, incoativo
ou terminativo dos fenômenos estudados (GREIMAS; COURTÉS, 2011).
Seguindo esse raciocínio, procuramos propor um quadrado semiótico que abrangesse
esse caráter aspectual de nosso objeto de estudo. Para isso, procuramos alguns vocábu-
los que pudessem sintetizar, de forma objetiva, as ocorrências dos produtos, sendo esses:
nos termos contrários, constante, que abarca os produtos que são anunciados de forma
contínua; fortuito, que engloba os produtos descontínuos, infrequentes; e enquanto sub-
contrários, periódico, que diz respeito aos produtos que se repetem em intervalos (mais ou
menos) regulares; e o ocasional, que engloba os produtos de ocorrência eventual.
CONTÍNUO DESCONTÍNUO 147
Constante Fortuito

Moda enquanto modos de vida


Periódico Ocasional
NÃO DESCONTÍNUO NÃO CONTÍNUO

Esquema 3: quadrado semiótico que organiza as ocorrências dos produtos anunciados. Fonte: produzido
pela autora.

Há uma clara relação de implicação entre periódico e constante, bem como entre oca-
sional e fortuito, pois, o que é periódico pode vir a ser constante devido ao aumento de sua
frequência, e o que é ocasional pode tornar-se fortuito, a depender também da frequência
com que é anunciado. Pode ser que essas transições ocorram entre todas essas posições
do quadrado semiótico, passando, assim, a uma elipse aspectual dos bens de consumo
anunciados, possivelmente gerando uma elipse dos ciclos de consumo, no entanto preci-
samos melhor averiguar tal afirmação, assim, neste capítulo é mais coerente nos atermos
ao quadrado semiótico.
São especificados a seguir quais seriam os produtos que se encaixam em cada um des-
ses termos do quadrado, divididos por modos de consumo:

• Modos de vestir-se:
• Constante: vestuário feminino;
• Fortuito: roupa íntima masculina;
• Periódico: calçados masculinos e femininos; vestuário masculino; roupa íntima
feminina;
• Ocasional: trajes de banho e esportivos; relógios de pulso.
• Modos de cuidar-se:
• Constante: perfumes e colônias; cremes para pele e aspirinas;
• Fortuito: pílulas para os seios; produtos depilatórios; produtos para emagrecer ou
para engordar;
• Periódico: sabonetes e sabão; xaropes; cosméticos (exceto batom); brilhantina;
• Ocasional: cera e bronzeador para a pele, batom; esmalte; absorvente íntimo feminino.
148 • Modos de alimentar-se:
• Constante: bebidas (alcoólicas e não alcoólicas);
Moda enquanto modos de vida

• Fortuito: chiclete; chocolate em barra; embutidos;


• Periódico: farinhas infantis; chás e cafés;
• Ocasional: achocolatados em pó; produtos enlatados e em conserva; manteiga e
margarina; temperos.
• Modos de divertir-se:
• Constante: música (instrumentos, tocadores, discos e CD’s); outras mídias (rádio,
cinema, TV, revistas, jornais); concursos e promoções;
• Fortuito: restaurantes; armas para caça;
• Periódico: viagens e passeios; cigarros e charutos;
• Ocasional: livros; fotografia; automóveis.
• Modos de organizar-se:
• Constante: bancos e seguradoras; automóveis, sabão e alguns produtos de limpe-
za; outras revistas;
• Fortuito: hipermercado; óptica; secador de cabelos; relógio de bolso; agência pu-
blicitária; inseticida; gravador portátil;
• Periódico: outras mídias; eletrodomésticos; decoração;
• Ocasional: aparelhos de televisão e vídeos VHS; máquina de costura; salão de bele-
za; máquina de escrever.

Partindo dessas categorizações aspectuais, no capítulo seguinte construímos uma


narrativa dos anúncios, permeando essas ocorrências, e capaz de representar o corpus de
anúncios por décadas. Mas antes de chegarmos a isso, elucidaremos algumas questões
sobre o posicionamento dos anúncios na espacialidade do corpo-revista, para melhor com-
preender como tais encenações são colocadas em suas páginas.

3.4 Modos de anunciar: relações topológicas das propagandas nas páginas das revistas

Sendo a revista uma espacialidade a ser (in)vestida, os anúncios devem ser analisados em
relação às suas composições topológicas. A topologia é compreendida enquanto a disposi-
ção dos elementos nas páginas. Essa disposição será tomada hierarquicamente, enquanto
relações de superioridade e inferioridade de ordem axiológica (GREIMAS, 2011, p.244).
Por esse âmbito, foi delimitada a grade que compõe cada página e que organiza os
elementos em disposição, de forma organizada e padronizada. A grade, de acordo com
Fátima Ali (2009, p.102), “é uma divisão matemática do espaço da página em um determi-
nado número de colunas verticais e fileiras horizontais”. Essas grades foram definidas de
acordo com cada uma das três revistas e, a partir disso, conseguimos delinear tipologias 149
dos modos que os anúncios aparecem nas revistas. Consequentemente, podem ser com-

Moda enquanto modos de vida


preendidos os valores investidos pelos destinadores privados para anunciar nas páginas
das revistas. Considerando que para anunciar é necessário pagar um certo valor por grid
ocupado, pressupomos que esse investimento financeiro converte-se, nas espacialidades
das páginas, em axiologias que auxiliam na construção narrativa dos objetos de valor – os
produtos anunciados. Em outros termos, quanto maior o espaço ocupado na grade, maior
o investimento axiológico dado ao produto anunciado.
Posto isso, iniciamos pela tipologia da topo-hierarquia dos anúncios na grade da Fon-Fon:

2
3 4
1

5 6 7

Figura 87: à esquerda, temos ilustrada a grade 2x4 da Fon-Fon,e à direita, temos colocados os tipos de disposi-
ção de anúncios encontrados na Fon-Fon.

A grade da revista Fon-Fon é considerada uma grade comum à época, mas devido a
seu pequeno tamanho, essa disposição permite combinar diversos elementos em pouco
espaço. Assim, os anúncios ordenam-se por cada unidade da grade, que pode ser utilizada
de maneira segmentada ou em uma combinatória, como vemos acima. No que chamamos
de tipo 1, foram agregadas todas as unidades do grid, compondo anúncios que ocupam a
página inteira.
Os tipos 2 e 6 correspondem, respectivamente, à unificação de quatro espaços da
grade, sendo que o primeiro ocupa esses espaços horizontalmente, enquanto o segundo
ocupa essas unidades verticalmente, sendo assim, ambos preenchem metade da página.
150 O tipo 3, é uma variante encontrada apenas uma vez, a qual ocupa, horizontalmente, duas
unidades a mais que o tipo 2, compreendendo seis das oito unidades.
Moda enquanto modos de vida

O tipo 7 corresponde à unificação de dois espaços da grade, na vertical, ocupando ¼ da


página. Ocupando o espaço de duas unidades da grade, na horizontal, temos o tipo 4 e, por
fim o tipo 5 que ocupa apenas uma unidade da grade.
Abaixo, a organização da grade de O Cruzeiro:

1 2 4 5

6
7
8
9

Figura 88: à esquerda, temos ilustrada a grade 4x3 da revista O Cruzeiro, e à direita temos colocados os tipos de
disposição de anúncios encontrados.

Na O Cruzeiro a grade é bem pequena, configurando-se em 4x3. Considerando que


não era uma revista de dimensões tão pequenas, tal configuração permite uma variedade
enorme das disposições dos elementos. Essas pequenas unidades da grade elucidam que
pequenos investidores – destinadores privados – poderiam anunciar em suas páginas, sem
necessidade de tanto investimento financeiro.
Nessa espacialidade, temos a mesma disposição do tipo 1, na qual são agregadas todas
as unidades do grid, compondo anúncios que ocupam a página inteira; por vezes, há uma
variação desse tipo 1, quando é duplicado e ocupa duas páginas inteiras. O tipo 2 corres-
ponde à unificação de seis espaços da grade, ocupando metade da página na vertical; o
tipo 3 seria o anúncio que ocupa apenas uma unidade na grade, e o tipo 4 engloba duas
unidades. O tipo 5 corresponde à reunião de seis unidades da grade, ocupando metade
da página na horizontal. No tipo 6, são utilizadas três unidades na horizontal para dispor
o anúncio, no tipo 7 são ocupadas duas unidades inteiras e duas metades de unidades da
grade. No tipo 8 são reunidas quatro unidades, verticalmente, e por fim, no tipo 9, sãu uti- 151
lizadas seis, ocupando ainda três metades de outras unidades, sendo quase uma página

Moda enquanto modos de vida


inteira. A O Cruzeiro permite assim uma grande variedade de anúncios, portanto de níveis
de investimentos, para construir seu corpo-mídia.
Partimos para a organização da terceira revista, a Manchete:

1 2

4 5

Figura 89: na parte superior, temos ilustrada a grade da revista Manchete que é disposta basicamente por 3
colunas, é a chamada grade simples. Logo acima, elencamos os tipos de disposição de anúncios encontrados.

Na revista Manchete há predominância de grandes anúncios que fazem a composição


de cenas espetaculares por suas páginas, com imagens colossais nas reportagens e nos
anúncios. A grade simples é a mais comum utilizada nas revistas atuais, e é composta por
apenas três colunas.
Os anúncios são dispostos principalmente nos tipos que se configuram como 1 e
2, ocupando uma página ou duas páginas inteiras, criando justamente essa cena espe-
tacular. Mas há também os anúncios dos tipos 4 e 5, que ocupam metade da página,
tanto horizontalmente quanto verticalmente. Por fim, há uma única propaganda que
encontramos do tipo 3, que é centralizada e rodeada por textos, ocupando partes de
todas as colunas.
A partir das categorizações feitas nesse capítulo compreendemos, é claro, que assim
como os modos de vestir-se estão presentes nesses outros modos de consumir, alguns des-
ses também são manifestos nos modos de vestir-se, mas são justamente essas transposições
152 entre os modos que podem nos direcionar à construção do todo da aparência. É nisso que
procuraremos nos aprofundar no capítulo a seguir. Assim, no decorrer das análises que
Moda enquanto modos de vida

seguem os anúncios serão categorizados de acordo com essas tipologias, as quais serão
especificadas nas legendas de cada anúncio, no apêndice que foi disponibilizado.
4

A moda nos modos


de vida: a construção
de aparências
154 A fim de nos aprofundarmos em como se dão as construções das aparências nesses vá-
rios modos de consumo e de vida que delineamos, procuramos sistematizar conforme a
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

segmentação de décadas uma narrativa que articulasse as cinco categorias de consumo


que, como vimos no capítulo anterior, denominamos modos de consumo.
O fato de depararmo-nos com recorrências dentre esses vários modos de consumir
permite-nos chegar às construções das aparências em cada década analisada. Assim, pu-
demos delimitar os anúncios, selecionando um anúncio por modo de consumo de cada
ano, em um recorte no qual fossem figurados corpos-moda, tomando-os enquanto partes
constituintes do todo da aparência, buscando analisar a moda nos vários modos de consu-
mo, que constroem os modos de viver do sujeito em sociedade no decorrer do século XX.
Antes de iniciarmos as análises, porém, são necessários alguns esclarecimentos sobre
como são abordadas e entendidas as encenações publicitárias, bem como a definição de
alguns conceitos que serão utilizados no decorrer do capítulo.
Esses corpos-moda, enquanto parte de um todo sincrético, presentificam-se nas ence-
nações publicitárias. De acordo com Landowski (2012, p.129), essas “nos faz[em] olhar os si-
mulacros que constro[em] e [...] nos faz[em] ser ao contemplá-la[s]”. A própria enunciação é
o que faz-ser e faz-fazer, na medida em que é o “palco” de encenação dos actantes (sujeitos
da enunciação), os quais, constantemente figurativizados e tematizados, são capazes de
“produzir um só e único efeito global de encenação dos actantes do discurso”, o simulacro
(LANDOWKI, 1992, p.171).
Com efeito, essas reiterações vão definir uma aparência e suas marcas de permanência
ou de sua transformação. Ana Claudia de Oliveira (2008b, p.94), defende que “as aparências
do corpo vestido podem ser tomadas como um dos alicerces da construção identitária”.
Semioticamente, essas construções ocorrem de maneira dinâmica entre os gostos “univer-
sais” em voga e os gostos “pessoais”, dessa forma, pode-se dizer que aparência é questão
de gosto.
Para uma breve definição do que entende-se por gosto, cita-se Eric Landowski (1997,
p.8), para quem, o gosto:

[...] faz parte dos fenomenos empiricamente mais óbvios, de tal modo que pertence
imediatamente a todos [...] dando lugar a classificações, prescrições, julgamentos, con-
fissões e confrontações inesgotáveis no plano do cotidiano, quer se trate do gosto das
coisas – isto é, do seu sabor ‘bom ou ruim’ –, quer do gosto, ‘bom ou mau’, da gente, ou
seja, dos tipos de critérios de avaliação empregados ao ‘gostar’ disto ou daquilo.

Portanto, a formação do gosto enquanto uma aparência assumida é diretamente rela-


cionada à formação da identidade, mesmo reconhecendo o seu caráter flutuante ao dever
“manter-se a cada momento [...] em conformidade com o que a evolução dos gostos e dos
usos sociais – quer dizer, a moda – exige”. Sendo dinâmica, a identidade se mantém em 155
certa uniformidade, pois quanto mais “um sujeito condiz com a evolução ambiente dos

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


comportamentos e com a mudança dos gostos que se supõe [...] tanto mais rigorosamente
fiel a si mesmo esse sujeito se mostra” (LANDOWSKI, 1997, p.106-107).
É em busca da junção, do estado da conjunção, revertendo os estados disjuntivos, e
do encontro da união, produtora de descobertas de si, a partir dos simulcaros que as re-
vistas constróem enquanto destinadores fortes, que os destinatários-leitores põem-se
na construção de suas identidades em relação às alteridades. À medida que os sujeitos se
posicionam em relação a esses valores propostos, eles se colocam ao mesmo tempo: em
condições de “desfrutar o tempo presente” como partícipe de um certo lugar comum em
relação a outrem, e enquanto “presente a si mesmo” operacionalizando sua própria moda.
A moda, enquanto operacionadora de gostos “pessoais” e “universais”, das práticas e modos
de consumo, torna-se parte constitutiva de identidades (FIORIN, 1997).
As peças publicitárias são tomadas enquanto “palco de exposição do sujeito”, conside-
rando que nesses palcos, prescrições de corpos e de indumentária também são articuladas.
Desse modo, elas constituem a cena e constroem a aparência (OLIVEIRA, 2008b, p.94). A re-
vista expõe na sua plasticidade a construção do que seria estar na moda, e tal composição
visual manifesta-se enquanto elemento reiterativo da construção verbal, delineando, por
meio da figurativização e da tematização, sujeitos que fazem, querem e podem prescrever
os modos de fazer ser, fazer fazer, fazer saber, fazer poder e fazer sentir de seus enunciatários.
Atualizam um modo de presentificação identitária firmada no culto da aparência – estilos
de vida, comportamentos e corporeidades reveladoras de modelos axiológicos poderosos,
que formalizam um modo de existência identitária propagado nos programas narrativos
de busca do “estar na moda”.
Para compreender como se dão essas formações identitárias da moda e dos modos,
bem como os efeitos de sentido construídos por essas encenações, percorreremos os níveis
de geração de sentido do discurso publicitário presentificado em nosso corpus de análise.
Iniciaremos com as análises das propagandas de produtos da moda vestimentar, o que
denominamos enquanto modos de vestir-se, analisando um anúncio que figure uma mu-
lher e outro que figure um homem. Seguiremos com a análise dos modos de cuidar-se da
mesma década – também com anúncios que presentificam uma figura masculina e uma
feminina –; depois analisaremos os modos de alimentar-se, seguidos pelos modos de diver-
tir-se, e finalizando com os modos de organizar-se, delimitando as análises por décadas.
A escolha de iniciarmos as análises pelos modos de vestir-se se justifica em função de
tomarmos a moda enquanto constitutiva dos modos de vida em cada década, e por ser
justamente o modo de vestir-se o mais comumente relacionado à moda stricto sensu. Dessa
156 maneira, poderemos melhor esclarecer que é com e pelas rupturas programadas da moda
vestimentar que a moda ou modos de parecer também se rompem, desenvolvendo ciclos
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

de “novas” práticas e (re)construções de efeitos de sentido – indo do ano de 1910 até o


ano de 1990, numa abordagem de quase um século dos modos de parecer. Sendo assim, a
moda não seria “reflexo”, mas uma construção do e pelo social.
Consideramos a cultura vestimentar como uma das práticas cotidianas pelas quais a
estética do sujeito comum se manifesta (GREIMAS, 2002), e como ato de construir-se, essa
estética é igualmente manifesta nos vários modos de consumir. Essa cultura da moda ves-
timentar manifesta-se pelas escolhas sintagmáticas do sujeito – ornando suas peças de
vestuário –, colocando em jogo simulacros de sujeitos: em que um vê e outro é visto (LAN-
DOWSKI, 1992). Nas propagandas que estamos prestes a analisar temos sujeitos que estão
vestidos e que, ao serem (in)vestidos de valores e posicionados em cena discursiva, são
assim posicionados enquanto sujeitos manipuladores. Desta forma estes seduzem, tentam,
provocam e até mesmo intimidam os que os veem pelo modo de compor interações en-
tre sujeitos, nas quais um tem um fazer-persuasivo e/ou um fazer-sensível, e o outro, um
fazer-interpretativo e/ou uma sensibilidade reativa, e são essas interações que fazem ser o
sentido (OLIVEIRA, 2013).
Nesses processos da moda, o simulacro do sujeito enunciado é capaz de provocar um
querer ou dever1 no enunciatário, e é justamente esse querer, quando atualizado por um sa-
ber, que faz-ser a moda e os modos. Parte-se do pressuposto, portanto, que as propagandas
são direcionadas por um dos quatro procedimentos de manipulação, a provocação, sedu-
ção, tentação ou intimidação que atuam sobre o querer dos sujeitos virtualizados, instala-
dos enquanto enunciatários dessas construções simulacrais dos corpos-moda encenados.
Assim opera o discurso publicitário, a fim de criar desejos ou tentações no enunciatário-
destinatário, ou mesmo de impeli-lo a fazer para parecer, pelo que esse faz ser no social, de-
terminando pertencimentos e sociabilidades. Apoiados nesses postulados, partimos para
a análise dessas prescrições de valores e construções simulacrais, que constroem a moda
enquanto modos de vida dos sujeitos2.

1  Querer e dever são duas modalidades virtualizantes do sujeito, respectivamente, endotáxica e exotáxica.
Tais modalidades são atualizadas pelo poder ou saber e realizadas pelo fazer ser. A modalidade é concebida
como “a produção de um enunciado dito modal que sobredetermina um enunciado descritivo” (GREIMAS E
COURTÉS, 2011, p.314-316).
2  É importante ressaltar que todos os anúncios analisados neste trabalho foram obtidos nas edições das revis-
tas apresentadas no capítulo Moda (Re)vista no Brasil.
4.1 A construção de aparências na Fon-Fon 157

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


4.1.1 A moda nos modos de anunciar em 1910

Organizamos um quadro que nos permitisse visualizar os anúncios selecionados de figuras


femininas e masculinas, postos lado a lado e na ordem em que serão analisados, organi-
zados por décadas e seguindo os vários modos de consumir. Com essa estratégia a nossa
tentativa é de que cada quadro monte uma visibilidade da aparência nesses modos de
consumo categorizados, como colocado abaixo:

Modos de 1910 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d

Modos de alimentar-se e Ausência


158
Modos de divertir-se Ausência f
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de organizar-se g h

Quadro 1: Figuras 90a, 90b, 90c, 90d, 90e, 90f, 90g, 90h.

Nos modos de vestir-se em 1910, temos na figura 90a um anúncio que ocupa um pe-
queno espaço na página da revista, e desse modo, não pode dispor muitas informações. A
mulher é figurativizada por uma ilustração na qual ela se encontra num momento íntimo,
ao vestir apenas seu corset. Esse tem como papel moldar seu corpo de acordo com gostos
em voga. Seu momento íntimo é observado e a figura desvia o olhar, mas não mostra sinal
de pudor: mostra-se de peito aberto e ostenta as formas de seu corpo que só foram alcan-
çadas pelo uso do corset, ou de um dos “Espartilhos da Mme. Berthe”. Esse corset constringe
o corpo feminino, evidenciando o busto, projetando o torso para frente e comprimindo os
quadris, construindo uma forma em “s” do corpo feminino. Constrição do corpo que lhe deu
o nome S-bend, um tipo de corset que surgiu com a promessa de criar algo que não fosse
tão prejudicial à saúde das mulheres – como faziam os antigos espartilhos –, entretanto, foi
o mais longo corset criado até então, comprimindo e modelando da altura dos seios até o
início das coxas (JARDIM, 2014). De acordo com Jardim (2014, p.74), o tronco era projetado
para frente, com o abdome reto, produzindo uma hiperlordose em suas usuárias; entretan-
to, se comparado aos antigos corsets, facilitava a respiração. Assim, “nos primeiros anos do
século XX o modelo foi um grande sucesso e moda absoluta”.
Temos nesse anúncio do corset justamente o produto que proporciona a modelação
e projeção do corpo que vimos nas figurativizações dos corpos-moda femininos anterior-
mente. A mulher do anúncio está em posse do corpo desejado que lhe foi proporcionado
pelo corset, por isso, apesar de íntimo ou mesmo privado, ostenta-o, tornando a sua ima- 159
gem pública e esbanjando um sorriso, mostrando saber ser vista pelo outro, por si mesma

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


ou outras figuras sociais. Na cena seu braço está no alto, como se na pose permitisse dar ao
que a observa uma melhor visão de seu corpo-moda; esse braço leva o olhar ao nome da
corsetier Mme. Berthe, o qual é colocado em paralelo à posição verticalizada do corpo. Está
junto a este o destinador: Mme. Berthe, quem faz ser este corpo moldado que é visto, crian-
do, assim a sedutora aparência à francesa desse corpo pronto para ser re(in)vestido. Perce-
bemos que nesse anúncio do corset a mulher tem seus cabelos figurativizados de maneira
diferente das cenas que mostramos no último capítulo. Seus cabelos parecem estar ainda
com bobes3 e no processo de arranjo de seu penteado. O que reforça o caráter público de
suas vidas privadas, enquanto ainda não estão prontas para suas atuações sociais.
No segundo anúncio dessa mesma categoria (figura 90b), que figurativiza um corpo-
moda masculino, temos uma propaganda de sapatos. Este é encenado no canto superior
direito como algo divino, que atuando no canto superior direito da página, ilumina a figu-
ra masculina que veste um terno e chega a proteger os olhos da luz emanada pelo sapato,
que em sua trajetória, golpeia a visão do homem. O terno que essa figura veste é diferente
do traje típico masculino até o século XIX, com um comprimento que ia até a altura dos
joelhos – esses agora eram utilizados apenas em ocasiões especiais junto à cartola, à po-
laina e às bengalas –, trata-se, então, de um modelo mais curto e mais ajustado ao corpo,
assim como as calças que veste. O homem é figurativizado de costas e está em falta de
seu chapéu, acessório indispensável à composição dos trajes masculinos de então; não
era próprio dos modos construídos aos homens que se interessassem demasiado pelo
que vestiam, entretanto, deveriam estar sempre impecavelmente vestidos com terno e
colarinhos sob medida, um bom chapéu, uma bengala e um sapato lustrado. Os ingleses
tinham fama de terem os melhores alfaiates do mundo e seu estilo impecável foi incorpo-
rado pela Fon-Fon, ao anunciar um modelo de sapato inglês para compor o traje smart dos
homens brasileiros. Assim, o sapato envernizado do anúncio é nomeado e apresentado:
West End é seu nome, traduzido para o português seria algo como “onde o Oeste termina”
ou “fim do Oeste”, onde o sol se põe e dá suas últimas rajadas de luz em meio à escuridão,
assim como figurado na cena. O calçado ainda é adjetivado pelos dizeres “Calçado inglez”,
o que somado ao verbal na parte superior da cena, “A luz do smartismo”, deixa clara a alu-
são aos trajes smart ingleses em voga. O homem que possuir este sapato será iluminado
pelo smartismo, pela esperteza e destreza, poderá adornar-se com seu chapéu coco e sua
bengala, adquirindo competências para agir enquanto corpo (in)vestido de acordo com
os modos da sociedade.

3  Os bobes são também chamados de rolo de cabelo, são em formato cilíndrico e usados para enrolar o cabelo.
Fonte: a autora.
160 Na segunda categoria, nos modos de cuidar-se em 1910, temos uma fotomontagem
que presentifica uma figura feminina (figura 90c) encenada num anúncio que ocupa uma
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

página inteira: trata-se da “Agua da Beleza” – um tônico para a pele –, texto verbal que é
emoldurado por um círculo branco e por outro um pouco maior, com algumas estrelas em
sua composição. Tal círculo, como uma figura divina, emana raios de luz que descem em di-
reção à mulher, a qual olha para a figura como que em êxtase, iluminada pela “agua da be-
leza”. Seus cabelos, em um arranjo característico da época – presos, volumosos e cacheados
–, criam uma triangulação do trajeto do olhar, ao “tocar” os raios de luz nas extremidades;
esses raios alcançam a mesma largura de seus ombros e colo desnudos, reiterando essa
triangulação que podemos relacionar à “divina” água da beleza. O trajeto traçado pelo olhar
carrega o enunciatário para dentro da imagem, e o faz sentir-se como essa figura iluminada
e embelezada pelo cosmético.
Ainda nos modos de cuidar-se, na figura 90d há a fotografia de um homem ao se barbe-
ar, para anunciar as novas navalhas da Gillette e a “Brilhantina concrete de COTY”, produtos
que são revendidos na “Coelho Bastos & C. – Os mais barateiros em perfumarias, roupas
brancas e artigos para presentes”. O homem parece utilizar esses dois produtos na imagem,
pois tem os cabelos bem penteados e se barbeia para manter seu bigode em evidencia,
e uma boa aparência “à luz do smartismo”, como vimos anteriormente. Mesmo nesse mo-
mento íntimo, está muito bem vestido com um colarinho engomado, gravata com um nó
bem feito, um colete e um paletó – um traje masculino completo. Seu olhar se desvia, mas
ainda parece confortável mesmo com a presença de observadores, como se não quisesse
não ser visto.
Passando à terceira categoria, os modos de alimentar-se, temos apenas corpos-moda fe-
mininos encenados, e nenhum masculino. Podemos relacionar a ausência e a presença des-
sas imagens com os papéis sociais do gênero feminino, ao qual, historicamente, foram desig-
nadas as funções domésticas, incluindo a alimentação de sua família. Pontuamos isso para
averiguar, no decorrer do trabalho, se há reiterações para que confirmemos tal hipótese.
Assim, essa mulher (figura 90e) é figurativizada por meio de um desenho, com sua si-
lhueta moldada pelo S-bend e com os ombros e colo desnudos como a mulher iluminada
pela “agua da beleza”. Parece trajar um vestido de noite, por deixar essas partes do corpo à
mostra, composto por drapeados que delineiam a silhueta e babados que deixam suas man-
gas soltas e bufantes, além de estar sem o seu chapéu e com um enfeite que prende seus
cabelos cacheados: um traje de noite e de festa. Trata-se de um anúncio do sifão para água
gasosa “Prana Sparklets – para ter imediatamente agua gazosa pura”, a qual tem o manejo
“tão simples que não necessita de experiência nem cuidado”. A facilidade com que pode se
obter a água gasosa está expressa na face da mulher, a qual parece em deleite, pois pode
receber seus convidados da festa e oferecer-lhes, com facilidade, uma bebida gaseificada.
Passamos então à categoria dos modos de divertir-se, os quais, em 1910, se destinam 161
apenas ao público masculino. Trata-se do anúncio da “Pianola” (figura 90f ), um tocador de

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


piano automático. Nesse anúncio o texto verbal predomina a composição com exaltações
do produto, informações sobre esse e o endereço da loja física no Rio de Janeiro. À direita,
na composição, é encenado o uso da Pianola em uma festa, na qual homens bem traja-
dos ao modo smart divertem-se no salão e deleitam-se com as músicas tocadas. Um deles
está no tocador de piano automático e bebendo alguns drinks que se encontram na mesa
de canto. Como vimos anteriormente, a ausência do corpo-moda masculino nos modos
de alimentar-se, e agora sua presença nos modos de divertir-se, indicam também sobre
os papéis sociais de cada gênero: às mulheres eram destinados papéis de “dona de casa”,
servindo bebidas e alimentos, além de entreter sua família no dia-a-dia e seus convidados
nas festas, nas quais os homens se divertiam ouvindo as músicas tocadas, sem ligar para a
observação dos enunciatários, não querendo não ser vistos.
Nos modos de organizar-se temos um anúncio de contracapa da “Allegoria SMITH VISÍ-
VEL – A mais afamada máquina de escrever, universalmente conhecida” – uma máquina de
escrever – que figurativiza três mulheres míticas (figura 90g). Trata-se de uma ilustração em
tons de cinza, na qual uma mulher é centralizada em pé, vestindo trajes típicos da Grécia
antiga – somado ao cenário com colunas e arquitetura também típica da região –, com
mantos enrolados e drapeados sobre o corpo. Essa mulher olha para baixo, e aos seus pés
há a “afamada” máquina de escrever, e como uma figura divina, parece “abençoar” a máqui-
na. Ambas, máquina e mulher mítica, são circundadas por outras duas mulheres, com tra-
jes similares, que parecem subservientes aos dois corpos centralizados. Nessa composição
nota-se novamente a triangulação do trajeto feito pelo olhar do enunciatário na imagem,
reiterando os valores divinos e/ou míticos dos modos de anunciar nesse ano. Trata-se as-
sim realmente de uma alegoria, um modo de expressar figurativamente as qualidades da
máquina de escrever Smith.
No último anúncio analisado nessa mesma categoria (figura 90h), temos a face e colo
de quatro homens, que parecem ser encenados contra a luz, pois vemos apenas a silhueta
das sombras e o formato dos colarinhos. Trata-se de um anúncio da máquina de escrever
“Remington – Uma lembrança histórica”. De cima para baixo essas figuras são colocadas
ao canto esquerdo e, à direita, são dispostos textos verbais que descrevem e relacionam a
história de cada um desses homens com a história da Remington: o homem de “50 annos”
que “lembra-se da primeira vez em que viu” essa máquina de escrever - não tem cabelos,
usa óculos e veste uma camisa de colarinho quebrado e uma gravata-lenço larga – modelo
muito utilizado nos tempos imperiais brasileiros; o segundo homem, de “40 annos”, “lem-
bra-se do tempo em que a machina de escrever” era restrita ao uso em escritórios, como
“objeto de luxo” – esse ainda tem um pouco de cabelo, mantém seu bigode volumoso,
162 também usa óculos e a camisa de colarinho quebrado, mas um tipo de gravata menos
volumosa, mais comum aos homens “tradicionais”; o terceiro homem, o de “30 annos”, lem-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

bra-se que a máquina de escrever era bastante usada, “mas não universalmente” – esse, por
sua vez, tem ainda mais cabelos e o bigode mais aparado, sua pose é mais altiva e veste um
tipo de colarinho curto, mais moderno; por fim, o “rapaz de 20 annos que hoje se dedica
ao commercio, reconhece a máquina de escrever como uma necessidade” – esse é o rapaz
smart do século XX, ágil e a par das novas tecnologias, com seu cabelo encaracolado, ves-
tindo sua camisa de colarinho curto, sua gravata, seu paletó, pois são trajes mais simples
para sua vida agitada. A Remington coloca sua história como a própria história da máquina
de escrever, e essas são as histórias do desenvolvimento da sociedade.
Dentre os anúncios analisados poucos são encenados por fotografias, fato que se deve
não somente à falta de acesso a essa tecnologia, mas por meio das análises observamos que
o único anúncio expresso pela fotografia, sem fotomontagem (figura 90d), figurativiza um
corpo-moda que já está vestido com seu produto e com todo seu ornamento, pronto para
atuar. Enquanto nos outros casos, temos principalmente mulheres em momentos íntimos
ou ainda não propriamente vestidas, ou mesmo um homem que ainda está na escuridão,
“fora de moda”. Assim, sendo a fotografia uma figurativização mais próxima do simulacro
de realidade, somente o sujeito realizado é posto dessa forma, digamos, mais próximo de
uma ação no mundo em que se insere. A figura que ainda está em vias de tornar-se sujeito
em junção com os valores buscados, para lhe compor uma aparência desejada, é sujeito
virtualizado e figurativizado então por desenhos que assimilam menos efeitos do dizer ver-
dadeiro. Constatamos que apenas o homem é figurativizado pelo enquadramento de seu
corpo inteiro, e dessa relação entre corpo inteiro masculino e meio-corpo/face femininos
podemos apreender os papéis sociais construídos. Ao homem é dada a importância de seu
modo de vestir em todo o corpo, à mulher é dada a importância pelas formas de seu corpo
e por seus adornos – notamos certo caráter heteronormativo dos anúncios desse início de
século: aos papéis do homem, que se configuram em sua totalidade para a ação, são dados
maior destaque.
Pela análise dos modos de consumir anunciados em 1910, pudemos apreender os for-
mantes dos planos de expressão e conteúdo que constroem o sentido desses discursos,
compondo as aparências dos corpos-moda. Assim, são sistematizados os dois planos que,
homologados, configuram o sincretismo da aparência. Partimos do pressuposto de que os
anúncios visam vender o “novo” e a partir dessa visão particular sobre esses discursos –con-
siderando o ponto de vista do enunciatário engajado nessa axiologia –, permitimo-nos di-
zer que essas construções que (re)afirmam o que está na moda, colocando essas novidades
enquanto descontinuidades. Essas, por sua vez, são a quebra com a continuidade – que seria
permanecer sob a voga de uma moda passada, o démodé. Tais oposições também podem
ser relacionadas às noções de moderno e arcaico, recurso que é tanto utilizado nos anún- 163
cios para fazer-saber o produto “novo” e “moderno”, quanto são articuladas para delinear a

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


“nova” moda (CASTILHO, 2009).
Assim temos a seguinte oposição de base:

Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
/“démodé”/ vs / “na moda”/

longilíneo curvo
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
horizontal vertical
escuro claro
geométrico orgânico
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 4: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1910. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade, que são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Tal homologação nos permite a compreensão de como são expressos os conteúdos


que constroem, em sincretismo, o corpo-moda que delineia as aparências sazonais. Como
vimos, essas aparências são construídas pelo modo de visibilidade desses corpos-moda
e, assim, a partir dos postulados de Eric Landowski (1992) e das análises realizadas, che-
gamos a delinear uma dinâmica de valores que, pelo modo de circulação, permite ocupar
as posições do quadrado semiótico, mas de maneira incompleta e triádica, organizando a
visibilidade dos sujeitos na e pela aparência construída.
Para o autor (LANDOWSKI, 1992, p.89), a dimensão escópica, do ver dá a relação inter-
subjetiva, ao pressupor que são necessários ao menos dois sujeitos em relação, como dis-
semos anteriormente, um que vê e outro que é visto. Consideramos que todas as categorias
encontradas são englobadas por um querer ser visto enunciativo, de um destinador que
quer mostrar e ostentar seu “novo” produto. No entanto, por vezes são instaurados sujeitos
164 que simulam visibilidades diversas, às vezes com pudor e às vezes sem constrangimento de
ser visto em dada situação, pois, nesses anúncios, a figura do enunciado ali posicionado –
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

pelas escolhas de um sujeito da enunciação –, se posta para ser visto em seus vários papéis
do âmbito público vs. privado; um “eu” para um “tu” enunciatário que vê ou é levado a que-
rer ver. Essa relação nos permite elaborar o seguinte quadro:

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 5: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1910. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: Produzido pela autora.
Nos modos de visibilidade dos sujeitos nos discursos que analisamos, apreendemos que 165
os corpos-moda, figurativizados nas figuras 90c, 90e, 90f e 90g, se configuram como corpos

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


vestidos que querem ser vistos, pois ostentam suas vestes e já se postam como prontos – ou
quase prontos – para agir nos modos dos papéis que lhe cabem representar nos espaços
públicos. Em relação de contrariedade com este, temos as figuras 90b e 90h, nas quais os
sujeitos querem não ser vistos, pois estão nas coxias, à sombra, ou ainda em estado de fal-
ta de algo que precisam para que, sem constrangimento, possam representar seus papéis
enquanto corpo-moda. Em contradição com esses, temos as figuras que anunciam corpos-
moda ainda em preparação, sem as vestes ou sem a barba aparada que compõem o todo
de sua aparência. Entretanto, este corpo não quer não ser visto e se coloca a ser visto sem
constrangimento, “publicizando” o papel privado que lhe cabe com a aparência construída
apenas por roupas íntimas. Esse último, ao ser complementado pelo vestir, de acordo com
os modos de seu contexto, se tornará um corpo-moda, apto a representar seu papel público.

4.1.2 A moda nos modos de anunciar em 1920

No quadro abaixo temos organizados os anúncios selecionados do ano de 1920, lado a


lado e na ordem em que são analisados:

Modos de 1920 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d
166 Modos de alimentar-se Ausência Ausência

Modos de divertir-se e f
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de organizar-se g h

Quadro2: Figuras 91a, 91b, 91c, 91d, 91e, 91f, 91g, 91h.

Iniciamos a análise das propagandas dos modos de vestir-se em 1920, na Fon-Fon. Na


figura 91a temos um corpo inteiro feminino, totalmente vestido e ornado. Trata-se de um
anúncio da loja, Á Brazileira. Sua figura é posicionada à esquerda da página, tem gestos le-
ves com as mãos e os pés, e tem uma postura levemente curvada para a esquerda, mesmo
direcionamento de seu olhar, o qual desvia de seu enunciatário. Por sua gestualidade, exibe
seu vestido que é fluido e acinturado, com pregas que criam volumes sobre os ombros e o
busto, com adornos que segmentam a verticalidade do vestido que se estende até a altura
das canelas. Veste também um chapéu de aba larga e mais achatado, sem muitos adornos,
sobre os seus cabelos curtos à la garçonne. Seguindo com o olhar as linhas finas de seus
sapatos, nota-se uma sombra de seu corpo feita no chão – trata-se de um traje diurno. A
circularidade desse chapéu é reiterada na forma geométrica que circunda sua figura ao
fundo, destacando seu torso e sua face – a parte da cintura para cima que compreende o
seu corpo-moda. Atrás da figura geométrica, na parte superior na cena, temos duas linhas
retas horizontais e em paralelo, as quais são repetidas na parte inferior, criando uma mol-
dura a esse corpo-moda, bem como no meio da página, à direita, ao sublinhar o nome da
loja que anuncia. Essas linhas fazem alusão às linhas de tecido pregueadas na parte inferior
do vestido. As linhas e figuras geométricas da cena, portanto, seriam os próprios traços 167
minimais que compõem a expressão do corpo (in)vestido.

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Ainda nessa categoria, na imagem 91b, temos figurativizados dois homens em sua to-
talidade corpórea. São colocados em uma cena urbana com algumas edificações meio dis-
formes ao fundo, e estão a conversar; o homem à direita segura uma revista em sua mão e
parece lê-la. Esse sujeito traja um chapéu homburg, camisa, gravata, calças retas, sapatos
pontiagudos e um sobretudo acinturado – todas as peças muito bem ajustadas ao corpo;
um cachorro o acompanha em seu passeio. O homem à esquerda veste um chapéu coco
e trajes muito similares aos do homem ao seu lado, inclusive o sobretudo, apenas com
alguns recortes e detalhes diferentes. No entanto, esse veste luvas, carrega sua bengala,
e parece carregar também um jornal dobrado em baixo de seus braços. As notícias im-
pressas parecem ser o motriz da conversa entre os dois – são simulacros de homens bem
trajados e bem informados. Os homens também são consumidores da Casa Colombo, e na
enunciação temos dada a temporalização: “Inverno 1920”; mesmo que a estação do ano
já possa ser apreendida pelos produtos anunciados, visualmente e verbalmente, como os
“Sobretudos pura lã / Sobretudos de Luxo / Ternos de casemira pura lã”, verbalizados na
parte inferior. Toda a disposição dos elementos na página delineia um caminho circular a
ser percorrido pelo olhar, e nesse trajeto somos colocados enquanto observadores dessa
cena corriqueira da urbe.
Na categoria dos modos de cuidar-se temos uma figura feminina na imagem 91c, que
segura o seu frasco do Pó Graseoso, e por sua gestualidade, parece prestes a passá-lo; ela
usa um vestido pregueado e com bainha desigual, com mangas e saia soltas, mas preso
à cintura. Seus cabelos são curtos e enrolados, em uma estética similar aos cabelos que
vimos na última categoria. Igualmente, a pose de seu pé direito e o formato de seu sapato
são similares (às da figura 91a), exceto por seu pé direito que está apoiado sobre um ban-
quinho. Suas mãos sobrepõem uma coluna vertical, na qual temos o seguinte texto verbal:
“Não só captiva as damas por sua esquisita fragrancia como, também, porque imprime, ao
rosto, uma frescura encantadora”. Esquisita, claro, com uma conotação diferente da que
normalmente assimilamos. Nesse caso seria algo como único e requintado, associado ao
vocábulo francês exquisité. São valores de unicidade, requinte, graciosidade e encanto, as-
sociados à mulher que utiliza esse produto e, toda essa construção, na qual a mulher não
quer não ser vista enquanto se arruma, faz o enunciatário crer nas qualidades do produto
para dar-lhe “uma frescura ao rosto”.
Nessa mesma categoria, o anúncio 91d figurativiza um homem, encenado em dois mo-
mentos diferentes: antes e depois do “Pettoral de Angico Pelotense”, um xarope para tosse.
O homem do passado, de “antes”, tem aspecto doentio, com gestos de quem segura o peito
ao tossir demais, veste paletó, sapatos e calças que não parecem em boas condições, e
168 apoia-se no grande frasco do xarope, esse sujeito quer não ser visto nesse estado; o círculo
que os emoldura parece criar um movimento anti-horário do olhar e, passando pela tampa
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

do frasco, nos deparamos com esse mesmo homem com aspecto saudável; esse está bem
penteado e veste um fraque, traje masculino que já se restringia a eventos noturnos – com-
parando-o com os trajes diurnos já analisados – e, unidos à sua gestualidade convidativa
e ao seu olhar direto, ele agora quer ser visto e parece convidar-nos para acompanhá-lo, fa-
zendo-nos sentir o seu alívio e crer na funcionalidade do remédio. No texto verbal, em bai-
xo da cena, é narrado o relato de um homem que tinha uma filha que “Soffria Horrivelmen-
te” e foi curada, o mesmo processo pelo qual passou o homem, de moribundo a galante.
Passando aos modos de alimentar-se, vemos que não há anúncios de corpos-moda nes-
sa categoria, e devido a essa ausência, não podemos fazer as conexões diretas com os pa-
péis sociais de gêneros como fizemos anteriormente, pois ambos são ausência. Mas essa
ainda cria efeitos de sentido, pois se insere num momento pós-Primeira Guerra Mundial
em que o Brasil tinha ainda poucas indústrias e produções de alimentos. Esse setor passava
por um momento de readequação ao cenário, começando a produzir e consumir, aqui, os
produtos alimentares – o mercado ainda não era estável para procurar anunciar e, prova-
velmente, ainda não havia marcas nacionais bem delineadas para criar os seus anúncios.
Na próxima categoria a ser analisada, os modos de divertir-se, temos um anúncio de
cigarros franceses (figura 91e). Trata-se de uma fotografia na qual uma mulher segura um
cartaz com os dizeres: “Cigarros La Reine – Sem nicotina”, sua gestualidade ao segurar o
cartaz remete à da mulher da figura 91c, com certa leveza e com os dedos mínimos em
riste; seu cabelo é curto, usa longos colares de pérolas, uma headband – espécie de tiara –
com grandes penas que se expandem, e um vestido decotado com mangas três quartos.
Tudo isso, como vemos, compõe uma aparência típica da época que até mesmo nos reme-
te à fase inicial das famosas melindrosas – mulheres do período, conhecidas por dançar,
consumir bebidas alcoólicas, fumar e se divertir ao som do Jazz e do Charleston, com seus
vestidos brilhosos, headbands com penas e pérolas, bem similar ao simulacro de aparência
desse anúncio.
Ainda nos modos de divertir-se temos o anúncio do restaurante A Toscana, no qual dois
homens são ilustrados vestindo as meias sobre as calças culotte4, casacas com bolsos gran-
des sobre suéter e camisa, além de chapéus de caça – cada um segura uma espingarda e
parecem acabar de se encontrar –, claramente, estão indo e/ou retornando de uma caça. O

4  De acordo com o Glossário de Moda, a “calça culotte, ou somente culotte, é uma peça masculina de origem
francesa, utilizada em toda Europa pela nobreza [...] O culotte fazia parte do conjunto de três peças que ante-
cedeu o surgimento do terno [...] com o comprimento logo abaixo dos joelhos [...]. Os culottes fizeram parte
da vestimenta militar em quase todas as guerras que ocorreram na Europa durante o século XVIII. No traje es-
portivo, refere-se à calça de montaria, larga no quadril e afunilada a partir do joelho”. Disponível em: <<www.
glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 22 Out 2015.
diálogo entre eles é narrado: “– Estás te divertindo? / – Não. Estou arranjando um almoço 169
especial. / – Ora! Não era preciso teres esse trabalho todo. Bastava ires à Toscana”. O olhar do

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


enunciatário segue uma circularidade entre imagem e diálogo, mas essa é quebrada pelo
traço que divide o anúncio entre a cena e as informações do restaurante. Há nesse anúncio,
por meio de um trocadilho, uma relação direta com um dos anúncios dessa categoria que
elucidamos no capítulo anterior – definitivamente, caçar por diversão estava na moda – e
novamente temos encenados e anunciados esses novos hábitos da sociedade republicana,
que reconfigura, também, os seus hábitos alimentares.
Passando à última categoria analisada, os modos de organizar-se, temos um anúncio
curioso, digamos, no qual uma mulher chamada Marguerite Ruffier tem sua fotografia colo-
cada em cena, numa coluna à direita – parece trajar uma camisa e uma saia sobrepostas por
um casaqueto adornado e acinturado, e sua saia deixa os tornozelos à mostra, recobertos
por meia e sapatos fechados, que somados ainda ao chapéu que usa, nos remete aos traços
de aparência da figura 91a. Pelo texto verbal à esquerda, predominante na composição, é
narrado que a “senhorita” é “Representante do ‘El Norte Americano”, uma “Loja de compras
para a América Latina” em Nova York. De acordo com a narração, o trabalho dessa senhorita
é receber os turistas e compradores latino-americanos, auxiliá-los a locomover-se pela cida-
de norte-americana. Ela é competencializada enquanto sujeito apto a falar diversas línguas
e, ainda mais, de acordo com o narrador, “A Sta. Ruffier está completamente apta a bem de-
sempenhar-se dessa missão, não somente por causa das suas numerosas visitas aos paizes
sul-americanos, como também porque dispõe nos mesmos de um largo círculo de relações
e está muito familiarizada com os negócios na cidade de Nova York”. Constatamos que é a
primeira ocorrência de uma profissão feminina: acompanhante internacional de compras.
No último anúncio analisado desse ano, ainda nos modos de organizar-se, temos os
Motocultores Somua. Trata-se de uma propaganda de utilitários para fazenda, que facili-
tam o plantio e coleta das plantações, que, como vimos, ainda diz respeito a uma indústria
em seu momento inicial. São os homens que, aparentemente, trabalham no campo, mas
esses são encenados com seus ternos, gravatas e chapéus hambourg, enquanto realizam
suas tarefas diárias.
Diferentemente do que apreendemos em 1910, em todos os anúncios com figuras fe-
mininas são presentificados seus corpos inteiros, em sua totalidade. Nota-se ainda a radical
mudança dos corpos, das vestes e dos cabelos: os corpos tornaram-se mais longilíneos,
pela utilização de outros tipos de constritores, afinando quadris e seios, as roupas mais
curtas, decotadas e soltas, libertam-se, relativamente, da grande quantidade de adornos;
os cabelos curtos mostram uma assimilação aos cabelos masculinos, associando-se, assim
aos modos mais libertos dos homens. Essas mulheres de corpo inteiro divertem-se, saem
à noite. Os homens também se viram um pouco mais libertos do rigor do smartismo, com
170 roupas um pouco mais descontraídas. Em 1920 os papéis femininos e masculinos encon-
tram-se um pouco mais equiparados, ainda que, às mulheres sejam exigidos valores como
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

beleza, requinte, suavidade, etc.


Outro ponto que notamos é que o posicionamento vertical, tanto dos anúncios quanto
de seus atores, é predominante. Assim, apreendemos os formantes dos planos de expres-
são e conteúdo que constroem o sentido desses discursos, compondo as aparências dos
corpos-moda. São sistematizados os dois planos, de expressão e conteúdo:

Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
/“démodé”/ vs / “na moda”/
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
longilíneo curvo
orgânico geométrico
horizontal vertical
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 6: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1920. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade, que são
homologados ao plano de conteúdo por /”démodé”/ e /”na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Da mesma forma, esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se co-
locam no jogo de construções da visibilidade, mas nas análises de 1920, pudemos perceber
que todos os corpos-moda, com exceção da figura 91c, já são sujeitos realizados e prontos
para agir no mundo. Para explicitar essas relações, elaboramos o seguinte quadro:
171

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Termo vazio

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 7: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1920. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: Produzido pela autora.
172 4.1.3. A moda nos modos de anunciar em 1930
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de 1930 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d

Modos de alimentar-se e f

Modos de divertir-se g h
Modos de organizar-se i j
173

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Quadro3: Figuras 92a, 92b, 92c, 92d, 92e, 92f, 92g, 92h, 92i, 92j.

Iniciamos pela figura 92a, que se configura num limiar entre propaganda e editorial,
elucidando os primórdios do editorial de moda no Brasil. Ainda assim, consideramo-lo
anúncio pela sua disposição nas páginas e por anunciar os novos modelos de Jean Pa-
tou, um grande estilista francês. No enquadramento em meio-corpo do corpo feminino,
a figura nos olha diretamente e o chapéu que usa tem uma pequena aba, parecendo um
modelo de chapéu clochê muito utilizado pelas mulheres nos anos 1920 e início de 1930,
como vimos até então, evidenciando os cabelos curtos. Suas sobrancelhas e lábios são
bem delineados e podemos notar que usa brincos. Veste uma espécie de chemise de man-
gas compridas e botões, com gola chinesa; é possível notar uma saia que se estende abai-
xo do chemise. Com o posicionamento de sua mão esquerda, traceja um caminho para
o olhar de quem a vê, direcionando-o para a gola do chemise e depois para seu rosto; a
pequena aba do chapéu redireciona o olhar para baixo, e assim, acompanhamos a linha
de seus ombros e observamos as vestes em sua verticalidade. O tecido da peça de roupa
parece bem estruturado, criando uma silhueta reta, reiterando a verticalidade da silhueta
da mulher que posou para a fotografia. Em tipografia rebuscada, com a repetição de linhas
retas, é enunciado: “A mulher chic / Blusa de setim azul-celeste / Jean Patou / Especial para
a Fon-Fon”. A mulher “chic” de Jean Patou tem forma longilínea e ostenta seu chemise
“azul-celeste” – as cores são assim definidas pelo verbal, pelo visual denotamos apenas a
textura e o brilho do cetim.
No segundo anúncio dessa categoria, figura 92b, somos observadores de uma cena
corriqueira, que ocorre no que parece um saloon ou mesmo um barzinho. Há vários atores
em cena, homens ao balcão com suas calças e paletós listrados, o atendente do bar com seu
uniforme, um homem e uma mulher sentados à mesa à direita e, centralizados, o homem
e mulher que protagonizam a cena – ele veste um suéter branco e calças escuras, sentado
de forma descontraída, com as pernas abertas, e ela, com seus cabelos à “La Garçonne”,
174 tem um vestido estampado e ajustado ao corpo que vai até a altura dos joelhos, sapatos
de salto e se senta com as pernas cruzadas. Os enunciatários são aproximados da cena,
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

colocados em ato no momento em que um senhor adentra o recinto – pois ainda veste seu
chapéu e carrega alguns objetos sob o braço –, seus primeiros passos são sonorizados pela
onomatopeia “clac”. O casal centralizado dialoga: “– Elle: ‘Está ameaçando tempestade lá
fora’ / – Ella: ‘... e aqui dentro já troveja com a entrada do Accacio’”. Da circularidade da cena
somos direcionados ao texto verbal logo abaixo: “Essa é uma das desvantagens para quem
usa sapatos pesados e barulhentos, poderia tornar-se popular pelo apelido de O Homem
Trovão [...]. Experimente os saltos Goodyear Wingfoot e verá que diferença fantástica fa-
zem uns poucos centímetros de boa borracha [...] adaptados aos seus sapatos”. O produto
anunciado, a sola de borracha, adentra o espaço destinado ao verbal e tem uma espécie de
halo, que direciona o olhar para a logomarca. Ao lado direito, a narração continua: “O seu
sapateiro fará com que, em cinco minutos, o seu pizo se torne elegante e silencioso” – a
elegância somente será alcançada pelo uso desse produto. Tal anúncio elucida um tipo de
produção artesanal de sapatos, num contexto em que, aparentemente, não havia sapatos
prontos para venda, eram todos feitos sob medida, com sapateiros.
Nos modos de cuidar-se, na figura 92c, nosso olhar inicia seu trajeto pela narração ver-
bal: “Não abandone os esportes”. Utilizando um verbo no imperativo e em negação, “não
abandone”, o anúncio coloca o enunciatário no discurso – o simulacro de enunciatário
construído é de uma mulher ativa e esportista, assim como a tenista que é figurativizada.
Essa tenista traja um vestido branco evasê5 sem mangas, com decote retangular e de cin-
tura baixa, próxima ao quadril; além de uma headband sobre seus cabelos à La Garçonne,
e parece usar um par de tênis. Sua figura é evidenciada por uma forma circular e escura;
segura em suas mãos uma raquete de tênis, e por sua gestualidade, é possível afirmar que
que está encenada em meio a uma partida de tênis – sua raquete e seus pés nos direcio-
nam para a embalagem do produto, o qual, por sua vez, nos direciona ao nome do produto,
Modess, bem como ao texto verbal à esquerda do anúncio, que continua a frase inicial: “[...]
no seu período de indisposição”. O enunciatário pode ser aquela mulher que pratica seus
esportes tranquilamente, mesmo em seus “dias de indisposição”. Trata-se de uma primeira
ocorrência de anúncio de absorvente íntimo feminino, e parece ser um dos primeiros pro-
dutos do gênero disponíveis no mercado. A mulher “moderna” que utilizar esse produto,
poderá praticar esportes e quererá ser vista em seus jogos com seu conjuntinho sport.
Ainda nessa categoria, temos um anúncio que figurativiza um homem e uma mulher
(figura 93d). Um fundo claro direciona nosso olhar para a mulher com seus cabelos curtos,

5  De acordo com o Glossário de Moda, a palavra evasê é: “originária do francês, évasé, refere-se ao corte das
roupas que se abrem na parte inferior, podendo ser feita em calças, saias e vestidos, enviesados ou não”. Dis-
ponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 22 Out 2015.
maquiada, com seu colar de pérolas e vestido sem mangas, enquanto abana-se com seu le- 175
que. O olhar dela se volta para o lado esquerdo do anúncio, nos direciona ao homem, cujo

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


terno se confunde com o fundo escuro – sua calvície é evidenciada, sua feição é tristonha,
e o branco de seu colete nos direciona para baixo. Na parte inferior do anuncio é narrado
verbalmente: “Conquistar-me? Use petróleo Lambert – Evita a caspa, calvice e faz nascer
cabello”. A mulher, tanto por sua gestualidade quanto por sua expressão verbal, desdenha
as aparentes investidas amorosas do homem por causa de sua calvície – o valor da conquis-
ta pela aparência é assim posto para o homem que, calvo, quer não ser visto; quererá, mas
somente após o uso do milagroso petróleo, quando adquirir, nessa narrativa, as compe-
tências para conquistar. Esse aspecto elucida o uso frequente da aspectualidade temporal
enquanto operação discursiva (como no caso da figura 91d em 1920), debreando e embre-
ando ao instaurar um “antes” e um “agora”, o qual seria após a conjunção com o produto.
Passamos aos modos de alimentar-se, iniciando pela análise da figura 93e, na qual te-
mos uma mulher encenada em um momento de preparo de alimentos para sua família –
uma cena similar à do ano de 1910. Iniciamos o trajeto de nosso olhar por ela, seus cabelos
curtos, sua feição alegre e seu vestido, com golas de camisa, que é sobreposto pelo avental.
Sua mão direita segura uma embalagem e despeja seu conteúdo na tigela. Ao seu lado há
uma menina, que parece ser sua filha e observa o preparo – como se estivesse aprendendo
a preparar –, e parece alegre; um ponto de exclamação ao seu lado nos direciona à narração
verbal: “Experimente-a senhora! ”. Mais uma vez, o uso de um verbo no imperativo, como
uma convocação, coloca seu enunciatário no discurso e constrói um simulacro desse: o
anúncio se destina às senhoras, donas de casa e mães de família – um simulacro do papel
social da mulher, cabendo a ela alimentar sua família com a Maisena Duryea, e querendo ser
vista nesse papel. A cena é seguida, verticalmente, por um texto verbal que descreve uma
das receitas de um catálogo que é oferecido, o qual contém fotos das receitas em cores
e que pode ser adquirido ao assinar e enviar o cupom localizado na parte inferior desse
mesmo anúncio.
No segundo anúncio dessa categoria (figura 93f ), somos colocados enquanto obser-
vadores dessa encenação, na qual dois homens e duas mulheres estão sentados à mesa
e apreciando seu jantar. As primeiras têm cabelos à La Garçonne, vestidos de alça mais
soltos e decotados, e os homens vestem seus ternos mais formais. Os actantes sentam-se
à mesa de modo que aparentam constituir dois casais. No verbal é narrado: “Offereçam
sempre aos seus convidados o melhor petisco – tomar todo cuidado que á mesa não falte
o Sal de Mesa Cerebos”; assim, pode-se pressupor que um dos casais recebe o outro para
jantar em sua casa e, na cena, todos se deleitam e encontram-se bem vestidos para apre-
ciar um “belo” jantar.
176 Nos modos de divertir-se, ainda em 1930, a propaganda respectiva à figura 93g anuncia
a Radio-Electrola e o narrador intitula a cena: “Anno Novo e todos os dias do anno”; com ser-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

pentinas e confetes espalhados pelo ar, momentos de uma festa são encenados nas formas
circulares e riscadas dos vinis. Mulheres – maquiadas, adornadas e com vestidos de festa
decotados – e homens – com seus ternos, bigodes e brilhantina –, divertem-se e dançam
ao embalo dos mesmos vinis que são tocados na vitrola elétrica, são pessoas que querem
ser vistas nesse momento de festa e diversão.
Na figura 93h, ainda nos modos de divertir-se, é encenado um jovem casal formado por
um homem e uma mulher. O homem veste um suéter sobre a camisa, calças culotte sob as
meias e uma boina – muito similar à roupa de caça que vimos no ano anterior –; a mulher
traja seu vestido e um casaqueto para proteger-se do vento, perceptível pelo movimento
de seus cabelos curtos. Ele pilota, e eles passeiam com sua bela moto “Harley” pelo cam-
po, em uma certa velocidade e, parecem se divertir. À esquerda da cena é narrado: “Já se
foi o verão – Agora as chuvas e o sol são mais benignos e os caminhos melhoraram. É a
ocasião de gozar os longos passeios de Motocycleta, correr a toda a velocidade, passar por
todos, galgar as subidas mais difíceis sempre correndo [...] Só os que já montaram na Harley
conhecem essas qualidades. Experimente-a também e adopte-a”. É possível notar que os
automóveis ainda eram algo muito recente no país, e o uso de motocicletas para diversão
parece quebrar com o caráter utilitário desses – além disso, a Harley, como é colocada, não
é qualquer moto, ela é adjetivada, valorada, quase como se investida de valores de sujeito.
Nota-se que o procedimento de convocação do enunciatário, de forma mais explicita pelo
uso dos verbos no imperativo, parece cada vez mais recorrente, convocando-o, nesse caso,
a pedir o catálogo pelo cupom e a experimentar as sensações que, de acordo com o anún-
cio, só essa motocicleta poderia oferecer.
Na última categoria analisada, os modos de organizar-se, temos o anúncio do sabão
Lux, um sabão especial para roupas delicadas, na figura 93i. Iniciamos o trajeto do olhar
pelo verbal: “O meio mais seguro de lavar as roupas frágeis!” e seguimos observando a fi-
gura feminina no momento em que lava as roupas à mão; podemos ver que ela veste uma
camisa com gola “V” pregueada e adornada por laços, ainda com mangas amplas e um te-
cido fluido que as deixam soltas – ela lava suas anáguas delicadas –, além disso, sua figura
é colocada sobre um fundo escuro e circular, o qual dá destaque a ela. Após observarmos
essa cena, retornamos para o outro texto verbal narrado: “A espuma maravilhosa de Lux
limpa sem necessidade de esfregar”. Depois desse trajeto circular do olhar, seguimos ver-
ticalmente para a parte inferior do anúncio, com um verbal que indica o modo de uso,
seguido pela logomarca e a embalagem ao lado, encenadas para que sejam reconhecidas
nos locais de compra.
Ainda nos modos de organizar-se, na figura 93j, há um desenho da figura masculina, de 177
maneira caricata: seus cabelos são figurativizados por três fios arrepiados e tem um bigode

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


grande e fino, pequenos olhos, grandes orelhas, dentes pequenos em uma boca grande
e um nariz bem arredondado. Ele veste um terno escuro, mais clássico, camisa branca de
colarinho largo e gravata listrada; pelas proporções de sua boca e sua gestualidade, soma-
das às grandes lâmpadas que o rodeiam, personificadas por rostos e que parecem apreciar
algo, podemos constatar que o homem se encontra em um momento de cantoria. Apenas
seu torso – incluindo braços, mãos e cabeça –, são encenados em meio à “plateia” que o
circunda. Há ainda uma espécie de moldura que passa vertical e horizontalmente por trás
da cena do “concerto”, e a coluna vertical tem seu início na logomarca da empresa que
produz as “Lampadas Edison Mazda”, a GE ou General Electric. As lâmpadas Mazda eram pa-
tenteadas pela GE, possuíam tecnologia inovadora até então, pois produziam uma luz mais
agradável aos olhos por serem “foscas internamente”; é narrado que, com elas, “vêm-se por
toda parte. Para lêr – para escrever – para descançar. Porque a luz suave e calma destas lâm-
padas não cança a vista. São econômicas e duráveis”. Assim, a construção do anúncio nos
faz-sentir essa sensação agradável aos sentidos, o uso das lâmpadas Mazda é tão agradável
quanto apreciar uma cantoria. As novas tecnologias, cada vez mais, permitiam às pessoas a
extensão de seus dias com uma luz artificial, mas confortável aos olhos; a sociedade modi-
ficava-se ao acompanhar – e ser acompanhada – pelo ritmo capitalista.
Nos anúncios de 1930 constatamos uma delimitação muito forte dos papéis sociais de
gênero: ao homem cabe a conquista, e à mulher a sedução; enquanto a eles cabe a diver-
são, a elas cabem, além do divertimento, os papéis de dona de casa, que cozinha, lava as
roupas, alimenta a família e entretém seus convidados. Notamos ainda que há uma estética
muito similar à de 1920, mas nesse ano ela parece mais recorrente e concretizada, com um
uso maior da verticalidade, elementos geométricos, e um modo de composição mais orga-
nizado – no qual os longos textos verbais têm cada vez menos espaço.
Apreendemos, então, os formantes dos planos de expressão e conteúdo que constro-
em o sentido desses discursos:
178 Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

/“démodé”/ vs / “na moda”/


EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
curvo longilíneo
horizontal vertical
orgânico geométrico
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 8: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1930. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade que, são
homologados ao plano de conteúdo por /”démodé”/ e /”na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Esses corpos-moda também elaboram suas aparências pelo modo que se colocam no
jogo de construções da visibilidade. Segue o quadro:
179

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


“em representação” “nas coxias”
querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 9: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1930. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: Produzido pela autora.

Nos modos de visibilidade explicitados acima, apreendemos corpos-moda que se po-


sicionam enquanto corpos que querem ser vistos nas figuras 92a, 92c, 92g, 92h e 92j, pois
já estão prontos a agir e ostentam suas vestes, seja ao passear com sua nova moto, seja ao
ostentar seu look Jean Patou, seja ao estar em uma festa, enfim, representando seus papéis
180 públicos. Em relação de contrariedade com esses anúncios, temos as figuras 92b, 92d e 92f,
nas quais os sujeitos querem não ser vistos, pois estão ainda em estado de falta de algo que
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

precisam para que possam “conquistar a desejada”, ou sem as “silenciosas” solas de sapatos,
ou mesmo encontram-se em um jantar “privado”, do qual somos observadores de sujeitos
que se põem de cotas para nós. Em contradição com essa posição, temos as figuras 92e e
92i, que anunciam corpos-moda femininos em meio aos “afazeres da casa”, como ao cozi-
nhar e ao lavar roupas, tornando público seus papéis privados, “de casa” e não se importam
com a observação, não querendo não ser vistos.

4.2. A construção de aparências na O Cruzeiro

4.2.1. A moda nos modos de anunciar em 1940

Modos de 1940 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a Ausência

Modos de cuidar-se b c
Modos de alimentar-se d e
181

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Modos de divertir-se f g

Modos de organizar-se h i

Quadro 4: figuras 93a, 93b, 93c, 93d, 93e, 93f, 93g, 93h, 93i.

Em 1940 temos anunciado somente os modos de vestir-se femininos, na Figura 93a.


Trata-se do anúncio dos tecidos da Linha Anti-Enrugáveis TOOTAL. No canto superior, à
esquerda, logo nos deparamos com uma pequena cena, na qual a mulher, que traja seu
vestido branco e com saia meio-godê, recebe um troféu entregue por um homem – o
qual veste terno e gravata; logo nos deparamos com uma frase verbal, colocada diago-
nalmente, separando duas cenas: “Jogando com vantagem...”, à essa frase e divisão, é dada
continuidade pelos galhos de uma árvore. Esses galhos estão sobre duas mulheres, em
uma cena na qual uma encontra-se sentada sobre um banco e outra em pé – as duas se
entreolham. A primeira tem os cabelos escuros, médios e meio presos por um laço, rosto
182 maquiado, e veste o que parece ser uma camisa de mangas curtas e uma saia – as dobra-
duras do tecido elucidam um material leve e de caimento fluido. Na região dos ombros há
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

ombreiras – enchimentos acoplados –, que evidenciam e aumentam essa região do corpo


feminino; seu braço esquerdo apoia-se no banco enquanto segura a raquete de tênis, que
ainda é apoiada por sua mão direita. A segunda mulher, em pé, tem seus cabelos loiros e
também médios e meio presos, mas os cachos dão volume nas extremidades e formam
um volumoso topete; seu rosto também está maquiado. Ela veste um blazer6 de alfaiataria
e risca de giz, também com ombreiras e lapela7 com formas pontiagudas, estendendo-
se até a altura de seus quadris, e sob esse, traja um vestido com fechamento frontal por
botões, saia evasê e um cinto que delineia a cintura e a forma de seu corpo – forma que é
reforçada ainda por suas mãos que se apoiam na cintura. No anúncio há ainda um extenso
texto verbal: “O jogo exige atenção... Para jogar bem, despreocupe-se de tudo o que não é
o jogo. Por exemplo, a sua apresentação. Se seu vestido fôr de Linho Tootal, isso lhe será fá-
cil. Linhos Tootal são um tecido anti-enrugável [...]. Não é necessário passa-los diariamen-
te. Desamarrotam-se por si mesmos”; assim, de acordo com essa construção, as mulheres
podem jogar com vantagem na partida de tênis e nos jogos da aparência, querendo ser
vistas nessas roupas “anti-enrugáveis”.
Um fenômeno que se tornou muito popular, principalmente da década de 1940, foi
a venda de modelagens de papel: em tempos difíceis, as grandes marcas internacionais
vendiam a modelagem de suas peças para os países mais distantes, uma nova forma de
exportar. Assim, nesse ano encontramos mais anúncios de tecidos, como o da figura 93a,
e a confecção das roupas provavelmente cabia às próprias leitoras ou mesmo às peque-
nas costureiras. Nesse ano não há anúncios de corpos-moda masculinos na categoria mo-
dos de vestir-se; talvez seja possível relacionar tal ausência a um momento de guerras que
geravam tensão e provocavam uma escassez de materiais e produtos importados – que
compunham a maior parte dos produtos de vestuário no mercado nacional. E mais ainda,
é possível que a vaidade masculina não fosse tão bem vista nos momentos de guerra; não
que não houvesse, mas como sempre fora algo muito mais relacionado ao papel social
feminino, é possível que aos homens fosse considerado algo “excessivo” em tempos de es-
cassez – averiguaremos tal hipótese.

6 O Blazer é um “tipo de casaco de caráter formal usado em conjunto ou como peça individual. O nome deriva
do inglês ‘to blaze’, que significa ‘sobressair, figurar’, pois originalmente [...] era confeccionado em tecidos lis-
trados e chamativos, sendo utilizado por homens desde o final do século XIX. A partir dos anos 1920, passou
a ser adotado também pelas mulheres, que os combinavam com saias de prega, camisas e gravatas”. Infor-
mações retiradas do site Glossário de Moda. Disponível em: <www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em:
05 Jun 2015.
7  De acordo com o Glossário de Moda, a lapela refere-se à “parte frontal de uma blusa, próxima ao pescoço,
virada para trás ou dobrada sobre si mesma. Presente em casaco, vestido ou paletó”. Disponível em: <<www.
glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 05 Jun 2015.
Nos modos de cuidar-se, na figura 93b, temos um anúncio intitulado verbalmente: “A 183
corpulencia exaggerada é um martyrio”; logo abaixo, uma encenação, primordialmente

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


horizontal, que ocorre em uma praia – pois são presentificados a água do mar e um hori-
zonte “infinito” – cujo ponto focal é uma figura feminina que traja seu maiô estampado e
com cintura demarcada, além de uma touca de banho da mesma estampa, a qual cobre
seu cabelo curto. Ao redor dessa mulher há três figuras que caminham à beira do mar: duas
mulheres que também vestem seus maiôs e toucas sobre os cabelos curtos combinando,
seguram cangas em suas mãos e calçam sapatilhas de praia – ambas apontam para a mu-
lher centralizada com gestos de escárnio; o homem, mais afastado do enunciatário tem
seu corpo desenhado de maneira mais caricata, com músculos bem definidos e uma sunga
escura – está parado com as mãos apoiadas na cintura e tem feições de alguém que dá ri-
sadas. Enquanto isso, a mulher centralizada tem seus pés afundados na areia fofa, próxima
ao mar, e parece tentar tirá-los de lá, suas feições elucidam uma tristeza e/ou frustração em
meio ao escárnio das pessoas ao seu redor: é o “martírio” de um sujeito fora dos padrões
corpóreos estabelecidos, o qual não pode frequentar a praia e se divertir, pois seu peso,
considerado excessivo, o faz afundar na areia. Abaixo da cena, é narrado:

As pessoas excessivamente gordas podem ser consideradas fóra não só das leis de Hy-
giéa, a festejada rainha da medicina na Mythologia grega, como do código moderno
do bello aplicado á Arte. E a advertência constante a respeito desta má situação se faz
sentir nas ruas, nos auto-onibus, nas praias de banho, por toda parte, enfim, victimas
que são de olhares indiscretos, irônicos, e até de comentários mordases dos que se
divertem com os males alheios [...]. Valha, porém, a atividade frutuosa da sciencia que
apresenta aos martyres da adiposidade o generoso ‘Leanogin’, composto de extractos
[...] que exerce accção eficiente na extinção da gordura pathologica [...].

Estar fora desses padrões seria até mais do que um martírio, seria estar fora das “leis” do
“belo”, e essas pessoas seriam “vítimas” constantes dos “olhares indiscretos, irônicos” e dos
“comentários mordazes” – dessa maneira afirmam que, quem não quer sofrer essa discri-
minação devido à “gordura patológica”, deve adaptar-se aos padrões estabelecidos e ema-
grecer utilizando o produto anunciado. Ainda de acordo com essa encenação, só dessa
maneira a senhora poderá frequentar a praia e vestir seu maiô sem “constrangimentos”.
Na figura 93c temos anunciado um mesmo produto em uma construção muito similar,
mas numa encenação diferente da anterior. Nesse caso, o verbal “Os gordos não podem ser
elegantes” intitula a cena, e logo abaixo, há um homem que veste um chapéu que parece
pequeno em sua cabeça, um paletó com lapela pontiaguda e larga, camisa e gravata sob o
colete – meio desabotoado –, e uma calça de alfaiataria com vinco, um traje completo do
homem “elegante” em 1940; no entanto, suas roupas parecem apertadas e nem mesmo seu
paletó está abotoado. Esse homem tem feições tristes ao observar a vitrina, um pouco mais
acima de si, a qual encena um manequim masculino – acompanhado de outros elementos,
184 como um busto que exibe uma gravata – e esse traja as mesmas peças, que parecem ter
melhor caimento nele, com o paletó abotoado. A cena da vitrina é assim colocada enquan-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

to um simulacro do homem elegante, o qual, de acordo com o anúncio, o sujeito não pode
ser caso não emagreça – o homem da vitrina é um objetivo de aparência a ser alcançado
pelo sujeito “gordo”. Ao fundo da cena há ainda uma mulher, que usa um pequeno chapéu,
uma regata e uma saia mídi – parecendo de acordo com os padrões da aparência vigentes
–, e ela parece rir e zombar do homem desgostoso de sua aparência. Assim como no último
anúncio há um texto verbal logo abaixo dessa ilustração:

As pessoas excessivamente gordas estão privadas de innumeros prazeres, accessí-


veis até ao mais humilde dos mortaes. A destreza de movimentos, os encantos ca-
racterísticos da juventude, a esbelteza, etc., todos estes attractivos desapparecem e
ficam afogados nos tecidos adiposos. O physico deformado pela gordura constitue
um permanente e inquisitorial supplício. As victimas da gordura só podem conhecer
roupas bem talhadas e de bom aspecto no corpo alheio e nos manequins. A situação
anormal do gordo precisa, portanto, ser combatida quanto antes, porque, além de
o collocar ingratamente aos olhos da sociedade, representa uma constante ameaça
para sua saúde.

Toda a encenação é, portanto, verbalizada nesse parágrafo acima. Termos como “físico
deformado” são destinados a esses homens que são considerados “fora” dos padrões do
manequim. De acordo com o anúncio, somente um homem com um mesmo tipo físico
desse manequim, pode vestir roupas “bem talhadas e [que fiquem com um] bom aspecto
no corpo”. Os ditos “gordos” seriam, então, mal vistos por não conseguirem “vestir bem”
seus trajes, sendo julgados pela sociedade, a qual fora representada pela moça ao fun-
do (a que zomba do homem “gordo”). A mulher fora do peso sofre o martírio nas praias,
enquanto o homem passa por suplícios nas ruas, ambos são culpabilizados por isso, e de
acordo com o anúncio, são privados de “inúmeros prazeres” que só a “esbelteza” permitiria;
em ambos, somos colocados tanto enquanto esses observadores-julgadores, parte dessa
sociedade, quanto numa possível identificação com o martírio ou o suplício do sujeito. O
enunciador, após valorizar negativamente o ser e o saber do sujeito “gordo”, doa outro saber
de que sem o peso “ideal” não há como viver a vida com alegria e nem como vestir-se bem.
E o Leanogin, o remédio para emagrecer, teria as competências para que o sujeito realize
sua performance, de perda de peso e consequente mudança de estado, sendo assim san-
cionado positivamente pela sociedade, seu destinador-julgador.
Nos modos de alimentar-se temos as figuras 93d e 93e, ambas são anúncios de bebidas
alcoólicas, e tanto um quanto outro são desenhos impressos na cor azul sobre o fundo bran-
co do papel couché da contracapa. No primeiro temos encenado um corpo-moda feminino,
enquadrado por sua face e colo; adentramos a cena pelas penas (que se assemelham a asas)
que adornam o chapéu bretão8 e faixas que criam uma grande espacialidade horizontal so- 185
bre a cabeça feminina, ainda que colocado de maneira inclinada sobre o rosto, gerando uma

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


leve diagonalidade. Seus cabelos estão presos, mas evidenciam alguns cachos, seu rosto é
maquiado e suas sobrancelhas são bem finas e delineadas; podemos notar que ela traja um
casaqueto ou um blazer com as abas/lapelas levantadas, bem como um lenço que protege
e adorna seu pescoço. Ela desvia o olhar de seu enunciatário, mas esbanja um sorriso, não se
importando com a observação; sua gestualidade e posicionamento do chapéu leva nosso
olhar para um retângulo que contém um texto verbal: “O insignificante teôr alcoólico e o
esmero de sua fabricação fazem desta cerveja, de delicioso sabor e de alto valor nutritivo,
uma das bebidas mais recomendáveis para todas as edades. Em quarto de garrafa, melhor
se adapta á elegância feminina”, trata-se da “Malzbier da Antarctica”, a qual tem seu nome
escrito em uma tipografia sombreada e com serifas pontiagudas. Essa cerveja é de um tipo
escuro, doce, com açúcar queimado ou caramelo em sua composição, e por seu baixo teor
alcoólico e por essa doçura, é popularmente conhecida como uma cerveja “feminina”, vol-
tada para mulheres e até mesmo crianças, pois dificilmente causa embriaguez – algo que
parece ser considerado impróprio às mulheres, tanto que a pequena garrafa anunciada é
descrita como adaptada à “elegância feminina”. Por toda essa composição, o olhar faz um
trajeto retangular sobre a encenação.
Na figura 93e nos deparamos com um anúncio que ocupa uma página inteira, mas a
cena é delimitada por um retângulo menor que a página. O olhar adentra tal cena pelo ver-
bal que denomina o produto anunciado: “Gin Dubar – extra seco”, na cor branca sobre um
fundo azul. Logo vemos uma figura masculina que sobrepõe essa construção verbo-visual,
assim observamos seu cabelo penteado e brilhoso, um olhar oblíquo e um largo sorriso; ele
veste um paletó, uma camisa de colarinho quebrado e uma gravata borboleta, e há ainda,
no lado direito do anuncio e sobre seu paletó, a logomarca da Antarctica, assimilando-se a
um broche. Seguindo o trajeto, notamos que ele segura uma bandeja em suas mãos que
contém a garrafa do Gin Dubar e um copo que contém o mesmo líquido, e logo abaixo,
tem-se uma mesma construção verbo-visual que narra: “O segredo de um bom cocktail”.
Parece ser um garçom literalmente “do bar”, que faz um trocadilho com o nome da bebida,
e esse garçom está servindo o “bom cocktail” para seu “cliente”, no qual o segredo é o uso
desse gin como ingrediente. Tal construção cria blocos horizontais pelos quais o olhar do
enunciatário realiza seu trajeto.
Passando aos modos de divertir-se, temos a figura 93f, um anúncio da revista A Cigarra,
o qual vimos anteriormente [no capítulo Moda (Re)vista no Brasil]. A cena é intitulada em le-

8  O chapéu bretão, de acordo com o Glossário de Moda, é um tipo de “chapéu feminino que tem como principal
característica a copa proeminente redonda e abas médias viraras para cima. Seu nome deriva do povo Bretão,
localizado na região de Brittany, na França”. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em:
05 Jun 2015.
186 tras garrafais: “Fantasmas...”, na cor branca sobre um fundo preto, e logo abaixo é encenada
uma figura fantasmagórica, uma caveira coberta por mantos, que percebemos ser translú-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

cida, pois há um quadro preso à parede (fundo escuro), que mesmo estando sobreposto
pela figura, podemos vê-lo inteiro. Essa figura fantasmagórica observa a figura feminina,
sentada sobre uma poltrona de estampas florais enquanto lê a sua edição especial de A
Cigarra dedicada a histórias ficcionais sobre fantasmas; ela traja um vestido de cor coral e
acetinado, o qual, pelo caimento, parece feito com um tecido fluido, que tem ainda uma
manga bufante e bem estruturada que evidencia a região dos ombros. Está maquiada e
seus cabelos têm cachos também estruturados, são castanhos e médios, e estão meio-pre-
sos em espécies de “rolinhos” que formam topetes e são presos por um laço da mesma cor
do vestido; seus sapatos são na cor coral e brilhosos como o tecido – ela está pronta para
ler, observar e ser observada, corpo a corpo, pois a própria temática da revista está ali figu-
rativizada e observando-a. Essa mulher encontra-se sentada de forma descontraída, com
as pernas sobre o braço da poltrona, no entanto, essa presença fantasmagórica, assunto da
revista que lê, é sentida, tanto que suas feições e a posição de seus ombros demonstram
que ela está apreensiva, com medo.
Ainda nos modos de divertir-se, na figura 93g temos uma encenação de um Torneio
Medieval, também chamado de Justa, uma competição de cavalaria como forma de entre-
tenimento para as populações. Nesse torneio, os cavaleiros medievais montados em seus
cavalos e segurando lanças correm um contra o outro, a fim de derrubar o adversário do
cavalo com um golpe. Essa cena é retratada no desenho, no momento em que os cavalei-
ros, trajando suas armaduras, estão prestes a se enfrentar. Tal cena é assistida pela realeza,
homem e mulher que usam suas coroas e trajes de época, e estão no que parece um ca-
marote, assistindo ao torneio com exclusividade, sentados em seus tronos adornados. No
canto inferior direito, logo abaixo dessa cena, há uma carteira de cigarros, são os cigarros
Elmo, o mesmo nome do capacete dos cavaleiros, o qual é ilustrado na embalagem do pro-
duto, fabricado pela CIA SOUZA CRUZ. A construção dessa marca, portanto, abarca valores
como a valentia, a exclusividade, a nobreza e virilidade masculinas – os fumantes do cigarro
Elmo seriam valentes como os cavaleiros e nobres como o Rei, e investidos desses valores,
quererão ser vistos ao fumar os seus cigarros.
Nos modos de organizar-se temos anunciados os serviços do salão de beleza de Elizabe-
th Arden, na figura 93h. O olhar inicia seu trajeto pela cena na qual uma figura feminina, de
cabelos presos com um penteado feito com os mesmos “rolinhos” da Figura 93f, e podemos
notar que ela veste um blazer, com ombreiras que aumentam e evidenciam a região dos
ombros. Essa mulher está dirigindo um carro conversível, e algumas formas não identificá-
veis, atrás dela e de seu carro, demonstram que ela está em movimento – esse passeio é
intitulado como se fosse um dos “Dias Brilhantes”, e é seguido do verbal:
Nos bélos dias de verão, brilhantes de luz e de sól, um céu límpido e eternamente azul,
187
torna sempre mais animada a nossa vida. Não devemos perder as lindas tardes, os pas-
seios e as excursões, receiando prejudicar a tez. Um tratamento nos Salões de Elizabeth

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Arden, no Rio, em S. Paulo ou em Petrópolis, suavisa a péle irritada, aveluda a cútis que
ficou áspera e faz desaparecer as manchas causadas pelos raios solares.

A mulher encenada, então, está vivendo um dos “belos dias de verão” sem preocupar-
se com sua pele, pois o tratamento que fará depois nos “Salões de Elizabeth Arden” deixará
sua pele como nova e fará “desaparecer as manchas causadas pelos raios solares”, queren-
do, assim, sempre ser vista em seus passeios à luz do sol. Esse verbal é seguido da assinatu-
ra de Elizabeth Arden. Cada uma dessas partes que compõem o anúncio delimitam blocos
horizontais de leitura e o olhar segue cada um desses blocos, de cima para baixo.
No último anúncio analisado em 1940 (figura 93i), ainda nos modos de organizar-se,
um eletrodoméstico é anunciado. Adentramos a cena pelo verbal na cor branca sobre um
fundo de cor preta – como um balão de fala com extremidades pontiagudas –: “Porque é
diferente o Frigidaire”, parece uma fala do senhor que se posta à esquerda do anúncio, com
aparência muito similar à do garçom na figura 93e, cabelos cheios, penteados e brilhosos,
bigode aparado e um sorriso amigável, trajando um paletó, camisa e gravata – parece ser
o vendedor que está exaltando as qualidades do produto, em busca da realização da com-
pra. A qualidade do produto que exalta vem a seguir, como uma fala que vai do interlocu-
tor (vendedor à esquerda) ao interlocutário (consumidora à direita): “Paredes refrigeradas”,
esse é o diferencial que o vendedor evidencia à sua cliente, para que ela escolha essa marca
de refrigerador e não outra. A consumidora está de perfil para o enunciador e tem cabelos
presos, num mesmo penteado que formam rolinhos de cabelos como topetes, e está ma-
quiada; por suas feições parece ter se surpreendido pela nova tecnologia do refrigerador
que lhe é apresentado. Essa figura feminina é um simulacro do enunciatário desse discurso,
uma mulher, provavelmente dona de casa e que está preocupada com a conservação dos
alimentos em sua casa. Isso é reiterado no verbal, abaixo de sua figura:

A senhora pode guardar os alimentos a descoberto, os legumes não perdem o seu viço
natural, os alimentos mantêm a côr e o sabôr originais, os valores nutritivos permane-
cem inalterados... eis porque é diferente o Frigidaire Paredes Refrigeradas! Examine, no
Agente Frigidaire mais próximo, este sistema exclusivo e sensacional. Ele lhe explicará o
funcionamento surpreendente desta inovação Frigidaire, considerada a maior conquis-
ta da indústria de refrigeração doméstica, nestes últimos 25 anos!
Agora, mais do que nunca, não confunda o FRIGIDAIRE com qualquer outro refri-
gerador.

Nesse verbal, o vendedor, que seria um “Agente Frigidaire” especifica as qualidades


desse refrigerador e por que esse é um produto diferenciado: trata-se de um refrigerador
com dois compartimentos, um mais comum e outro, o compartimento com “paredes re-
frigeradas”, que mais tarde conheceremos por congelador. Esses dois compartimentos, ou
188 os “2 refrigeradores em 1”, são demonstrados no canto inferior esquerdo, por um desenho
que encena o produto e uma figura feminina, a qual veste uma saia evasê, uma blusa com
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

mangas curtas com o ombro evidenciado, e tem os cabelos meio presos, da mesma forma
que vimos nos anúncios anteriores. Essa figura é colocada ao lado do refrigerador, e com
sua gestualidade aponta as qualidades diferenciais do produto.
No desenvolver dessas análises, vimos que todos esses anúncios de 1940 são figurati-
vizados por desenhos, e não fotografias. Isso talvez se deva, ainda, a poucos investimentos
financeiros dos destinadores privados ao construir suas propagandas, ou mesmo a uma
dificuldade de retratar, em fotografias, certo caráter lúdico desses anúncios, brincando com
possíveis situações “reais” ou encenando situações fictícias, ao encarnar por esse modo de
expressão um efeito menor de dizer verdadeiro, em comparação com as fotografias. No-
tamos também que o valor do estar em grupo é cada vez mais axiologizado nessas cons-
truções, nas quais vivenciar experiências prazerosas é reiterado, como ao jogar tênis, ao
passear durante os dias de sol, ao ler uma revista, frequentar a praia, etc. Compondo uma
dinâmica de visibilidades cada vez mais complexa entre esses corpos-moda em interação.
Apreendemos, portanto, os formantes dos planos de expressão e conteúdo que cons-
troem o sentido desses discursos, compondo as aparências dos corpos-moda. São assim
sistematizados os dois planos, de expressão e conteúdo:

Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
/“démodé”/ vs / “na moda”/
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO

arredondado pontiagudo
vertical horizontal
circular retangular
CONTEÚDO

CONTEÚDO

/arcaico/ /moderno/

Esquema 10: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1940. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade, que são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.
Da mesma forma, esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se 189
colocam no jogo de construções da visibilidade. Para explicitar essas relações, elaboramos

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


o seguinte quadro:

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 11: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1940. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: produzido pela autora.
190 Dentre esses modos de visibilidade, apreendemos corpos-moda que se posicionam
enquanto corpos que querem ser vistos, nas figuras 93a, 93d, 93e, 93f, 93g e 93h, pois já
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

estão prontos a agir e ostentam suas vestes, representando seu papel público, seja em uma
partida de tênis, seja quando ornam-se para estar junto a um corpo-revista. Em relação de
contrariedade com esses, temos as figuras 93b e 93c que figurativizam corpos-moda que
querem não ser vistos, pois com sua “corpulência exagerada”, agem com pudor por não se
encaixarem na aparência do corpo em voga, sem poder se vestir “bem” para estar em locais
públicos. Em contradição a esse, na figura 93i, são postos corpos-moda que não querem não
ser vistos, pois estão realizando suas atividades num momento de convencimento do con-
sumidor a concretizar seu ato de compra, publicizando suas ações relativamente privadas.

4.2.2. A moda nos modos de vida em 1950

Modos de 1950 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d
Modos de alimentar-se e f
191

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Modos de divertir-se g h

Modos de organizar-se i j

Quadro 5: figuras 94a, 94b, 94c, 94d, 94e, 94f, 94g, 94h, 94i, 94j.

Nos modos de vestir-se, em 1950, temos o anúncio de roupas íntimas femininas (figura
94a); o trajeto do olhar inicia-se pelo lado superior esquerdo e segue um caminho levemen-
te diagonal, mas predominantemente vertical, até a parte inferior esquerda do anúncio. No
início, seu rosto – maquiado – está voltado para baixo, desviando da luz que a alcança de
cima para baixo, e também do olhar do enunciatário, como em sinal de “pudor”; seus cabe-
los são médio-longos, loiros, cacheados e muito volumosos, refletindo parcialmente a luz
que dá destaque às suas ondas. O olhar continua por seus ombros e braços, os quais pare-
cem apoiados no lugar onde ela encontra-se sentada. Esse movimento cria formas curvas
abertas, contrária às curvas afinadas de sua cintura; ela veste um sutiã com recortes ana-
192 tômicos e uma cinta/saiote modeladora do corpo feminino – trata-se d’A Cinta Moderna,
uma versão “moderna” de constritores e modeladores do corpo feminino, que evidencia
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

suas curvas – agora mais magras depois dos produtos emagrecedores. O fundo escuro da
fotografia contrasta com a luz que é jogada sobre seu corpo e com o branco de sua lingerie,
evidenciando ainda mais essas curvas; a tipografia do nome do produto, na parte inferior
da imagem, remete a essas curvas.
Na segunda imagem, a figura 94b, ainda nos modos de vestir-se, temos uma fotomon-
tagem que encena um homem e uma mulher; o olhar começa seu trajeto pela parte supe-
rior da página, com o verbal na cor preta sobre o fundo branco: “Você não come gato por
lebre...”, seguido por um pequeno desenho de um gato preto e uma lebre branca. Trata-se
de um ditado popular em que, na sua construção utiliza o verbo “comer” ao invés de “com-
prar” – como conhecemos popularmente –, mas pode-se interpretar da mesma forma, pois
se refere à compra de algo que se pensa ser de uma boa qualidade, mas que não é. O olhar
continua seguindo a forma vertical do farol fotografado – é o reconhecido Farol da Bar-
ra em Salvador, na Bahia –, assim seguimos por sua arquitetura e pelo recorte circular da
imagem, que remete ao corte de uma tesoura de tecido e, chegamos ao casal, que passeia
sorridente. O homem usa um terno branco, que parece de um tecido leve, ornado com uma
camisa branca, uma gravata preta e um sapato branco, e segura em suas mãos uma máqui-
na fotográfica, para registrar as lindas paisagens de seu passeio; a mulher veste uma camisa
branca de mangas curtas e lapela grande, uma faixa na cintura, uma saia mídi branca com
uma padronagem9 de arabescos bordada, a qual deixa os tornozelos e parte das canelas à
mostra, e assim podemos observar seu sapato branco de salto e com amarrações no tor-
nozelo – suas roupas também parecem de um tecido leve. Seu pé esquerdo aponta para
o verbal: “quando comprar linho especifique – LINHO IRLANDÊS”, sendo assim, de acordo
com o anúncio comprar outro linho que não seja da marca Linho Irlandês – o mesmo que
veste os atores da encenação –, seria comprar “gato por lebre”. O nome da marca está em
caixa alta e em itálico sobre um retângulo verde, que remete ao verde do gramado do farol;
logo abaixo há ainda um pequeno texto verbal:

Os baianos sabem resistir aos dias de calor, e por isso vestem Linho Irlandês. Sim, mes-
mo nos dias mais quentes, os ternos e vestidos de Linho Irlandês fazem de quem os usa
modelos de elegância e de bom gosto. [...] é o aristocrata dos linhos – pela sua queda
elegante... e por jamais perder o frescor [...]. Quem sabe vestir-se10, veste Linho Irlan-
dês... que custa menos porque dura mais.

9  A padronagem refere-se às repetições de padrões nos tecidos, seja por estampas, seja trabalhada na própria
construção do tecido na tecelagem. Informações retiradas do site Glossário de Moda. Disponível em: <<www.
glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 06 Jun 2015.
10  Grifo nosso.
Uma linha na cor preta sai pelo lado esquerdo desse texto, e sobre ela são colocados 193
alguns modelos de camisas masculinos e femininos feitos com esse tecido – é a linha de

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


produtos e cores disponíveis. O enunciatário é colocado numa narrativa de manipulação
por sedução, pois, se ele utilizar esses produtos, terá as competências de saber vestir-se,
do saber compor sua aparência, com produtos leves e adaptáveis ao clima das sociedades
“quentes”. A cena é finalizada por uma moldura com as flores de linho desenhadas e a logo-
marca da “The Irish Lien Gold – Associação produtora de Linho Irlandês”.
Passando à próxima categoria, aos modos de cuidar-se, na figura 94c, o olhar adentra
a cena pelo verbal: “É linda...” e a tipografia em itálico junto às reticências nos direciona
para o rosto desenhado da mulher que é encenada, ela é o sujeito adjetivado. Seus cabelos
curtos são penteados de forma a deixá-los volumosos e com formas orgânicas. Ela sorri e
está maquiada com rímel, blush e um batom vermelho; está sentada sobre um sofá de cor
coral e que tem formas arredondadas e uma moldura de arabescos. Ela traja um vestido
azul claro e brilhoso – que pode ser de seda ou cetim –, com tipo de decote princesa11, de
formas arredondadas e pregas centrais que evidenciam seu busto. O vestido tem ainda
pequenas alças laterais que se prendem aos braços por laços – trata-se do decote ombro a
ombro junto ao decote princesa; é bem ajustado à cintura e abre-se numa saia meio-godê;
em seu braço direito usa uma pulseira de brilhantes, e apoia-o no braço do sofá, enquanto
seu braço esquerdo segura um leque branco e adornado. Atrás dela nota-se uma echarpe
com textura de pele animal. Seu rosto e seu olhar estão voltados para o lado esquerdo do
anúncio, nos levando de volta ao verbal que continua: “e lindo é seu sorriso porque usa Ges-
sy – perfuma o hálito e clareia os dentes!”, seguido por uma pequena fotografia quadrada e
em preto e branco, de um rosto feminino e sorridente muito similar ao da mulher encenada
no desenho, trata-se da modelo “real”, possivelmente uma estrela do cinema. Abaixo dessa
fotografia segue uma ilustração da embalagem do creme dental Gessy, que tem um azul
similar ao do vestido desenhado, e é colocado de forma levemente diagonal, reiterando a
diagonal formada por suas pernas cruzadas.
Na figura 94d, ainda nos modos de cuidar-se, temos uma construção similar para anun-
ciar uma água de colônia masculina; a leitura se inicia pelo verbal: “Aristocrático encanto...”,
em letra cursiva e em negrito, seguido logo abaixo por “a fragrância de primavera!”, em
letras de fôrma e sem serifas. Ao lado direito da página é encenada uma figura masculi-
na de perfil. Podemos notar seu cabelo meio ondulado e penteado para trás, e também
meio grisalho, dando-nos indícios de sua idade mais madura; ele veste um paletó cinza
e riscado que encontra-se abotoado, camisa branca e gravata azul, ornando-os com uma

11  O decote princesa, de acordo com o Glossário de Moda, é um tipo amplo que acompanha o desenho do
busto e assemelha-se ao formato de um coração. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Aces-
so em: 05 Jun 2015.
194 calça também cinza, e segura um chapéu branco em suas mãos. Esse homem tem o olhar
voltado para a mulher ao seu lado, e essa tem seus cabelos curtos e louros, com alguns
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

cachos; parece ignorar o olhar conquistador do homem, mas mantém uma gestualidade
sedutora, quase em “pudor”. Ela encontra-se sentada, usa maquiagem em tons rosados e
coral, brincos e colares de pérolas, um vestido de cor rosada, mas com certa transparência
no tecido que é estruturado, parecendo-nos uma organza. Tal tecido permitiu formar uma
espécie de “capuz” bem estruturado que envolve sua figura como uma áurea; o vestido
tem um decote enviesado, volumes e pregas que formam mangas bufantes, é ajustado até
a cintura e abre-se depois num volumoso godê. Na composição ele é ornado com longas
luvas cinza, de cor similar ao terno do homem, e a actante segura um ramalhete de flores
de lavanda em uma de suas mãos. Quando ela desvia seu olhar, nos direciona para o verbal,
à esquerda do anúncio:

Um toque de impecável correção britânica para sua elegância. English Lavender Ati-
kinsons é insinuante e juvenil... envolvente como a própria primavera... / Criada da In-
glaterra com finíssimas essências e terminada de elaborar no Brasil. English Lavender
Atikinsons é a legítima lavanda inglêsa.

O frasco da lavanda é desenhado e colocado de forma levemente diagonal, seguindo


logo o verbal mencionado, tem tons de amarelo e laranja, e ao seu redor há algumas flores
de lavanda, bem como seu preço de compra logo abaixo. Esse movimento diagonal leva
ao nome do produto, English Lavender, em letra cursiva e na cor preta, seguido por Atkin-
sons, em letras de fôrma, caixa alta e na cor rosa; abaixo desse tem-se o verbal que adjetiva
o perfume: “refrescante como as brisas matinais”, com alguns produtos da linha também
anunciados. A lavanda inglesa, assim, proporcionaria a elegância “britânica” e “aristocrática”,
e seria “insinuante e juvenil”, assim como a figura feminina que é encenada. Essa, então,
nos faz sentir que já possui todas as qualidades da colônia, inclusive o aroma das flores de
lavanda que segura em suas mãos, seria a própria colônia com a qual o homem “flerta” e
com a qual quer envolver-se.
Passando aos modos de alimentar-se, na figura 94e temos encenado um desenho de
uma figura feminina no momento de seu banho, pois seu corpo desnudo está coberto por
espuma de sabão e ela parece querer escondê-lo do enunciatário; seu cabelo está preso
por uma faixa enlaçada – seu rosto está maquiado e suas unhas pintadas – e sua cara é de
espanto ao perceber que não sai mais água do chuveiro, do qual só caem algumas gotas:
acabou a água. Logo abaixo da cena, o verbal: “Está faltando o melhor... / quando falta às
suas refeições / MALZBIER DA BRAHMA”, a mesma cerveja doce e escura anunciada em
1940. A cena nos faz sentir a frustração de não poder terminar um banho, a mesma sensa-
ção de uma refeição incompleta sem a bebida anunciada, “um elemento básico” nas refei-
ções, assim como a água é essencial para o banho. No canto inferior esquerdo é encenado 195
um exemplo dessa refeição “completa e equilibrada”.

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


No segundo anúncio dessa mesma categoria, na figura 94f, temos vários desenhos que
compõem a cena; a leitura se inicia pela cena maior, enquadrada num espaço retangular e
horizontal, no qual quatro homens, trabalhadores braçais, carregam algumas sacas ao tirá
-las do vagão do trem. Eles vestem roupas simples, como calças comuns, regatas, camisas,
macacões e boinas, têm corpos musculosos e torneados. Nosso olhar segue uma leitura da
esquerda para a direita, o mesmo trajeto realizado por eles ao carregar as sacas; o segundo
homem, centralizado na imagem, é o único que direciona o olhar ao enunciatário, demons-
trando confiança no que faz. Abaixo da cena, o verbal:

É uma bebida tão agradável a todos porque Coca-Cola só emprega o puríssimo Açúcar
Brasileiro / Um requinte de pureza! A indústria local de Coca-Cola só emprega o pu-
ríssimo açúcar brasileiro. Milhares e milhares de toneladas de açúcar, consumidas por
Coca-Cola nestes últimos anos, destacam sua contribuição para o desenvolvimento de
nossa indústria açucareira. Dessa íntima correlação da indústria local de Coca-Cola com
outras indústrias locais, evidencia-se sua importância para nossa economia. Coca-Cola
mantem um intercâmbio de interesses tão vasto e com tantas pessoas que todos po-
dem dizer: é a nossa indústria de Coca-Cola!

Tais afirmações são seguidas por três pequenas cenas, no mesmo formato da principal,
que procuram elucidar todos esses benefícios da implementação dessa empresa estran-
geira no país. Ao empregar o açúcar brasileiro para a produção local, ela diz empregar,
também, diversos trabalhadores brasileiros, os quais são encenados com seus diversos tra-
jes e uniformes – tanto homens quanto mulheres –, no caminho do trabalho, nas fábricas
de embalagens no Paraná e na fábrica da bebida, compondo toda uma rede de mercado
e industrial que a empresa diz ter proporcionado ao Brasil: “Toda uma Industria Local se
beneficia, quando uma indústria local prospera!”; assim, o anúncio nos faz crer que beber
Coca-Cola é incentivar a criação de novos empregos e de empresas locais, ajudando o país
a “prosperar”.
Passamos à próxima categoria, dos modos de divertir-se em 1950. A figura 94g anuncia
o “desfile” dos novos modelos de rádios e vitrolas da Philco, lançamentos já do próximo
ano, 1951. O anúncio ocupa duas páginas, é composto por um fundo preto e chapado
sobre o qual são colocados elementos brancos, criando um forte contraste, e a noção de
profundidade nos é dada pela relação proxêmica entre os elementos que compõem o
anúncio. Estão mais próximos do enunciatário três novos produtos sobre retângulos bran-
cos: na primeira página, os dois produtos menores são dispostos de maneira mais “des-
pretensiosa” em seus “desfiles”, e em posições levemente diagonais, ambos são ilustrados,
nomeados e descritos; atrás de cada um deles, sobre um fundo branco, são desenhadas
196 duas silhuetas femininas. A mulher mais à esquerda veste uma camisa feminina de man-
gas curtas, com bolsos laterais e uma saia lápis mídi, sapatos de salto, e podemos ver que
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

ela tem os cabelos curtos; à direita, a outra mulher traja um chapéu de abas largas – talvez
um bretão –, um colar, um vestido com gola marinheiro e cintura marcada, que tem ainda
camadas pregueadas, e podemos ver apenas seus sapatos de salto. Na página direita é
exibida a ilustração da grande electrola, também nomeada e descrita verbalmente, e a
figura feminina encenada atrás se aproxima do enunciatário, tanto por estar um pouco
maior, proporcionalmente, em relação às outras mulheres da cena, como por apoiar suas
mãos sobre o retângulo branco que emoldura a electrola; essa actante veste uma camisa
de mangas compridas, com uma gola larga e pontiaguda, luvas, uma saia evasê – cujo
comprimento não podemos confirmar –, bem como um cinto para marcar a cintura, colar
de pérolas, brincos e um tipo de chapéu que nos parece um modelo atualizado do cha-
péu bicorne – o famoso modelo utilizado por Napoleão Bonaparte. Nessa encenação, os
modelos de rádios são personificados pelas modelos mulheres, pois também desfilam:
roupagem e tecnologias “novas” que são apresentadas ao público, tomando para si va-
lores que são, normalmente, incorporados nos desfiles de moda: novidade, elegância e
requinte – a “última moda” dos rádios e das roupas.
No segundo anúncio dos modos de divertir-se temos a figura 94h, na qual nosso olhar
adentra a cena pelo verbal: “O presente que permanece na lembrança”, seguido, logo abai-
xo e à esquerda, por:

Para a grande festa do lar, esperada o ano inteiro, escolha o presente que se recorda
a vida inteira: Discos RCA Victor. Todas as vezes que eles se traduzirem em som, a sua
lembrança reviverá em harmonia e beleza. [...] aqueles que formarão o seu presente
inesquecível de 1950.

Assim, podemos observar a cena que ilustra a “grande festa do lar”, trata-se de uma das
festas de fim de ano, o Natal, representado pelo pinheiro adornado, a típica árvore natalina
– mesmo que não seja regionalmente típica em muitas áreas do país. Da ponteira aos am-
plos galhos do pinheiro, somos levados a observar um homem e uma mulher que parecem
apreciar a música que é tocada no aparelho, com os “Discos RCA Victor”, aparelho esse que
se assemelha muito à electrola da Philco. O homem está em pé, à esquerda, e observa seu
tocador de discos, vestindo um terno e sapatos, todos brancos, e usa uma gravata borbole-
ta preta – trata-se realmente de um traje de festa; enquanto a mulher se encontra sentada
à direita, com um vestido tomara que caia muito similar ao da figura 94c, só que seu saiote
parece de uma modelagem mais volumosa, talvez um godê completo. Seus cabelos estão
presos, no entanto podemos notar alguns cachos – está maquiada e usa um colar – além
disso, segura um disco em sua mão, e parece prestes a colocá-lo. É possível sentir a satisfa-
ção do casal com seus novos produtos para que eles e seus convidados possam divertir-se.
Toda essa cena é rodeada por enunciados verbais que esclarecem e demonstram os produ- 197
tos da linha de discos, criando uma circularidade no trajeto do olhar.

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Nos modos de organizar-se temos um anúncio de uma máquina de costura na figura
94i, na qual adentramos uma cena em que uma mulher é desenhada, com seus cabelos
escuros, médios e volumosos, traja um vestido simples, com mangas de tamanho médio
e bufantes, um pequeno decote retangular e adornado, que tem seu comprimento até a
altura do joelho – ela está sentada, com as pernas cruzadas e parece costurar uma meia-
calça à mão. Há alguns objetos sobre a mesa ao seu lado, mas ela olha algo pela janela – a
qual tem vidro e persianas –, vemo-la de perfil enquanto parece apreciar a paisagem que
conta com algumas árvores e, mais ainda, parece querer vivenciar esse espaço “natural” ao
invés de costurar dentro de sua casa. Ao lado da paisagem, à direita, um questionamento
verbal: “Por que a côr verde?”, parece que o enunciador incorporou e adiantou um (possí-
vel) questionamento de seus enunciatários/destinatários sobre a cor de sua nova linha de
produtos; a resposta segue:

Depois de se ter esforçado durante longo tempo sôbre um penoso trabalho cerzido, a
senhora sabe o quanto é repousante descansar a vista sobre o verde de uma paisagem.
O tom verde descança e tonifica os olhos fatigados. Reconhecendo o esforço intenso
que a costura exige de seus olhos, os fabricantes da ELNA escolheram a côr verde para
a sua máquina. Desde então, o “verde-ELNA”, essencialmente repousante para a vista,
passou para a linguagem corrente. ELNA, a máquina de costura que realiza todos os seus
desejos... inclusive o de poupar seus olhos.12

Assim, a marca de máquinas de costura coloca a cor verde como uma exclusividade,
“marca” registrada que já tornou-se “linguagem corrente”. Tal formante cromático propor-
cionaria um conforto e um descanso aos “olhos fatigados” da senhora que costura por boa
parte de seu dia – costura as suas roupas e de sua família, e provavelmente costura para
outros como fonte de renda familiar secundária. O “verde-Elna” realizaria esses “desejos”,
procurando fazer seu enunciatário crer que tal formante poderia dar a mesma sensação de
bem-estar que o “verde”, ou de estar em meio à natureza.
No segundo anúncio dessa categoria, a figura 94j, o olhar se depara inicialmente com
o verbal no canto superior esquerdo, em tipografia com serifas curvas e letra cursiva, na
cor branca sobre um fundo preto e de forma irregular: “A surprêsa mais agradável!”, e essa
composição é sobreposta por alguns enfeites de natal, levando nosso olhar da esquerda
para a direita. Nesse ponto, nos deparamos com uma janela que mostra um céu estrelado e
também com uma figura masculina, de perfil, que tem seu olhar voltado para a figura femi-
nina deitada sobre a cama; ele tem os cabelos divididos na lateral, mas parecem um pouco
bagunçados, como se acabasse de se levantar da cama do casal, pois ainda veste um rou-

12  Grifo do anúncio.


198 pão listrado e acetinado, sobre o que parece ser um pijama. Em suas mãos ele carrega uma
embalagem de presente com um laço, e sobre essa embalagem tem-se o verbal: “Exaustor
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Contact”. Trata-se do produto que ele está prestes a dar de presente à sua esposa; logo abai-
xo dessa figura, é encenado o produto instalado e já em uso, e suas funções são explicitadas
por um pequeno texto verbal. À esquerda, no canto inferior, há a seguinte narração:

Ela adora o seu lar. Toda a sua preocupação é torna-lo cada vez mais belo e confor-
tável. E há muito estava em seus projetos algo indispensável para o conforto de sua
casa: um Exaustor Contact, para a cozinha... Mas êle adivinhou seus pensamentos, e
naquela noite preparou-lhe a mais agradável das surpresas... / Um produto Contact
para o conforto do seu lar

E assim nos deparamos com “ela” novamente, que dorme confortavelmente vestindo
sua camisola, parece maquiada e tem seus cabelos ondulados soltos. “Ela”, que se preocupa
em tornar o seu lar “cada vez mais belo e confortável”, terá “a mais agradável das surpresas”
ao receber o seu novo exaustor para arejar a cozinha do lar, como um presente em meio à
noite de Natal.
Nas análises desse ano é possível perceber algumas reiterações que, cada vez mais, de-
lineiam os papéis sociais de cada gênero. Às mulheres são destinados os afazeres da casa,
como providenciar uma “alimentação equilibrada” à sua família, a costura das roupas de sua
família, bem como “adorar” seu lar e ter “toda a sua preocupação em torná-lo cada vez mais
belo e confortável”. Ainda assim, permanecem os valores da sedução investidos nos cuida-
dos com a aparência, reservando às mulheres um simulacro do dever-ser bela e sedutora,
mas ainda “mãe de família” e cuidadosa com o lar. Aos homens, destinam-se simulacros de
homens conquistadores, tanto das mulheres sedutoras, quanto de uma vida bem-sucedida
financeiramente, fruto de seu trabalho em empresas e indústrias.
Notamos ainda que apenas nos anúncios dos modos de vestir-se encontramos corpos-
moda que são encenados por fotografias ou fotomontagens, talvez por uma necessidade
de melhor explorar a textura e a qualidade dos tecidos, quando a fotografia pode aproxi-
mar melhor o enunciatário da “verdadeira” textura e caimento das peças no corpo. Como,
por exemplo, no anúncio da Cinta Moderna, em que efeitos simples de luz e sombra, unidos
à pose da figura feminina, são recursos utilizados para evidenciar as curvas constritas e
delineadas da mulher.
Abaixo são sistematizados os dois planos de expressão e conteúdo apreendidos nas
análises do ano de 1950:
Continuidade vs Descontinuidade 199
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


/“démodé”/ vs / “na moda”/

longilíneo curvo
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
geométrico orgânico
horizontal vertical
escuro claro
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 12: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1950. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade que, são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Esses corpos-moda encenados em 1950 também constroem suas aparências pelo


modo que se colocam no jogo de construções da visibilidade. Segue abaixo o quadro triá-
dico que explicita essa dinâmica:
200
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 13: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1950. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: produzido pela autora.

Apreendemos, então, corpos-moda que se posicionam enquanto corpos que querem


ser vistos nas figuras 94b, 94c, 94d, 94g e 94h, pois já estão prontos a agir e ostentam suas
vestes, representando seu papel público. Em relação de contrariedade com esses, temos a
figura 94e que figurativiza um corpo-moda que quer não ser visto, pois está em disjunção
de seu objeto de valor e, desnuda, a mulher atua em seu papel privado, com “pudor”. Em 201
contradição a esse, as figuras 94a, 94f, 94i e 94j, colocam-se enquanto corpos-moda que

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


não querem não ser vistos, pois agem sem constrangimento, “publicizando” suas ações rela-
tivamente privadas como, por exemplo, ao vestir uma “cinta moderna” e lingerie, ou mesmo
enquanto trabalha e não se importa se é observado ou não.

4.2.3. A moda nos modos de vida em 1960

Modos de 1960 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d

Modos de alimentar-se e f
202 Modos de divertir-se g h
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de organizar-se i j

Quadro 6: figuras 95a, 95b, 95c, 95d, 95e, 95f, 95g, 95h, 95i, 95j.

Em 1960 temos, nos modos de vestir-se, dois anúncios de calças jeans13, um feminino e
outro masculino. No primeiro (figura 95a), há uma encenação muito diferente das que nos
deparamos até então: o corpo-moda aqui é construído de maneira inusitada. A constru-
ção é predominantemente vertical, iniciamos pela parte superior do anúncio, com a com-
posição verbo-visual: “Todo mundo é gente moça quando a calça é Far-west”; trata-se do
slogan dessa marca de calças jeans – uma das primeiras fabricadas no Brasil pela empresa
Alpargatas. Esse texto verbal é encenado em caixa alta, com letras de tamanhos desiguais
e as palavras são levemente postas em diagonais, e é dada continuação à frase, por pernas
que vestem a calça jeans e por uma mão feminina posicionada em seu bolso – a qual tem
as unhas pintadas de vermelho e usa pulseiras. A palavra “TODO” tem, logo abaixo de si,
uma forma na cor branca que remete figurativamente a um sorriso, e ambos são postos le-
vemente afastados do restante da frase. Tal sorriso, posto logo abaixo e entre as duas letras
“O” dessa palavra, forma figurativamente no conjunto a composição de um rosto: as letras

13 O jeans é um tipo de vestimenta feito especificamente com um tipo de tecido de algodão, conhecido como
denim, muito resistente e que, originalmente, tem sua trama composta por fios azuis no urdume (verticais) e
fios brancos na trama (horizontais). Foi incialmente utilizado como uniforme para trabalhos braçais, por sua
resistência e pelo conforto que proporciona. Fonte: a autora.
“O” seriam os olhos, a letra “D” seria o nariz, e a boca é figurada pelo sorriso logo abaixo; 203
esse certo afastamento do restante forma um espaço vazio, mas de separação, espaço de

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


ausência que nos remete à presença de um pescoço do corpo humano. Seguindo a leitura,
logo abaixo há as palavras “MUNDO É”, colocadas de forma a aumentar a largura da frase
– ficando com uma largura similar à do quadril que veste a calça –, que parece construir o
que seriam os ombros desse corpo-moda-palavra; as frases, na cor amarela, seguem dimi-
nuindo com “GENTE MOÇA”, “QUANDO A” e “CALÇA É”, delineando as curvas de uma cintura
feminina, finalizadas por “FAR-WEST”, na mesma cor branca do sorriso. Todos são jovens e
sorridentes quando a calça jeans é Far-West, relacionando a alegria aos valores da juventu-
de. A calça jeans, sendo um traje antes utilizado apenas como “uniforme” de trabalho por
ser um tecido resistente, começa a tornar-se muito popular no uso cotidiano e a tomar
outras formas – esse modelo anunciado é um tipo de sailor pants, algo como uma “calça
de marinheiro”, a qual tem esse fechamento frontal e com abotoamento duplo; no período
ainda recente de pós-guerra e de Guerra Fria, o vestuário incorpora alguns traços dos trajes
tradicionalmente militares e navais. O nome da marca, traduzido para o português, seria
algo como Faroeste, uma região no interior do Oeste estadunidense, bem como um tipo
de filme ou livro ficcional popularmente conhecido como bang-bang, que se passam nessa
região – trata-se de uma calça que carrega tais valores da resistência e da rebeldia, mas ao
mesmo tempo de jovialidade e de despojamento. Enquanto em um dos bolsos da calça, a
mulher, a qual tem um corpo-moda-palavra, descansa sua mão, do outro bolso, uma espé-
cie de bilhete salta fora com um aviso verbal: “Cuidado! Só é Far-West com esta etiqueta” e
uma seta aponta para uma pequena etiqueta amarela acoplada à calça, ao lado dos botões,
sendo um aviso ao consumidor para que não se engane ao comprar sua calça jeans – reme-
te-nos ao ditado de 1940, para que o consumidor não compre “gato por lebre”. O anúncio,
então, expõe um produto, mas também constrói os valores de uma marca – uma marca de
prêt-à-porter14 no novo mercado que contava com novas possibilidades de produção. Ao
encenar um corpo-moda que é construído pelo sincretismo entre corpo, moda e palavras
(corpo que é formado e delineado, em parte, pelo verbal na cor amarela e em outra parte
por braços e mãos ornados, quadris e pernas vestidos com a calça azul, sobre um fundo
vermelho e saturado) mesclando, em sincretismo, fotografia e ilustração, o contraste entre
as cores é algo que evidencia e dá destaque a todos os elementos da composição, um todo
colorido e contrastante que faz-ser a marca Far-West e os corpos-moda que a vestem.
Na figura 95b há uma encenação verticalizada na qual é colocado um retângulo de cor
vermelha, que dá destaque ao que parecem ser dois corpos-moda masculinos em preto

14  O termo prêt-à-porter, em francês, traduzido para o português seria algo como pronto para usar, ou vestir.
Tornou-se popular após os avanços tecnológicos de produção de roupas, possibilitando a produção em larga
escala. Fonte: a autora.
204 e branco desenhados: um está sentado, e o outro, em pé; são corpos vestidos que tem
parte do torso, pernas e pés encenados. Diferentemente da calça feminina, bem justa ao
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

corpo, essas calças masculinas não são tão justas e têm corte de alfaiataria – retas e com
barras mais largas, bolsos faca nas laterais e embutidos na parte de trás; eles vestem ainda
sapatos lustrados e meias que ornam com ambos (sapato e calça), além de camisas de man-
gas curtas na cor branca. Na encenação, há dois planos diferentes de aproximação com o
enunciatário: mais próximo desse, à esquerda, um homem está meio sentado sobre o que
parece um banco de madeira, também vermelho, e seu braço descansa sobre suas pernas,
é possível ainda observar o caimento da calça enquanto o sujeito que a usa está sentado;
em um segundo plano, o outro homem encontra-se em pé, de costas e com os braços cru-
zados – podemos observar os detalhes da parte de trás da calça. Pelo verbal, é enunciado:
“A roupa que convida ao movimento”, na cor preta, e logo abaixo há a logomarca “Santista”,
na cor banca – as mesmas cores das vestes da figura. Não se tratam, portanto, de dois sujei-
tos diferentes, mas sim de um mesmo sujeito em duas temporalidades, pois sua movimen-
tação é confirmada pelo verbal supracitado: quando está mais próximo de nós em uma
posição incerta e, depois, quando levanta-se e posta-se em pé, em uma posição de certeza,
de costas para nós. Assim é encenado esse movimento do sujeito, que estava sentado, le-
vantou-se e andou até aquele ponto em que se encontra parado e em pé, de costas para o
enunciatário. Somos então convidados a observar o movimento fácil daquele que veste a
calça “Santista”, que vai do “incerto” ao “certo” e convidados também a movimentar-se como
ele. Logo abaixo, sobre um fundo branco, tem-se um pequeno texto verbal no qual a calça
é adjetivada e qualificada:

DURA TÔDA VIDA – Feita com o incomparável Brim15 Santista, super-resistente e pré
-encolhido, a roupa Santista desafia as mais rudes condições de uso, no trabalho, es-
porte e fins de semana. [...] cuidadosamente estudado para proporcionar máxima liber-
dade aos movimentos. [...] É a legítima roupa dos homens de ação.

Essa liberdade aos movimentos é encenada, justamente, nesse movimento feito pelo
ator da encenação, testemunhamos um antes (aqui) e um depois (lá), dele se movimentar
e mudar de uma posição sentada para uma posição em pé. A calça anunciada é colocada
como uma veste que vai acompanhar o sujeito que a veste por “toda” sua vida, pois é du-
rável com o seu “incomparável Brim”, e por todos os momentos e circunstâncias da vida
vivida, pois “desafia as mais rudes condições”, legítimas dos “homens de ação”.
Passando aos modos de cuidar-se, um rosto feminino é encenado na figura 95c. Esse ros-
to está maquiado com sombra e delineador preto nos olhos, tem rímel nos cílios, sobrance-
lhas bem delineadas e um batom de uma cor rosa escuro (ou avermelhado) e brilhoso, que

15 O brim é um tipo de tecido grosso e resistente, similar ao denim (do qual é feito o jeans), mas sua trama é
composta por fios da mesma cor, sendo assim, tingidos com maior facilidade. Fonte: a autora.
foi perfeitamente passado, demarcando os traços de seus lábios. Usa pequenos brincos de 205
pérola, seus cabelos são louros, curtos e cacheados, seus olhos são azuis; dois dedos de sua

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


mão direita postam-se sobre seu rosto, e com unhas compridas e pintadas – de uma cor
similar à de seus lábios –, levam o olhar do enunciatário de volta a seus olhos; esses, por sua
vez, nos direcionam para o lado esquerdo do anúncio e podemos ver um pouco do cenário
onde essa mulher encontra-se. Trata-se de um local aberto, com um céu de tons rosados,
que vão do mais escuro ao mais claro, uma torre ao fundo que parece ser a Torre Eiffel, em
Paris, e um poste de luz e escuro com estética que nos remete ao século XIX – com ara-
bescos e anjos na sua estrutura. Essa fotomontagem é emoldurada e delimitada em uma
forma retangular sobre um fundo branco, assim, seguindo para a esquerda desse anúncio,
saímos da cena e adentramos esse “fundo”, sobre o qual são colocados os produtos anun-
ciados: um batom cor de rosa/avermelhado com embalagem dourada e um esmalte de
unhas também vermelho – os mesmos produtos que ela usa na encenação. O posiciona-
mento desses produtos nos leva ao verbal em inglês, abaixo da imagem, em letras garrafais
e em vermelho: “PINK FROM PARIS”, que se traduzido livremente para o português, seria
algo como “cor de rosa de Paris”. No entanto, essa cor pink é mais especificamente um tom
rosa bem escuro, que se aproxima da cor vermelha, e é essa cor que vemos encenada em
toda a composição, criando certa unidade dos elementos e colocando-os em uma dada lo-
calidade, a cidade de Paris. Abaixo ainda é enunciado: “a nova e deslumbrante cor lançada
pela CUTEX!”, o pink; e continua:

Paris, Roma, Nova York... as capitais da beleza já elegeram Pink from Paris a cor da moda...
a cor do momento. Faça de sua beleza natural uma afirmação de elegância, usando, nos
lábios e nas unhas, a nova e deslumbrante cor Pink from Paris.

A cor “da moda” e “do momento” é o pink, e essa cor é de Paris. Logo, Paris é a cidade
da moda e do momento, e a que é encenada no anuncio. É enunciado que os produ-
tos da marca só fazem “afirmar” a “beleza natural” e elegância femininas, e essa “nova e
deslumbrante cor” tem seu modo de uso prescrito tanto verbalmente, com: “‘Harmonize’
as unhas e os lábios com a mesma tonalidade”, quanto não verbalmente, pois seu uso
“harmônico” de tonalidades é mostrado pela figura feminina nas cores de seu esmalte e
batom. No canto superior direito são ainda exaltadas algumas qualidades do produto, e
é reiterado o nome da marca, também na mesma cor e em caixa alta: “CUTEX”. Toda essa
composição ocupa uma página inteira, e é predominantemente horizontal, mas posicio-
na-se verticalmente em relação ao destinatário-leitor, dificultando uma leitura habitual
(da esquerda para a direita), fazendo-o “girar” esse corpo-revista para melhor poder ler e
adentrar essa cena – ajustando-se a esse inusitado modo de anunciar, para depois reto-
mar sua leitura de maneira habitual. Esse procedimento aproxima o enunciatário da cena
206 e dos produtos, um anúncio diferenciado para uma marca “da moda” que quer construir-
se sobre o valor da exclusividade.
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Ainda nos modos de cuidar-se, na figura 95d, são anunciados dois produtos da mesma
Companhia Industrial Farmacêutica: a brilhantina Glostora na parte superior, e os Comprimi-
dos Vikelp na parte inferior, os quais compõem em conjunto uma grande cena verticalizada.
A leitura se inicia pela embalagem da brilhantina Glostora, a qual tem formatos geomé-
tricos, e ao seu lado há narração: “Brilhantina Glostora assenta o cabelo mais rebelde! /
[...] Realçando seu brilho próprio, garante um penteado sóbrio, discreto, elegante. Use-a
diariamente”. Seguida, abaixo, do nome da marca e de seu slogan na cor branca sobre uma
pequena faixa preta: “Reflete em seu cabelo o seu apuro pessoal”, e tal faixa preta leva o
olhar para um segundo enunciado verbal, que adjetiva o produto e informa sobre os ta-
manhos das embalagens disponíveis. Em um pequeno tamanho é encenada uma figura
masculina, com roupas esportivas – camisa polo e bermuda – e uma raquete de tênis na
mão, o que ilustra uma situação de uso do produto que “mantém qualquer cabelo bem
penteado o dia inteiro”, mesmo enquanto joga-se tênis. A posição da raquete nos leva de
volta ao lado direito do anúncio, no qual mais uma situação de uso é ilustrada, dessa vez
nos cabelos escuros de um homem, os quais se encontram penteados e brilhantes; pode-
mos notar que esse homem nos transmite um olhar direto, querendo ser visto com seus
cabelos bem arrumados, que realçam seu “brilho próprio” de maneira “sóbria”, “discreta” e
“elegante”, adjetivos que instauram valores sobre esse simulacro de usuário da marca de
brilhantina. Logo abaixo dessa cena, no anúncio do outro produto, nos deparamos com a
seguinte narração: “livre-se do COMPLEXO DA MAGREZA”, e ao lado esquerdo, um homem
de aparência muito similar ao do último anúncio, com seus cabelos escuros penteados e
vestindo apenas uma sunga de banho, parece correr e esbanja um sorriso – aparentemente
ele livrou-se de seu “complexo da magreza”, e tem aspecto saudável. A narração verbal con-
tinua: “Vikelp combate a magreza, o cansaço e o esgotamento”, características que já não
cabem mais a esse homem encenado; e ainda continua verbalmente, instalando uma fala
direta com o enunciatário:

Se você é magrinho e tem vexame de mostrar seu físico na praia... Se os homens máscu-
los e saudáveis lhe causam despeito e inveja, isso significa que você é mais uma vítima
do complexo da magreza! Vikelp traz novo alento a milhares de criaturas [...] magras de
nascença. [...]

Assim, diferentemente dos anúncios que vimos em 1940, para emagrecer, este serve
para “combater a magreza” e trazer “alento” a suas “vítimas”, fazendo-os ganhar um peso
saudável, pois, de acordo com essas encenações, não se deve ser nem muito gordo e nem
muito magro. A embalagem desse produto é também ilustrada, o que se relaciona ao reco-
nhecimento dos produtos mais facilmente nas prateleiras das lojas. Notamos que na com-
posição desses anúncios há um jogo de equilíbrio na disposição dos elementos, o que cria 207
uma certa diagonalidade entre corpos-moda em um extremo e corpos-produtos (embala-

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


gens) em outro.
Nos modos de alimentar-se, uma figura feminina é encenada na figura 95e, e ela está
sobre um balanço preso por cordas. Veste um chapéu capeline16 de palha, normalmente
utilizado em dias de sol, e ainda um lenço que envolve sua cabeça e que é amarrado em
seu pescoço, um vestido rosa sem mangas, com uma gola ampla e decote em “V” com fe-
chamento lateral, além de uma saia evasê com pregas que tem volume ampliado por en-
chimentos de tule17 branco, visíveis sob a saia – tal modelagem evidencia cintura e bustos e
cria um volume extra sobre os quadris femininos. Seus pés “ao ar” realçam seus sapatos, um
modelo mule com peep toe18 , com saltos altos e na cor branca – a mesma do lenço e do tule.
É uma das primeiras vezes que as pernas femininas estão desnudas e evidenciadas dessa
forma. Essa mulher tem cabelos castanhos, está maquiada e segura em sua mão direita
uma garrafa do refrigerante Coca-Cola, e com sua outra mão se segura no balanço – ela nos
olha diretamente e parece ter acabado de apreciar um gole de seu refresco; na fotomon-
tagem, alguns origamis de papel branco estão espalhados sobre a cena de fundo rosado,
todos com formas similares a flores, mas por suas posições, alguns desses parecem nuvens
e pássaros no ar: toda essa composição nos faz sentir essa leveza e frescor proporcionados
por um gole da bebida. Logo abaixo da cena tem-se a logomarca da Coca-Cola, ao lado es-
querdo da seguinte narração: “Deliciosamente saudável... ela tem um ‘quê’ inigualável que
conforta e reaviva. Ela é a companhia mais desejada para os momentos alegres do seu dia.
Ela tem pureza, bom gôsto e qualidade... a sua Coca-Cola bem gelada! / Incomparável...”. A
Coca-Cola, que em 1950 ainda se estabelecia no país, instalando suas fábricas, busca agora
criar uma identificação do enunciatário brasileiro com sua marca. Toda a construção parece
indicar que a bebida adjetivada pela “pureza”, “bom gosto” e “inigualável” é a própria figura
feminina encenada: ao tomar sua bebida, ela foi aos “céus” e alcançou a mesma leveza e
frescor de sua bebida.

16  “Derivado da antiga palavra francesa para chapéu, o capeline inicialmente referia-se a um elmo de proteção
para a cabeça e o pescoço, usado por arqueiros medievais. Mais tarde, porém, passou a identificar um chapéu
feminino de abas largas e leves, adotado no século XVIII em áreas rurais na Europa, que servia para proteger
os trabalhadores do sol. Ao longo do século 20, tornou-se item elegante ao ser muito utilizado em corridas
de cavalo [...]”. Informações retiradas do site Glossário de Moda. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.
com>>. Acesso em: 23 Jun 2015.
17  De acordo com o Glossário de Moda, o tule é um “tipo de renda fina e leve caracterizada pelo visual de rede
de malhas redondas ou poligonais. Pode ser produzido com fibras de seda, algodão ou nylon. Tem esse nome,
pois é originário da cidade de Tulle, na França [...]”. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Aces-
so em: 23 Jun 2015.
18  Mule é um modelo de “calçado feminino com salto alto e gáspea com o calcanhar preso por fivela ou não”;
e peep toe é um “termo de origem inglesa que surgiu da união das palavras peep (espiar), e toe (dedo). É utili-
zado para designar o tipo de bico que possui uma pequena abertura, revelando parte dos dedos”. Disponível
em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 23 Jun 2015.
208 Na figura 95f, ainda nos modos de alimentar-se, são encenadas as faces de uma figura
feminina e de uma figura masculina. Iniciamos a leitura pela narração: “Está mais do que
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

provado...”, e seguimos para a fotografia, na qual ambas as figuras têm seu olhar direto ao
enunciatário e sorriem; a mulher à direita parece sem maquiagem, e seus cabelos são es-
curos e ondulados, enquanto o homem, à esquerda, tem cabelos e bigode grisalhos, pen-
teados e aparados e usa óculos de grau com armação escura. Podemos ver que ele veste
um paletó, camisa e gravata, e segura uma xícara com sua mão direita, como se estivesse
prestes a beber. Logo abaixo, continua a narração verbal: “Café-com-leite feito com Nescafé
é muito mais gostoso”, trata-se do “Primeiro café solúvel do Brasil e do mundo”, e o que di-
zem estar mais que provado sobre ele é que é o “mais gostoso” café solúvel do mercado, e
isso é presentificado pela alegria e satisfação expressas nas feições do casal.
Passando aos modos de divertir-se temos, na figura 95g, uma cena na qual dois homens
vestidos de terno escuro, camisa e gravata, encontram-se sentados frente a frente, com
uma mesa entre eles, e enquanto divertem-se jogando cartas, uma mulher de corpo longilí-
neo, cabelos curtos e escuros, vestida com um tailleur19 com saia de comprimento abaixo
dos joelhos e sapatos de salto, serve a eles algum tipo de alimento. No canto esquerdo, ao
lado do homem com feições mais maduras, são encenadas uma mulher e uma menina;
a mulher tem franja nos cabelos e usa-os presos, usa também um brinco de pérolas, um
vestido claro de comprimento até os joelhos, com abotoamento frontal e com uma espécie
de gola xale20, ornado ainda com um broche e sapatos de salto – ela lê um livro ou revista
junto à criança. A composição do cenário, com mesas e cadeiras presas ao chão, paredes
com extremidades arredondadas, somadas aos rascunhos geométricos de aeromodelos no
papel de parede, evidenciam que essas figuras são encenadas dentro de um avião, e a mu-
lher que lhes serve seria uma aeromoça (profissão que vimos estampada em uma das ca-
pas da O Cruzeiro de 1960 no capítulo Moda (Re)vista no Brasil). Abaixo da cena, a narração
verbal: “agora com toda a família para a EUROPA / Tarifa especial reduzida / Com esta nova
tarifa,V. economizará para suas compras e divertimentos na Europa [...] PANAIR DO BRASIL”.
Encenam, então, o programa narrativo desse sujeito coletivo “família”, no qual o objeto va-
lorado é a “viagem de férias à Europa”, e cujos programas secundários são fazer compras e
divertir-se por lá; os descontos são anunciados para os “dependentes”, os filhos de 12 a 26
anos, pois com esses descontos, a família encenada teria, “agora”, capacidade financeira de
custear a viagem para todos.

19  “Composto por [blazer] e saia, ou [blazer] e calça, o tailleur é um traje do guarda-roupa feminino, que foi
consagrado pela estilista Chanel, que por sua vez, simplificou o corte adaptando o uso para diversas ocasi-
ões. Hoje é referência como traje de mulheres executivas. A palavra tem origem francesa e significa alfaiate”.
Informações retiradas do site Glossário de Moda. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso
em: 23 Jun 2015.
20  Gola de corte arredondado.
No segundo anúncio dos modos de divertir-se, na figura 95h, temos uma fotografia na 209
qual são encenados uma mulher e um homem; ela está apoiada sobre um dos grossos

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


galhos da árvore de tronco largo, tem os cabelos castanhos e bem curtos, veste um suéter
rosa com algumas listras brancas e azuis, além de uma calça marrom. Seus olhos estão vol-
tados para o céu, e toda sua gestualidade indica-nos que está praticamente em um estado
de êxtase, ou mesmo de apreciação da natureza e das sensações que lhe são proporciona-
das. Abaixo de sua figura, na base do tronco, encontra-se encostado um violão, e a posição
desse instrumento nos leva da figura feminina à figura masculina, a qual se posiciona de
costas para o enunciatário, sentada à beira do lago, com as mãos apoiadas sobre o chão. Ele
veste também um suéter, mas de cor amarela, e uma calça cáqui21, além de sapatos e meias
em um marrom mais escuro; ele tem seu olhar voltado para ela e tal composição cria uma
triangulação do trajeto do olhar. A cena em meio à natureza tem tons de marrom e verde, e
assim apenas a cor rosa do suéter feminino se destaca dentre essas tonalidades. Abaixo da
cena, uma faixa branca destaca o verbal: “Momentos que a memória guarda para sempre
/ cigarros Hollywood / uma tradição de bom gosto”, e à direita dessa narração há uma car-
teira desses cigarros, com embalagem na cor vermelha intercalada com faixas de cor azul.
Essa embalagem permeia os limites entre a faixa branca e a cena fotografada, interligando
e construindo uma composição do todo, ainda em uma posição similar à do violão. As cores
quentes dessa composição dialogam entre si e delineiam uma nova triangulação – o mo-
mento de prazer foi proporcionado pelos cigarros, e é um dos momentos que “a memória
guarda para sempre”. Quem tem “bom gosto”, diverte-se dessa forma “tradicional”, ao ar
livre e ao som do violão, vestindo roupas confortáveis, mas requintadas e, claro, fumando
os cigarros Hollywood.
Nos modos de organizar-se, na figura 95h, é anunciada a máquina de costura Singer.
Na cena são desenhadas diversas figuras femininas, mas duas delas se destacam à frente,
pela proximidade que se encontram do enunciatário; uma delas está de costas para nós,
agachada em frente à outra e traja um vestido preto e acinturado, com mangas ¾ e gola de
camisa, cabelos escuros e presos, além de sapatos de salto também pretos; o mesmo traje
é utilizado pelas outras figuras femininas ao fundo, parece tratar-se de um uniforme. A ac-
tante do primeiro plano parece mexer em algo do vestido da mulher à sua frente. Essa, por
sua vez, traja um vestido rosa claro de gola canoa, mangas amplas e saia volumosa que cria
uma linha “A”, triangular, a partir da cintura, reiterada pelo posicionamento de suas mãos
– formato similar à fase do romantismo que elucidamos na história da moda no capítulo

21  “A palavra Cáqui tem origem persa, significa poeirento, empoeirado, cor da terra. Utilizada pelo exército
para efeitos de camuflagem, ganhou a moda por influência do militarismo, sendo utilizada tanto na moda
masculina como feminina”. Informações retiradas do site Glossário de Moda Daifiti. Disponível em: <http://
www.dafiti.com.br/caqui/> Acesso em: 23 Jun 2015
210 Moda (Re)vista no Brasil –, ela tem seus cabelos claros e presos, rosto maquiado, brincos
pequenos, luvas brancas e sapatos de salto. Pela gestualidade de ambas e pelo cenário,
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

com cortinas e carpete avermelhados, repleto de biombos de provadores e máquinas de


costura, é possível afirmar que a figura de uniforme é uma costureira, que faz os últimos
ajustes no vestido sob medida de sua cliente. À esquerda do anúncio e dessas figuras, uma
máquina de costura Singer de metal é destacada, já acoplada a uma mesa de madeira e
com um pedal que indica tratar-se de uma moderna máquina de costura automática; sobre
essa mesa, o mesmo tecido rosa do vestido encontra-se estendido, caindo sobre o chão e
reiterando uma triangulação centralizada na cliente. Sobre o tecido caído ao chão, há o ver-
bal: “Para aqueles que costuram diariamente...”, e a frase é continuada sobre uma faixa bran-
ca que divide a cena: “...economia e simplicidade na Nova SINGER”. Tal frase é assim dividida
para cumprir a mesma função da embalagem de cigarros no último anúncio, que seria de
unir os dois elementos divididos da página para compor o todo. A nova máquina Singer é
assim anunciada para os profissionais de costura, “aqueles que costuram diariamente”, nos
tempos em que as roupas sob encomenda constituíam, ainda, a principal forma de com-
prar novas roupas.
Por fim, na figura 95h, é anunciado mais um serviço de viagens, mas dessa vez não é
diretamente voltado a viagens de lazer – trata-se de “Um voo que modificará seus hábitos
de viagem”. Nesse anúncio é encenado um homem em meio à sua viagem, e ele veste um
terno claro, camisa, gravata, sapatos oxford e meias – está em pose relaxada, com as per-
nas cruzadas, o braço esquerdo se apoia no braço da larga, listrada e geométrica poltrona
do avião e segura uma revista ou um livro. Seu braço direito está levantado no ar, o que so-
mado a seu olhar oblíquo, é como se nos dissesse por sua gestualidade algo como “vejam
como estou sendo bem servido neste voo”. Seus cabelos estão bem penteados e ele tem
uma piteira com cigarro em sua boca, que é acendido pela aeromoça à esquerda, a qual
segura o maço em suas mãos, enquanto a aeromoça à direita asseia seu paletó com um
pincel e serve-lhe um drink. Ambas têm corpos longilíneos e vestem tailleurs escuros com
saia lápis, camisa com colarinho, sapatos de salto e pequenos chapéus que se assemelham
a quepes – estão vestindo uniformes, além de maquiagem e cabelos presos; por sua ges-
tualidade e feições, mostram-se prestativas e “alegres” em servir os passageiros dos voos
que atendem. O serviço, assim, é evidenciado e colocado enquanto um dos diferenciais
da Real Aerovias Brasília – uma empresa com o nome da recentemente instalada capital do
Brasil –, junto às qualidades do mais novo avião da empresa, quando é enunciado impe-
rativamente, no verbal: “Voe no Metropolitan, Super-Convair 440, o mais veloz bi-motor
da atualidade”. Este modelo de avião é ilustrado à esquerda do anúncio e tem formato
muito similar ao “R” da logomarca, logo abaixo, remetendo à velocidade e modernidade
dos aviões da Real.
Nessas análises, notamos um aumento considerável de anúncios encenados por fo- 211
tografias e/ou fotomontagens, criando composições de qualidade gráfica mais apurada,

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


e aproximando cada vez mais o seu enunciatário por parecerem mais “verdadeiros” e pró-
ximos à sua “realidade”, digamos. As mulheres são encenadas em momentos de trabalho,
mas sempre como serventes e em trabalhos considerados mais “femininos”, como a costura
e os serviços de bordo, mas já são colocadas em momentos mais diversificados e de di-
versão. São anunciados novos hábitos e formas de viajar, que agilizam o cotidiano desses
sujeitos que trabalham – nos negócios, na costura ou nos aviões –, e que acordam cedo e
só têm tempo para tomar o seu café instantâneo, ou mesmo só tiram um tempinho de seu
dia para refrescar-se com o refrigerante, mas ainda divertem-se no lago aos finais de sema-
na ou tiram férias com suas famílias na Europa, como na cidade da moda, Paris – para viver
tudo isso, podem usar roupas mais práticas e que “acompanham” o movimento intenso.
Cada vez mais nos aproximamos da comprovação da hipótese de nosso trabalho, de que a
vida do sujeito está aí plasmada e é propagada nesses anúncios.
Assim, apreendemos os formantes dos planos de expressão e conteúdo que constroem
o sentido desses discursos, compondo as aparências dos corpos-moda. São sistematizados
a seguir os dois planos, de expressão e conteúdo:

Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

/“démodé”/ vs / “na moda”/ DE BASE


EXPRESSÃO

EXPRESSÃO

curvo longilíneo
orgânico geométrico
horizontal vertical
CONTEÚDO

CONTEÚDO

/arcaico/ /moderno/

Esquema 14: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1960. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade, que são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.
212 Da mesma forma, esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se
colocam no jogo de construções da visibilidade. Para explicitar essas relações, elaboramos
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

o seguinte quadro:

Termo vazio

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 15: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1960. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: produzido pela autora.
Nesses modos de visibilidade explicitados, apreendemos corpos-moda que se posicio- 213
nam, em sua maioria, enquanto corpos que querem ser vistos nas figuras 95a, 95c, 95d, 95e,

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


95f, 95h e 95j, pois já estão prontos para agir e ostentam suas vestes, representando seu
papel público quase como em um espetáculo. Em relação de implicação com essa posição
de “Ostentação”, temos as figuras 95b, 95g e 95i, que se colocam enquanto corpos-moda
que não querem não ser vistos, pois já estão realizando suas atividades, que têm certo cará-
ter privado, como provar uma peça de roupa ou viajar com sua família, mas suas ações são
plenamente observadas sem qualquer constrangimento dos atores.

4.3. A construção de aparências na Manchete

4.3.1. A moda nos modos de vida em 1970

Modos de 1970 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c d
214 Modos de alimentar-se e Ausência
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de divertir-se f g

Modos de organizar-se h i

Quadro 7: figuras 96a, 96b, 96c, 96d, 96e, 96f, 96g, 96h, 96i.

Nos modos de vestir-se em 1970, temos na figura 96a mais um anúncio de calça similar
aos modelos de calças jeans, mas não é qualquer uma, trata-se da “Ôi! – a calça mais sem
preconceito do mundo”, como é narrado na encenação. A leitura da cena inicia-se por essa
narração verbal, com o nome da marca Ôi! em vermelho e o restante da frase em azul.
Ambos são formados por letras recortadas em papéis e coladas sobre a pele das costas da
figura feminina, ficando assim com aspecto e textura de pele humana; nessa composição,
o nome da marca, em vermelho, quase se camufla na pele bronzeada da mulher, enquanto
o azul se sobressai. O enquadramento da fotografia compreende uma parte do torso e os
quadris femininos; a mulher encenada veste apenas sua calça de brim (ou sarja) Ôi!, mas
não se trata de uma calça que imita o azul do jeans. É uma calça de brim tingida numa cor 215
marrom-avermelhada e pespontos de linha clara, bem demarcados e com bolsos chapa-

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


dos. Sobre um deles, à direita, é pespontada a etiqueta da marca, na cor amarela sobre
um fundo preto, destacando-se cromaticamente. A peça é bem justa e delineia as curvas
femininas, as quais são ainda evidenciadas pela pose da mulher/modelo, e também pelo
contraste de sua pele bronzeada e da calça amarronzada com o fundo claro da fotografia.
No canto inferior direito, reforçando a leitura levemente diagonal e curva, há a logomarca
e etiqueta “Berta”, que provavelmente seria a empresa de confecção da peça, e logo abaixo,
a etiqueta que certifica a origem do tecido, que enuncia “Helanca misto” da “Rhodianyl”,
uma importante empresa no ramo têxtil do Brasil. Helanca é o nome fantasia de um tipo
de tecido sintético, muito utilizado então, e inovador no mercado por ter certa elasticidade,
adaptando-se melhor aos diversos corpos e propiciando mais conforto aos seus usuários.
Assim, pela cor que se adapta à pele, pelo tecido que se ajusta ao corpo, coloca-se como
uma marca adaptável e sem “preconceitos”.
Na figura 96b, ainda nos modos de vestir-se, são colocados em cena seis corpos-moda,
sendo cinco masculinos e um feminino. São corpos e roupas diversos, colocados em uma
organização levemente diagonal que leva o olhar do canto superior esquerdo, onde está a
mulher, seguindo uma diagonal curvilínea em direção ao canto inferior direito. Nesse local
lemos o verbal e retornamos à fotografia num ponto central: um movimento circular. No
entanto, o espaço vazio e central, delimitado pelo posicionamento das motos, cria uma
triangulação. A figura feminina, ao canto, tem os cabelos lisos e soltos, maquiagem leve no
rosto e veste uma camisa florida e curta, um modelo cropped22, uma calça jeans de cós alto
– assim como a que vimos no anúncio anterior – e tem suas mãos apoiadas na região dos
bolsos. Entre ela e o próximo corpo-moda há uma motocicleta azul, e esse outro corpo, por
sua vez, tem os cabelos escuros, propositalmente desarrumados e um pouco mais longos
do que os cabelos masculinos que vimos até então, veste-se com um conjunto de tecido
mais estruturado na cor azul, com um brilho sintético. Esse conjunto é formado por um tipo
de casaco com acabamento simples no punho (similar a uma camisa comum), fechamento
em zíper – e fechado até a metade, deixando parte de seu torso à mostra –, recortes que
são mais comuns à modelagem feminina, como a linha princesa, que deixam a peça melhor
ajustada ao corpo, lapela pontiaguda, um bolso embutido – no qual ele apoia sua mão –,
e um cinto que é utilizado como adorno e para fechamento na parte inferior desse casaco.
Essa peça orna com uma calça bem ajustada ao corpo, com vinco central e no mesmo te-
cido e cor. A segunda figura masculina também tem os cabelos escuros e mais compridos,

22  “Do inglês, cortado. Na moda, refere-se às peças com modelagens mais curtas, como por exemplo, as cro-
pped pants (calça curta), ou cropped jacket (jaqueta curta)”. Informações retiradas do site Glossário de Moda.
Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 23 Jun 2015.
216 podemos ver que se veste com um paletó verde-claro que contém três botões frontais,
e somente dois desses estão fechados, lapela mais larga e também pontiaguda, além de
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

bolsos externos, ornando com uma camisa branca de colarinho inglês23 e uma gravata com
estampa florida. Seguimos com a terceira figura masculina, que tem um cabelo similar aos
outros dois além de um bigode aparado, e veste uma camisa com um tecido também es-
truturado e levemente brilhoso, com o recorte na linha princesa, na cor vermelha com uma
lapela. O fechamento dessa camisa é feito por abotoamentos frontais, mas organizados em
duplas, totalizando seis botões; nota-se que o sujeito veste uma calça bege bem ajustada
ao corpo. Ao seu lado, seguindo o trajeto, tem-se um homem com barba, cabelos casta-
nhos e mais volumosos, vestindo um conjunto branco, com um paletó que se assimila a um
trench coat24 pelo comprimento, bolsos externos fechados, fivelas nos pulsos e um cinto
confeccionado com o mesmo tecido, e vestindo ainda uma calça de mesmo tecido, similar
às das outras figuras masculinas da cena. Este último troca olhares com o enunciatário, ao
mesmo tempo em que, com a sua mão direita, segura o guidão de uma moto vermelha
e preta. O posicionamento dessa moto e de outra moto vermelha, à esquerda, nos leva a
observar (e a ser observado por) esse outro homem, o qual se encontra no ponto central do
anúncio; esse tem cabelos louros e mais lisos, usa óculos escuros com lentes na cor marrom
e armação dourada, veste um conjunto amarelo composto por uma jaqueta com detalhes
na cor mostarda, bolso faca e acabamento simples nos punhos e, deixa seu torso à mostra,
evidenciado ainda pela posição de sua mão esquerda que afasta um pouco mais a jaqueta
de seu corpo. Com essa jaqueta é combinada uma calça também amarela, de modelagem
reta, mais ajustada nas coxas e com vinco central – ornados com um cinto e sapatos pretos.
O posicionamento de seu pé esquerdo direciona o olhar para uma faixa preta que destaca
o verbal (no mesmo amarelo de seu traje): “Verão violento JACK”, rodeado pela logomarca,
também nas cores amarelo e preto. Pela composição dos formantes cromáticos desses úl-
timos elementos destacados, podemos supor que o homem de amarelo, centralizado, é a
própria personificação da marca Jack. Toda a cena parece compor um momento em que es-
tão prestes a sair por aí para divertir-se com suas motocicletas, querendo ser vistos com seus
cabelos ao vento, suas jaquetas, camisas e torsos de fora; divertindo-se “violentamente” no
verão, com muita intensidade – tem-se aí toda a construção de um estilo de vida capaz de
seduzir seus enunciatários a segui-lo.

23  É um tipo de colarinho de camisa com pontas mais alongadas e amplas. Informações retiradas do site Glos-
sário de Moda. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 23 Jun 2015.
24  De acordo com o Glossário de Moda, o trench coat é um casaco “impermeável de gabardine [um tipo de
tecido com fiação diagonal] [...] Do inglês, a palavra significa casaco de trincheira, pois foi usada pelos milita-
res britânicos durante a Primeira Guerra Mundial. A modelagem original do trench coat é ampla, com fenda
traseira, ombreira larga, tiras com fivelas nos punhos, uma aba abotoada num ombro, bolsos fechados com
tampas e um cinto com o mesmo tecido do casaco [...]”. Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>.
Acesso em: 23 Jun 2015.
Nos modos de cuidar-se, na figura 96c, a leitura do anúncio se inicia pelo verbal Unisex 217
– que em português atual seria unissex –, na cor branca, com tipografia grossa e com seri-

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


fas, posto sobre a fotografia. Essa foto encena um homem e uma mulher, e ambos vestem
chapéus de vaqueiro claros com detalhe preto, lenços de tons azuis amarrados ao pescoço,
camisas em tom azul claro e listradas sob coletes de couro marrom, cintos marrons e calças
que não podemos ver muito bem. Ela tem os cabelos aparentemente lisos e curtos, e ele
tem cabelos um pouco mais compridos e com costeletas; ambos se apoiam sobre uma
grade à sua frente, em poses levemente diagonais, sorriem e olham para o lado esquerdo
do anúncio, como se observassem algo – a mesma roupa para os dois gêneros, unissex é o
modo de vestir dessas figuras, modo esse que é reiterado nesse ano de 1970, como vimos
no capítulo anterior (Moda enquanto modos de vida). À frente da grade há ainda um arbusto
de folhas verdes, e sobre esse, uma forma retangular também verde dá destaque ao produ-
to anunciado: “Van Ess” com tipografia similar ao “unisex”, e nos faz circular o olhar sempre
retomando a cena fotografada; e a cena continua verbalmente: “não briga com o perfume
dela nem com a colônia dele / Van Ess não interfere. Van Ess é discreto, suave mas duradou-
ro. Protege os dois o dia inteiro. Van Ess une os sexos. Unisex, pois. Em lavanda ou clorofila,
bastão, líquido ou aerossol. Van Ess, o desodorante unisex”. A repetição do nome da marca
acrescenta certa unidade rítmica à frase, tornando-a mais facilmente identificável; Van Ess
é sujeito “discreto” e “suave”, é neutro e não “interfere” no cheiro do perfume ou da colônia
que usam, e assim “une os sexos”. Esse verbal é envolto pelas diversas embalagens do de-
sodorante, nas cores azul e vermelha, a “cor dele” e a “cor dela”; os sujeitos figurados estão
assim unidos pelo desodorante e pela roupa que usam, são a representação do estilo unis-
sex que “une os sexos” e diminui as diferenças da moda construídas para cada gênero – o
simulacro de corpo-vestido aí construído é mais genérico, de um modo de vestir que pode
servir aos dois gêneros instituídos e que amplia o campo sintagmático do vestir cotidiano.
Na figura 96d é anunciado o antiácido Andrews; trata-se de uma fotografia sobre a qual
são postos tanto elementos verbais quanto visuais, compondo o todo do anúncio. O traje-
to do olhar se inicia pelo verbal na cor preta e em letras garrafais: “Só Andrews tem dupla
ação”, que é posto sobre o céu azul ao fundo, e assim podemos observar o horizonte da
“imensidão azul” do mar. Nesse ponto nos deparamos com uma figura masculina e outra fe-
minina, mais próximas de nós, em uma “dupla ação”, saindo do mar e correndo em direção
ao enunciatário – ambos têm pele bronzeada, sorriem e estão de mãos dadas; ele tem ca-
belos grisalhos e veste uma sunga branca com uma listra azul e outra vermelha, enquanto
ela tem os cabelos louros ao vento, e veste um biquíni vermelho de formato triangular, de
alcinhas, amarração lateral da calcinha e com alguns adornos dourados. Abaixo dele, à es-
querda, há o verbal: “No estômago: acaba com a acidez”, seguido à direita pela embalagem,
entre as duas “ações” (figuras humanas e eficácias do remédio), como se fosse o próprio
218 gesto das “mãos dadas” a junção dos elementos verbais. Essa é seguida ainda por outro
verbal: “No fígado: estimula as funções hepáticas”, e logo abaixo: “Na azia e indisposições
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

digestivas - antiácido efervescente de dupla ação”, sendo essa “dupla ação” em vermelho,
como a cor do biquíni. A estrutura geral é uma composição que equilibra o uso e disposição
de seus formantes plásticos. O anúncio coloca essa dupla ação de maneira ambígua, à me-
dida que expõe tanto a dupla ação funcional do remédio quanto a dupla ação dos sujeitos
encenados, que podem divertir-se após remediar seu mal-estar.
Nos modos de alimentar-se, na figura 96e, temos apenas um anúncio na categoria, o
qual encena a fotografia de duas crianças, uma menina e um menino. Ambos vestem rou-
pas brancas e estão alegres em meio a margaridas enquanto tomam seu Leite Ninho – um
leite em pó instantâneo, produto altamente industrializado. A fotografia é posta sobre um
fundo branco e sobre esse mesmo fundo, logo abaixo da cena, à direita, é posicionada a
embalagem do produto anunciado, que tem letras verdes como o verde da natureza, e é
arredondada e amarela como o interior das margaridas – tanto as da cena fotografada,
quanto as que se encontram em torno da embalagem; trata-se de um produto industriali-
zado, no entanto, é diretamente relacionado a elementos naturais.
No canto à esquerda, o seguinte verbal é enunciado:

Saúde, felicidade e Leite Ninho / Onde há saúde há felicidade. Onde há Leite Ninho, há
saúde. Rico em vitaminas, proteínas e sais minerais, Leite Ninho é verdadeira proteção
para crianças e adultos. Leite Ninho contém todos os elementos nutritivos indispensá-
veis ao organismo e à boa disposição. Leite Ninho é puro leite integral, gostoso como
nenhum outro. / Fique em paz com sua consciência... exija Leite Ninho.

O anúncio destina-se a adultos, considerando-se que são eles os (principais) destina-


tários-leitores, e não necessariamente destina-se ao homem ou a mulher. No entanto, ao
desenvolver as análises percebemos que a construção do papel social da mulher nesses
discursos inclui essa mulher dona de casa, mãe de família e que cuida da alimentação de
seus filhos e marido. Essa reiteração nos permite dizer que o anúncio é voltado para a mu-
lher e persiste na manutenção desse simulacro de enunciatário, de uma mulher que deve
preocupar-se com a “saúde” e a “felicidade” de sua família, para que ela “fique em paz com
sua consciência”, sem necessariamente implicar esse papel também ao gênero masculino.
Passamos assim aos modos de divertir-se em 1970, no qual temos o anúncio dos cigar-
ros Hollywood (figura 96f ), que é colocado verbalmente como “o sucesso” – na cor azul, em
letras garrafais e arredondadas que ascendem pelo ar como a fumaça do cigarro, seguindo
a ascendência dos cigarros que saem do maço. O formante verbo-visual “o sucesso” en-
contra-se com esses cigarros, à direita. A embalagem é retangular e tem faixas nas cores
azul e vermelha, e seu formato é encenado de modo a fazer o enunciatário perceber suas
dimensões pelo efeito de profundidade, utilizando perspectiva e jogo de luz e sombra.
Essa cena se dá sobre um fundo branco, e da mesma forma que no outro anúncio dessa 219
marca de cigarros, a embalagem é colocada como elemento conector entre a faixa branca

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


e a fotomontagem sobre a qual ela se sobrepõe. Seguindo o caminho delineado pela em-
balagem, nos deparamos com diversas cenas fotografadas. São cenas da vida dos sujeitos,
tanto o homem quanto a mulher, que fumam Hollywood: praticam esportes radicais como
o alpinismo; passeiam com sua motocicleta e ele sorri enquanto acende o cigarro dela – ela
veste um macacão preto e acinturado, de calças e mangas compridas e feito com tecido
sintético, brilhoso e de aspecto emborrachado, cabelos presos e maxi-bijuterias, ele veste
uma jaqueta cáqui e uma calça jeans –; à esquerda dessa cena, o casal diverte-se jogando
boliche enquanto fuma – ela traja um vestido de cor alaranjada, tubinho e com mangas ¾,
além de uma headband alaranjada sobre seus cabelos longos e louros e um colar dourado,
e ele veste uma camiseta preta e orna-a com uma calça de brim vermelha. A direção para
a qual ela joga a bola do boliche nos leva à próxima cena, no canto inferior esquerdo da
página, na qual esse mesmo casal está em um carro conversível. Notamos que estão em
movimento, pois seus cabelos estão ao vento, ambos fumam e ele dirige; por fim, somos
levados à grande fotografia da cena em que a figura feminina tem seus cabelos longos, lou-
ros e ondulados penteados para trás e soltos à frente, usa uma maquiagem leve, esmalte
vermelho e um anel, e ele tem os cabelos escuros bem penteados e costeletas – podemos
notar algo de sua veste: um lenço estampado e amarrado ao pescoço e uma jaqueta ou pa-
letó claro. Nessa cena ele volta-se para ela, como em uma “conquista”, e ela desvia o olhar e
sorri, deixando-se ser conquistada e cumprindo seu papel de mulher-corpo-moda sedutor.
Na composição, todas essas imagens dissipam-se em suas extremidades, como a própria
fumaça do cigarro, configurando-se como partes que praticamente evaporam em meio a
outras, o que, aliado à composição cromática e ao posicionamento desses corpos-moda,
delineia um trajeto circular para o olhar e, sincreticamente, constrói a totalidade dos modos
de divertir-se em uma “vida de sucesso”. Ao considerarmos o próprio nome da marca de ci-
garros, nota-se que este já carrega claros valores em sua construção, como o uso do mesmo
nome de um distrito estadunidense no qual se localizam os grandes estúdios do cinema
norte-americano e, portanto, alguns dos maiores estúdios do mundo. Além disso, lá foram
construídas as primeiras movie stars, as estrelas de cinema que são mesmo encenadas em
algumas páginas de nosso corpus, como vimos no capítulo Moda (re)vista no Brasil. Portan-
to, nesse anúncio, os valores de uma “vida de sucesso” em nossa sociedade parecem arti-
cular-se com esses valores outros da indústria cinematográfica internacional. Aquilo que é
considerado um estilo de vida “de sucesso” inclui esses divertimentos, e o hábito de fumar
está correlacionado a esse estilo de vida.
Na figura 96g uma fotomontagem ilustra a cidade de Paris, a qual tem encenado o
seu icônico Arco do Triunfo, que se localiza no encontro das famosas avenidas parisienses,
220 Charles de Gaulle e Champs-Élysées. Esta última é também encenada, e assim podemos ver
os carros em movimento, o paisagismo urbano e o Arco, iluminado em meio à escuridão da
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

noite. Mais próximos de nós e à direita temos duas figuras humanas, uma feminina e uma
masculina: ele tem os cabelos escuros e penteados, e também costeletas, veste um sobre-
tudo de cor cáqui (cor similar aos tons encenados de Paris) com abotoamentos duplos e
usa-o com a gola levantada – como se para melhor proteger-se do frio inverno europeu
–, e ainda podemos ver uma calça risca de giz25 sob esse casaco. Ela veste um chapéu pill-
box26 e também um sobretudo, ambos da mesma padronagem xadrez que mescla a tons
de rosa, os mesmos tons de seu esmalte e batom; eles se abraçam com alegria e intimidade
e isso nos faz pensar que presenciamos um reencontro, ou mesmo um belo encontro com
a cidade de Paris. Sobre o que parece uma tinta branca que foi espalhada sobre o anúncio,
verbalmente se enuncia:

EUROPA / uma vontade que não se discute... / E a TAP é a que chega mais cedo a Lisboa,
com conexões imediatas para Madrid, Paris, Londres, Frankfurt, etc. A Europa é tão fácil
pela TAP que já pode ser até um fim de semana... ou uma lua de mel. Ou mesmo o ca-
minho de uma viagem inesquecível. É a rêde TAP. Uma rêde portuguêsa com certeza. /
voe depressa... voe pela TAP.

Trata-se de um anúncio da empresa Transportes Aéreos Portugueses (TAP), que constrói


em suas cenas os serviços de viagens voltadas ao lazer e à diversão. Por suas “conexões ime-
diatas” e um “voo apressado”, pode atender às “vontades” súbitas e “indiscutíveis” de seus
clientes, ao levá-los para a Europa em um final de semana, ou mesmo ao realizar um sonho
de viagem em lua de mel “inesquecível” – o que parece ser o caso encenado. A Europa é
um destino constantemente valorado, seja para as compras ou para o lazer, o que talvez
possamos relacionar ainda a alguns traços remanescentes da colonização, de países que
têm a Europa como principal referência de turismo, consumo e, claro, da moda do vestir.
Na figura 96h, já nos modos de organizar-se, iniciamos a leitura pelo verbal, no canto
superior direito e sobre um fundo neutro:

25  A padronagem risca de giz é um “tecido com riscas finas, inicialmente usado em roupas do vestuário mas-
culino, principalmente nos ternos e roupas de alfaiataria. As riscas geralmente são claras sobre um fundo
escuro e possuem um intervalo regular, podendo ir de poucos milímetros até no máximo dois centímetros”.
Disponível em: <<www.glossario.usefashion.com>>. Acesso em: 24 Jun 2015.
26  De acordo com o Glossário de Moda, trata-se de um “pequeno chapéu redondo, com copa plana e abas
retas, para ser usado no alto da cabeça, geralmente tombado para o lado. Historicamente, fazia parte da in-
dumentária militar do Império Romano, e mais tarde de alguns regimentos Gurkhas. Ainda hoje está incluído
em uniformes de instituições, como a Royal Military College do Canadá. Foi introduzido como item de moda
em meados da década de 1930, ficando conhecido depois de ser usado pela atriz Greta Garbo. Entretanto, so-
mente popularizou-se em 1961, quando a recém-primeira dama Jacqueline Kennedy usou um modelo cor de
rosa na cerimônia de posse de seu marido John F. Kennedy. O chapéu tornou-se uma das marcas registradas
de seu estilo elegante, e até hoje é utilizado, principalmente na Inglaterra”. Disponível em: <<www.glossario.
usefashion.com>>. Acesso em: 24 Jun 2015.
A FLEX-A CARIOCA é uma indústria quente, que fabrica as côres e beleza, distribuídas
221
numa variadíssima linha, com mais de 2000 produtos, compreendendo utilidades do-
mésticas, pentes e brinquedos. A nossa fábrica está instalada na tropicalíssima cidade

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


do Rio de Janeiro. Para combinar, em nossa linha de brinquedos, temos fusca e violão.
Coincidência ou não, o fato é que temos também Flamengo, o pente de tôdas as torci-
das. Agora, só nos falta mesmo ‘fabricar’ uma nêga chamada Teresa.

No verbal, utilizam-se de palavras como “quente”, “beleza”, “tropical”, “fusca e violão”,


“Flamengo” e o termo “nêga chamada Teresa”; tais termos nos remetem ao que pode ser
considerado um hino da juventude no início da década de 1970, a música “País Tropical”
de Jorge Ben Jor. Trazemos um trecho da música: “Moro num país tropical, abençoado por
Deus / E bonito por natureza, mas que beleza /[...]/ Tenho um fusca e um violão/ Sou Fla-
mengo / Tenho uma nêga / Chamada Tereza”27. Utilizando-se da interdiscursividade, o texto
apropria-se da música temática e figurativamente, para construir o seu próprio discurso.
Apropriando-se desse outro discurso, apropria-se também dos valores dessa juventude, e
aproxima-se de seus enunciatários, pois esses conhecem a música e compreendem os tro-
cadilhos feitos, reconhecendo-se no discurso. Consideram que seus produtos têm a “bele-
za”, “moram” em um país e cidade tropicais, fabricam fusca e violão de brinquedo e um pen-
te denominado “Flamengo”, e todos esses produtos de diversas cores estão aí encenados.
Os mais de dois mil produtos são encenados na fotografia, empilhados e espalhados pelo
chão, e em meio a esses produtos, encontra-se deitada uma mulher, de cabelos escuros e
lisos, maquiagem leve e um colar dourado, trajando um biquíni branco – o mesmo branco
que é figurativizado em todos os outros produtos da cena; ela nos olha diretamente, de
forma sedutora, e é colocada como se fosse um dos produtos oferecidos pela marca. Reite-
ram verbalmente, em letras grandes e brancas, logo abaixo da figura feminina: “Só nos falta
mesmo ‘fabricar’ uma nêga chamada Teresa” – ela é a “nêga chamada Teresa” deitada entre
os produtos; a mulher é assim reificada, como se fosse um objeto plástico a ser fabricado,
como um produto a ser consumido.
Por fim, na figura 96i é anunciado o “VERANEIO DE LUXO”. A leitura inicia-se pelo verbal
(na cor preta e em uma tipologia mais reta, que ora tem traços grossos e ora tem traços
finos), na parte superior da página: “CLASSE À PARTE:”, apresentando-nos a fotografia do
carro anunciado. O carro (com lataria de cor cáqui/mostarda e teto azul, e formas pre-
dominantemente retas) está parado em frente a uma casa, de cor rosada e com colunas
brancas (talvez uma casa de veraneio), em cuja varanda, no canto esquerdo da página,
são encenados um homem e uma mulher. Ela veste um macacão rosa, sem mangas e com

27  Informações retiradas do site Letras.mus. Disponível em: <http://letras.mus.br/jorge-ben-jor/46647/> Aces-


so em: 15 Ago 2015.
222 ampla calça pantalona28, uma longa faixa amarrada sobre a cabeça como uma headband,
um largo cinto dourado e uma sandália branca de salto pequeno e grosso; ela posicio-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

na-se com as pernas afastadas uma da outra, precisando apoiar-se no homem, como se
quisesse mesmo exibir sua roupa (que já é de uma cor que se destaca na composição),
ultrapassando assim o carro para que possamos melhor vê-la, enquanto ela também nos
observa. Ele, por sua vez, veste uma camisa/jaqueta azul (similar aos modelos que vimos
no “Verão violento Jack” – figura 96b), em um mesmo azul do teto do carro, bem como usa
um lenço amarrado ao pescoço (como vimos também em outros anúncios desse ano), e
orna-os com uma calça clara; ele está apoiado sobre uma cadeira, com o braço e perna
direitos e tem a mão esquerda apoiada sobre o quadril, e ele a observa em seu querer ser
vista, por ele e por nós. Abaixo dessa cena, sobre uma faixa preta, deparamo-nos com o
seguinte enunciado verbal:

Você é o único naquilo que sente e pensa, naquilo que você sabe e gosta de fazer. As-
sim é veraneio de Luxo. Único no muito que faz. Único na perfeita maneira de fazer. Um
carro à parte. Veraneio de Luxo não tem concorrente. Nenhum outro utilitário tem estas
linhas maravilhosas, êste confôrto excepcional, êste alto desempenho. É um carro. Com
muito espaço, para você e para tôda a bagagem. O Veraneio de Luxo apresenta, além
do conforto e da excelente mecânica que você conhece no Veraneio, bancos diantei-
ros reclináveis (opcionais), painel de instrumentos tipo jacarandá, painéis de luxo nas
portas, rádio com 3 faixas de onda, pára-choques cromado com garras, tapêtes tipo
Carpet de ponta a ponta e outros itens de bom gôsto. Veraneio de Luxo é como você.
Tem muita personalidade.

Os sujeitos encenados, portanto, são adjetivados por uma unicidade, pois “sabem” o
que gostam de fazer, como viajar em férias com “toda a bagagem” no “Veraneio de Luxo”,
o qual tem suas novas tecnologias evidenciadas, que são “itens de bom gosto”. Quem sabe
gostar tem “personalidade” como o novo carro, e por isso gosta desse carro “à parte”, o “luxo
único”, tanto os atores como o carro. Tal texto verbal é seguido pelo nome do carro, nas
mesmas cores da lataria, “VERANEIO DE LUXO” e do logo da montadora Chevrolet, à esquer-
da. Apesar da horizontalidade das formas do carro, toda a composição do anúncio é predo-
minantemente vertical, pois fazemos esse trajeto de leitura de cima para baixo.
Em 1970 apreendemos modos que delineiam os papéis sociais de forma relativamente
diferente dos anos anteriores, pois os produtos unissex são mais propagados, algo que
não vimos até então. Essa “unicidade” dos gêneros pode indicar que haveria certa “equi-
paração” de seus papéis, mesmo quando falamos da alimentação da família, que antes se
direcionava exclusivamente às mulheres, pois agora já instaura um enunciatário de gênero
não caracterizado. Concomitantemente, quando os valores do viver, do ver e ser visto, em

28  “Calça sofisticada com as pernas mais amplas, que se abrem a partir do quadril. Foi popular na década de 70,
usada por homens e mulheres”. Informações retiradas do site Glossário Fashion. Disponível em: <http://www.
glossariofashion.com.br/site/2013/10/17/839/> Acesso em: 08 Out 2015.
momentos de sociabilidades diversas, foram mais presentificados, pudemos notar que os 223
modos de divertir-se foram muito caracterizadores da vida dos sujeitos nesse ano – seria

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


isso em contrapartida ao difícil momento político brasileiro, que de certa forma, restringia
e controlava o viver desse sujeito?
No desenvolver das análises, apreendemos os formantes dos planos de expressão e
conteúdo que constroem o sentido desses discursos, compondo as aparências de 1970.
Abaixo, são sistematizados os dois planos, de expressão e conteúdo:

Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
/“démodé”/ vs / “na moda”/
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
longilíneo curvo
orgânico geométrico
horizontal vertical
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 16: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1970. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade, que são
homologados ao plano de conteúdo por /”démodé”/ e /”na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Da mesma forma, esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se
colocam no jogo de construções da visibilidade. Para explicitar essas relações, elaboramos
o seguinte quadro:
224
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 17: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1970. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: produzido pela autora.

Nos modos de visibilidade de 1970 apreendemos corpos-moda que se posicionam en-


quanto corpos que querem ser vistos, nas figuras 96b, 96c, 96d, 96f, 96h, 96i, pois estão
ostentado seus corpos “produzidos”, seu estilo de vida. Enfim, estão representando e, por
vezes, espetacularizando seu papel público. Em relação de contrariedade com esses, temos
a figura 96e que tem instaurado um simulacro de destinatário, mães (e pais) de família que 225
não são encenados, e assim, são corpos-moda que querem não ser vistos. Em contradição a

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


esse, as figuras 96a e 96g, colocam-se enquanto corpos-moda que não querem não ser vis-
tos, pois já estão realizando suas atividades, como uma viagem em lua de mel agindo sem
constrangimento, ou de costas para nós por ter o corpo meio desnudo, “publicizando” suas
ações relativamente privadas.

4.3.2. A moda nos modos de vida em 1980

Modos de 1980 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se c Ausência

Modos de alimentar-se d e
226 Modos de divertir-se f g
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Modos de organizar-se h i

Quadro 8: figuras 97a, 97b, 97c, 97d, 97e, 97f, 97g, 97h, 97i.

Nas figuras 97a e 97b temos anúncios dos modos de vestir-se. O primeiro (figura 97a), é
um anúncio de roupas íntimas femininas que encena duas mulheres fotografadas, em uma
cena na qual as actantes são postas sobre um fundo chapado na cor preta e sobre uma
frase luminosa, e é por ela que o olhar inicia seu trajeto. Esse luminoso constrói, em azul
neon, o verbal “DelRio”, nome da marca de lingerie – remetendo-nos às casas noturnas que
utilizam essa luz neon anunciando suas entradas – e logo abaixo, os braços da figura femi-
nina à esquerda estão no alto e dobrados, criando formas pontiagudas que direcionam o
olhar do verbal para si, numa posição central na página – sobre seus braços, a logomarca se
coloca, e é formada por dois corações entrelaçados. A actante, por sua vez, tem os cabelos
louros, volumosos e ondulados, tem um colar de pequenas pérolas em seu pescoço e exibe
sua roupa íntima de um branco perolado, com modelagens que reiteram essas formas em
“V”; sua gestualidade evidencia as curvas de seu corpo. A outra figura feminina, à direita da
página, também tem seus cabelos louros, mas são um pouco mais curtos, encaracolados,
e ela os usa meio-presos; usa um colar de pérolas um pouco maiores e suas roupas íntimas
são menores, com um sutiã de alças mais finas, modelagem menor e calcinha também me-
nor. São encenados os dois modos de combinar e ornar essas roupas íntimas peroladas; ao
lado esquerdo da cena é narrado:
Del Rio lança a moda da pele acetinada: Lycra cetim. – A última moda em lingerie
227
juntou o que sempre foi bonito e gostoso: a aparência do cetim e o toque da seda
com o que há de mais prático: a elasticidade da Lycra. [...] A Del Rio enfeitou tudo com

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


entremeios e acabamentos de renda. Pra você ser uma das primeiras a usar a moda da
pele acetinada.

A materialidade das peças é assim valorada como uma segunda pele “acetinada” e pe-
rolada; ambas estão maquiadas e nos olham diretamente, querem ser vistas em seus pa-
péis sedutores, construídos também pelo uso dessas peças.
No segundo anúncio dessa categoria (figura 97b), são anunciadas as peças de vestu-
ário da marca Lee Jeans, uma marca norte-americana que também começou como uma
indústria de uniformes resistentes para trabalhadores braçais, e inovou no mercado ao
produzir outras peças com o tecido jeans além da calça, como macacões, jaquetas, entre
outros29. Na cena temos fotografias de momentos diversos na vida de quem usa Lee Jeans:
a cena inicia-se pela medalha “olímpica” da marca, passando por uma pequena fotografia
em que um homem pilota sua motocicleta e uma mulher o observa enquanto senta-se
na cerca – ambos vestem calças e camisetas da marca além de botas texanas. Na segunda
fotografia, à direita, tem-se uma cena na qual um homem veste calça jeans e camiseta Lee,
além de um chapéu de vaqueiro, enquanto ensina uma garota – também vestida com Lee
Jeans – a andar a cavalo; logo abaixo, há uma terceira fotografia na qual um homem pra-
tica windsurfe e parece vestir uma bermuda, também da marca; todas essas imagens são
emolduradas por retângulos pretos. Logo à esquerda dessa última é narrado na cor bran-
ca, sobre um fundo de cor preta: “Lee Jeans é resistência a toda prova”. Em seguida, abaixo,
observamos uma grande cena, na qual há três figuras femininas sentadas em cadeiras do-
bráveis, à frente e, duas figuras masculinas, em pé. Pela composição do cenário em meio
à natureza, com tendas e fogueira, os sujeitos parecem acampar, divertindo-se enquanto
vestem suas roupas que resistem “a toda prova” e, nosso olhar circula por toda essa com-
posição. Da esquerda para a direita: a mulher senta-se confortavelmente enquanto veste
uma blusa de moletom30 branco, sua calça jeans escura e uma bota texana marrom, seus
cabelos são escuros, longos, volumosos e, utiliza algumas presilhas – ela olha e conversa
com o seu amigo, à direita; esse veste uma camisa polo vermelha e uma calça jeans de la-
vagem mais clara, enquanto toca o seu violão e diverte-se; ao seu lado, também sentada,
uma jovem de cabelos louros, compridos e ondulados veste uma camisa xadrez com tons
avermelhados e uma calça amarela; ao lado dela, tem-se outra figura masculina em pé, de
cabelos encaracolados e curtos, vestindo um conjunto de moletom cinza – ele também

29 Informações retiradas do site Moda.ig. Disponível em: http://moda.ig.com.br/lee-a-inventora-do-jeans-


comemora-120-anos/n1237530197376.html>. Acesso em: 15 Jun 2015.
30  Moletom é originário do francês, molleton e “refere-se a um tecido de malha circular, com avesso macio e as-
pecto lanoso [de lã]. [...] em geral é relacionado à moda urbana e esportiva”. Disponível em: <<www.glossario.
usefashion.com>>. Acesso em: 23 Jun 2015.
228 observa seu amigo “músico”; por fim, há outra figura feminina, sentada sobre um banco, e
ao seu lado, uma bolsa vermelha da marca Lee – ela também veste uma blusa de moletom
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

cinza e uma calça jeans mais escura, seus cabelos são castanhos, também, além de compri-
dos e ondulados. Está encenado, assim, o estilo de vida do grupo de amigos que vestem
Lee, e de acordo com o verbal ao lado da imagem, viram e reviram o mundo “de cabeça
para baixo”, deitam e rolam, desafiam e encaram “qualquer parada”, seja no motocross, no
windsurfe ou no acampamento, sempre usando Lee, que resiste “junto” a eles. A marca
incorpora esses valores de resistência do jeans – a mesma da Far-West – e transpõe esses
valores à vivencia aventureira e jovial, convidando seus enunciatários a também “virar e
revirar o mundo” com a Lee Jeans.
No único anúncio que temos nos modos de cuidar-se (figura 97c), são encenadas uma
mulher e uma garota na praia, em uma fotografia posta de forma inclinada em relação à
página. Iniciamos pelo verbal, de fonte grossa e na cor preta: “Até o sol balança, quando ela
passa Risqué para se amorenar.”, e esse é posto sobre a fotografia, ornando com sua mol-
dura preta, que se assemelha a uma moldura dos negativos de filmes fotográficos; assim, a
cena nos faz sentir esse “balanço”, que balança o sol, a fotografia e até mesmo a página da
revista. O verbal ainda continua em uma fonte menor, no canto direito da fotografia:

Risqué Bronzeador foi criado para o clima e o mormaço da mulher brasileira. E vem no
balanço da praia, sol, mar, verão. No compasso da garota-mulher que inspirou canções.
Passe Risqué para se amorenar. E provoque suspiros.

Da mesma forma que vimos em 1970, esse anúncio utiliza-se de um procedimento


discursivo, incorporando a temática da “garota-mulher [bronzeada] que inspirou canções”.
Trata-se de uma música icônica da bossa nova brasileira, a Garota de Ipanema que Tom
Jobim compôs em meados de 1960. Segue um trecho dessa canção: “Olha que coisa mais
linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem e que passa / Num doce balanço / A
caminho do mar / Moça do corpo dourado / Do sol de Ipanema / O seu balançado é mais
que um poema / É a coisa mais linda que eu já vi passar”. O anúncio, assim, incorpora te-
mas e figuras dessa música, para construir o simulacro de seu enunciatário, uma mulher
do Rio, de Ipanema, que tem um “doce balanço” quando anda em direção ao mar, é adje-
tivada como “linda”, e principalmente tem o “corpo dourado” que “provoca suspiros”, um
bronzeado que pode ser conquistado pelo uso dessa linha de produtos bronzeadores.
Essa mulher é encenada com seus cabelos e corpo “dourados”, deitada sobre uma tolha
na areia da praia, veste um biquíni e colar brancos e tem óculos escuros apoiados sobre
sua cabeça – para que possamos ver para onde volta seu olhar –; ela tem uma bolsa de
praia ao seu lado, sobre a qual é colocado um lenço amarelo, o mesmo amarelo presente
na embalagem do produto. A mulher, assim, aponta com seu dedo indicador para essa
embalagem do produto e olha sorridente para a menina ao seu lado (de cabelos escuros 229
e longos), a qual talvez seja sua filha, como se indicasse a ela esse produto, ensinando-a

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


como ficar também bronzeada – a aparência do corpo que lhe é prescrita, como a todos
os simulacros de mulheres e “futuras” mulheres. Abaixo da cena, ainda são postas todas as
embalagens dessa linha de produtos, sendo “tomadas” pelas ondas do mar, e sobre essas
ondas está o enunciado verbal: “RISQUÉ – bronzeador no balanço do sol”, reiterando essa
incorporação temática e figurativa.
Como único anúncio desse modo, parece-nos plausível afirmar, após a análise de todos
esses anos, que os modos de cuidar-se são muito mais destinados às mulheres, pois, o leque
de produtos direcionados a elas é muito mais amplo, possibilitando prescrições diversas
de produtos e produtos de produtos, como mencionamos no capítulo anterior, tornan-
do mais complexas as possibilidades da aparência feminina. Enquanto aos homens, foram
prescritos na maioria remédios, produtos para o cuidado com o peso corporal, produtos
para cabelos e colônias – será que poderíamos dizer que aos homens seriam delineadas
prescrições mais simplificadas, por um menor leque de produtos?
Nos modos de alimentar-se, na figura 97d, são encenados diversos corpos-moda em
momentos de divertimento ao anunciar o “Vinho Château Duvalier”. A leitura inicia-se pelo
verbal, na cor preta, posto sobre a maior fotografia que é encenada: “Bom gosto não tem
hora.”; essa primeira cena retrata um horizonte num momento em que o sol está prestes a
se pôr, e há ainda um barco à vela flutuando sobre o mar. As formas triangulares das velas
do barco, somadas à figura masculina que “invade” a cena, levam nosso olhar para a ima-
gem abaixo, à esquerda, na qual o homem parece ter acabado de “conquistar” a sua pesca,
pois está ao mar, vestindo um equipamento de mergulho e exibe sua pesca (uma lagosta).
Essa imagem, por sua vez, também é “invadida” por outra cena, na qual uma mulher sorri-
dente está em pé sobre o barco (o mesmo da primeira imagem), tem os cabelos castanhos
e longos e veste um maiô amarelo com decote profundo, e segura um chapéu de abas
largas feito de palha em sua mão. Esse chapéu também se sobrepõe sobre a seguinte cena,
que se passa no interior desse barco: são duas mulheres e dois homens encenados, e en-
contram-se sentados à mesa em meio a um jantar (ou seria um almoço tradio?). Uma das
mulheres, à esquerda da cena, veste um biquíni tomara-que-caia também na cor amarela,
seus cabelos são castanhos e ondulados, os quais ela deixa meio presos por uma presilha
branca – ela parece estar falando, pois os olhares dessas outras figuras se voltam para ela; à
direita, um homem de cabelos anelados veste uma camisa branca; seguido por um homem
que está meio levantado, pois serve o vinho aos seus companheiros de mesa, e veste uma
camisa estampada em tons verdes, ornando-a com uma calça amarela. Ainda à direita des-
se tem-se a segunda mulher encenada, que corresponde à mesma figura presentificada em
outra cena, vestindo o maiô, mas agora ela veste uma blusa (ou um vestido) tomara-que-
230 caia e um cinto na região da cintura; a lagosta pescada está servida sobre a mesa de forro
vermelho. Pelo posicionamento dos sujeitos, somos colocados enquanto observadores da
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

cena, mas de uma forma que parece quase um convite para nos sentarmos à mesa com
eles. Essa grande cena é também sobreposta por outra imagem, na qual está novamente
encenada a figura feminina com presilhas nos cabelos, mas desta vez, mais próxima de nós,
para que possamos melhor observar o degustar de seu vinho Château Duvalier, seguida,
à direita, por uma cena também aproximada, da mesa onde se encontram as garrafas de
vinho e o alimento que acompanha – toda a composição cria um trajeto circular a ser segui-
do pelo olhar. Assim, o “bom gosto” seria beber o vinho anunciado, mas bebê-lo a qualquer
momento que lhe caiba, “sem hora” para fazê-lo, seja de dia em “alto mar” acompanhando
um pescado, ou em qualquer outro momento – beber esse vinho é “sempre de bom gosto”,
o bom gosto dos sujeitos que sabem comer, beber, divertir-se e vestir-se.
Ainda nos modos de alimentar-se, na figura 97e, nos deparamos com uma figura mascu-
lina, de cabelos volumosos e anelados, bem como são volumosos a sua barba e seu bigode;
ele veste um suéter vermelho sobre uma camisa branca, da qual vemos apenas o colarinho
engomado, além de uma parte da calça jeans que veste, e ele está lendo um livro. Segura-o
com a mão esquerda, e com a mão direita segura uma taça que contém um vinho vermelho
como seu suéter. Abaixo dessa fotografia, há o verbal: “Estar só e se sentir bem acompanha-
do é um privilégio de quem está de bem com a vida”, e esse verbal é posto sobre a fotogra-
fia que encena o produto, a garrafa do vinho Marjolet Cabernet. Em tons avermelhados, a
garrafa está deitada e acompanha o trajeto do olhar, que continua (e termina) no verbal:
“Marjolet. Só não combina com tristeza.”. O homem então não está só, mas na companhia
de seu livro e das histórias que conta, bem como de seu vinho – são companhias privile-
giadas de quem “está de bem com a vida”, alegre e, talvez, considerando que o produto
anunciado seja (relativamente) refinado, esse sujeito também estaria financeiramente de
“bem com a vida”.
Passamos assim aos modos de divertir-se com a figura 97f, na qual o olhar adentra a
cena pelo verbal: “Ligue-se na primeira do dial”, seguida por uma fotografia colocada sobre
o fundo branco, que encena uma mulher na praia, deitada sobre a toalha na areia. Ela traja
um biquíni branco, de tiras mais finas e que deixam boa parte de seu corpo desnudo, e
ainda óculos escuros de armação branca – seu rosto vira-se para o lado direito do anúncio,
no qual encontramos seu chapéu de praia apoiado sobre a extremidade da toalha; seus
cabelos estão molhados, são escuros e curtos. Está se bronzeando, pois há certo brilho em
sua pele, refletindo a luz do sol, o que denuncia o uso do óleo bronzeador; sob ela, na toa-
lha branca, os grandes e verticalizados números do “dial” na cor preta: “89,3”, seguidos pelo
verbal que enuncia a espacialidade: “RIO”. Essa mulher posiciona-se de modo a evidenciar
suas curvas, como se, com seu corpo, reiterasse as formas curvas no número “8”, e com
seus pés, reiterasse a vírgula. O seu pé direito ultrapassa as linhas delimitadas à fotografia 231
e se posta sobre o verbal logo abaixo, como se seu corpo-moda saltasse da página, dando

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


um efeito de profundidade a esse corpo. Assim, somos direcionados, do sinuoso trajeto do
olhar sobre a imagem, ao seguinte enunciado verbal:

Agora você não precisa mais ficar dando voltas no rádio para descobrir a FM do mo-
mento. A Rádio Manchete é a primeira do dial. Ligue-se nela. Para ouvir o que há de
melhor em um FM. Um show musical atrás do outro. Um sucesso atrás do outro. No-
ticiário de hora em hora na mais dinâmica programação que uma FM já conseguiu. E
como você gosta.

Agora os “ouvintes” enunciatários podem descobrir facilmente o dial da Rádio Manche-


te, tanto das “ondas do rádio” quanto na própria encenação do anúncio, nessa rádio que só
toca “sucesso atrás do outro”, além do noticiário de “hora em hora” que mantém seu ouvinte
“ligado” às novas – alegam ser assim que seus enunciatários gostam, talvez de acordo com
o que eles aprenderam a gostar em matéria de rádio. À direita desse verbal, unindo também
imagem e fundo branco, está a icônica logomarca da Manchete, agora utilizada na sua rá-
dio, reiterando sua marca e expandindo-se para além da revista.
Ainda nos modos de divertir-se, a figura 97g anuncia os cigarros Chanceller 100. Dessa
vez, a figura masculina é encenada por um desenho, o que, já nesse ano de 1980, é uma
quebra com o modo de figuração pela fotografia, empregando um caráter mais lúdico em
suas composições. Temos então um homem, que tem seus traços delineados meio disfor-
mes, ou orgânicos de certa forma, como se fosse um desenho recortado de um papel e
colocado sobre um fundo de papel azul claro. Ele está sentado sobre um banco, tem seus
cabelos pretos e ondulados, e nos olha de maneira oblíqua, enquanto fuma seu cigarro.
Veste um paletó branco sobre uma camisa azul clara, cinto também azul claro e orna-os
com uma calça jeans de azul índigo. Sobre sua figura tem-se o verbal, em uma tipografia
fina, sem serifas e em itálico: “Quem tem Chanceller tem bom gosto” – a questão do gosto
é aí mais uma vez reiterada –, prescrevendo aos seus enunciatários o cigarro que deve ser
fumado por quem “tem bom gosto”, seduzindo-o a ser esse sujeito, a vestir-se como ele se
veste e portar-se como ele se porta, tornando-se assim um sujeito de apto, “de bom gosto”.
A diagonalidade do tipo gráfico direciona nosso olhar aos cigarros que saem do maço de
Chanceller 100, uma embalagem predominantemente vertical e que tem em si figurativiza-
das a mesma cartela de cores já encenadas, construindo um trajeto que vai do azul índigo
ao branco, evidenciando o nome da marca. À esquerda dessa embalagem, o verbal de mes-
mo tipo gráfico evidencia: “O fino que satisfaz”; é o cigarro fino e o estilo fino, de quem tem
gosto “refinado” e fuma esses cigarros.
Nos modos de organizar-se temos a figura 97h, que anuncia pelo verbal (na cor preta
sobre o fundo branco): “Haja lata! agora existe o abridor afiador automático Arno.”, e assim
232 seguimos para observar a fotografia – que é delimitada por uma linha preta nas extremida-
des superiores e inferiores. Nela é encenada uma figura feminina, sorridente e com maquia-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

gem leve, que tem ares de “menina moça” por seu aspecto jovial e por prender seus cabelos
ondulados e castanhos em “maria-chiquinha” (quando os cabelos são divididos em duas
partes e presos, um de cada lado da cabeça), um penteado muito comum entre as crianças.
Contudo, sua mão esquerda é encenada mais próxima de nós ao segurar o produto anun-
ciado, e podemos notar que usa uma aliança de casamento; trata-se de uma mulher casada.
Em torno de sua figura são postas várias latas abertas, de diversos alimentos; e assim, cen-
tralizado na página, é encenado o “abridor afiador automático Arno”, o qual “Abre latas com
facilidade, afia facas com rapidez e segurança”, como nos diz o verbal à direita do produto,
o qual acabou de realizar sua função de abridor de latas, mostrando que abre latas sem
deixar “rebarbas”, como afirma o verbal que o segue logo abaixo:

Inédito, novo, inteligente e moderno, o Abridor Afiador automático Arno combina duas
importantes utilidades num só aparelho [...]. Para abrir latas, basta coloca-las no apare-
lho, pressionar a alavanca de funcionamento, e em segundos a lata estará inteiramente
aberta, num corte liso e uniforme, sem rebarbas. E com toda a higiene, pois o corta-
dor não entra em contato com os alimentos. [...] O Abridor Afiador automático Arno é
avançado, bom e bonito. É o primeiro fabricado no Brasil. Tem garantia de um ano e a
qualidade Arno, que você conhece. Fique de olho nos novos lançamentos. Quanto mais
Arno, melhor!

Ao lado desse verbal, no canto inferior direito da página, são encenadas duas fotogra-
fias que nos mostram as duas funções (e duas cores: amarelo e azul) do produto em seu
momento de uso, tanto como abridor automático de latas quanto como amolador de facas.
O anúncio constrói assim um simulacro de enunciatário que seria uma jovem esposa, que
já é (ou ainda será) mãe de família e precisa de maior facilidade e segurança para abrir seus
tantos alimentos enlatados, com os quais se alimenta a alimenta sua família.
Por fim, no último anúncio analisado em 1980, referente aos modos de organizar-se,
temos a figura 97i, na qual os elementos são encenados de forma diagonal em relação à
página, delineando uma leitura ascendente, da esquerda para a direita – que ainda permite
que a leitura seja feita de maneira contínua, sem precisar “girar” a revista nas mãos. Assim,
sobre um fundo branco, quatro linhas formam espécies de “pautas” para abrigar o verbal na
cor preta e em letras garrafais: “Gente / como você.”, seguido logo abaixo por uma cena fo-
tografada, na qual um homem jovem, de cabelos castanhos, cacheados e volumosos, veste
uma camisa branca dobrada nas mangas, segura uma caneta em sua mão e apoia-se sobre
o balcão, repleto de papéis e com uma placa informacional, na qual são especificados os
serviços prestados: “Cheque especial / Seguros / PIS / Cofres de Aluguel”. Esse homem olha
para a outra figura masculina à sua frente e parece argumentar sobre algo – talvez esteja
oferecendo-lhe os serviços do banco Banespa (que tem sua placa ao fundo, junto a algu- 233
mas plantas de espaços internos). O outro homem tem cabelos lisos e escuros, e levemente

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


compridos; ele sorri, veste um moletom branco com detalhes estampados em azul, um
relógio de pulso e uma calça jeans que é ajustada por um cinto marrom. Esse homem sorri,
apoia-se levemente sobre o mesmo balcão, e tem um violão apoiado sobre seus ombros,
elucidando um momento descontraído, mesmo que se dê dentro de um banco – parecem
tentar quebrar o estigma de seriedade que normalmente envolve esses ambientes “cor-
porativos”. Esses actantes se entreolham e conversam de forma descontraída, relaxada; a
leitura continua pelo verbal, à direita do violão, seguindo suas formas curvas:

O atendimento de um grande Banco não aparece apenas dentro da agencia. Decidido


no apoio à nossa Agricultura, desde o plantio até o armazenamento. Atento à evolução
da Pequena e Média Empresa. Eficiente na busca de novas oportunidades de comércio.
No Brasil e no exterior. Prestativo na hora de orientar um investimento ou facilitar o
pagamento de suas contas. Para você ser atendido, procure um banco que entende
seus problemas. Procure o Banespa e trabalhe com gente que acompanha o seu ritmo
de vida.

O banco coloca-se como uma empresa “eficiente” e “prestativa” em seus serviços, que
não se limita à agência, pois acompanha o “ritmo de vida” de seus clientes. Esse atendi-
mento é representado pelo atendente à esquerda, jovem como o cliente e mostrando-se
prestativo. O ritmo de vida que esse banco empreende é, portanto, jovem e ágil, que acom-
panha as mudanças e “pautas” da sociedade. Pautas essas que são reiteradas em sua logo-
marca, nas cores vermelha e preta de São Paulo, vermelho e preto de “BaneSPa”.
Esse mesmo valor da juventude, ou mesmo do gosto pela juventude, como vimos, é rei-
terado em todos os anúncios. São encenados homens e mulheres jovens que se divertem,
vão à praia, escutam a rádio, em um ritmo de vida acelerado e ritmado pelo consumo. O
gosto foi muito utilizado enquanto recurso para valorizar e/ou qualificar os sujeitos inscri-
tos nesses discursos; o gosto, ou o bom gosto, portanto, é algo a ser aprendido e sensivel-
mente apreendido pelos destinatários.
Apreendemos, da mesma forma que nos anos anteriores, os formantes dos planos de
expressão e conteúdo que constroem o sentido desses discursos, compondo as aparências
dos corpos-moda. Abaixo, são sistematizados os dois planos, de expressão e conteúdo:
234 Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

/“démodé”/ vs / “na moda”/

longilíneo curvo
EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
geométrico orgânico
vertical vertical
escuro claro
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 18: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1980. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade que, são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se colocam no jogo de
construções da visibilidade. Assim, elaboramos o seguinte quadro:
235

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


“em representação” “nas coxias”
querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 19: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1980. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: Produzido pela autora.

Apreendemos corpos-moda que se posicionam enquanto corpos que querem ser vistos
nas figuras 97b, 97c, 97d, 97f, 97g, 97h e 97i, pois já estão prontos a agir e ostentam suas
vestes e seus corpos, representando seu papel público, seja na praia, nos passeios com os
amigos, indo ao banco “jovial”, ou mesmo exercitando seu “bom gosto” ao fumar os tais
236 cigarros. Em relação de contrariedade com esses, temos a figura 97e que figurativiza um
corpo-moda que quer não ser visto, pois, é sujeito realizado, mas está quase de costas ao
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

enunciatário e só preocupa-se com o vinho e as histórias do livro que o acompanham, sem


se importar com a observação curiosa. Em contradição a esse, a figura 97a instaura corpos-
moda que não querem não ser vistos, pois já realizam seu papel sedutor, mas estão quase
desnudas, vestidas apenas de lingeries e agindo sem constrangimento, “publicizando” suas
ações relativamente privadas.

4.3.3. A moda nos modos de vida em 1990

No quadro abaixo temos organizados os anúncios selecionados do ano de 1990, lado a


lado e na ordem em que serão analisados:

Modos de 1990 Figura feminina Figura masculina


Modos de vestir-se a b

Modos de cuidar-se Ausência Ausência

Modos de alimentar-se c Ausência

Modos de divertir-se d e
Modos de organizar-se f g
237

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Quadro 9: figuras 98a, 98b, 98c, 98d, 98e, 98f, 98g.

Em 1990, como vimos, há poucos anúncios que figurativizam corpos-moda nos modos
de vestir-se, e todos anunciam roupas íntimas femininas. No entanto, em um deles é pre-
sentificada uma figura masculina (figura 98b), assim, consideramo-la enquanto encenação
também da moda masculina.
Iniciamos essa análise pela figura 98a, na qual uma mulher está sentada, parecendo à
vontade, com um de seus braços apoiados na cadeira – como se apontasse para seu pró-
prio corpo – enquanto o outro braço segura um copo cheio. Também na gestualidade, sua
perna direita está levantada e apoiada sobre a penteadeira espelhada ao seu lado, ficando
assim com as pernas entreabertas. O trajeto do olhar começa em seu rosto e percebemos
logo seu olhar direto para o enunciatário, como se o seduzisse para estar com ela nesse mo-
mento, para observá-la, ou talvez o fazendo crer que pode ser como ela, sensual como ela
que usa esse produto anunciado. Seus cabelos, pretos e encaracolados, parecem longos,
mas estão presos de alguma forma e alguns cachos recaem sobre seu rosto (maquiado) e
seus ombros; percebemos assim a sua roupa, um vestido com uma padronagem xadrez e
ombreiras que evidenciam essa parte do corpo, criando uma forma triangular entre om-
bros e cintura. O vestido está aberto e podemos ver suas roupas íntimas, um sutiã e uma
calcinha Valisière de modelo “asa delta”, brancos e de renda. O formato da calcinha apon-
ta para sua genitália, levando-nos a seguir o caminho traçado por sua perna levantada, e
assim, percebemos o espelho circular que reflete a imagem dessa mulher, agora de per-
fil – sua imagem é reiterada num mesmo discurso, valorando uma vaidade e sexualidade
femininas encenadas nessa construção. Pelo cenário, com a cama ao fundo, penteadeira
espelhada, mesa, cadeiras e louças de prata, tudo parece acontecer num quarto de hotel.
Pelo verbal, é narrado: “Nestes tempos difíceis, restrinja suas roupas ao mínimo necessário”,
mas essa grande encenação, que ocupa duas páginas da revista, é uma fotografia em preto
e branco e nos remete a outros tempos – seriam esses “outros tempos” mais “fáceis”?. A nar-
238 ração, em vermelho, começa próxima a seu pé apoiado, segue por suas pernas, passa por
sua cintura e termina em suas mãos apoiadas e, com as três últimas palavras em uma fonte
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

menor, faz-nos aproximar de sua imagem para poder ler tal frase – esse é outro trajeto que
pode ser seguido pelo olhar na cena, fazendo uma leitura “padrão”, horizontalmente e da
esquerda para a direita.
Na figura 98b, ainda nos modos de vestir-se, temos um homem e uma mulher encena-
dos em seus meios-corpos; ela tem os cabelos lisos e soltos, brincos pequenos e brilhantes,
sorri e nos olha diretamente, seus braços estão a envolver o homem que a abraça. Ela veste
apenas seu sutiã e sua calcinha pretos, com recortes, transparências e textura pregueada,
e esses recortes nos remetem à modelagem das roupas íntimas da figura 98a – um laço de
presente está posto ao lado de seu corpo-moda. O homem que a abraça parece vestir um
terno preto, camisa branca e gravata bordô, tem seus cabelos penteados para trás, e não
“tira” os olhos dela. Trata-se de uma grande cena que se estende por duas páginas da revis-
ta; uma faixa preta, na parte superior da página à esquerda, dá destaque a um verbal na cor
branca: “Vai presentear?”, continuamos o trajeto do olhar passando pelo corpo da mulher,
suas vestimentas, fazendo-nos sentir o afeto entre os dois, e nos deparamos com uma se-
gunda faixa na cor preta, com o verbal: “Vai DelRio”, seguida pelo logo da marca, no mesmo
tom de vermelho da faixa de presente, na qual é narrado: “A lingerie que faz acontecer”.
Outro verbal, ao lado do laço de presente, complementa esse último e nos questiona: “Vai
que na hora do presente ela fique frente a frente... vai que ela experimente... vai acontecer?
Vai DelRio”. Pelo momento que é observado, podemos afirmar que o que “vai acontecer” é
esse encontro íntimo de um casal, talvez se referindo mais especificamente ao ato sexual
que é insinuado na cena. O anúncio, assim, destina-se aos homens em busca desse “acon-
tecimento” com uma mulher – essa, aparentemente, acabou de receber o presente e parece
satisfeita com esse, pois “ficou frente a frente” e “experimentou” seu presente, vestindo sua
nova lingerie, e assim o homem alcançou o fim de seu programa de busca anunciado, em
conjunção com esse “acontecimento” buscado.
Nesse ano analisado não encontramos anúncios nos modos de cuidar-se que presentifi-
quem corpos-vestidos. A partir de todas as análises realizadas sobre esses modos até aqui,
talvez seja possível afirmar que o público de Manchete é formado por sujeitos já educados
(e programados) ao gosto pelo consumo desses produtos, principalmente aos produtos
básicos, como a pasta de dentes ou mesmo o “pó compacto” para as mulheres, e talvez
seja um momento de busca dessas empresas pelo desenvolvimento dos tais produtos de
produtos, aproveitando-se das novas tecnologias e pesquisas disponíveis. Esse seria um
momento, no Brasil, de volta à democracia e abertura de mercados, o que obrigou muitas
empresas a (re)adequar-se a esse novo mercado, mais ágil e que era bombardeado por
empresas estrangeiras.
Nos modos de alimentar-se, esses novos ritmos do mercado podem ser indicativos, 239
também, de uma nova indústria alimentícia que se formava, e que aumentava a produção

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


nacional de produtos industrializados, como a margarina, por exemplo. Uma alternativa
à manteiga que emergiu alegando ser mais saudável que aquela, pois não era feita com
derivados do leite e contendo menos gordura, argumentos que foram essenciais para o
seu sucesso. Assim, temos a figura 98c, que encena uma família composta por um ho-
mem, uma mulher e seus filhos, uma menina e um menino; essa composição e encenação
se tornarão tão recorrentes, que mais tarde levarão ao reconhecimento da denominada
“família margarina”. Nessa composição horizontal iniciamos a leitura pelo verbal, em letras
grandes e na cor preta: “Uma vida saudável tem outro sabor.”, complementado pelo outro
verbal, logo abaixo, nas cores da embalagem: “mila / A única que veio do milho. Agora
com menos calorias.”. Desse último, somos levados pela pequena espátula a adentrarmos
a cena: uma fotomontagem que retrata o café da manhã dessa família, com uma xicara de
café, uma cesta de pães e a embalagem da margarina Mila à frente; atrás dessa encenação
dos alimentos tem-se um simulacro de modo de alimentar-se para “uma vida saudável”, a
família é encenada sorridente e sentada à mesa: o pai tem cabelos um pouco compridos,
está comendo uma maçã e tem sua filha no colo, e a mãe, de cabelos louros, curtos, lisos
e com franjas, tem o filho em seu colo, que por sua vez tem seu bicho de estimação nas
mãos. Todos estão sorridentes e vivendo uma “vida saudável”, e parecem gostar do sabor
dessa vida saudável que, de acordo com o anúncio, é também proporcionada pelo consu-
mo da margarina Mila.
Passamos assim aos modos de divertir-se, iniciando pelo anúncio da figura 98d. Nesse
nos deparamos primeiramente com o seguinte verbal (na cor preta sobre o fundo branco):
“Capte toda a beleza,”, e é como se fosse dada continuidade a essa frase na pequena foto-
grafia quadrada que a segue, à direita, que encena uma mulher em movimento enquanto
cavalga em um belo cavalo marrom – a totalidade da “bela” cena é enquadrada. Dessa ima-
gem, somos direcionados à grande cena do anúncio (na forma retangular e predominante-
mente horizontal), na qual podemos ver com mais proximidade essa mesma figura femini-
na, que veste uma camisa branca com as mangas dobradas, pequenos brincos de brilhante
e um colar dourado, ornando-os com uma calça jeans azul e um cinto marrom – um modo
de vestir que até então notamos ser mais típica do gênero masculino, mas ainda manten-
do uma cintura bem marcada pela calça de cós alto; agora podemos ver que ela sorri, nos
olha diretamente, bem como pode-se notar que seus cabelos claros, longos e lisos estão
ao vento enquanto cavalga. Essa cena é complementada pelo verbal que a segue à direita
(na mesma cor branca de sua camisa): “ou somente a beleza do rosto”, frase essa que dá
continuidade ao verbal inicial e que também explicita o enquadramento da imagem, pois
a vemos mais próxima de nós pelo enquadramento que mostra “somente a beleza do ros-
240 to”, e em boa qualidade de imagem, mesmo que ela esteja em movimento. Seguimos para
baixo e nos deparamos com uma terceira fotografia, que é delimitada por um círculo, e nos
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

mostra apenas um detalhe da orelha da figura feminina, evidenciando seu pequeno brinco
em uma imagem de ótima qualidade fotográfica, a qual é “continuada” pelo verbal: “ou so-
mente a beleza da joia.”. Instaura-se, assim, uma frase para cada um dos três enquadramen-
tos, que delineia operações enunciativas que vão da debreagem enunciva à enunciativa,
aproximando-nos cada vez mais da figura encenada, até vermos apenas detalhes de seu
corpo. Essa operação figurativiza uma das qualidades anunciadas da “Câmera Panasonic
M-1000”, o seu “Zoom 8X e Macro Auto Focus para o close que você quiser”. Isso se torna
ainda mais concreto pela continuidade dada no verbal que segue:

A cena está longe, mas você quer captá-la de qualquer maneira. A Panasonic M-100
está pronta. Porque ela tem o fantástico Zoom 8X. Em seguida, você aproxima. As len-
tes quase tocam a imagem que você quer captar. A Panasonic M-1000 já está pronta
para a ação. Automaticamente. Captando tudo o que estiver em quadro, graças ao ex-
clusivo Piezo Auto Focus [...]. Seja para captar toda a beleza ou apenas um detalhe.

Essa câmera, assim, tem tecnologia que permite captar as cenas distantes de si, apro-
ximando-as, trazendo-as do posicionamento “ele, lá e então” para o “eu/tu, aqui e agora”,
aproximando os sujeitos da enunciação: sujeito que filma e sujeito que é filmado e, de uma
forma ou de outra, aproximando também destinatário-revista e destinador-leitor. Essa câ-
mera está “pronta” e é também encenada para que seja reconhecida mais facilmente num
possível momento de compra.
No segundo anúncio dessa categoria temos a figura 98e, que ocupa duas páginas, for-
mando uma grande “tela do parecer” horizontal. A leitura se inicia pelo verbal, em grandes
letras na cor preta e sem serifas: “Tem tudo o que os televisores grandes têm. E uma vanta-
gem que eles nunca vão ter: é portátil.”, e assim adentramos a grande cena, e ao seguirmos
o modo de leitura comum – da esquerda para a direita – temos encenado um aparelho de
televisão de tubo da “Toshiba”. Este aparelho tem uma antena dobrada sobre si e não tem
as extremidades bem delimitadas, pois sua cor escura se confunde com o fundo também
escuro, o que deixa em evidência a cena clara e colorida, na qual um homem está uniformi-
zado e esquiando – trata-se de um dos esportes invernais. A seguir, podemos ver encenada
uma figura masculina, que tem cabelos louros e um pouco volumosos, ele sorri e nos olha
diretamente, suas mãos estão sobre a cabeça e ele veste uma camiseta de malha, azul e
com mangas ¾. Por sua gestualidade, é possível afirmar que está relaxado e sentindo-se
bem por poder levar sua TV portátil e assistir aos seus programas, em qualquer lugar e a
qualquer momento que lhe caiba. À direita de sua figura, um retângulo de cor branca dá
destaque ao verbal:
Só a Toshiba poderia aumentar a imagem de um portátil diminuindo o tamanho do televi-
241
sor: novo Tela Plana Compact 15’’. Utilizada nos TVs mais avançados do mundo, a tela plana
diminui as distrações e aumenta em 30% a visibilidade da tela. Compacto no tamanho, o

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


novo Tela Plana não é nada modesto nas vantagens: tem controle remoto, auto-sintonia,
timer, entrada para câmera de vídeo, base regulável, voltagem automática [...]. Novo Tela
Plana Compact 15’’. Grande quando você vê. Portátil quando você carrega. TOSHIBA

A marca TOSHIBA é posta nas extremidades esquerda e direita da cena, reiterando sua
marca enquanto uma fabricante “inovadora” ao projetar uma TV portátil, com uma ima-
gem “grande” e de boa qualidade gráfica, por suas tecnologias que facilitam a vida de seus
consumidores. O homem está assim tranquilo, por toda facilidade que lhe foi oferecida
pela tecnologia dos “TVs mais avançados do mundo”, que não permite “distrações” em seus
esportes, nem em seus momentos de relaxamento e entretenimento, pois tem uma “tela
plana” – são as “novas” do mundo “moderno” que procuram facilitar, ao acompanhar e ser
acompanhados pelo ritmo cada vez mais acelerado do estilo de vida desses sujeitos. Esse
produto, inclusive, pode ser utilizado juntamente com a câmera Panasonic do anúncio an-
terior, pois tem “entrada para câmera de vídeo”, permitindo que o sujeito assista a “filmes” e
closes gravados por ele mesmo.
Na última categoria analisada, os modos de organizar-se, temos a figura 98f, na qual
adentramos também pelo verbal (na cor branca sobre a fotografia): “Poupança múltipla
instantânea, a melhor maneira de fazer seu dinheiro crescer.”, e assim nos deparamos com
duas figuras, uma mulher e um homem, que nos olham diretamente. Ela tem os cabelos
castanhos e cacheados que estão presos (como os da figura do primeiro anúncio analisado
desse ano – figura 98a), usa pequenos brincos dourados, tem os olhos verdes e usa um ba-
tom vermelho bem saturado, sua boa está semiaberta em meio a um sorriso ou uma fala.
Ela ainda veste um blazer roxo com enchimentos nos ombros, sobre uma camisa branca
(algo que nos remete aos looks dos anos 1940), tem as unhas feitas e usa esmalte claro, e se-
gura um envelope em sua mão. Sobre esse envelope retangular que mescla as cores verme-
lha e preta, é posto o seguinte verbal: “Poupança múltipla instantânea” sobre o vermelho,
seguido logo abaixo pela logomarca do “nossa caixa / nosso banco – um banco pra valer”
sobre o preto. Por trás da figura feminina, como se a abraçasse, posta-se a figura masculina;
ele tem os olhos verdes, os cabelos castanhos e um pouco compridos, os quais deixa meio
despenteados, sorri de forma cerrada e discreta, veste uma camisa branca com pequenas
listras escuras e segura uma nota de 500 cruzeiros com sua mão esquerda, tirando-a do
envelope segurado pela mulher. O posicionamento deles e de suas mãos cria um efeito de
sentido de unicidade, como se fossem um só sujeito que segurasse o envelope e “desfrutas-
se” de seu conteúdo. Abaixo dessa imagem, sobre uma faixa branca e na cor preta, o verbal
continua: “Entrou, poupou, ganhou”, seguido ainda por outro, em letras menores:
Poupar sempre foi importante, você guarda hoje e tem o dinheiro à sua disposição,
242
sempre que precisar. Com garantia e rentabilidade de correção de 6% ao ano. Para você
escolher a melhor maneira de aplicar suas economias, a Nossa Caixa-Nosso Banco está
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

lançando a Poupança Múltipla Instantânea [...] A partir de 500 cruzeiros, você faz o seu
depósito, recebe seu Certificado e pode sacar em qualquer agência da Nossa Caixa-
Nosso Banco. Tudo descomplicado para facilitar sua vida. E pode fazer isto todos os
dias, garantindo assim remuneração diária para seu dinheiro [...] Acompanhe a sabedo-
ria popular: quem poupa tem. E aproveite para conhecer os outros produtos e serviços
que a Nossa Caixa-Nosso Banco coloca à sua disposição para você viver melhor.

Os dois sujeitos, então, encontram-se juntos para poupar o dinheiro que economiza-
ram, e começaram justamente pelos quinhentos cruzeiros que nos mostram. Ao “entrar”
com uma conta nesse banco e poupar dinheiro em sua poupança, alegam que a rentabili-
dade é praticamente automática, segura e é garantida – facilidades que “facilitariam” a vida
desse sujeito enunciatário, e os serviços do tal banco fariam a “vida melhorar”. É a “nossa”
conta poupança desses sujeitos, em conjunto, no “Nossa Caixa-Nosso Banco”, um “banco
pra valer” o dinheiro investido.
Por fim, o último anúncio analisado (figura 98g), encena uma figura masculina sobre
um fundo branco, quase centralizada entre as duas páginas do anúncio. Sua cabeça está
entre duas frases verbais que anunciam os principais serviços anunciados: “Depósito a Pra-
zo Itaú. / Isento de IOF. Cheio de $$$.”. Esse homem se posta de frente aos enunciatários,
enquadrado da cabeça aos quadris, com olhar direto e sorriso cerrado. Seus cabelos cas-
tanhos estão bem penteados – ele veste um terno clássico de dois botões e de tom amar-
ronzado, sobre uma camisa de cor acinzentada e uma gravata marrom escura com padro-
nagem no mesmo tom de cor do terno (ornando suas vestes em tom sobre tom). Ele tem
fechado apenas o botão superior do paletó, permitindo um “giro” de seu quadril em uma
pose mais descontraída; suas mãos estão atrás de seu corpo permitindo-nos ver bem os
grandes bolsos de seu paletó. Desses bolsos saem as pontas direcionais dos balões de fala
“comuns”, algo característico das histórias em quadrinhos; do bolso esquerdo sai um balão
circular, de contorno vermelho, preenchido pelo azul e com o seguinte verbal em amarelo:
“UAU!”; do bolso direito, e no entremeio das páginas sai o balão maior, de contorno azul e
interior rosa, que acomoda o verbal na cor amarela e em letras garrafais “OBA!”. Seus bolsos
são personificados: o primeiro parece satisfeito e surpreso (“Uau!”), enquanto o segundo
comemora (“Oba!”). Eles expressam tais emoções porque estão “cheios de $$$”, cheios de
dinheiro, e essa satisfação é perceptível também nas feições desse homem, cliente do ban-
co Itaú – lucro e ganho de dinheiro que parece ser recente, após “entrar” para esse banco. A
composição é “finalizada” pelo verbal: “Depósito a Prazo Itaú. Quem pensa, investe.” – esse
sujeito encenado é cliente do banco e, portanto, é simulacro de um “ser pensante”, inte-
ligente e que soube como investir o seu dinheiro ganho; quem for dotado desse saber,
investirá da mesma forma. No canto direito da cena são especificados verbalmente esses 243
serviços e vantagens que propiciam o lucro dos clientes:

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


O Depósito a Prazo Itaú é o investimento que o seu bolso estava esperando. Isento de
IOF. Cheio de rentabilidade [...] Isento de burocracia. Cheio de facilidades [...]. Isento
de dúvidas. Cheio de certezas31 [...]. O Itaú trabalha para você viver isento de proble-
mas e cheio de soluções.

São adjetivados e valorizados esses serviços prestados pelo banco, sem impostos, sem
burocracias, sem dúvidas e com certeza de rentabilidade fácil. O banco se coloca como um
facilitador da vida do sujeito, que diminui seus “problemas” e o ajuda no desenvolvimento
de “soluções”. Isto é expresso nas feições e gestualidade do sujeito, colocando as mãos para
trás, relaxando e “deixando” o banco resolver esses “problemas”. Após esse texto verbal, a
composição é finalizada pelo logo do banco, nas cores laranja e azul, reiterando as cores
contrastantes como as dos balões.
Nesse ano analisado vimos reiteradas as prescrições de como “fazer render” o dinheiro
conquistado, bem como onde e como investir esse dinheiro, seja no presentear a mulher
amada ou a si mesmo, em uma nova TV portátil, em uma câmera de vídeo para registrar
os momentos vividos, ou mesmo nos alimentos para tornar-se mais “saudável”. Não é di-
ferente dos outros anos, ao considerarmos que todos esses anúncios prescrevem onde,
quando e como investir o dinheiro que é “fruto” colhido do trabalho. Contudo, esse aspecto
fica mais evidente e presente no ano de 1990. Não nos ativemos a nenhum aspecto “pré-
determinado” desses sujeitos, mas após as análises em 1990, notamos que é possível afir-
mar que esses sujeitos encenados, que poupam e investem (tanto seu dinheiro quanto nos
novos bens de consumo), têm características muito claras da denominada geração yuppie
(young urban professional people), o que pode nos auxiliar na compreensão desses sujeitos,
que cultivavam o ideário de uma geração de “culto” ao trabalho, encarando-o como uma
religião (PRADO; BRAGA, 2011, p.406). Esses workaholics, como vimos, vestem paletós e
blazers com ombreiras largas e pontiagudas, e linhas mais esportivas para usarem “fora” do
ambiente de trabalho, como o homem que está de camiseta e “relaxado” com sua nova TV.
Da mesma forma, apreendemos os formantes dos planos de expressão e conteúdo que
constroem o sentido desses discursos, compondo as aparências dos corpos-moda. Abaixo,
são sistematizados os dois planos, de expressão e conteúdo:

31  Grifo do anúncio.


244 Continuidade vs Descontinuidade
OPOSIÇÃO

OPOSIÇÃO
DE BASE

DE BASE
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

/“démodé”/ vs / “na moda”/


EXPRESSÃO

EXPRESSÃO
arredondado pontiagudo
vertical horizontal
circular retangular
CONTEÚDO

CONTEÚDO
/arcaico/ /moderno/

Esquema 20: nesse esquema estão categorizados os formantes dos planos da expressão e conteúdo dos anún-
cios de 1990. Temos como oposição de base no plano da expressão Continuidade vs. Descontinuidade que, são
homologados ao plano de conteúdo por /“démodé”/ e /“na moda”/; essas são reiteradas por outras oposições
de expressão e conteúdo, também esquematizadas.

Esses corpos-moda constroem suas aparências pelo modo que se colocam no jogo de
construções da visibilidade. Para explicitar essas relações, elaboramos o seguinte quadro:
245

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Termo vazio

“em representação” “nas coxias”


querer ser visto querer não ser visto
(papéis “públicos”) (papéis “privados”)
Ostentação Pudor

Sem constrangimento Modéstia


“no camarim” “no ensaio”
não querer não ser visto não querer ser visto
(“publicização” dos (“privatização” dos
papéis privados) papéis públicos)

Termo vazio

Esquema 21: rede taxinômica dos modos de visibilidade dos sujeitos encenados nos discursos publicitários em
1990. Para ilustrar, selecionamos algumas imagens representativas de cada modo. Fonte: produzido pela autora.

Finalmente, nos modos de visibilidade explicitados em 1990, apreendemos corpos-


moda que se posicionam enquanto corpos que querem ser vistos, nas figuras 98c, 98d, 98e,
98f, 98g e 98h, pois já estão prontos a agir e ostentam suas vestes, representando seu papel
público quase como em um espetáculo. Em relação de implicação a esses, as figuras 98a e
98b colocam-se enquanto corpos-moda que não querem não ser vistos, pois estão atuando,
mas vestem apenas suas roupas íntimas e agem sem constrangimento, seja com o vestido
246 aberto em um quarto de hotel, seja quando o sujeito presenteia sua amada que veste a
lingerie e a abraça, ambos “publicizando” suas ações consideradas privadas.
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

4.4 Os modos de vida em ciclos: moda, aparências e consumo

Debruçamo-nos, durante as análises, sobre os discursos anunciados, procurando percorrer


sua geração de sentido. Apreendemos corpos-moda diversos, bem como diversos modos
de vestir-se e de se fazer ser visto ou não, tanto nos próprios modos de vestir-se, quanto nos
outro cinco modos de consumo que delineamos. São modos cadenciados por uma dinâ-
mica de visibilidades que se dão por operações múltiplas, e regem os modos de portar-se
a cada moda sazonal, explicitando-nos papéis sociais prescritos a cada gênero durante as
décadas, bem como os simulacros de estilos de vida de cada tempo – um estilo de vida
agitado pelo trabalho, um estilo de vida esportista e jovial, ou um estilo de vida mais “fami-
liar”, dentre outros. Enfim, são simulacros com os quais o sujeito pode se reconhecer para
“sentir-se de seu tempo”, como dissemos anteriormente.
Como explicita Martyniuk (2013, p.712), esses discursos anunciam algo e têm um ob-
jetivo comercial que:

[...] é gerador desse tipo de comunicação [e] envolve uma relação entre enunciador
e enunciatário, simulacros das instâncias da marca vendedora (destinador) e de seus
consumidores (destinatário). Os papéis actanciais descritos nos anúncios, em geral, re-
constroem as identidades pressupostas desses sujeitos. Assim, é forte a presença de
debreagens e embreagens enunciativas, que remetem à instância da enunciação (um
simulacro de relação direta entre vendedor e comprador).

Esses discursos, como vimos, operam de formas diversas. Por suas encenações, ora
aproximam e ora distanciam enunciador e seu produto de seu enunciatário, e possivelmen-
te, aproximam ou distanciam também os corpos de papel vestidos do destinador e o corpo
vestido do sujeito destinatário. A esses corpos (re)vestidos, como conceituado por Castilho
(2009, p.132-133), são dadas determinadas possibilidades “formais e de combinação entre
os elementos pertinentes ao revestimento do corpo”, e assim a moda do vestir se articula
com esse corpo, que manifesta sua identidade ou concede “ao sujeito a licença para trans-
formar-se e presentificar-se por intermédio do ‘travestimento’”.
Sobre esse leque de possíveis combinações, pudemos notar durante as análises que
são delimitadas a cada tempo formas diferentes para cada gênero (homem e mulher), dife-
renciando-os e concretizando os papéis sociais prescritos. Aos homens, destina-se um le-
que de opções e combinações muito mais restritas, que consistem em uma aparência mais
padronizada, digamos, e que oferece a esse homem poucas possibilidades combinatórias
(e...e...). Por exemplo, em grande parte desses anúncios, nas diversas décadas (dadas as de- 247
vidas exceções), deparamo-nos com figuras masculinas vestidas com ternos (paletó, calça

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


de alfaiataria, camisa e gravata), que pouco variam em combinações, conferindo a eles mui-
to mais operações paradigmáticas (ou...ou...) para o seu dia-a-dia. Um aspecto decorrente
disso, talvez, é que facilitaria o seu vestir-se e ornar-se diário para ir ao trabalho – quase
como um uniforme –, mais prático e com o menor número de combinações possíveis, que
variam em alguns formantes plásticos (como as cores, estampas e tecidos ornados), e con-
cretizam seu papel social simulacral de “homem trabalhador” que não pode/precisa preo-
cupar-se em demasiado com seu modo de vestir diário.
Para as mulheres, ao contrário, há sempre uma grande variação combinatória, não só
no vestir, mas também no ornar e adornar – com vestidos, saias e camisas/blusas, chapéus,
acessórios, maquiagem, penteados do cabelo, etc., que formam o todo complexo de sua
aparência de forma mais lúdica, mas que exige dessa mulher um tempo maior para opera-
cionalizar seu leque sintagmático (e...e...) sobre o paradigmático (ou...ou...). Isso não neces-
sariamente possibilitaria à mulher representar variados papéis sociais, contudo, constitui-a
como sujeito também complexo, com papéis sociais delimitados, mas que (mais atualmen-
te) lhe concedem o permear dentre diversos papéis em nossa sociedade, permitindo-lhe
variados elementos “da estratégia de promoção individual, pertinente ao regime de visi-
bilidade que o sujeito manifesta num dado contexto” (CASTILHO, 2009, p. 133). Talvez não
muito em um caráter libertário, contudo, aprofundarmo-nos nisso seria pouco pertinente
ao desenvolvimento de nosso trabalho.
Pela análise dessas encenações, que constroem esses papéis nos diversos modos de
consumir, apreendemos variados formantes que caracterizam as expressões que delineiam
as continuidades e descontinuidades da moda. A partir desses formantes, que explicita-
mos em quadros após as análises de cada década, é possível notar certa repetição dos tra-
ços que constituem as aparências de cada década. Assim, podemos afirmar como Castilho
(2009, p.134-134), que “tais elementos de decoração são retomados ao longo da história
humana, por meio de um movimento cíclico32”, o que nos permitiria “estabelecer um elo de
significação pelo qual o arcaico e o moderno se relacionam e se articulam”.
Notamos que essas transições se dão sobre o plano da expressão, sendo retomadas
em dadas sazonalidades, mas mudando sobre um “fundo de permanência”, o plano do
conteúdo. Sobre esse, articulam-se o moderno e o na moda que constituem a não-conti-
nuidade e a descontinuidade versus o arcaico e o démodé, que constituem a não-desconti-
nuidade e a continuidade.

32  Grifo nosso.


248 Essas relações, no entanto, se dão somente quando consideramos a moda que é anun-
ciada, do ponto de vista particular do enunciador instaurado nesse discurso, o qual sempre
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

proclama o “novo” enquanto uma quebra com o que era considerado “na moda” em uma
década anterior, e agora já seria considerado arcaico, valorando as novidades para o enun-
ciatário que incorpora essa “modernidade”. Mas é justamente esse “fundo de permanência”
das transições da moda que permite às descontinuidades ressemantizar a moda para o su-
jeito, sem necessariamente causar uma quebra tão brusca que dessemantize essas mudan-
ças, ou mesmo que faça com que a moda perca o sentido para sujeitos (LANDOWSKI, 2012).
Acreditamos que a moda se faz por esses ciclos, de quebras e retomadas, que definem,
como conceitua Castilho (2009, p.134), um movimento “aspiral e ascendente33” dos forman-
tes constituintes das aparências que ressignificam a moda de cada tempo, “reatualizando
[...] experiências do passado – conjunto de imagens, cognições e emoções que cada so-
ciedade possui como patrimônio” (CASTILHO, 2009, p.135). Instaurando, assim, ritmos dos
modos de parecer, que constituem os modos de ser do sujeito inserido em meio a essa
sociedade também movente e ritmada.
As aparências do corpo-moda, ainda de acordo com a autora (CASTILHO, 2009, p.145),
articulam-se “pela distribuição das linhas, das formas e das cores”, os formantes que com-
põem a plástica do traje. Portanto, o ritmo das aparências é cadenciado pela composição
desses traços. Por isso, a partir das análises e dos quadros esquematizados, podemos de-
linear esse jogo entre o “na moda” e o “démodé” no século XX, que ora incorporam e ora e
excluem traços formantes, construindo as “novas” da moda.
Assim, elaboramos um quadro que permite visualizar esses ciclos dos formantes da ex-
pressão que constituem as aparências de cada década, no qual as repetições encontram-se
sinalizadas por cores:

33  Grifo da autora.


Décadas /“démodé”/ / “na moda”/ 249

1910 longilíneo; horizontal; escuro; geométrico curvo; vertical; claro; orgânico

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


1920 longilíneo; orgânico; horizontal curvo; geométrico; vertical;

1930 curvo; horizontal; orgânico longilíneo; vertical; geométrico;

1940 arredondado; vertical; circular pontiagudo; horizontal; retangular

1950 longilíneo; geométrico; horizontal; escuro curvo; orgânico; vertical; claro

1960 curvo; orgânico; horizontal longilíneo; geométrico; vertical

1970 longilíneo; orgânico; horizontal curvo; geométrico; vertical

1980 longilíneo; horizontal; escuro; geométrico curvo; vertical; claro; orgânico

1990 arredondado; vertical; circular pontiagudo; horizontal; retangular

/arcaico/ /moderno/

Quadro 10: acima, articulam-se os formantes da expressão que se constituem em ciclos, em relação aos for-
mantes do plano de conteúdo.

Ao nos depararmos com essas recorrências, podemos reafirmar que a moda se faz
por esses ciclos do consumo – enquanto constitutiva desses –, incorporando tais traços
formantes no desenvolver de seus discursos e construindo o todo da aparência. Notamos
ainda que esses ciclos de (re)incorporação de traços formantes se deram, pelo menos no
século XX, em intervalos que variam entre 30 e 50 anos. Esses traços, como dissemos, se
fazem por processos de criação do “novo” unindo formantes do “velho”, como processos
aspirais e ascendentes de transcriação.
Seguindo esse raciocínio, pensamos que junto às breves explanações sobre essas in-
teressantes relações, seria importante expor algumas das imagens analisadas, procurando
colocar alguns dos diferentes modos de consumo lado a lado, para que possamos melhor
observar esses traços formantes que foram (re)incorporados no decorrer dessas décadas
do século XX.
Nota-se que os anos de 1910, 1950 e 1980 têm as mesmas cores no quadro anterior,
assim como seus formantes da expressão. São eles o curvo, o orgânico, o vertical e o claro,
que constroem as aparências dessas décadas, em composições que são diferentes, mas que
têm muitos traços similares, como vemos a seguir:
250
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

Figuras 90a, 94a, 97a, 90e, 94c e 97d: Anúncios e fragmentos de anúncios de 1910 (90a e 90e), 1950 (94a e 94c)
e 1980 (97a e 97d) com seus formantes destacados. Fonte: elaborado pela autora.

Analisamos anúncios de lingeries na categoria dos modos de vestir-se em 1910, 1950


e 1980, o que nos permitiu colocá-las lado a lado. O posicionamento dos corpos é ligeira-
mente similar, e a exposição desse corpo, o modo de colocar-se visível é bem próximo, e as
curvas dos corpos (constritas ou não) são evidenciadas pelo jogo de luz e sombra, o claro e
o escuro. Logo abaixo desses, colocamos dois anúncios dos modos de alimentar-se (1910 e
1980) e um dos modos de cuidar-se (1950), nos quais podemos ver ainda similaridades nos
formantes que compõem as peças de roupas, com vestidos justos até a cintura e fluidos
nas saias, que evidenciam curvas, os decotes e detalhes dos vestidos, bem como as gestu-
alidades desses corpos-moda, que são muito similares. Notamos ainda que os cabelos são
sempre volumosos, ondulados e cacheados, nos remetendo à organicidade.
251

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Figuras 91b, 96b, 91a e 96i: Anúncios e fragmentos de anúncios de 1920
(91b e 91a) e 1970 (96b e 96i) com seus formantes destacados. Fonte:
elaborado pela autora.

Encontramos similaridades também entre os anos 1920 e 1970, os quais, se comparar-


mos suas construções aos anos anteriores e posteriores, parecem transições que incluem
formantes tanto da década que passara quanto da década que estava por vir. Ou seja,
mantêm-se os formantes curvos do ano anterior, já incorporando formantes geométricos
– como os círculos e triângulos – que serão mais recorrentes no ano que se segue, man-
tendo-se um mesmo formante em ambos os anos, a verticalidade – dos anúncios e dos
corpos-moda –, sem causar uma quebra muito brusca entre as composições de cada ano.
Enquanto no ano de 1920 observamos uma transição de uma aparência mais “romântica”,
curva, fluida e orgânica para uma aparência mais longilínea e geométrica (de 1930), em
1970 pudemos notar que as aparências transitam do longilíneo e geométrico, de 1960,
para o curvo e orgânico, mais presentes no ano de 1980. É possível notar ainda mais algu-
mas semelhanças nesses anúncios mostrados, como os homens que usam trench coats (e
252 jaquetas), e as mulheres que usam uma cintura ainda alta e marcada por um cinto adorna-
do. Da mesma forma, suas poses e gestualidades, como procuramos pontuar nas imagens,
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

são muito similares.

Figuras 92j, 95j, 92c, 95i: anúncios e fragmentos de anúncios de 1930


(92j e 92c) e 1960 (95j e 95i) com seus formantes destacados. Fonte: ela-
borado pela autora.

As aparências dos anos 1930 e 1960, como acabamos de mencionar, se assemelham


em muitos aspectos, como no uso frequente de elementos geométricos, como os círculos,
as triangulações, além do trapézio, tanto enquanto formante plástico das peças de roupas
quanto na composição geral dos anúncios. Nesses exemplos mostrados, percebemos que os
corpos-moda femininos são um pouco mais esguios e longilíneos, principalmente em 1930,
como vemos na imagem 92c. No vestir masculino, já podemos perceber essa “uniformiza-
ção” de seus trajes pela encenação constante do uso de ternos, camisas e gravatas, que se 253
diferenciam por somente por alguns elementos, como os formantes cromáticos e matéricos.

A moda nos modos de vida: a construção de aparências


Figuras 93c, 98g, 93a, 98a: anúncios e fragmentos de anúncios de 1940
e 1990 com seus formantes destacados. Fonte: elaborado pela autora.

Por fim, encontramos essa relação entre os formantes das aparências de 1940 e 1990,
dois anos em que notamos uma quebra brusca em suas composições. Os corpos-moda
desses anos deixam (quase totalmente) de incorporar os formantes dos anos anteriores,
se considerarmos apenas o século XX. Assim, os corpos-moda femininos incorporam uma
estética mais característica dos “uniformes” masculinos, com suas largas ombreiras, que au-
mentam a proporção do ombro em relação à cintura, montando uma figura mais horizon-
talizada. Seus gestos também são um pouco menos “femininos”, ao compararmos com as
gestualidades desses corpos-moda nos anos anteriores, pois são mais estáticos e estáveis,
explorando menos um efeito de “leveza”. Nesses exemplos podemos notar claramente a
similaridade entre as roupas e gestos dos corpos-moda masculinos e femininos.
Essas relações, que ora aproximam e ora afastam a moda de cada gênero, parecem
ter relação ao contexto em que se inserem, como o início da Segunda Guerra Mundial em
254 1939, que cadenciou uma brusca queda de produção em diversos setores, inclusive no têx-
til, obrigando os sujeitos a se vestirem com artigos reutilizados, reformados, etc. Além dis-
A moda nos modos de vida: a construção de aparências

so, foi um período em que, no exterior, os homens foram guerrear e as mulheres ocuparam
seus postos de trabalho nas cidades. Algo similar acontece em meados dos anos 1980, em
que as mulheres yuppies conquistam grande espaço do mercado de trabalho – seus “unifor-
mes”, eram os tailleurs, os ternos femininos, como vimos.
Finalmente chegando ao final desse capítulo, podemos dizer que conseguimos con-
cluir muitos pontos, mas que também nos suscitou novas questões, como essas que acaba-
mos de mencionar. Assim, nos perguntamos como esse contexto (ou seu intertexto) pode-
ria, de alguma forma, nos esclarecer melhor tanto essa intrínseca relação com a moda e os
modos de consumir, como também nos iluminar sobre como se relacionariam esses modos
na sociedade brasileira, sendo essa uma sociedade que é parte de um todo e que articula-
se com essa totalidade para construir-se. Procuraremos explorar esses pontos no capítulo
que segue [Moda, consumo e urbanidade].
5

Moda, consumo
e urbanidade
256 Um momento presente articula-se, desse modo, à experiência já
vivenciada num passado. Essa organização propõe referências de várias
Moda, consumo e urbanidade

ordens, remetendo-se a outros textos, a outra esfera cultural com uma proposta
de moda inovadora, pois, embora possua características formais já conhecidas,
quando praticadas e inseridas num novo tempo e espaço, oferecem uma nova
dinâmica e ritmo, alternando e introduzindo um novo significado.
Kathia Castilho (2009, p.135)

A moda não pode ser compreendida enquanto um discurso per se, digamos, mas en-
quanto discurso que carrega em si outros discursos e outras semióticas. Além disso, é pro-
duzida e está inserida num dado (con)texto, incorporando-o e sendo incorporada pelos
sujeitos desse contexto, que envolve as transformações urbanas – em que se inscrevem as
principais mudanças sócio-histórico-culturais e econômicas do século XX.
Os corpos-moda empreendidos no último capítulo condensam traduções que com-
põem interdiscursos, intertextualidades e intersemioticidades. Em suma, tratam-se de pro-
cessos tradutórios entre discursos, textos e semióticas: sendo o interdiscurso “inerente à
constituição do discurso”, se configura como a incorporação de temas e figuras oriundos
de outros discursos para a produção de “novos” (FIORIN, 2003, p.35). Dois bons exemplos
desse procedimento seriam anúncios que analisamos que incorporam músicas populares
para construir seus discursos – Garota de Ipanema e País Tropical. A intersemioticidade,
por sua vez, ocorre entre diferentes conjuntos significantes, entre as semióticas. Por exem-
plo, quando há traduções de movimentos artísticos e/ou estéticos para as construções de
aparências do corpo-moda, são casos de intersemioticidades. E mais ainda, essa tradução
acontece pela interdiscursividade, figurativizando seus traços formantes, inerentes à cons-
trução de qualquer movimento artístico.
Sendo o texto uma “unidade da manifestação” dos diferentes níveis de geração do sen-
tido, o (con)texto englobante dessas manifestações seria justamente a incorporação de um
texto em outro, o que define a intertextualidade (FIORIN, 2003, p.30). Como fundamentou
Fiorin (2003, p.29), esse procedimento “concerne ao processo de construção, reprodução
ou transformação do sentido” manifestado. Para melhor explicar esse conceito, tomamos
ainda a definição de intertextualidade segundo Calabrese (2004, p.162), que a concebe
como “o conjunto de repertórios presumidos do leitor referidos quase sempre de modo ex-
plícito no texto”, e esse conjunto de informações, que se espera que o leitor já possua, estão
relacionadas a histórias previamente desenvolvidas que são empregadas na elaboração
discursiva por outras culturas. Essas atuam como “o intertexto de uma obra” e se referem
a outros textos construídos anteriormente, a fim de expor tanto a consistência da obra
quanto a produção de “efeitos de sentido estéticos locais ou globais”. São esses efeitos de 257
sentido estéticos que objetivamos explorar nas cenas publicitárias em análise.

Moda, consumo e urbanidade


Para que esses efeitos de sentido sejam incorporados e manifestados, são necessários
processos mais ou menos implícitos de elaboração, de reelaboração ou até de transforma-
ção de modelos (GREIMAS E COURTÉS, 2011, p. 272). Fiorin (2003) e Discini (2003), exploran-
do esses tipos de operações, indicam três processamentos da intertextualidade que são:
por alusão, por citação e por estilização. Para Fiorin (2003, p.32) a citação acontece quan-
do um discurso repete “percursos figurativos e/ou temáticos de outros”; a alusão reproduz
construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras; e a estilização es-
trutura-se pela “reprodução do conjunto dos procedimentos do discurso de outrem”, ou
seja, do estilo de outrem.
Com esses recursos discursivos, os anúncios não serão tratados enquanto expressões
culturais “singulares”, mas como referências para as situações sociais e culturais nos quais
são produzidos, o que implica que a historicidade está instalada na enunciação enquanto
posicionamento e ponto de vista do enunciador. Quando o analista empreende a semio-
tização de um corpus com uma cronologia que atravessa décadas, o seu modo de operar
só pode ser em busca das sincronicidades nas presentificações das perspectivas assumidas
pelos enunciadores revistas. Como um arqueólogo, ele junta posições e as reopera em blo-
cos que vão tecer a configuração total que envolve texto e contexto.
Neste último capítulo procuraremos pontuar, junto às explanações histórico-contextu-
ais e de maneira objetiva, esses procedimentos utilizados na construção dos anúncios ana-
lisados, trazendo imagens que elucidam as estéticas incorporadas, que vão de movimentos
artísticos a outros anúncios estrangeiros. Ao falarmos sobre os momentos contextuais e
históricos, poderemos explicitar como se dão as relações entre os modos de consumo de-
lineados: modos de vestir-se, modos de cuidar-se, modos de alimentar-se, modos de divertir-se
e os modos de organizar-se, em uma sociedade movente como os seus modos de consumir. 

5.1. Fon-Fon: da Belle Époque da República ao Estado Novo (1910-1930)

5.1.1. A Fon-Fon da Belle Époque brasileira (1910)

É possível que os leitores tenham notado durante as análises do capítulo anterior que a
maior parte dos anúncios da Fon-Fon, principalmente nas edições de 1910, posicionam-se
em algum ponto da cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo, ao elucidar o endereço das
lojas nas quais os consumidores poderiam encontrar os produtos anunciados. É como se
criassem um mapa do consumo dos bens a serem consumidos nessas cidades, e alguns até
mesmo anunciam o envio para qualquer ponto do Brasil.
258 Ao falarmos sobre essa relação no Rio de Janeiro, podemos considerar que com o fim
recente da monarquia e a instauração da Primeira República, a cidade passou por drásticas
Moda, consumo e urbanidade

reformas numa tentativa de destruir a velha sociedade imperial e construir a nova socieda-
de burguesa brasileira. É nessa nova cidade, portanto, que são colocadas essas lojas com
suas vitrinas, nas ruas e nas revistas ilustradas.
Seguindo o caminho trilhado pelos tempos de ouro do café, os poderosos procuravam
maneiras de se identificar cada vez mais com as grandes potências mundiais, como a Fran-
ça e os Estados Unidos. Nesse viés, para Sevcenko (1999, p.27), buscaram – além da criação
de novos meios impressos e da imposição de novos modos –, o “melhoramento” da cidade
do Rio de Janeiro, recentemente definida como o distrito federal do Brasil. Era a concretiza-
ção da dissolução da velha sociedade imperial e o desenvolvimento de uma nova estrutura
urbana. Nesse contexto, a “penetração intensiva de capital estrangeiro” ativou a “cadência
dos negócios e a oscilação das fortunas”, o que incentivou as frenéticas mudanças sociais,
econômicas e políticas que tendenciaram o ritmo de vida dos brasileiros no início do sécu-
lo, principalmente na capital federal.
Traz-se a seguir uma imagem da Fon-Fon que ilustra os “Melhoramentos Municipaes”
do Rio de Janeiro:

Figura 99: esta imagem ocupa uma página inteira da revista Fon-Fon, e
contém o seguinte título e descrição: “Melhoramentos Municipaes Nova
Praça entre a Avenida Mem de Sá e a rua dos Arcos, sob o Viaduto de San-
ta Thereza, mandada executar pelo Dr. Sezedello Corrêz.”. Nela podemos
ver uma praça que foi reformada, próxima aos coloniais Arcos da Lapa,
são os “Melhoramentos Municipaes”. Este espaço serve para o flanar e/
ou transitar das pessoas (e bondes), e para o divertimento das crianças.
Fonte: Revista Fon-Fon.
Sob a perspectiva da semiótica greimasiana, esse “melhoramento” dos espaços é uma 259
espécie de tratamento, numa tentativa de “curar-se” dos “mitos” da origem e destino da

Moda, consumo e urbanidade


cidade, tentando ocultar o passado e disfarçar seu provável futuro (Greimas, 1976). Por esse
viés, principalmente no que tange ao espaço do ponto de vista sociocultural (GREIMAS;
COURTÉS, 2011, p.177), o espaço público era transformado e a sociedade burguesa bus-
cava novos padrões que se adequassem a esse novo espaço, e para isso, seguiram alguns
“passos” para alcançar novos status e assegurar de vez o fim antiga sociedade Imperial.
Identificaram-se com o cosmopolitismo da vida britânica, mas principalmente parisien-
se, como bem vimos nas análises dos anúncios desse início de século, em que se utilizavam
vocábulos franceses (para as mulheres) e ingleses (para os homens) nas cenas publicitárias.
Assim, ainda de acordo com Sevcenko (1999, p.29), o Brasil poderia oferecer ao mundo
uma imagem de credibilidade e acabar por conquistar uma parte da “fartura, conforto e
prosperidade em que já chafurdava o mundo [considerado] civilizado”. Para acompanhar
tal progresso e alcançar tais objetivos, o alinhamento aos padrões e ao ritmo da economia
europeia era essencial, e assim, “a imagem do progresso – versão pratica do conceito ho-
mólogo de civilização – se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia”. O acompa-
nhar desses padrões provocara um aumento considerável nos bens de consumo ofertados
e, portanto, consumidos.
Nesse contexto era necessária uma nova moda e novos modos para a sociedade bur-
guesa no Brasil, e para Roseane Feijão (2011, p.21):

O fenômeno da moda sempre esteve ligado ao desenvolvimento das cidades. [...] no


século XIX, o surgimento das metrópoles coincide com uma nova fase de culto das apa-
rências, durante a qual uma parcela maior da população passa a fazer parte daqueles
que consomem as novidades incessantemente criadas pela sociedade industrial.

Com as novas cidades brasileiras “civilizadas” surgia uma “nova filosofia financeira nas-
cida com a República [que] reclamava a remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados
pessoais” (SEVCENKO, 1999, p.28), o que incluía os modos de se vestir. O “novo cenário sun-
tuoso e grandiloquente exigia novos figurinos”, e como vimos, esses padrões da aparência,
como as modes francesas e o smartismo inglês, eram traduzidos por essas revistas.
O vestuário era importado principalmente da França e chegava dos navios juntamente
com mobiliário, com notícias sobre peças e livros de maior sucesso, sobre “comportamento,
lazer, as estéticas e até as doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade
altamente urbanizada e sedenta de modelos e prestigio” (SEVCENKO, 1999, p.36). Esses pro-
dutos importados que chegavam aos montes tinham seus modos de uso traduzidos nas
revistas ilustradas, e assim, determinavam padrões a serem seguidos quase como leis dita-
das que contavam com “fiscais” da moral e dos bons costumes. Tal foi a rigorosidade dessas
260 medidas, que foi realmente criado um projeto de lei que obrigava os homens mais distintos
a utilizarem paletó e sapatos na região central da capital, e o cumprimento dessa lei chegou
Moda, consumo e urbanidade

até mesmo a prender um cidadão que andava por lá sem colarinho e rigidamente aos mo-
dos smart (SEVCENKO, 1999, p.33).
Os novos espaços da sociedade republicana exigiam novos modos da moda, e nesse
cenário, as revistas ilustradas se popularizaram por seu papel enquanto educadoras desses
modos. Em tempos de viagens longas e demoradas, revistas como a Fon-Fon traduziam os
modos do progresso de outros países, e em pouco tempo chegavam ao Brasil esses modos
culturais traduzidos em imagens – o Rio de Janeiro era a própria tradução dos modos de ser
na modernidade brasileira, os quais eram encenados nas revistas e propagados pelo país.
As pequenas produções que se instalavam no Brasil, no início da produção têxtil no
país, passaram a produzir uns tantos tipos de tecidos e algumas peças de roupas e acessó-
rios a partir do final do séc. XIX. Se instalaram em algumas cidades como Petrópolis no es-
tado do Rio de Janeiro, Blumenau em Santa Catarina, na cidade de São Paulo, entre outras.
No interior dos estados, o comércio era realizado pelos mascates e pelos vendedores con-
tratados pelas próprias lojas, na maioria imigrantes – dentre esses, libaneses, sírios, árabes
e judeus – que viajavam pelas cidades levando mercadorias aos consumidores, as quais,
muitas vezes, já haviam sido encomendadas por meio de catálogos de compra divulgados
em revistas como a Fon-Fon.
A produção de roupas em série durante a Belle Époque brasileira se restringia a peças
como manteaux, robes de chambre e alguns acessórios – roupas básicas do vestuário fe-
minino. A maior parte do vestuário era encomendado nas costureiras ou comprado nas
grandes lojas que contavam com pronta entrega de roupas importadas. No Rio de Janeiro,
casas como a Notre Dame de Paris, A Brazileira, O Barateiro, Casa Colombo, Casa Raunier e
Parc Royal; e em São Paulo, casas como a Casa Allemã e a Mappin Stores, se encarregavam
da venda dessas roupas, tecidos e aviamentos importados. Muitas dessas casas contavam
com suas próprias oficinas para reproduzir os modelos de roupas europeias e oferecê-los
para seus clientes (PRADO E BRAGA, 2011, p.50).
Nesse compasso, a industrialização e a economia, de acordo com Oliveira (s/d, p.3-4):

[...] vão estatuir novas estratégias de circulação da vestimenta que vai estar ligada às
estratégias da publicidade e dos pontos de venda, que associadas às estratégias da
moda que começa a se tornar um fenômeno de visibilidade da pessoa vestida e do
grupo social de pertencimento [...].

O mapeamento das lojas na cidade é, portanto, plasmado nos anúncios da Fon-Fon e


dessa forma a construção das aparências do sujeito se relaciona à construção arquitetônica
da cidade e à regeneração dessas cidades, “dando visibilidade às conformações do ser hu-
mano em uma sociedade erigida pelo poder do capital em que o mercado e a consumação
das mercadorias aparecem interligados”, promovendo a concentração da população nas 261
cidades, nas quais o “desejo de compra vai ser animado pela concepção de que os bens

Moda, consumo e urbanidade


consumidos pela força da posse fazem ser um indivíduo” (OLIVEIRA, s/d, p.3-4) junto ao de-
senvolvimento das grandes cidades. Sendo esse desejo de compra abrangente a todos os
modos de consumir, dos modos de viver nessa sociedade emergente: como vestir-se nesses
novos locais, como cuidar-se e proteger-se das doenças, como alimentar-se bem para o au-
mento da população saudável, como divertir-se ao modo chic parisiense e como organizar-
se com as novas tecnologias e escrever seus textos nas modernas máquinas de escrever.
Vimos que os anúncios de 1910 incorporam alguns formantes plásticos em comum,
como a organicidade, as posturas e gestualidades dos corpos-moda femininos, os quais
fazem alusão a outros discursos e a estilização de outras semióticas. Nesse âmbito, continu-
ando com Prado e Braga (2011, p.59):

Durante a Belle Époque, muitas vogas foram lançadas na Europa, e o Brasil tentou co-
piá-las na medida do possível. Vigorava, nas artes decorativas, nas artes aplicadas e na
arquitetura, o estilo art nouveau, consagrado na Exposição Universal de Paris de 1900,
que propunha um retorno à natureza com a adoção da estilização de formas orgânicas,
o que evidentemente influenciou a moda de vestir feminina.

Como vimos nas encenações dos modos de consumir, a silhueta das mulheres passou a
ser ainda mais curvilínea, seguindo as curvas de arabescos do art nouveau1 – que acompa-
nhava os processos de industrialização e desenvolvimento de tecnologia –, e nesse movi-
mento estético:

A fonte de inspiração primeira dos artistas é a natureza, as linhas sinuosas e assimétri-


cas das flores e animais. O movimento da linha assume o primeiro plano dos trabalhos,
ditando os contornos das formas e o sentido da construção. Os arabescos e as curvas,
complementados pelos tons frios, invadem as ilustrações, o mundo da moda, as facha-
das e os interiores [...]”.2

1  De acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, a definição de art nouveau seria: “Estilo artístico que se desenvol-
ve entre 1890 e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) na Europa e nos Estados Unidos, espalhando-se para o
resto do mundo, e que interessa mais de perto às Artes Aplicadas: arquitetura, artes decorativas, design, artes
gráficas, mobiliário e outras. O termo tem origem na galeria parisiense L’Art Nouveau, aberta em 1895 pelo
comerciante de arte e colecionador Siegfried Bing. O projeto de redecoração da casa de Bing por arquitetos e
designers modernos é apresentado na Exposição Universal de Paris de 1900, Art Nouveau Bing, conferindo vi-
sibilidade e reconhecimento internacional ao movimento. A designação modern style, amplamente utilizada
na França, reflete as raízes inglesas do novo estilo ornamental. [...] O art nouveau dialoga mais decididamente
com a produção industrial em série. Os novos materiais do mundo moderno são amplamente utilizados (o
ferro, o vidro e o cimento), assim como são valorizadas a lógica e a racionalidade das ciências e da engenharia.
Nesse sentido, o estilo acompanha de perto os rastros da industrialização e o fortalecimento da burguesia.”
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo909/Art-Nouveau-> . Acesso em: 24 Set 2014.
2  Idem.
262
Moda, consumo e urbanidade

Figura 100: Pôster parisiense de 1897 feito pelo artista


checo Alphonse Mucha, expoente do movimento art
nouveau. Na imagem acima podemos observar os for-
mantes aos quais os anúncios fazem alusão: gestuali-
dade e traços femininos, o penteado dos cabelos e as
molduras que mesclam curvas e organicidade. Fonte da
imagem: Blog Europeana.eu.

Como elucidamos nas análises, os espartilhos foram mais constringidos, e agora iam da
altura dos seios à virilha das mulheres, realçando seios e modelando quadris – adornados
ainda por rendas, laços e babados – comprimindo ainda mais a cintura. Mas as blusas eram
adornadas com pregas, babados, rendas e bordados que as caracterizam com o aspecto
bufante, o mesmo que é perceptível na figura acima. As saias, que antes ocupavam um
grande espaço ao redor do corpo feminino, ficaram mais justas, o que facilitava um pouco
mais a movimentação, mas ainda restringia os movimentos. Para as novas e grandes cida-
des brasileiras, nas quais era preciso se locomover nas movimentadas, e agora largas ave-
nidas, as mulheres precisavam de um pouco mais de simplicidade para movimentar-se – o
que não necessariamente implica a melhoria de seu conforto.
As cenas publicitárias que analisamos, contudo, não incorporavam somente essa gran-
de estética da arte, mas dialogavam com outros discursos publicitários estrangeiros, cons-
truindo-se em uma sociedade de consumo movente e em estreita relação com outras. Um
exemplo que trouxemos é um anúncio norte-americano da R&G corsets de 1902, que ape- 263
sar da diferença diacrônica – e que por isso delineia o corpo de formas diferentes –, possui

Moda, consumo e urbanidade


características similares ao primeiro anúncio que analisamos, a figura 90a, do ano de 1910.
Essa parece fazer alusão ao estilo do anúncio que a precede, como vemos a seguir:

Figuras 90a e 101: Anúncio analisado e anúncio da “R&G corsets” publicada no ano
de 1902 em uma revista norte-americana. Fonte (fig. 101): HEIMANN & NIEDER, 2012.

Os trajes masculinos também incorporaram esses novos modos, mas aos poucos, e de
maneira menos espetacular que as vestes femininas. Aos corpos-moda masculinos tam-
bém era destinada essa estética “dialógica”. A seguir, são colocados o anúncio analisado da
figura 90d e um anúncio também norte-americano. Ambos anunciam lâminas de barbear
e têm construções similares. Nota-se a semelhante aparência dos homens encenados, com
seus colarinhos e gravatas, cabelos penteados e bigodes aparados:
264
Moda, consumo e urbanidade

Figuras 90d e 102: Anúncio analisado e anúncio norte-americano de lâmina de bar-


bear. Fonte (fig. 102): Vintage ad browser.

Os ternos passaram a ser mais curtos se comparados aos fraques utilizados até então,
quase como se o vestuário masculino acompanhasse as formas aerodinâmicas dos novos
carros que utilizavam para locomover-se. Claramente, era com e pela moda que também se
construía o simulacro de modernidade no início do século XX no Brasil.

5.1.2. A Fon-Fon da melindrosa à la garçonne e do smart ao gentleman (1920)

Em uma dinâmica imperativa, as novas elites se empenharam para entrar em conformida-


de com os padrões de modelos europeus e/ou norte-americanos, sendo esses modelos
baseados na crença do progresso infalível. De acordo com Sevcenko (2012, p.27-28), “era
como se a instauração do novo regime [sociopolítico-econômico] implicasse pelo mesmo
ato o cancelamento de toda herança do passado histórico do país e pela mera reforma ins-
titucional ele tivesse fixado um nexo coextensivo com a cultura e a sociedade das potências
industrializadas”, encarando a realidade do país de maneira distorcida e assumindo que os
padrões de publicização e privatização pudessem ser construídas “com as mesmas caracte-
rísticas no meio social brasileiro”.
As consequências desse processo se difundem com a expansão internacional do capi-
talismo, que se fixaram também na sociedade brasileira. Nesse cenário, foram ampliadas a
consciência da esfera pública – com o advento da impressa e oportunidades de convívio
cultural – bem como foram evidenciados os usufrutos das experiências privadas. A Belle
Époque brasileira, de 1900 a 1920 – que, diferentemente do ocorrido nos países europeus,
compreende também o período da Grande Guerra – é assimilado como um período no
qual desenvolvem-se novas industrias buscando a substituição do que antes seria obtido 265
somente pela importação (SEVCENKO, 2012).

Moda, consumo e urbanidade


Esse período de desenvolvimento, ainda de acordo com Sevcenko (2012, p.37), evi-
dencia a:

[...] introdução do país nos novos padrões de consumo, instigados por uma nascente
mais agressiva da onda publicitária, além desse extraordinário dínamo cultural repre-
sentado pela interação entre as modernas revistas ilustradas, a difusão das práticas
desportivas, a criação do mercado fonográfico voltado para as músicas ritmadas e dan-
ças sensuais e, por último, mas não menos importante, a popularização do cinema.

Os novos padrões de consumo, então, delineavam os modos de viver, incorporando ao


cotidiano do brasileiro, além dos bens de consumo, os produtos culturais como o cinema, a
música e, inclusive, os modelos de revistas. Na imagem que segue, podemos ver que a Fon-
Fon se encarregou de documentar essas mudanças cadenciadas pelo consumir na vida dos
brasileiros e na “Vida Carioca”, pois retrata um dia de sábado no centro da capital do Brasil
de então. Há várias pessoas que circulam pelas ruas nos arredores da casa comercial “Argu-
nhosa”, e essas pessoas estão a flanar e param para observar as vitrinas da loja. Na legenda,
deixa claro que essa loja tem as “vitrines que atraem todas as atenções”:

Figura 103: Os “instantâneos” da Fon-Fon que retratam os novos modos


da sociedade, mais especificamente a carioca. Na legenda: “Durante o ul-
timo sabbado a cidade teve um dos seus dias mais concorridos. As nossas
photografias mostram alguns tirados na rua da Assembleia, em frente
à Casa Abrunhosa, cujas vitrines atrahem todas atenções”. Fonte: revista
Fon-Fon, Mai. 1920.
266 Assim, a renovada burguesia brasileira desejava acompanhar o ritmo de outras socie-
dades, pautando-se principalmente no consumo. Os anos 1920 eram considerados de no-
Moda, consumo e urbanidade

vos tempos, tempos de mudança, tempos modernos. Entre 1910 e 1920, de acordo com
Boris Fausto (2002, p.160), muitas cidades brasileiras cresceram, em particular a cidade de
São Paulo. Isso se deve muito ao afluxo de imigrantes – os já residentes ou os que fugiam da
guerra –, que se mantinham nas cidades ou que saiam do campo para a cidade em busca
de melhores oportunidades. Ainda de acordo com o autor, “a cidade oferecia um campo
aberto ao artesanato, ao comercio de rua, às fabriquetas de fundo de quintal, aos constru-
tores [...] ‘mestres italianos’, aos profissionais liberais”, além de outras opções consideradas
mais precárias, como nas fábricas e serviços domésticos.
Ao longo da Primeira República aconteceram mudanças expressivas nas relações inter-
nacionais do Brasil no que tange tanto o plano político-econômico quanto o social. A Grã
-Bretanha continuava a maior investidora no país, mas, já no início da década de 1920, os
Estados Unidos foram ganhando espaço aos poucos e conquistando o mercado nacional e,
consequentemente, muito da cultura norte americana foi incorporada no âmbito nacional
(FAUSTO, 2002, p.165).
No Brasil de 1920, a maior parte dos serviços básicos das grandes cidades eram provi-
dos por empresas estrangeiras, como, por exemplo, a Light em São Paulo, que desbancou
uma prestadora nacional e passou a controlar transportes como o bonde, bem como a dis-
tribuição de energia elétrica. Tais investimentos em infraestrutura também foram primor-
diais para esse surto industrializante. Assim, o capital estrangeiro ocupa, ainda, um papel
importante no desenvolvimento da estrutura básica das cidades e contribuindo para a mo-
dernização do país e no seu enquadramento com os países considerados mais civilizados.
Em outra corrente política, os militares desgostavam da disputa eleitoral para presi-
dente, vencida mais tarde por Artur Bernardes, em 1922. O movimento “tenentista”, como
ficou conhecido, alegava que a candidatura de Bernardes era antimilitar (FAUSTO, 2002,
p.171), mas, não havia uma proposta clara de reformulação política, queriam “dotar o país
de um poder centralizado, com o objetivo de educar o povo e seguir uma política vaga-
mente nacionalista. Tratava-se de reconstruir o Estado para construir a nação”, procuravam
a unificação do Brasil para que se tornasse um país mais forte. O movimento Tenentista nas
próximas décadas terá um papel crucial no desenrolar na história sócio-política-econômica
do Brasil, buscando vias autoritárias para essas reformas do Estado e da sociedade (FAUSTO,
2002, p.175).
Em face de tais circunstancias incertas, Milton LaHuerta (1997, p.94) afirma que:

[...] instaura-se uma crise de ‘identidade social’ entre a intelectualidade, levando o con-
junto dos homens cultos a problematizar sua condição com enorme radicalidade. É
como se ao longo da década de 1920, sob o impulso de ideais modernistas difusos,
ganhasse corpo uma espécie de ‘transição’ na própria conceituação do que era um ho-
267
mem de letras.

Moda, consumo e urbanidade


Nesse contexto confuso e de tantas incertezas, a destruição provocada pela Grande
Guerra na Europa, segundo Marly Rodrigues (2010, p.5), “tornou ainda mais evidente a
fragilidade humana e aproximou os homens deste século da ambivalente relação com o
efêmero e o eterno”. O eterno, pela vontade das nações de se perpetuarem pelas artes e
produções culturais e, o efêmero, pelas transformações aceleradas do cotidiano das socie-
dades que se desenvolviam como organismos vivos. Surgem, então, movimentos por parte
dos intelectuais brasileiros que em uma diferente corrente nacionalista, incitaram proces-
sos de busca por uma “identidade nacional”. O marco desse movimento fora a Semana de
Arte Moderna3 em 1922, período em que LaHuerta (1997, p.94) afirma que foi “identificado
com a ruptura com o padrão cultural bacharelesco vigente”. Eram, portanto, vários indícios
do desenvolvimento de um pensamento nacionalista e nesse sentido, o conceito de mo-
dernidade passaria a representar a quebra do paradigma social vigente.
O intelectual brasileiro de 1920, formado em grande parte por artistas expoentes de
diversas áreas, na busca de uma identidade social, não se viam mediados no plano político,
assim, passaram a absorver a ideia de que, além da produção cultural, lhes cabiam ou-
tro papel no processo social. Encarando essa quebra como uma missão, esses intelectuais
questionam a ordem em voga “com base num ângulo de visão genericamente modernis-
ta, que, buscando o ‘brasileiro’, recoloca com muita força a preocupação com o nacional e
o toma do popular”, o que se desdobrará na Revolução de 1930 e na implementação do
Estado Novo que acaba por implantar “um padrão de produção cultural que vai politizar a
produção cultural” (LAHUERTA, 1997, p.95-98).

3  “O modernismo no Brasil tem como marco simbólico a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no
ano de 1922, considerada um divisor de águas na história da cultura brasileira. O evento - organizado por um
grupo de intelectuais e artistas por ocasião do Centenário da Independência - declara o rompimento com o
tradicionalismo cultural associado às correntes literárias e artísticas anteriores: o parnasianismo, o simbolis-
mo e a arte acadêmica. A defesa de um novo ponto de vista estético e o compromisso com a independência
cultural do país fazem do modernismo sinônimo de “estilo novo”, diretamente associado à produção realizada
sob a influência de 1922. Heitor Villa-Lobos na música; Mário de Andrade e Oswald de Andrade, na literatura;
Victor Brecheret, na escultura; Anita Malfatti [...] Di Cavalcanti, [e Tarsila do Amaral que se junta à eles mais
tarde], na pintura, são alguns dos participantes da Semana, realçando sua abrangência e heterogeneidade.
Os estudiosos tendem a considerar o período de 1922 a 1930, como a fase em que se evidencia um compro-
misso primeiro dos artistas com a renovação estética, beneficiada pelo contato estreito com as vanguardas
europeias (cubismo, futurismo, surrealismo etc.). Tal esforço de redefinição da linguagem artística se articula
a um forte interesse pelas questões nacionais, que ganham acento destacado a partir da década de 1930,
quando os ideais de 1922 se difundem e se normalizam. Ainda que o modernismo no Brasil deva ser pensado
a partir de suas expressões múltiplas - no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco etc. - a Semana de Arte
Moderna é um fenômeno eminentemente urbano e paulista, conectado ao crescimento de São Paulo na dé-
cada de 1920, à industrialização, à migração maciça de estrangeiros e à urbanização”. Informações retiradas da
Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: << http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo359/modernismo-
no-brasil>> Acesso em: 20 Out 2015.
268
Moda, consumo e urbanidade

Figura 104: Essa é a obra São Paulo (1924) de Tarsila do Amaral, ainda na sua primeira fase, uma das artistas
expoentes do modernismo brasileiro, e mais tarde passou a fazer parte do “movimento antropofágico”. Há pre-
domínio das formas retangulares e ovaladas. Tarsila apresenta a aparência de uma São Paulo em transformação,
que tornava-se predominantemente urbana e tentava construir uma arte “brasileira” partindo de traços co-
muns à movimentos vigentes na Europa. Fonte: pinacoteca.org.br.

Esses artistas e intelectuais se esforçam para criar no Brasil um campo para uma maior
produção cultural e sua maior participação das mudanças do campo político, produzindo
obras que expressavam o que chamavam de “brasilidade”. A moda, contudo, é “antropofá-
gica” e se faz por esses processos de incorporação cultural; e, nesses tempos, passa por pou-
cos processos de “abrasileiramento”, pois, de acordo com Prado e Braga (2011, p.97), “pouco
se cogitava a existência de uma moda local ou mesmo moda como forma de criação”, e
talvez essa moda se fizesse muito mais por processos de recriação do que de transcriação.
Muito disso se deve à uma nova forma de pensar a moda (incluindo a do vestir), que tor-
nara-se de certa forma mais prática para as mulheres no período pós-guerra, tornando-se
extremamente popular. Chanel inaugura sua casa de costura em 1919 e sua moda dita “re-
volucionária” desenhou roupas para “a mulher emancipada”. Revolucionou o uso de tecidos
mais simples em composições de luxo, além disso, a população em geral estava com menor
poder de compra e o uso desses tecidos e em menor quantidade, facilitava a produção e a
compra. Além do vestuário, os cortes de cabelos mais curtos “desobrigavam os demorados
serviços do cabelereiro (FOGG, 2013, p.222). É provável que, por esse caráter revolucionário 269
da moda feminina nesse período de luta por direitos, foi uma estética “da praticidade” que

Moda, consumo e urbanidade


vigorou por muitos anos e em diversos países.
O que determinaria a moda do pós-guerra seria o visual garçonne – a própria antítese
do estilo romântico, no entanto, em 1920 vemos essa transição, como dissemos, do român-
tico ao moderno e “emancipado”. Esse estilo de corte ganhou o nome inspirado na novela/
revista de Victor Margueritte, La Garçonne (a qual mostramos no capítulo Moda (Re)vista no
Brasil), que conta a história de uma jovem progressita, que deixa a casa da família em busca
de uma vida independente (MENDES E HAYE, 2009, p.52).

Figuras 105a, 91b, 91a, 105b: Anúncios analisados em 1920 e anúncios


norte-americanos de produtos de vestuário nessa mesma década. Fonte
(fig. 104 e 105): Vintage ad browser.
270 Essa simplicidade progressista era voga, e os modos de vestir-se cadenciaram compor-
tamentos impulsionados por esses valores da modernidade. O “físico desejável” da moda
Moda, consumo e urbanidade

não seguia mais a curva dos arabescos arcaicos, mas eram adjetivados por “esbelto”, “es-
guio”, “delegado” e longilíneo. Podemos notar nas figuras 91a e 105b, esse corpo esbelto e
longilíneo que era evidenciado por cintas que comprimiam seios e quadris; nota-se tam-
bém que esses anúncios encenam as figuras femininas em poses muito similares, nas quais
seus corpos esbeltos postam-se de forma levemente curva, apoiados sobre um dos pés
– da mesma forna, seus vestidos e chapéus são parecidos. Inspiradas também nos modos
de cuidar-se das atrizes do cinema norte-americano, os quais eram propagados por revistas
como a Fon-Fon, as mulheres afinaram as sobrancelhas, deixando-as arqueadas e marcadas,
com o uso de batom em tons fortes, criando feições bem marcadas e intensas – isso era
um artificio para aumentar a dramaticidade de suas atuações nos filmes ainda mudos que
estrelavam; esses traços já podem ser notados nessas mulheres de 1920, no entanto é no
ano de 1930 que essa aparência encontra-se mais concretizada.
Os trajes masculinos eram inspirados nos modos de vestir do príncipe de Gales, um
gentleman galante e “almofadinha” – adjetivos destinados aos homens da época. No
anúncio analisado (figura 91b), bem como no anúncio norte-americano (figura 105a),
podemos notar vestes similares e que foram popularizadas pelo príncipe de Gales, como
o colarinho de camisa cut-away4 e a “laçada Windsor” nas gravatas. Além disso, ambos
anúncios retratam homens de sobretudos e sobrecasacas, segurando suas bengalas e
chapéus hamburg, ilustrando os modos de parecer desses senhores galantes nesses pa-
íses colonizados. Esse modo de vestir-se mais despojado constituía uma sociedade tam-
bém mais despojada e prática, que divertia-se nos cinemas, nos cabarets e movimentan-
do-se pelas ruas das cidades.
No entanto, o esforço dos artistas e intelectuais que mencionamos estar na busca por
uma “brasilidade” pautada no modernismo, de uma ideal “identidade para a nação” pela
mudança e pela construção do “novo” em todos os setores da sociedade, vai sendo paulati-
namente frustrado pelo processo sócio-político inaugurado em 1930.

5.1.3. A Fon-Fon do Estado Novo e das arts décoratifs (1930)

Em outubro de 1929 estourou a crise mundial devido à quebra da bolsa de Nova York. A
produção brasileira focava-se basicamente na produção cafeeira, que dependia da expor-
tação para manter-se e, com a crise e a retração do consumo, a cafeicultura deixou de ser
rentável com a brusca queda dos preços internacionais (FAUSTO, 2002, p.178).

4  Um tipo de colarinho mais informal, com golas afastadas uma da outra. Fonte: informações da autora.
A instabilidade econômica levou à instabilidade política no fim do tranquilo governo 271
de Washington Luís, uma vez que sua oposição defendia o incentivo à produção nacional

Moda, consumo e urbanidade


mais diversa e não focada apenas no café. Assim o setor produtivo e o governo se desenten-
deram, e o tenentista Luís Carlos Prestes lançou seu manifesto “socialista” e “revolucionário”
condenando o apoio às oligarquias dissidentes, pois, na sua concepção, como coloca Fausto
(2002, p.179), “as forças em luta eram apenas um joguete da luta maior entre o imperialismo
britânico e o [norte]americano pelo controle da América Latina”. Esse “imperialismo”, nota-
mos que não se fazia apenas por investimentos financeiros, mas por apropriações culturais,
que ritmavam, principalmente, os modos de vestir-se e os modos de divertir-se dos brasileiros.
Getúlio Vargas tomou posse da Presidência no dia 3 de novembro de 1930, marcando
o fim da República e o início de “novos tempos”, que tiveram seu início marcado pela crise
mundial de 1929, gerando instabilidade que caracterizou toda a América Latina no perío-
do, com uma produção agrícola sem mercado, a ruina de fazendeiros, o desemprego nas
grandes cidades. A ascendente burguesia industrial aproximou-se do Estado para fortale-
cer-se, e o novo governo centralizou em suas mãos não somente as decisões políticas, mas
também as econômico-financeiras (FAUSTO, 2002, p.180-186).
Esse governo buscou a promoção da industrialização do país, oferecendo algumas pro-
teções aos direitos dos trabalhadores urbanos dessas novas fábricas, enquanto o exército
tornou-se um “fator de garantia da ordem” e, por essas alianças, promoveu o “capitalismo
nacional” (FAUSTO, 2002, p.180-182). Esses “novos” trabalhadores urbanos tinham origens
diversas, após os fluxos migratórios que chegavam, principalmente, à São Paulo e à capital
do país. Tarsila do Amaral pinta um “retrato” desse quadro de “funcionários” tão plural e que
compunham esse cenário brasileiro, no quadro de 1933, denominado Operários:

Figura 106: Quadro Operários, também da artista brasileira e modernista


Tarsila do Amaral (1933), que “retrata” o cenário dos grandes centros bra-
sileiros nesse início da década de 1930. Fonte: vejasp.abril.com.br.
272 O governo Vargas, assim, foi marcado pelo investimento em políticas trabalhistas, pro-
curando o manter o controle da classe trabalhadora urbana (os operários) nas mãos do
Moda, consumo e urbanidade

Estado. Também investiu pesadamente na educação, tanto na básica quanto a superior,


tendo fundado na década de 1930, tanto a Universidade de São Paulo quanto a Universida-
de do Distrito Federal (FAUSTO, 2002, p. 187-189).
Sob o surto industrializante nas américas e o eufórico pós-guerra, um pouco antes da
grande crise, surge na França em 1925, uma estética que carrega traços tanto do art nou-
veau quanto do modernismo, no entanto, diferencia-se desses: trata-se o art déco. Nome
que se deve à Exposition Internacionale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, na qual,
de acordo com Dempsey (2003, p. 135), foi a primeira vez em que se viu o “novo estilo de
design nas artes aplicadas e na arquitetura que, em seguida, cativou as imaginações no
mundo inteiro”. Essas “imaginações” inspiradas no art déco se deram com muita intensida-
de também no desenvolvimento dos produtos de vestuário e na construção de aparências
em geral: na aparência dos corpos, na aparência das edificações, na aparência das casas.
Sendo essa aparência constituída de novos materiais, de traços geométricos e sob a ação
de novas tecnologias.
Dempsey (2003, p. 135) afirma ainda que durante toda a preparação para essa exposi-
ção, patrocinada pelo governo francês, seus designers estavam “antenados” às dinâmicas
dentro e fora do “universo da arte”, e que assim, “o impacto do fauvismo, do cubismo, do fu-
turismo, do expressionismo e da abstração se reflete nas linhas, formas e cores do art déco”.

Figuras 107a e 107b: a primeira imagem é uma das páginas da Fon-Fon de 1930, referente à coluna semanal
chamada “Pequena Trágica”, que é ilustrada por Marcelo Roberto; a segunda, retrato da Duquesa de Valmy
(1924), feito por Tamara Lempicka, uma artista que fazia retratos da alta sociedade de seu tempo, seu estilo
caracteriza-se pelo uso de formas angulares, geométricas e dinâmicas, remetendo aos muitos traços do art
nouveau (DEMPSEY, 2003, p.136). Fonte (fig. 108b): americangirlsartclubinparis.wordpress.com.
Nas imagens anteriores, é possível notar muitas semelhanças entre os traços do ilus- 273
trador brasileiro e da artista radicada na França, pois as ilustrações dele fazem alusão à

Moda, consumo e urbanidade


estética artística dela, com características do art déco, pela construção similar das formas
do corpo feminino e pelas poses e gestualidades similares, de maneira angular, geométri-
ca e dinâmica, no ritmo dessa estética. Essas formas são também apreendidas nos anún-
cios analisados, nos modos de vestir anunciados à sociedade brasileira, como veremos
melhor a seguir.

Figuras 108a, 92g, 92c e 108b: Anúncios analisados em 1930 e anún-


cios norte-americanos de produtos das categorias modos de divertir-se e
modos de cuidar-se, nessa mesma década. Fonte (fig. 104 e 105): Vintage
ad browser.
274 Nas figuras 109a e 92g, temos dois anúncios de rádio e/ou vitrola com muitos traços
similares e que remetem aos traços geométricos, circulares que são repetidos construin-
Moda, consumo e urbanidade

do uma dinâmica e ritmo próprios – são também formantes e composições característi-


cas do art déco.
No período que corresponde à voga desse movimento, a aparência considerada sau-
dável passou a ser das pessoas que divertiam-se ao ar livre, iam à praia e tomavam sol
(práticas que pudemos ver em alguns anúncios analisados). Mendes e Haye (2009, p.61)
afirmam que a “loucura por atividades esportivas profissionais e amadoras coincidiu com
o endosso cientifico das propriedades saudáveis da luz solar”: a pele bronzeada “entrou na
moda”. Os modos de cuidar-se, assim, relacionam-se aos modos de divertir-se e aos modos de
vestir-se, pois esses novos hábitos demandaram novos trajes de banho e roupas esportivas,
ampliando espaço para esse nicho no mercado de vestuário, os quais expunham muito
mais o corpo dos sujeitos – suas pernas, seus braços e colo.
Essa mesma temática foi encontrada também na versão norte-americana da revista Vo-
gue de 1927, bem como em uma pintura de 1928 do artista brasileiro e modernista, Vicente
do Rego Monteiro:

Figuras 109a e 109b: Capa de edição norte-americana da revista Vogue e a pin-


tura Os Tenistas (1928) do artista brasileiro Vicente do Rego Monteiro. Fonte: war-
burg.chaa-unicamp.com.br e paulopedott.com.

Assim, nesses discursos nos deparamos com essas recorrências temáticas e figurativas
da prática de esportes (mais especificamente o tênis), com esses corpos-moda longilíneos
e geometrizados. Esse foi um dos primeiros esportes que as mulheres puderam praticar, e
o absorvente íntimo Modess anunciava-se como o produto que permitiria que elas o pra-
ticassem mesmo em período menstrual, algo muito importante para avanço na conquista 275
dos direitos femininos na sociedade ocidental. Todas essas mulheres encenadas vestem

Moda, consumo e urbanidade


roupas mais esportivas, um nicho que tornou-se “foco da nova modernidade”, como disse-
ram Mendes e Haye (2009, p.61). E um dos expoentes na produção desse tipo de vestuário
foi o próprio Jean Patou, o mesmo que vimos no anúncio dos modos de vestir-se em 1930:
a prática do tênis estava na moda e a moda estava na prática do tênis.

5.2 O Cruzeiro: da Segunda Guerra Mundial aos Anos Rebeldes (1940-1960)

5.2.1 O Cruzeiro: a Era Vargas e sua Voz do Brasil (1940)

Se podemos afirmar algo sobre a era getulista, é que, como nunca antes no Brasil, o Pre-
sidente soube utilizar os canais midiáticos disponíveis à época para estabelecer e exercer
sua governança. Como afirma Sevcenko (1998, p.37), “a orientação autoritária do governo
pretendeu compor doses complementares de repressão e doutrinação a fim de construir
sua base social de sustentação política”. Inspirou-se em traçados dos regimes repressivos
que se espalham pela Europa e que tiram “máximo proveito das técnicas de propaganda e
dos meios de comunicação social”, em especial, o rádio.
Estabeleceu, em caráter nacional, o noticiário diário Voz do Brasil (que já perdura por
mais de 70 anos), e inaugurou uma rotina ainda não existente aos modos dos brasileiros.
Popular por suas políticas trabalhistas, o discurso presidencial de 1º de maio era realizado
em um Estádio com a presença massiva do público. Ainda de acordo com o autor (SEV-
CENKO, 1998, p.38), a “voz dramatizante de Vargas”, era “irradiada, recebida e incorporada
como a expressão do animus profundo da nação”. Contudo, não só sua voz era irradiada
pelo rádio diariamente, mas era também por discos gravados e sua imagem era presenti-
ficada no cinema e no teatro, relacionando-se também com o humor gráfico, o Carnaval
e a gravura popular – fatores que se mostraram muito mais efetivos, pelo contato mais
direto entre presidente e população, do que pelo uso comum de discursos políticos, a Voz
do Brasil e o contato diário com a voz de Vargas tornou-se parte da vida do brasileiro. Em
meio a esse contato diário, anúncios radiofônicos invadiam a casa dos ouvintes em inter-
valos regulares.
Vargas era amigo de Chateubriand e, assim, seu governo tinha ainda a O Cruzeiro a
seu favor, sempre divulgando as políticas que visavam o avanço industrial, econômico e
populacional em diversas áreas do Brasil. A seguir, divulgam o processo de realização do
“1º Censo do Estado Novo”, que abrangia a população, os núcleos brasileiros industriais e
empresariais, bem como o agrícola:
276
Moda, consumo e urbanidade

Figura 110: Duas páginas da revista O Cruzeiro de 1940, que retratam os processos de realização desse censo.
Fonte: as revistas.

O Presidente tentava compreender quem era sua população, como ela vivia e, princi-
palmente, como ela produzia e consumia. Tratava-se de uma população que era até então
majoritariamente analfabeta no início do século, para uma “ordem cultural centrada nos
estímulos sensoriais das imagens e dos sons tecnicamente ampliados”, segundo Sevcenko
(1998, p.38). Essa mesma sociedade se viu passar por mudanças drásticas, ajustando-se a
esses novos modos de viver, que incluíam novas mídias para o contato diário, semanal ou
mensal, traduzindo e trazendo o mundo às suas casas periodicamente.
A era Vargas foi também a era do rádio brasileiro e do cinema norte-americano. Eram
construídas as divas do rádio, tanto as cantoras quanto as vozes atuantes das radionove-
las. Em tempos de guerra – da Segunda Guerra Mundial declarada em 1939 –, essas for-
mas de entretenimento e informação servem tanto para o lazer, quanto para a formação
de sujeitos cada vez mais sensíveis às construções imagéticas e sonoras, bem como a elas
em sincretismo.
Uma expoente dentre essas divas, foi sem dúvida Carmen Miranda, que iniciou sua
carreira no rádio brasileiro e foi “exportada” para o cinema Hollywoodiano: a “brasilidade”
era exportada. Os jeitos, trejeitos e traços da aparência de Carmen, sua sensualidade “tro-
pical” e encantadora foram rapidamente incorporados pelas americanas, tanto do Norte
quanto do Sul. A O Cruzeiro denominou essa incorporação de “O ‘Mirandismo’ na moda 277
“Yankee”’, como vemos a seguir:

Moda, consumo e urbanidade


Figura 111: O “mirandismo” na moda “yankee” é encena-
do por uma modelo americana fotografada por O Cru-
zeiro no ano de 1940; os formantes pontiagudos a hori-
zontalidade nos são dados por sua gestualidade. Fonte:
as revistas.

O clássico turbante de Miranda é utilizado pela modelo, suas roupas decotadas e flui-
das, braços de fora e sandálias de salto alto: esse é o “mirandismo”, utilizado por brasileiros
e norte-americanos. Essa “troca” entre as américas aumenta em um período de guerra no
qual a Europa e, particularmente, a França, tem boa parte de sua produção paralisada. Quem
dependia da importação de tecidos franceses (e europeus em geral) teve que se virar com
outros tipos de tecidos – e tecidos menos nobres, já que boa parte da produção de seda
destinava-se agora à produção de pára-quedas para os soldados (MENDES e HAYE, 2009).
Assim, Hollywood “importava”, no entanto, eram especialistas em “exportar” e divulgar
sua cultura, seus modos de vida, por meio de diversos filmes e da criação das estrelas do
cinema e a divulgação massiva de seus estilos de vida – sua produção cinematográfica
278 correspondia a 85% da produção mundial (PRADO E BRAGA, 2011, p.145). Seus modos de
cuidar-se, divertir-se, vestir-se e, até mesmo alimentar-se e organizar-se, eram divulgados nas
Moda, consumo e urbanidade

páginas e propagados pelas revistas das américas, como a O Cruzeiro.


Como é explicitado na imagem que segue, é encenada a estrela Hollywoodiana Cons-
tance Bennett, que enunciam como sendo a “mulher mais invejada de Hollywood”:

Figura 112: A estrela hollywoodiana Constance Benett é encenada em diversos momentos, que parecem cenas
de seus filmes. Fonte: as revistas.

Nas roupas de Constance podemos notar muitas similaridades com o anuncio anali-
sado nos modos de vestir-se em 1940, como no uso do blazer, peças com ombreiras que
evidenciam a alargam os ombros criando uma forma mais horizontalizada, além das saias
evasê até os joelhos. Seu corpo é esbelto para trajar essas roupas e até mesmo vimos em
um dos anúncios que “a corpulência exagerada é um martírio”, não só nas praias do Rio de
Janeiro, mas em terras de Hollywood, como podemos notar a seguir:
279

Moda, consumo e urbanidade


Figuras 93b e 112: Anúncio analisado em 1940 e anúncio norte-americano de produtos de
vestuário nessa mesma década. Fonte (fig. 112): Vintage ad browser.

O anúncio que analisamos anuncia um remédio para perda de peso, enquanto o nor-
te-americano encena o percurso de “Esther-Lou Richardson” que perdeu peso e “tornou-se
elegante” ao frequentar uma espécie de spa, sua pose elegante após a perda de peso nos
remete à pose das garotas esbeltas da figura 90b.

5.2.2 O Cruzeiro: a decadência de Vargas e a ascensão de JK e da FENIT (1950)

A parcial volta à democracia era encenada nas páginas de O Cruzeiro que faziam a pesquisa
de quem seria eleito presidente, “quem será o homem”? Em um momento de muita insta-
bilidade política, Vargas tentava aproximar-se ainda mais de forças conservadoras, mas não
esquecera seus principais apoiadores até então, os trabalhadores urbanos. Aboliu o deno-
minado “atestado de ideologia” para a participação nos sindicatos, que procurava afastar os
“rebeldes” e “comunistas” do chão de fábrica (FAUSTO, 2002, p.227).
280
Moda, consumo e urbanidade

Figura 113: Página de O Cruzeiro em 1950, mostrando aos seus leitores a apuração das pesquisas realizadas
em todo o Brasil, encenando logo ao lado fotografias do dia 29 de outubro desse mesmo ano, em que tropas
tomaram as ruas para “garantir o retorno à democracia”. Fonte: as revistas.

No decênio de 1950, a Europa pós-guerra estava desestruturada e sem condições de


produzir. Beneficiando-se deste momento, o governo procurava o fortalecimento da indús-
tria e, dentre essas, a indústria têxtil, “a indústria brasileira encontrou espaço para prospe-
rar, aumentando exportações e substituindo tecidos importados” (PRADO E BRAGA, 2011,
p.185). A famosa Casa Canadá passou a produzir suas próprias peças de roupas, a partir do
“know-how” adquirido ao fazer as cópias de modelos parisienses até então.
Com a alta capacidade produtiva da indústria têxtil local, surgiram no Brasil os pri-
meiros costureiros de luxo e as primeiras revistas sobre moda de grande circulação. Estes
modelos de luxo eram lançados em desfiles, semestralmente – primavera/verão e outono/
inverno – e seus preços eram restritivos. Como afirmam Prado e Braga (2011, p.185), “às
massas restava a possibilidade de copiar a moda” que era ilustrada pelas revistas, ou, recor-
rer às grandes confecções, produções em larga escala (prêt-à-porter) que, passaram a ser
produzidas no Brasil, ainda incorporando os modos de Hollywood.
Inspirando-se nas Gibson Girls da revista Life e nas pin-ups norte americanas, Accioly
Netto escolhe Alceu Penna para criar e ilustrar figuras femininas, seus hábitos e suas ves-
tes, suas danças, maquiagem, fantasias de carnaval, entre outras coisas, em uma coluna
semanal denominada “Garotas”, as quais tornaram-se referencias de aparência para garotas
brasileiras, principalmente em 1940 e 1950. O tipo físico dessas garotas era quase sempre o
mesmo, juvenil, magro, seios pequenos e cintura fina (JUNIOR, 2011):
281

Moda, consumo e urbanidade


Figura 114: As garotas de Alceu, como ficaram conhecidas, eram sempre retratadas
com essa cintura fina que criava curvas acentuadas no corpo feminino. O ilustrador
também foi reconhecido por suas criações de fantasias carnavalescas. Fonte: as revistas.

Esse é um tipo de corpo com formas similares ao que encontramos nos anúncios, como
bem vimos, afastando-se do perfil “quadrado” e horizontalizado de 1940 – o “New Look” de
Dior é que (re)instaura as formas curvas desses corpos. Em 1950 também nos deparamos
com anúncios estrangeiros com aparências de corpos-moda muito próximas na categoria
dos modos de cuidar-se. Podemos notar muitas similaridades entre os cabelos, penteado
e maquiagem dessas duas figuras femininas (ambas estrelas de cinema), bem como são
semelhantes a construção dos dois anúncios a seguir:

Figuras 115 e 94c: Anúncio analisado em 1950 e anúncio norte-america-


no de shampoo. Fonte (fig. 112): Vintage ad browser.
282 Apesar dos esforços de Getúlio para manter-se próximo aos trabalhadores, um pouco
mais tarde em 1953, estoura a greve “dos 300 mil”, que inicia-se com os trabalhadores da
Moda, consumo e urbanidade

indústria têxtil – uma das primeiras industrias brasileiras que deu emprego às mulheres em
suas fábricas.
O mercado, em geral, só retornará a crescer após a eleição e posse de JK e João Goulart,
em 1956, inaugurando um período (curto) de estabilidade política. Em 1958, surgia a Feira
Nacional da Indústria Têxtil (FENIT), a primeira instituição que se encarregou de organizar
os desfiles nacionais de lançamentos de coleção, que virá a ser um dos maiores desfiles de
moda do Brasil.

5.2.3 O Cruzeiro: a inauguração de Brasília e a popularização do prêt-à-porter (1960)

A governança do Brasil deixa de ser nacionalista e passa a ser desenvolvimentista. O gover-


no JK, em comparação ao governo Vargas, pode ser considerado um período de estabilida-
de política, eram os “cinquenta anos em cinco”. O novo presidente indicava diversos milita-
res à ocuparem importantes postos na política brasileira. Uma de suas maiores realizações
foi sem dúvida a fundação de Brasília, inaugurada no dia 21 de Abril de 1960 – uma cidade
e nova capital construída em cinco anos.
Os costureiros brasileiros ganharam grande visibilidade durante a década de 1960, mui-
to disso deve-se à FENIT que lançava suas coleções de moda e, também, aos investimentos
em publicidade nos meios de comunicação, nas páginas das revistas como a O Cruzeiro.
As bandas jovens como os britânicos Beattles e a Jovem Guarda brasileira foram sucessos
massivos e estrondosos, para uma juventude com novos valores e um pouco mais liberta da
rigidez de quem passou a juventude em tempos de guerra e escassez; uma euforia jovem
predominava. Como afirmam Mendes e Haye (2009, p.159), a mudança mais significativa
desse período, é que a moda e os modos de vida passaram a ser constituídos pela incorpora-
ção de traços comportamentais da juventude que se fazia ser vista nas ruas, principalmente
das ruas londrinas, e não mais pelo estilo de vida de sujeitos seletos e enricados.
Como vimos nas análises, esses valores da juventude eram também axiologizados na
construção dos anúncios de calças jeans fabricadas em grande escala, prontas para usar.
Encontramos também anúncios de construções similares, que encenam o “faroeste” e que,
em sua maioria, encenam apenas as pernas vestidas do sujeito:
283

Moda, consumo e urbanidade

Figuras 95a, 95b, 116a e 116b: Anúnciosde calças analisados em 1960


e os anúncios da Vanity Fair espanhola (fig. 116a) e o norte-americano
(fig. 116b), ambos também de calças. Fonte (fig. 112): Vintage ad browser.

O pronto para vestir é também acompanhado, como vimos, pela popularização do


“pronto para comer”, com os produtos altamente industrializados – esse movimento é
acompanhado por toda a cadeia produtiva, acelerando processos de produção e consumo.
Nesse cenário, os anúncios, como vimos, eram cada vez mais aptos a criar esses sujeitos
desejantes do “novo”, ao utilizarem-se cada vez mais dos recursos imagéticos, aproximando
o leitor desses simulacros encenados.
284 A partir do Golpe Militar de 1964, em um Brasil submetido a um governo militar repres-
sivo, a moda, em contrapartida, seguia em rumo à liberação do corpo e surgia a moda pró-
Moda, consumo e urbanidade

pria dos jovens no país. Surgiram as pílulas anticoncepcionais e as minissaias, e, os homens


começavam a sair do “terninho básico”. (PRADO E BRAGA, 2011)

5.3. Manchete: da Ditadura Militar brasileira ao Governo Collor (1970-1990)

5.3.1. Manchete: Ditadura Militar e uma moda nacional fortalecida (1970)

O Golpe Militar em 1964, seguia a cadência dos movimentos golpistas que se espalha-
vam pela América Latina. Esse novo regime começou a mudar as instituições do país atra-
vés dos denominados Atos Institucionais, popularmente conhecidos como AI. Por meio
desses, o Congresso perdeu autonomia e submeteu-se ao poder executivo. O AI também
criou, segundo Fausto (2002, p.258), as “bases para a instalação dos Inquéritos Policial-
Militares (IPM’s), a que ficaram sujeitos os responsáveis ‘pela prática de crime contra o
Estado ou seu patrimônio, contra a ordem política e social, ou por atos de guerra revo-
lucionária’”. A partir daí, desencadearam-se as perseguições e torturas aos que lutavam
contra o regime.
Nesses tempos de restrições, os sujeitos obtiveram nos modos de vestir e na moda (en-
quanto estilo de vida), seus locais de “escape” das restrições e duras imposições. Na música,
a tropicália e o “disco” vigoravam. Eram dois estilos diferentes, mas ambos “reinaram” na
década de 1970. Do estilo musical vieram os diversos sons e modos de expressar-se velada-
mente, principalmente no estilo da tropicália, que criava letras revolucionárias, mas veladas
para que passassem pela censura do governo. Do estilo de vestir, vieram cores diversas e
mais liberdade para o vestir, tanto para homens quanto para mulheres: a liberdade era fator
predominante nos estilos de vida.
O tropicalismo era um movimento “pró-brasileiro” vigente em meados dessa década,
que pode ser relacionado ao movimento hippie que se espalhava pelo mundo, enquanto o
“disco” incorporava o estilo de música dançante nos clubes e bailes – tanto foi que uma das
novelas de maior sucesso da Rede Globo abordava essa temática, era a Dancing Days [a qual
mostramos uma cena no capítulo Moda (Re)vista no Brasil].
Estilos “hippies” e fios sintéticos se misturavam e eram evidenciados nos – agora consa-
grados –, desfiles de moda da Fenit e Rhodia. Musas do cinema italiano eram reverenciadas,
principalmente pelos “Quatro Grandes [costureiros] da Fenit”, que criavam suas coleções
inspirando-se nos figurinos de seus filmes (PRADO E BRAGA, 2011).
A Manchete afirma em uma de suas reportagens do ano de 1970 que “Os hippies estão
na moda” e nos mostram as peças de roupas de estilistas estrangeiros, como Patoue Cardin,
em meio a um festival de música, repleto de pessoas meio desnudas e ao ar livre – o estilo 285
de vida hippie é glamourizado pela alta-costura internacional:

Moda, consumo e urbanidade


Figura 117: Manchete encena em ótima qualidade gráfica, na sua “grande tela”, a moda e os modos hippies que
estão em voga. Fonte: as revistas.

Da moda hippie, a fluidez, as calças pantalona, cabelos compridos e com aspecto de-
sarrumado se faziam junto a um estilo de vida mais liberal para as mulheres e homens. No
Brasil, isso se fez visto nos anúncios analisados. A produção do vestuário era centralizada
nas grandes cidades, como no Rio de Janeiro e em São Paulo, desenvolvendo nessas um
grande e próspero comércio de roupas prontas para vestir. Assim, esses modos hippies bra-
sileiros se faziam em meio a um contexto urbanizado.
A moda do vestir foi popularizada pela indústria, mas o Brasil nessa época também
estabeleceu uma forte corrente de estilistas que faziam o que denominavam de “moda de
luxo”: Dener, Clodovil, Amalfi, entre tantos outros, que se construíam no cenário nacional
de formas muito similares aos grandes nomes da alta-costura internacional. A FENIT tor-
nou-se um evento profissional e de renome, o que auxiliava nesse processo – de acordo
com Prado e Braga (2011, p.325), até mesmo Cardin desfilou seus modelos em uma das
edições da feira.
286 Na imagem que segue, podemos notar que a Manchete, em sua edição especial sobre
São Paulo, fotografa esse grande grupo de pessoas da Rhodia que seriam a “Alta classe da
Moda, consumo e urbanidade

moda” e que comandaram “um novo surto de criação artística nos figurinos”:

Figura 118: a “Alta classe na moda” é retratada nas páginas de Manchete. Se notarmos bem, suas vestimentas
parecem elucidar essa mistura dos estilos hippie e disco. Fonte: as revistas.

Nesse cenário, em que a moda se faz por elementos tão plurais, encontramos também
cenas publicitárias norte-americanas muito similares aos anúncios analisados, tanto aos que
elucidam os modos “unissex” da época, quanto da concretização do mercado prêt-à-porter
com as calças jeans, anunciadas como adjuvantes em evidenciar as curvas femininas:
287

Moda, consumo e urbanidade


Figuras 96c, 119a, 96a e 119b: Anúncios analisados em 1970 e anúncios nor-
te-americanos nesse mesmo período. Fonte (fig. 119a e 119b): HEIMANN &
NIEDER, 2012

5.3.2. Manchete: a decadência do Regime Militar e o “novo” prêt-à-porter


de marcas brasileiras (1980)

A partir de 1979, foi aprovada uma lei que extinguia os dois partidos que constituíam o
bipartidarismo do Regime, o MDB e a Arena. Essas mudanças foram feitas para que todas
as organizações políticas contivessem a palavra “partido” em seu nome. À medida que o
Regime autoritário foi se abrindo, as diferenças ideológicas tornaram-se evidentes, o que
fez com que a oposição de dividisse entre vários partidos, e os movimentos sindicalistas se
fortalecessem (FAUSTO, 2002).
288 A sociedade também tornou-se mais diversa e, como afirmam Prado e Braga (2011,
p.368), essa sociedade urbana e jovem estruturava-se na produção em massa, não com-
Moda, consumo e urbanidade

portavam mais o tipo de produção prolongado e unitário, em todos os modos de consumir.


Os modos de vestir-se da época se fizeram por um estilo de vida dinâmico, com roupas
prontas, práticas e fáceis de lavar; as fronteiras entre o vestir nos clubes, nas ruas e na alta-
costura tornaram-se quase indistintos, não fosse pelo investimento massivo na construção
das marcas e grifes.
Nesse cenário surgiram as grandes fábricas e empresas de produção de vestuário, in-
cluindo a moda íntima, como vimos no anuncio da De Loren. Esse, constrói uma mulher
sensual que é (re)vestida pelas roupas práticas do cotidiano e, da mesma forma que em to-
dos os anos analisados, essa moda brasileira anunciada se faz em dialógica com uma moda
estrangeira também anunciada:

Figuras 97a, 120a, 97 e 120b: Anúncios analisados em 1980 e anúncios


norte-americanosdessa mesma década. Fonte (fig. 120a e 120b): Vintage
ad browser.
As figuras 97a e 120a têm construções muito similares, nas poses da mulher, no jogo 289
de luz e sombra e mesmo nos modelos de lingerie. A diversão se faz também presente

Moda, consumo e urbanidade


nesse diálogo: as bebidas alcoólicas são encenadas como parte das formas de divertir-se
nessa época, com suas roupas despojadas e alegres em meio à praia, tanto no Brasil quan-
to no exterior.

5.3.1. Manchete: o Governo Collor e a abertura de mercados (1990)

O Regime Militar é extinto em 1985. Em 1988 a situação democrática do país se consolida


pelo estabelecimento da nova constituição brasileira que permite a realização das primeiras
eleições diretas, desde 1960, e propicia a eleição de Fernando Collor de Melo para presiden-
te no ano de 1989, chegando ao poder em 1990. O Brasil convertia-se em uma “democracia
de massas”, tanto pela obrigatoriedade do voto, quanto pela importância que esse têm para
a vida dos brasileiros que, agora, podem escolher seus governantes (FAUSTO, 2002, 291).
Collor tomou posse e, para controlar a inflação acima de 80%, o Presidente anunciou
um plano econômico que bloqueou todos os depósitos bancários existentes – de todas
aquelas contas e poupanças que vimos anunciadas em 1990 –, congelou preços e iniciou
o processo de desestatização das empresas do Estado, e processou também a abertura do
mercado nacional ao comércio exterior (FAUSTO, 2002).

Figura 121: A Manchete encena esse início esperançoso do governo Collor, retratando suas primeiras via-
gens presidenciais e retratando o “nascimento” do “novo governo.
290 Nesse cenário, as primeiras gerações de estilistas graduados no Brasil entram no mer-
cado de produção de vestuário e, esses, tentavam buscar referencias próprias, mais locais.
Moda, consumo e urbanidade

As empresas locais tiveram algumas dificuldades em se adaptar à abertura de mercados,


devido às grandes concorrentes internacionais que se instalaram no país.
Ainda assim, prosperavam algumas empresas que souberam adaptar-se ao fazer suas
criações e produções em série mais próximas às dessas empresas estrangeiras. Eram mo-
mentos economicamente difíceis e, como vimos em um dos anúncios analisados, em “tem-
pos difíceis, restrinja suas roupas ao mínimo necessário”, essa foi a frase que vigorou no
Brasil naquele início da década de 1990 – as semelhanças entre as vestes masculinas e fe-
mininas pode ser parte dessa “economia”.

Figuras 98b e 122: Anúncio analisado em 1990 e anúncio norte-americano dessa mesma década. Fonte (fig.
122): Vintage ad browser.

As figuras acima nos mostram as similaridades na construção dos anúncios dos mo-
dos de vestir-se no ano de 1990, que encenam mulheres sedutoras com suas roupas “mí-
nimas possíveis” e homens conquistadores, como elucidamos no decorrer das análises.
Homens e mulheres do século XX que fazem parte daquela geração yuppie, que encara
o trabalho como religião e que gerarão os sujeitos do século XXI, seus filhos e filhas, que
farão ser a moda e os modos de consumo constituintes da sociedade nesse novo século
que se aproxima.
6

Considerações
finais
292 Uma dupla questão de credibilidade se põe imediatamente: em que me-
dida estas apreensões “de papel”, elas mesmas já estetizadas, refletem as ex-
Considerações finais

periências estéticas que vivem os sujeitos históricos “reais”? E, admitindo que


se trate de simulacros dignos de fé e utilizáveis eventualmente como modelos
discursivos que permitam analisar os comportamentos humanos “vividos”,
são elas somente configurações parciais emergentes de uma episteme locali-
zável, a do século XX, ou bem nos dizem algo de nossa condição humana?
A. J. Greimas (2002, p.69-70)

Arriscamo-nos, no desenvolvimento do trabalho, compreender se esses modelos dis-


cursivos – os anúncios midiatizados nas páginas das revistas “de papel” –, nos permitiriam
analisar além da moda que é vestida, a moda que é vivida. Tal questionamento feito por
Greimas pode nos guiar na construção de nossa conclusão, pois, diante do vasto corpus
estudado, permitimo-nos questionar: será que essa moda vivida e anunciada, nos diversos
modos de consumir, nos diria “algo de nossa condição humana” de um país colonial da
América do Sul que continuou no seu pós-colonialismo um capitalismo que condicionou o
“viver a vida” pelo e no consumo?
Tendo como corpus as revistas, as cenas e os anúncios que constroem, nossa aborda-
gem se deu sobre suas estratégias e, principalmente, sobre o nível discursivo que concreti-
za esses discursos, e acabam por elucidar uma dinâmica das relações intersubjetivas, como
colocou Landowski (1992, p.13), que são “constitutiva[s] da mudança (micro e macro) so-
cial”. Esse discurso anunciado é como um espaço construído do qual decorrem diversas
práticas a partir da encenação de si, e ainda segundo Landowski (1992, p.11), contribui para
a construção de um mesmo espaço social de significação.
Assim, esse espaço não “reflete” o pré-existente, mas o constitui em relação de tradu-
ções em linguagens do(s) mundo(s), e no qual “o social, como sistema de relações entre
sujeitos, se constitui pensando-se”. As revistas, neste quase um século, dão a ver a socieda-
de que se oferece pelas revistas como “espetáculo de si mesma e, ao [fazê-lo], dota-se de
regras necessárias a seu próprio jogo” (LANDOWSKI, 1992, p.14). O que nos permite afirmar
que nas próprias encenações publicitárias da moda e dos modos de vida, em Fon-Fon, O
Cruzeiro e Manchete, está plasmada a construção da sociedade capitalista brasileira que
passamos em revista.
No percurso de busca por respostas, deparamo-nos com imprevistos (ou seriam pre-
visíveis?), e nos aprofundamos em questões que vão muito além do consumo – uma vez
que o entendimento conceitual do consumo atestou ser uma construção mais complexa e
de variadas imbricações, superando o que compreendíamos. Dispondo sempre da moda
e seu consumo como ponto de partida (ou de chegada), nosso trabalho passou a abarcar 293
tantos aspectos da vida, como os hábitos, as interações e relações intersubjetivas, e mesmo

Considerações finais
de tipo taxinômico como os papéis sociais, que assim não há como deixar de afirmar que o
fazer da moda seria sobre a construção mesma desses modos de viver em nossa sociedade.
São esses modos: os modos de alimentar-se (o que comer, onde comer, como vestir-se
para comer, o que beber, como e com quem beber e, mais ainda, como alimentar-se ou não
alimentar-se para ter o corpo “da moda”); os modos de cuidar-se (a maquiagem, o desodo-
rante e o perfume para o convívio social, os remédios e artifícios para ter-se o corpo deseja-
do e desejável, etc.); os modos de organizar-se (como e com o que cuidar da casa, manten-
do-a asseada, como lavar as roupas, os novos serviços a serem utilizados, ou mesmo como
investir e poupar o seu dinheiro); os modos de divertir-se (como desfrutar de seu tempo livre
e de seu salário ganho, o que ler, o que assistir, para onde e como viajar, etc.); e os modos de
vestir-se (roupas para o trabalho, para o passeio ou para a festa, para ir ao banco ou ao salão,
para ir ao restaurante, para viajar, etc.).
E, dentre esses, a pesquisa nos mostrou que, esse último modo está em relação direta
com todos os outros, ao prescrever, nas construções de seu discurso, como se deve vestir-se
para realizar cada uma dessas atividades que abrangem os simulacros de vida do sujeito.
Sabemos que cada um desses modos permeia o outro, no entanto, é notável que apenas
os modos de vestir-se estão em todos os outros, construindo visibilidades diversas para esse
vestir, e constituindo um modo de estar nas situações vividas. Sob esse aspecto, a moda é
a moda do comer, do beber, do cuidar da casa, do viajar, do ler, do assistir, enfim, a moda é
fator constitutivo das várias facetas do viver na sociedade capitalista. Ela parte do vestir e
abrange esses tantos outros aspectos das práticas sociais, sendo correlata à construção e
valoração desses modos de vida que se fazem pelo consumo.
Enquanto motriz da sociedade capitalista e urbana, o consumo é estruturador do de-
lineamento da identidade do sujeito partícipe dessa, uma vez que é o fator que pauta, em
grande parte, as relações sociais que se estabelecem. Parece uma dura afirmação, mas “dig-
na de fé” pelo destinar de seu dizer verdadeiro, que é manifesto nos tantos aspectos da vida
dos sujeitos encenados nas mensagens publicitárias de nosso corpus. Em consequência,
o discurso publicitário, considerado como qualquer outro discurso social e, concordamos
com Landowski (1992, p.103), que contribui “para definir a representação que nós nos da-
mos do mundo social que nos rodeia”.
A moda tem sua construção correlata a esses modos de vida delineados, e que são
encenados nessas mensagens publicitárias, articulantes do consumo. Seus discursos vão
muito além da simples valorização de produtos e passam a delinear identidades, nesse
caso, dos leitores das revistas, e o faz ao oferecer a esses “de maneira reflexiva” a “suposta
imagem de seu próprio ‘desejo’”, estruturando e informando sobre esse desejo, edificando
294 sujeitos “desejantes” do que se (re)veste de novidade (1992, p.105). Ao compor os anúncios,
verbo-espaço-visuais, configurando um texto sincrético, esses discursos têm um espaço
Considerações finais

privilegiado para a figuração dessas relações sociais, as interações mesmas entre sujeitos
que se inscrevem no discurso e que nele se reconhecem (LANDOWSKI, 1992). Debruçando-
nos sobre essas interações podemos dar conta da capacidade de ação do discurso publici-
tário, no seu nível mais concreto, de “fazer agir” e “fazer sentir” (OLIVEIRA, 2013).
Tais cenas são edificadas em uma dada espacialidade: a revista e seu formato engloban-
te da cotidianidade. Ela reveste-se de corpos de papel que se fazem ser vistos e assim fazem
fazer e sentir, tanto sentir outros corpos, quanto o seu próprio, sentindo-se na trama de seu
cotidiano, a de seu próprio tempo. Foi procurando aprofundar-nos sobre o aspecto sensível
dessa interação, que debruçamo-nos na construção desse objeto revista, que deixou de ser
considerado como inanimado e passou a ser apreendido enquanto performático. Enquan-
to corpo-mídia, mantem-se em contínua inter-ação com um corpo-vestido-leitor, corpo do
destinador e corpo do destinatário. Como conceitua Oliveira (2008b, p.32), essas:

[...] são observadas desde o seu deixar apreender-se um pelo outro nos modos de en-
trosamento dos sujeitos, mostrando o seu assumir posições, os seus comportamentos,
gestos, estilos, gostos que são passados como modos de presença, modos de estar no
social e apreensíveis não só por uma racionalidade, mas, sobretudo, por uma sensibili-
dade que deles emana e os faz ser sentidos.

As revistas, portanto, não são simples objetos a serem lidos, mas são investidas de valo-
res que as constituem enquanto sujeitos, capazes de, como destinadores no seu estar junto
aos seus destinatários, fazê-los contemplar as cenas que constróem, levando-os a iden-
tificar-se com os simulacros de corpos-moda propostos que delineiam as aparências das
várias décadas, que transitam entre corpos de papel nas páginas e corpos (in)vestidos nas
práticas sociais. Por sua composição figurativa, plástica e rítmica, de acordo com Greimas
(2002, p.74), as revistas desvelam “ao sujeito suas coalescências e suas correspondências
para guia-lo, por fascinações atrozes e exaltantes, em direção a novas significações resul-
tantes de uma conjunção carnal”, ou corpo a corpo em uma “união recíproca”.
Esses discursos publicitários, que delimitamos em modos, são encenados e construí-
dos nos anúncios das páginas “de papel” das revistas, e são capazes de fazer-fazer ao insta-
lar nesses discursos de forte caráter prescritivo, sujeitos competentes e de “autoridade” e
instaurar, ainda de acordo com Landowski (1992), “‘deveres’, criar ‘expectativas’, estabelecer
‘confiança’, e assim por diante”. Essa interação se dá além do fazer-ver essas cenas ao fazer-
fazer do sujeito que nelas se reconhece, pois o fazer-ver também faz-sentir: proximidades
ou distanciamentos e as mais diversas sensações possíveis. Essa condição se deve à con-
cretização do que Greimas (2002, p.70), denomina de “espaço organizado da percepção”,
justamente o aspecto figurativo, que, como cognitivo, se estende ao aspecto sensível, pro-
movendo a ativação da cadência dos sentidos do sujeito, construindo uma relação inter- 295
subjetiva não mais pautada somente no fazer-ver que faz-fazer, mas também, e talvez prin-

Considerações finais
cipalmente, no fazer-sentir pelas interações sensíveis que estabelece.
Os corpos (in)vestidos são parte de um todo sincrético e são presentificados nas diver-
sas encenações publicitárias. Pelos vários modos de consumir delineados, constituídos iso-
topicamente, a aparência do sujeito é construída e se faz ser vista, em um jogo imperativo
de visibilidades, na dinâmica que rege as relações sociais mediadas pelo consumo. É inse-
rido nesse fluxo performático que aqueles que o integram podem descobrir-se no gosto
pelas aparências, de si e do outro, seja esse um outro um corpo-mídia ou um outro corpo-
moda, ou ambos em sincretismo. As peças publicitárias presentificam identidades firma-
das nos ciclos dos cultos da aparência – estilos de vida, comportamentos e corporeidades
concretizadores de modelos axiológicos poderosos, que formalizam modos de existência
propagados nos programas narrativos de busca subjetal do “estar na moda”.
Essa aparência, suas marcas de permanência e transformação, não seriam guiadas por
algo sem relevo, sem importancia, mas por interações sensíveis que fazem sentir e que
fazem ser o sujeito, podendo ser tomadas como alicerces de sua construção identitária.
Assim, vimos que essa construção ocorre de maneira dinâmica entre os gostos “universais”
em voga e os gostos “pessoais”, na construção de uma aparência que se faz pelo consumo,
na dialógica de um país que constrói-se a si mesmo em relação a um outro, dialogando
entre o local e o goblal. É em busca da junção, no estado da conjunção, transformando os
estados disjuntivos e do encontro da união, produtora de descobertas de si, a partir dos
simulcaros que as revistas constróem enquanto destinadores fortes, que os destinatários
-leitores põem-se na construção de suas identidades em relação às alteridades. À medida
que os sujeitos se posicionam em relação a esses valores propostos, eles se colocam ao
mesmo tempo: em condições de “desfrutar o tempo presente” como partícipe de um certo
lugar comum em relação à outrem, e enquanto “presente a si mesmo” operacionalizando
sua própria moda. Enquanto operacionadora desses gostos “glocais”, a moda, das práticas e
modos de consumo, torna-se parte constitutiva de identidades.
O gosto pelas aparências em voga, não seria somente o gosto pelo corpo (in)vestido
do sujeito, mas também pelo sincretismo da aparência desse corpo-mídia, que incorpora
diversos textos, discursos e recursos tecnológicos, permitindo-lhes “novas” formas de ex-
pressar-se plasticamente. Tal sincretismo, ou como empreende Greimas (2002, p.71), a “coa-
lescência das sensações pode ser considerada como um enriquecimento da comunicação”,
que pode ser capaz de transformar as revistas em escapatórias semanais do cotidiano. Não
chegam a potência avassaladora das “fraturas”, mas conseguem (re)vestir de novidades os
modos de vida que exploram, e alcançam, a cada década, um “instantâneo estabelecimen-
to de um novo ‘estado das coisas’” para os sujeitos com os quais interage (GREIMAS, 2002,
296 p.73). Elas fazem saber as novas, tanto do local quanto do global, transitando entre esses,
sempre colocando o sujeito nessa revisão de mundo ao figurativiza-lo. Ao fazê-lo, fica claro
Considerações finais

que a figuratividade que exploram não é somente uma “ornamentação” das coisas, mas
uma “tela do parecer” sobre a qual o mundo se encena.
Ao empreendermos essa longa diacronia, vimos que é sobre essa “tela do parecer” e
graças ao emprego e exploração dessas tecnologias e linguagens, que as revistas torna-
ram-se sujeitos competentes a ensinar e a traduzir a moda, na dinâmica dos modos de
consumo, e movente da sociedade na qual se inscreve. É sobre essa tela que é dada con-
cretude ao “estar na moda”, e consequentemente, ao estar em sociedade; bem como é nela
que é encenada uma sociedade centrada na urbanidade e na qual o sujeito move-se (quase
somente) à “mercê” da cadência dos ciclos do consumo. A revista, assim, é como a moda,
parte constitutiva, e também totalidade por sua representatividade, à medida que foram
significantes na construção da sociedade brasileira no século XX. A fórmula do sucesso des-
sas revistas está, portanto, na trama discursiva que engendra, na inventividade e no rear-
ranjo de sua expressão, entretanto, sempre sobre um fundo de permanência.
Em cada um dos modos de consumir são anunciados os cabelos, as roupas, os aces-
sórios, o que fazer e como fazer na vida e, enfim, o estilo de vida a ser vivido – são então
encenados os modos de vida. Vimos que, em cada década analisada, essas -construções
são reiteradas, construindo um leque sintagmático de estilos a serem seguidos pelo sujeito
a cada tempo. São anúncios de caráter prescritivo, que constroem simulacros da aparência
de cada década, mas que não somente fazem-saber o corpo que se deve ter, a roupa que se
deve vestir e o corte de cabelo que se deve usar para construir-se a si mesmo em socieda-
de, mas também os fazem sentir em relação ao outro, em relação a uma sociedade que se
desenvolve, que acontece, que é vivida e proclamada nas notícias.
São esses ciclos da moda construídos em meio aos ciclos do consumo e da urbanidade,
encenando prescrições dos modos de se viver, que inserem o sujeito em uma sociedade
que é movida pelo consumo. Esse mundo dos gostos, ou da moda dos gostos estabelecidos
– dos quais os destinadores da revista selecionam os elementos, os ordenam e os colocam
em circulação –, para Eric Landowski (2012, p.121), “tocam nos modos de ser, formam-se no
próprio interior do espaço social em que decorrem, sem [...] nenhum destinador externo:
o social se basta em si mesmo para criá-las, fazê-las viver e deixá-las morrer” (LANDOWSKI,
2012, p.121). É na aparência, enquanto adjuvante no delinear identitário, que intervêm a
concepção de mundo do sujeito, de sua vida, seus anseios e seus valores.
Considerando que o desenvolver um gosto implica um saber gostar, as construções da
moda e modos de gosto permitem a análise de uma educação conduzida pela mídia, que
toma para si os modos de consumir da sociedade brasileira, parte de um todo mundializa-
do que nomeamos “glocalizado” por estar nesse entremeio. A moda, que se faz pela aparên-
cia, é assim motriz dessas construções dos modos de vida em nossa sociedade urbanizada, 297
delineados pelo consumo e plasmados nas páginas dessas revistas.

Considerações finais
A moda, portanto, é tudo aquilo que o dicionário define e que trouxemos nas Consi-
derações Iniciais: é maneira, gênero, estilo de vestuário e de conduta, é também conjunto
de opiniões, de gostos, de modos de agir, viver e sentir coletivos: a moda é a vida vivida,
que constrói-se e é construída pelo consumo, de maneira cíclica e movente, sendo parte
constituinte dos ciclos socioeconômicos, políticos e culturais. Articuladora do próprio de-
senvolvimento da sociedade capitalista na qual vivemos, ela não se faz pelo velho conceito
de originalidade, como coloca Greimas (2002, p. 88-89), mas pela: dimensão estética do
gosto já integrado que “ela propõe um novo desregramento, e além das esperas esperadas
que ela reclama a investidura do inesperado [...] a espera do inesperado se transforma em
cada nível na espera esperada do inesperado”.
7

Referências
bibliográficas
ALI, Fátima. A arte de editar revistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009. 299

Referências bibliográficas
BAPTISTA, Íria C. Queiróz; ABREU, Karen C. Kraemer. A História das Revistas no Brasil. 2010.
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livro. Dissertação (Mestre em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica,
São Paulo, 2014.

BONADIO, Maria Claudia. Moda: Costurando mulher e espaço público – estudo sobre a
sociabilidade feminina na cidade de São Paulo 1913-1929. Dissertação (Mestre em História)
– Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.

BRACCHI, Daniela Nery. A fotografia em David Lachapelle. Dissertação (Mestre em Comu-


nicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009.

CASTILHO, Kathia. Do corpo presente a ausência do corpo: moda e marketing. Tese (Dou-
torado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.

FERNANDES, Rosane S. Revista O Cruzeiro: Alceu Penna e os figurinos de moda. Dissertação


(Mestre em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009.

FYSKATORIS, Anthoula. A Democratização da Moda em São Paulo (1950-2011). Tese (Dou-


tora em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2012.

GERALDI, Maria Carolina G. Moda e identidade no cenário contemporâneo brasileiro:


uma análise semiótica das coleções de Ronaldo Fraga. Dissertação (Mestre em Comunica-
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

MACENA, Fabiana Francisca. Madames, mademoiselles, melindrosas: “feminino” e moder-


nidade na revista Fon-Fon (1907-1914). Dissertação (Mestre em História) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2010.

POLIDORO, Henrique. O Cruzeiro nas (trans)formações sociais: análise dos discursos sobre
a mulher (1943 a 1955). Dissertação (Mestre em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Uni-
versidade Católica, São Paulo, 2008.

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sertação (Mestre em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Pau-
lo, 2004.

SILVA, Silvana Louzada da. Fotojornalismo em Revista: O fotojornalismo em O Cruzeiro e


Manchete nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart. Dissertação (Mestre em Co-
municação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.

SILVA, Simone Bueno da. A construção do corpo na mídia semanal. Dissertação. (Mestre
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007.

SOUZA, Josenilde Silva. Desfile de Moda nos espaços da cidade: Abordagem semiótica
dos regimes de visibilidade, de identidade, de interação e de sentido. Dissertação (Mestre
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2011.
8

APÊNDICE A
Revista Anexos
(anúncios)
ANEXOS
Moda e modos de consumo no Brasil do século XX:
revistas e a construção de aparências

1910-1990
Fon-Fon
O Cruzeiro
Manchete
Reprodução da revista Anexos.
CARTA DO EDITOR SUMÁRIO
FON-FON 02
Em suas mãos, caras leitoras e caros leitores, dispomos uma revis-
ta para acompanha-los(as) durante a leitura desta dissertação que
lhes foi apresentada. Pensando em seu conforto durante a leitura, 1910 05
projetamos esse volume que possibilita a visualização das imagens
em uma qualidade gráfica mais apurada, aproximando-os, mesmo 1920 09
que minimamente, da experiência de leitura das edições originais
que compõem o nosso corpus de estudo. Nesta revista Anexos, pro- 1930 13
curaremos lhes mostrar os anúncios e pontuar alguns aspectos im-
portantes das análises realizadas.
O CRUZEIRO 18
Visando auxiliar esse momento de leitura, indicaremos ao lado
de cada anúncio a figura correspondente no interior do volume
1940 21
para que encontre facilmente a sua análise completa. Também se-
rão apresentados os “mapas” desses anúncios na espacialidade das
páginas das revistas Fon-Fon, O Cruzeiro e Manchete. Essas, por sua 1950 26
vez, terão uma breve introdução histórica antes da apresentação de
suas propagandas, partindo de seus textos inaugurais em suas pri- 1960 31
meiras edições.
Recomendamos-lhes que façam essa leitura acompanhada MANCHETE 36
– volume e revista – a partir do capítulo denominado A moda nos
modos de vida: construção de aparências, no entanto, estamos à sua
1970 39
disposição para que folheie, leia e adentre nossas cenas, a qualquer
momento que lhe caiba.
1980 44
Desejamos-lhes uma ótima experiência de leitura!

Mariana Braga Clemente 1990 49


2
Fon-Fon
1910-1930
A revista Fon-Fon surge em 1907,
nos tempos da Velha República e em
meio à modernização do país, apre-
sentando-se como um “semanário
alegre, político, crítico e esfuziante
[...] Noticiário avariado, Telegraphia
sem arame, Chronica Epidemica”. Ins-
pirou-se em revistas internacionais,
especialmente as francesas, para
construir-se, apresentando temáticas
variadas – acompanhando e sendo
acompanhada pelo desenvolvimento
urbano intensificado do país nesse
início de século. Esse desenvolvi-
mento foi, também, o que propiciou
suas grandes tiragens, pois as novas
empresas e indústrias anunciavam
em suas páginas os seus “novos” pro-
dutos. Em seu texto de apresentação,
os trocadilhos remetem à velocidade,
aos carros e à quebra com os “velhos
hábitos e [...] velhos costumes”. Re-
ferem-se, assim, às várias inovações
tecnológicas que inauguram o sécu-
lo e pelas quais ela se fez ao usufruir
dos novos métodos de impressão,
os quais permitiam grandes tiragens
e boas impressões. Esses valores da
modernidade são explorados em
seu nome, Fon-Fon, sendo uma ono-
matopeia que figura o som feito pela
buzina dos automóveis e anunciava a
chegada do século XX com toda a sua
inovação tecnológica, a industrializa-
ção, e o ritmo cada vez mais rápido
dos novos carros.

3
24 Dez 1910 – n.52 24 Set 1910 – n.39 25 Jun 1910 – n.26 26 Mar 1910 – n.13

18 Dez 1920-n.51 23 Set 1920-n.39 10 Jul 1920-n.28 29 Mai 1920-n.22

27 Dez 1930-n.52 27 Set 1930-n.39 21 Jun 1930-n.25 29 Março 1930-n.13


Fon-Fon

♀ VESTIR-SE
Figura 90a.

1910

♂ VESTIR-SE
Figura 90b.

5
Fon-Fon

♀ CUIDAR-SE
Figura 90c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 90d.

6
Fon-Fon

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 90e.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 90f.

7
Fon-Fon

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 90g.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 90h.

8
Fon-Fon

♀ VESTIR-SE
Figura 91a.

1920

♂ VESTIR-SE
Figura 91b.

9
Fon-Fon

♀ CUIDAR-SE
Figura 91c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 91d.

10
Fon-Fon

♀ DIVERTIR-SE
Figura 91e.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 91f.

11
Fon-Fon

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 91g.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 91h.

12
Fon-Fon

♀ VESTIR-SE
Figura 92a.

1930

♂ VESTIR-SE
Figura 92b.

13
Fon-Fon

♀ CUIDAR-SE
Figura 92c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 92d.

14
Fon-Fon

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 92e.

♂ ALIMENTAR-SE
Figura 92f.

15
Fon-Fon

♀ DIVERTIR-SE
Figura 92g.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 92h.

16
Fon-Fon

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 92i.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 92j.

17
18
O Cruzeiro
1940-1960
A revista O Cruzeiro inovou o conceito
de revista ilustrada, dando muito mais
espaço às imagens e à fotografia, revo-
lucionando o fotojornalismo brasileiro
quando surgiu em 1928. Uma revista de-
claradamente em prol do “progresso” e
da “modernidade”, com seu slogan “A re-
vista contemporânea dos arranha-céus”,
prosperou durante o período getulista,
mas foi em meados de 1950 que chegou
a tiragens de 750.000 exemplares por se-
mana, sendo considerada um dos mais
importantes meios de comunicação do
século XX do país. Seu papel foi, não so-
mente entreter e informar, mas também
como determinante na construção de
padrões de comportamento e consumo,
tornando-se parte do cotidiano da classe
média brasileira. Alegou ter como meta
acompanhar todos os acontecimentos e
manifestações da “civilisação ascensio-
nal do Brasil”, bem como prescrever, com
seu vasto “annuncio illustrado”, os modos
de consumir nas cenas que construía se-
manalmente. O seu nome – à época Cru-
zeiro, ainda sem o artigo definido “O” –,
era descrito como “um título que inclue
nas suas tres syllabas um programma de
patriotismo”, o cruzeiro seria “timbre de
estrella na bandeira da Patria”, era uma
revista do Brasil e para o Brasil.

19
23 Nov 1940-n. – Ano XIII – n. 4 31 Ago 1940- Ano XII - n. 44 09 Mar 1940-n. Ano XII - n.19 20 Jan 1940- Ano XII - n.12

16 Dez 1950 - Ano XXII – n.9 23 Set 1950 - Ano XXII – n.49 18 Fev 1950-n. Ano XXII – n.18 07 Jan 1950 - Ano XXII – n.12

10 Dez 1960 – Ano XXXII 23 Jul 1960 – Ano XXXII – n 41 05 Mar 1960 – Ano XXXII 13 Fev 1960 – Ano XXXII – N. 18
O Cruzeiro

♀ VESTIR-SE
Figura 93a.

1940

21
O Cruzeiro

♀ CUIDAR-SE
Figura 93b.

♂ CUIDAR-SE
Figura 93c.

22
O Cruzeiro

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 93d.

♂ ALIMENTAR-SE
Figura 93e.

23
O Cruzeiro

♀ DIVERTIR-SE
Figura 93f.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 93g.

24
O Cruzeiro

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 93h.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 93i.

25
O Cruzeiro

♀ VESTIR-SE
Figura 94a.

1950

♂ VESTIR-SE
Figura 94b.

26
O Cruzeiro

♀ CUIDAR-SE
Figura 94c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 94d.

27
O Cruzeiro

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 94e.

♂ ALIMENTAR-SE
Figura 94f.

28
O Cruzeiro

♀ DIVERTIR-SE
Figura 94g.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 94h.

29
O Cruzeiro

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 94i.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 94j.

30
O Cruzeiro

♀ VESTIR-SE
Figura 95a.

1960

♂ VESTIR-SE
Figura 95b.

31
O Cruzeiro

♀ CUIDAR-SE
Figura 95c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 95d.

32
O Cruzeiro

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 95e.

♂ ALIMENTAR-SE
Figura 95f.

33
O Cruzeiro

♀ DIVERTIR-SE
Figura 95g.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 95h.

34
O Cruzeiro

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 95i.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 95j.

35
36
Manchete
1970-1990
A revista Manchete surge em 1952 e
lança-se com todas as suas páginas em
cores, utilizando tecnologias inovadoras
no país, alegando que farão “o possível
para que essas cores se ponham sis-
tematicamente a serviço da beleza do
Brasil e das manifestações do seu pro-
gresso”. Manchete expressa em seu pró-
prio nome o objetivo de destacar-se, um
substantivo feminino que significa: título
principal, de maior destaque, alusivo à
mais importante dentre as notícias con-
tidas na edição; notícia de destaque em
jornal, revista, rádio ou televisão. Com
esses valores é que entraram no com-
petitivo mercado das revistas no século
XX. Inicialmente com uma equipe redu-
zida e com volume da revista também
reduzido, buscaram trilhar novos cami-
nhos no jornalismo, a fim de alcançarem
seu objetivo de liderar o mercado. Sem
sucesso ao tentar destronar a concor-
rente O Cruzeiro, decidem buscar outros
parâmetros para constituir-se. Passam
então a se pautar na estrutura de revis-
tas norte-americanas como a Time, bem
como a francesa Paris Match. Após essas
mudanças, a revista consegue o alcance
que desejava e emergiu juntamente com
a “nova Brasília”, grande símbolo de mo-
dernidade e prosperidade na época.

37
05 Dez 1970 – n. 972 26 Set 1970 – n. 952 02 Mai 1970 – n. 941 25 Jan 1970 – n. 923

27 Dez 1980 – n. 1497 23 Ago 1980 – n. 1479 28 Jun 1980 – n. 1471 05 Jan 1980

15 Dez 1990 – n. 2018 08 Set 1990 – n. 2004 21 Jul 1990 – n. 1996 20 Jan 1990 – n. 1970
Manchete

♀ VESTIR-SE
Figura 96a.

1970

♂ VESTIR-SE
Figura 96b.

39
Manchete

♀ CUIDAR-SE
Figura 96c.

♂ CUIDAR-SE
Figura 96d.

40
Manchete

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 96e.

41
Manchete

♀ DIVERTIR-SE
Figura 96f.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 96g.

42
Manchete

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 96h.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 96i.

43
Manchete

♀ VESTIR-SE
Figura 97a.

1980

♂ VESTIR-SE
Figura 97b.

44
Manchete

♀ CUIDAR-SE
Figura 97c.

45
Manchete

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 97d.

♂ ALIMENTAR-SE
Figura 97e.

46
Manchete

♀ DIVERTIR-SE
Figura 97f.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 97g.

47
Manchete

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 97h.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 97i.

48
Manchete

♀ VESTIR-SE
Figura 98a.

1990

♂ VESTIR-SE
Figura 98b.

49
Manchete

♀ ALIMENTAR-SE
Figura 98c.

50
Manchete

♀ DIVERTIR-SE
Figura 98d.

♂ DIVERTIR-SE
Figura 98e.

51
Manchete

♀ ORGANIZAR-SE
Figura 98f.

♂ ORGANIZAR-SE
Figura 98g.

52

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