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OFICINA DE PSICOLOGIA

As aventuras de João
com medo
Isabel Policarpo
Oficina de Psicologia

2012

R. PINHEIRO CHAGAS, 48, 4º ANDAR


Setembro  2012 AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO

Artigo da 3ª Edição

É com grande entusiasmo que lhe apresentamos este Caso da Revista Casos&Casos da
Oficina de Psicologia. Temos trabalhado no sentido de ir ao encontro das necessidades de
quem nos lê regularmente. Assim, isolámos agora os artigos da revista para que possa
escolher apenas aqueles que realmente quer ler, sem ter de adquirir toda a revista.
Naturalmente, se achar interessante a leitura deste artigo, poderá comprar a revista
Casos&Casos na íntegra.

Se nos tem acompanhado já sabe que esta publicação resulta de um intenso contributo dos
terapeutas da Oficina de Psicologia, para levarem até ao leitor as suas reflexões clínicas a
propósito de casos reais que acompanham. As características sócio-demográficas de cada
caso foram cuidadosamente alterados para que não fosse possível identificar pessoas.

O objectivo desta publicação é dar a conhecer, de uma forma resumida e fluida, as muitas
formas de actuar em psicoterapia – os diferentes olhares que advêm de terapeutas com
percursos académicos e de vida diferentes, as diversas correntes teóricas e, sobretudo, as
variadas e infinitas interacções que se entretecem entre um cliente e um clínico – duas
pessoas movidas pelo mesmo objectivo de mudança e de restabelecimento de bem-estar,
equilíbrio e qualidade de vida.

Sendo uma das missões mais importantes da Oficina de Psicologia a da divulgação de


temas de Psicologia Clínica, desmitificando ideias desactualizadas e actuando ao nível da
prevenção em saúde mental junto do grande público, e promovendo o conhecimento com
áreas científicas mais recentes junto dos profissionais de saúde mental, esforçamo-nos por
manter uma fórmula de escrita que possa continuar a ser do interesse tanto do profissional
em saúde mental, como do leigo.

É expressamente proibida a cópia ou publicação não autorizada da totalidade ou partes


desta publicação, integralmente redigida por elementos da Oficina de Psicologia, e apenas
existente em formato digital, de distribuição exclusiva pela Mindkiddo – Oficina de
Psicologia, Lda. A sua reprodução não autorizada seria, acima de tudo, uma profunda falta
de respeito para com o enorme esforço de toda uma equipa cujo único objectivo é fazer
chegar até si o que de melhor a Psicologia Clínica tem para lhe oferecer.

Setembro, 2012
AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO Setembro  2102

As aventuras de João com medo

Isabel Policarpo

Resumo
A vinculação insegura e situações repetidas de desvalorização e humilhação dão origem a
esquemas desadaptativos, nomeadamente de abuso, vulnerabilidade, subjugação e exclusão
social e privação emocional. A relação terapêutica afigura-se como uma dimensão relevante
do processo terapêutico ao propiciar experiências emocionais correctivas.

Palavras-chave
Ansiedade. Vinculação. Esquemas desadaptativos.

Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa
www.oficinadepsicologia.com | contacto@oficinadepsicologia.com | 210 999 870
Setembro  2012 AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO

Desenvolvimento  do  processo  terapêutico  

1. O primeiro contacto
Quando vi o Carlos pela primeira vez tive a sensação de estar perante um fã de heavy-metal
- o corte de cabelo, o brinco na orelha e o seu vestuário transportaram-me de imediato para
esse universo. Mas as eventuais semelhanças esgotaram-se por aí.

O Carlos era um indivíduo de estatura baixa e magra, que tinha dificuldade em falar e que
claramente manifestava pouco à vontade, não lhe era fácil manter o olhar e os pés e as
mãos estavam em constante movimento.

A primeira sensação de alguma agressividade dissipou-se de imediato, para dar lugar a um


sentimento de protecção. Afinal quem estava à minha frente mais parecia um miúdo tímido
e indefeso, que se sentia ameaçado e por isso estava ansioso e irrequieto.

Disse-me que tinha 34 anos, que era divorciado e que tinha uma filha dessa relação.
Presentemente morava só.

Tinha-se dirigido a nós porque nas suas duas últimas relações tinha sido deixado e isso era
algo que o preocupava e queria entender melhor. Tinha a sensação de que era deixado
porque transmitia “negatividade às pessoas”.
Referiu ainda que era muito tenso e ansioso e que desde sempre tinha tido pouca auto-
estima e coragem para prosseguir com os seus objectivos.

2. Um pouco da sua história


O Carlos viveu em condições precárias até aos seus 4 anos, altura em que a família teve
direito a uma casa camarária o que representou uma mudança substancial na sua vida.

Apesar da melhoria que significou essa transição, ele vivia no seio de uma família pouco
validante e respeitadora e tinha um irmão que usava a humilhação como uma forma de
auto-promoção, acresce que a sua nova casa situava-se num bairro problemático.
AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO Setembro  2102

Foi muitas vezes maltratado – atiravam-lhe pedras, batiam-lhe, chamavam-lhe nomes. Foi
muitas vezes assaltado e todo ambiente que o rodeava agredia-o, pelo que desde muito
cedo as pessoas assustavam-no e sempre que possível fugia e refugiava-se no seu mundo.
O seu mundo era a sua casa, mas sobretudo o seu bloco onde desenhava e sonhava com
um mundo diferente. O Carlos revelava um dom para desenhar e passava muitas horas
sozinho com os seus “bonecos”.

Recorda-se que entre os 5/7 anos tinha muitos medos. Os pesadelos à noite eram muito
frequentes – gritava na cama, via sombras, ouvia vozes, imaginava muitos monstros e
fantasmas. Entre os 6 e os 10 anos passava o tempo entre a escola e a sua casa, tinha medo
das pessoas e daquilo que estas lhe podiam fazer.

O seu primeiro dia de escola foi muito doloroso, lembra-se de ter estado todo dia a chorar,
com medo que a mãe não viesse para o levar para casa. Referiu que na altura era muito
apegado à mãe - “a minha mãe era tudo para mim”. Mas depois desse dia, vieram muitos
outros onde não conseguia deixar de chorar – o que tornou a sua integração na escola, já de
si difícil porque se tratava de uma criança sensível, tímida e envergonhada – numa etapa
ainda mais complicada.

O tempo da escola primária não lhe deixou boas recordações. Confidenciou que era mau
aluno e tinha dificuldade em aprender, muitas sessões depois percebemos que a ansiedade e
o medo em que vivia o impediam de estar concentrado e atento ao que se passava na aula,
acresce que a sua realidade era demasiado pesada e agressiva pelo que para se defender teve
de fazer uma clivagem com a mesma. Vivia “na lua” e no seu mundo de fantasias e
desenhos com os seus super-heróis.
“Os miúdos da rua atiravam-me pedras, chamavam-me nomes… eu era conhecido como o
homem das cavernas, porque estava sempre escondido em casa (…) o meu irmão também
me atirava pedras…”

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Setembro  2012 AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO

“Sempre levei muita tareia, sempre vi muita maldade da parte dos outros. Tenho medo das
pessoas, do que elas são capazes. (…) Tenho medo das pessoas, de sair à rua, não sei o que
podem fazer”
Era muito introvertido e durante muitos anos pouco saía à rua. Cedo aprendeu que o
melhor mesmo era isolar-se. Recorda que as tentativas que fez de integração não
resultaram. Sempre que não jogava bem à bola ou fazia algo que “não estava bem” levava
tareia do irmão e dos amigos do irmão – e com a conivência deste. E em casa também não
se sentia nem aceite nem compreendido. O pai achava-o estranho e frágil e a mãe revelava
pouca sensibilidade para o entender.

Com a chegada da adolescência a sua vida não melhorou. Continuava muito lunático e
virado para si. A sua vida acontecia nos seus desenhos – aí conseguia ser herói, lutar,
impor-se, amar, ser amado, vencer.

Aos 11/12 anos apercebe-se que os outros miúdos não gostam dele e as suas fantasias
começam a ser fatais, os seus desenhos passam a estar mais ligados à morte, chegou mesmo
a pensar em querer morrer. Os pais não o compreendiam. Em casa e na rua levava tareia e
era desclassificado pelo irmão e os amigos deste. Não tinha amigos. Não se sentia
reconhecido nem valorizado, não tinha onde se agarrar e não tinha para onde ir. Sentia-se
desintegrado e rejeitado por todos.

“Os meus bonecos faziam o que eu queria e com as pessoas não era assim. Às vezes eu
pensava que as pessoas iam reagir de determinada maneira e isso nunca acontecia, com os
meus bonecos era o inverso. Gostava do meu mundo imaginário e pouco do mundo real”

Teve o seu primeiro amigo aos 16 anos – a turma do liceu desse ano era boa e tranquila,
pelo que o Carlos foi capaz de se abrir um pouco e falar. E lentamente foi recuperando e
começou a surgir a vontade e a coragem para sair de si, para se mostrar e de mostrar os
seus “bonecos” que na altura sofrem um volte face – “ as cenas dark e os monstros vão
dando o lugar a novos formatos” - mais alegres e positivos. Entrou em concursos de
desenhos e conseguiu alguma valorização. É também por volta dos 16/17 anos que se
apaixona, mas percebe que as miúdas o acham esquisito e isso atormentou-o e foi difícil de
gerir.
AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO Setembro  2102

Aos 21 anos e com o 11º incompleto inicia um novo ciclo. Começa a trabalhar e com o
trabalho começa a formar uma rede social de suporte onde se sente integrado e valorizado -
conhece a futura mulher, outros amigos e experiencia o teatro amador, algo que lhe dá
prazer e onde é bem-sucedido.

Quando aos 24 anos avança para o casamento fá-lo mais pelo compromisso que já tinha
assumido, do que pela vontade e certeza de que estava a dar o passo certo e que queria.
Esteve casado 4 anos e quando pediu o divórcio sentia-se totalmente deprimido – tinha
acabado de perder o emprego e a esposa que tinha sido o seu primeiro amor, acabou por se
revelar muito negativa, assumindo frequentemente uma atitude de desclassificação face ao
Carlos.

3. A mudança. Sessões de ruptura


O processo terapêutico teve a duração de um ano.

Nas primeiras sessões tentei perceber quem era o Carlos e como tinha chegado até aqui. À
medida que ia sabendo mais da sua história de vida e que calçava os seus sapatos sentia-me
arrepiada. Tive a nítida sensação que ele era um sobrevivente e senti um profundo respeito
e carinho por aquele homem-menino.

O facto do Carlos ter vindo até nós, era um sinal de que estava disponível e com vontade
de perceber o que se passava com ele, mas o seu medo e desconfiança nas pessoas em geral
exigiam particular atenção e cuidado da minha parte. Sem pressa e deixando que as coisas
fossem acontecendo a nossa relação foi-se estabelecendo de forma natural.

Com o objectivo de devolver algum bem-estar e conforto ao Carlos e à medida que íamos
estabelecendo a relação terapêutica, fui introduzindo algumas técnicas que lhe permitissem
gerir melhor a sua ansiedade, como a respiração abdominal e exercícios de relaxamento.
Sugeri-lhe também a prática de exercício físico, como a marcha ou a corrida ao ar livre, que

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lhe permitiam um combate eficaz da ansiedade aliado a uma sensação de vigor, energia e
bem estar.

À medida que o Carlos se ia abrindo dentro de mim crescia cada vez mais a convicção de
que ele tinha nascido no “meio errado”. Ou seja, tanto o seu núcleo familiar como os seus
pares, representavam um meio adverso e desfavorável ao seu desenvolvimento. O Carlos
não foi validado e muito menos foi protegido ou respeitado, pelo que não teve
oportunidade de se desenvolver de forma saudável, e consequentemente de construir uma
auto-estima e uma auto-confiança forte e capaz de o proteger e de lhe permitir satisfazer as
suas necessidade de forma adequada.

O seu temperamento tímido e sensível não era entendido nem valorizado, sendo antes
considerado um sinal de fraqueza e inadequação. Os homens tinham de ser fortes, duros,
autoritários, impositivos e másculos. O Carlos era a antítese – franzino, envergonhado,
sensível, receoso, atento e desejoso de agradar aos outros. Recorda que o pai era exigente e
impunha muita disciplina e o seu tom de voz só por si tinha o condão de o assustar.

Durante muitos anos o Carlos sentiu que o seu pai não só não o valorizava, como de algum
modo o desprezava por pensar que ele era frágil, gay e amaricado – a sua sensibilidade, o
seu isolamento e a ausência de namoradas, funcionavam como uma “mistura quase
explosiva”.

A mãe tendo sido uma figura importante quando o Carlos era muito miúdo, à medida que
ele cresce revela-se igualmente uma âncora afectiva muito vulnerável, porque o facto de ser
passiva e submissa, fazia com que fosse pouco protectora e validante. Também ela tinha
dificuldade em chegar até ele e o ignorava muitas vezes.

Os seus desenhos nunca foram valorizados pelos pais, nem mesmo quando obteve
louvores e prémios.

“Quando recebi um prémio aos 22 anos, a minha mãe só me perguntou quanto é que eu
tinha ganho. E eu senti-me diminuído, senti um enorme vazio… se calhar isto que eu tinha
acabado de ganhar afinal não era nada…”
AS  AVENTURAS  DE  JOÃO  COM  MEDO Setembro  2102

Mas se havia talvez alguém de quem o Carlos esperaria afecto, compreensão e cumplicidade
era do seu irmão mais velho. O Carlos adorava o irmão, ele era o seu herói – era ele que
sabia e fazia. Era desembaraçado, forte, aguerrido e destemido – tudo aquilo que o Carlos
não era, mas queria ser. Tudo aquilo que era valorizado pela sua família e pelos seus pares,
mas ele não possuía. Junto dele, o Carlos sentia-se protegido e seguro. O Carlos seguia-o,
obedecia-lhe e venerava-o.

Mas ainda durante a infância o seu irmão magoou-o em múltiplas ocasiões - sempre que o
deixou para trás ou não o queria levar, sempre que lhe atirou pedras ou o desclassificou
perante os pares. Cedo demais o Carlos sentiu que o irmão se afastava porque tinha
vergonha dele, porque ele não era digno, nem tinha qualquer valor.

E durante a adolescência, o irmão do Carlos reduziu-o a lixo. Expunha-o para gáudio de si


e dos seus amigos. Batia-lhe e maltratava-o. Todas as ocasiões serviam para o inferiorizar,
quanto mais baixo o Carlos fosse colocado, mais forte e superior parecia ser o seu irmão –
e assim foi desde sempre. Ainda hoje o seu irmão, é o homem “respeitável e bem
sucedido”.

A forma como o Carlos cresceu – abusado, criticado e excluído, levou a que ele lentamente
fosse desenvolvendo um conjunto de esquemas desadaptativos. Os esquemas referem-se a
padrões que começam na infância e que se perpetuam pela vida fora e que influenciam a
forma de pensar, sentir, agir e de nos relacionamos com os outros e com o mundo.
Tendem a desencadear em nós sentimentos fortes de raiva, tristeza e ansiedade.

O Carlos precocemente aprendeu que o mundo à sua volta não era seguro (Abuso), a
família e os pares magoavam-no e abusavam dele - mentiam-lhe, manipulavam-no,
humilhavam-no e frequentemente faziam-lhe mal fisicamente ou tiravam partido de si. Os
seus pesadelos nocturnos são um sinal de que ele não podia confiar nos outros e
consequentemente relaxar. Muito cedo sentiu-se excluído (Exclusão Social) e privado de
afectos (Privação Emocional) - para desenvolver um sentido de conexão com os outros

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precisamos de amor, atenção, afecto, respeito, compreensão e orientação e precisamos de


sentir isso tanto da parte da família como dos pares. O Carlos foi privado de tudo isso
donde a sua sensação de isolamento, de que não se encaixava nem pertencia a lugar algum.
Mas porque como qualquer outra pessoa precisava de afecto, aprendeu que a única forma
de o receber seria subjugando-se aos outros (Subjugação), pelo estava sobretudo atento aos
desejos e necessidades dos outros e calava fundo a expressão da sua vontade.
Mas aqueles que o rodeavam constantemente lhe lembravam que nada do que ele fazia
estava bem feito ou era aceitável, pelo que ele se sentia defeituoso e um falhado (Defeito),
o que contribuiu para uma auto-estima débil, ao mesmo tempo que favoreceu a percepção
de que era frágil (Vulnerabilidade) o que o impedia de assumir posições e desafios.

Tínhamos muito trabalho à nossa frente mas também muita vontade de descobrir e ser
diferente. Durante o trabalho emocional com o pai sentiu-se pequeno, indefeso,
desvalorizado e não amado, afinal o pai impunha-lhe um modelo ao qual dificilmente
“chegaria”. Sentiu-se incompreendido e revoltado, o pai não o via nem estava lá para ele.
Sentiu raiva, mas também se recordou que mais tarde o seu pai lhe começou a dar algum
crédito.

“Só aos 19 anos é que o meu pai começa a olhar para mim de forma diferente e a dar-me
algum valor e a incentivar-me”

À medida que o trabalho vai evoluindo, o Carlos mantém a sensação de vazio, tristeza e
solidão, nem o facto de ter recomeçado a desenhar lhe trouxe algum bem-estar.

“Tenho a sensação de que tenho estado sempre só, mesmo com as pessoas estou só, estou
sempre a um canto e a partir de certa altura só ouço blá-blá….”
“É como se eu fosse invisível, sinto-me sempre excluído. As pessoas esquecem-se de mim,
só quando precisam de algo se lembram.”
“Gostava de ser diferente é um vazio muito grande. Sinto-me desprotegido no meio da
sociedade. Tenho medo de me apaixonar e sofrer de novo.”

Mas simultaneamente começa a surgir a necessidade de ser respeitado. De seguir os seus


sonhos e ambições. De ser valorizado. De mostrar que é capaz. A quem tem tanta
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necessidade de mostrar tudo isso? Ao seu irmão. Fomos adiando este confronto, mas
tínhamos que chegar aqui, a esta dor imensa.

“Aconteceram coisas entre nós que são um tabu, ninguém sabe, nem mesmo a minha mãe.
Eu sempre o encobri. Ele é muito bem visto pelos outros, muito respeitado, mas tem os
seus podres”
“Eu sempre fugi do mal e nunca enfrentei o meu irmão… esquecia-me das coisas para
estar bem com ele”
“Eu sou o coitadinho, o irresponsável, o inculto, o motivo de galhofa…”
“O meu irmão dizia que eu não era ninguém… já com 19 anos ele bateu-me e espezinhou-
me na cara com o seu sapato e fiquei com um hematoma enorme, disse aos meus pais que
tinha caído…”
Havia muita zanga contida e muita raiva contra o irmão, mas também muita tristeza e
incompreensão pela falta de amor e carinho que o irmão tinha por ele. O Carlos sempre
gostou do irmão de forma tão incondicional e sempre sentiu um imenso orgulho nele. Só
mais tarde é que o Carlos percebe que parte da valorização do seu irmão, passa pela sua
desvalorização, embora tenha dificuldade em compreender e muito menos aceitá-lo.
“Se eu faço algo de extraordinário ou que o ultrapassa, ele não aceita. Eu sempre fui o
canto e ele a sala.”
“Sendo o meu irmão uma pessoa mais consciente, respeitada e integrado na sociedade, ele
nunca fez nada por mim.”
Algumas sessões mais tarde disse-me que sempre acreditou que era inferior e que não
tinha valor, tal como o seu irmão e as pessoas à sua volta lhe fizeram crer. Disse-me
também que percebia agora que o facto de nunca se integrar com os outros miúdos,
também fez com que eles o discriminassem. E concluiu dizendo-me:

“Até aos 34 anos nunca fiz nada para mudar a ideia que os outros têm de mim.”
“O que fiz do meu talento? Eu nunca abri novos horizontes…Se eu fosse mais realista
talvez luta-se mais pelas coisas, não luto pelas minhas ideias, falta-me força de vontade para
ser um homem feliz, para exprimir o meu talento”

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Disse-me que se tem sentido mais confiante e que parece que algo dentro dele está a
mudar. Foi pela primeira fez à praia sozinho em 34 anos e sentiu-se bem e feliz. Andou de
bicicleta, tinha medo de já não conseguir, mas foi bem-sucedido. E também se atreveu a
andar de carro fora da sua zona de conforto. Vinha muito mais leve e descontraído!

À medida que as semanas vão passando sente-se a evoluir e começa a gostar de estar vivo.
Inscreveu-se na natação. Tem saído e procurado escolher melhor as pessoas – escolher, em
vez de ser escolhido.

Sente-se mais confiante e seguro de si, já não sente que tem que fazer o que os outros
querem, como se ele não tivesse querer ou qualquer valor ou tão somente para que gostem
dele. É importante ver os outros felizes, mas não quer mais prejudicar-se, anular-se ou
deixar que o agridam para que isso suceda. Percebe que pode ser responsável pelo que lhe
sucede.

“Sinto-me mais preparado para lidar com as pessoas, sinto-me a evoluir, mais confiante,
mais aberto, consigo olhar as pessoas de frente e responder-lhes, acho que estou mais
risonho e os outros parece que reagem melhor. Sinto-me honrado com o carinho e atenção
dos outros.”
“Deixei de ser lamechas, estou mais independente e também já não estou tão centrado
sobre mim”

Percebi que já estávamos quase no fim do nosso processo, quando um dia o Carlos chegou
e me disse que tinha sido o medo dos outros e não o ser leviano que o impediu de
prosseguir e de tomar as decisões certas para si.

Ainda voltamos a falar das mulheres e concluiu que na sua última relação também se tinha
deixado humilhar e isso foi muito doloroso para ele. Às vezes quando temos falta de calor
humano é fácil cair nessa armadilha, é importante que tenhamos alguma compaixão por
nós mesmos e que simultaneamente tomemos consciência daquilo que realmente
precisamos.

“Acho que as pessoas se assustam com o meu negativismo ou tal assustem por eu
demonstrar demasiada seriedade na relação. Mas eu acho que as pessoas se devem amar,
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ser amigas, devem entender e estar disponíveis e acho que hoje há muita independência,
cada um vive por si e para seu lado. As pessoas não ligam às emoções”
“Eu gosto de me sentir bem comigo e de me sentir útil aos outros, de lhes fazer coisas que
elas gostam e as pessoas só estão preocupadas com elas e a pensar nelas, as pessoas não são
românticas”

Conclusão  

A empatia é a condição de partida para garantir a relação terapêutica, sem a qual por mais
bem dotados que possamos estar ao nível das diversas ferramentas e técnicas o processo
terapêutico está condenado.
Contudo é inegável que nem todos os casos nos chegam da mesma maneira e que há casos
que nos tocam particularmente. Obrigado Carlos por me ter deixado partilhar esta
aventura.

Referências  Bibliográficas  

Greenberg, L.S. & Paivio, S.C. (1997) ” Working with emotions in psychotherapy” - New
York: Guilford Press
Safran, J. e Segal, Z. (1997) ”Interpersonal process in cognitive therapy”- New York:
Rowman & Littlefield Publishers, Inc.
Young, J.E.; Klosko, J.S. & Weishaar, M.E., (2003) “Schema therapy: a practitioner’s guide”
- New York: Guilford Press
McKay, Matthew, Wood, Jeffrey C. & Brantley, Jeffrey (2007)“ The Dialectical Behavior
Therapy Skills Workbook”- New Harbinger Publications

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