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A Participação dos Estados Unidos no Golpe Civil-militar de 1964: breves

apontamentos para uma revisão historiográfica


José Victor de Lara
(Universidade Estadual de Maringá – UEM)

Resumo. A partir da metade dos anos 60 vários autores – desde cientistas políticos,
jornalistas e, em menor número, historiadores – se debruçaram sobre o golpe civil-
militar de 1964 e suas consequências, construindo, paulatinamente, uma perspectiva
histórica que hoje se encontra amplamente estabelecida. Num primeiro momento,
essa perspectiva é mais fruto do trabalho de sociólogos e cientistas políticos, do que
propriamente de historiadores e os estudos sobre o papel dos Estados Unidos na
derrubada do governo João Goulart não foge a esse quadro. O presente trabalho
pretende realizar um balanço historiográfico, traçando os nuances, rupturas e
continuidades do conteúdo em questão. Para isso, foram selecionadas e analisadas
três obras de grande impacto acadêmico, consideradas fundamentais para a
elaboração dessa “perspectiva histórica” e que, ainda hoje, compõem o corpo
bibliográfico de qualquer estudo sério sobre a participação dos Estados Unidos no
golpe de 1964 e as relações exteriores de ambos os países no período. Um tema
permeado por lacunas, discussões e problemáticas envoltas no contexto da crise
política e institucional do governo João Goulart.

Palavras-chave: Golpe civil-militar; Historiografia; Estados Unidos

Introdução

Num primeiro momento os estudos sobre o Golpe Civil-militar de 1964 é


mais fruto do trabalho de sociólogos e cientistas políticos, do que propriamente de
historiadores. Com exceção de alguns temas (como a resistência armada das
guerrilhas de esquerda contra a Ditadura Militar, que compõe um campo bem
explorado pela historiografia) os demais ficaram a cargo das explicações
sociológicas, muitas vezes demasiadamente estruturalistas, que só foram renovadas
nas décadas de 1980 e 1990, quando houve uma renovação na análise da ação
política, desvinculando-a da infraestrutura econômica (NAPOLITANO, 2011, p. 210-
211).
Pontuando algumas exceções1, os estudos sobre a participação dos Estados
Unidos na campanha de desestabilização do governo Goulart não fogem a este
quadro. As implicações da História do Tempo Presente e a falta de documentação
impuseram obstáculos aos historiadores que, geralmente, tendem a ser cautelosos
em relação a eventos em que a circunstância de sujeito e objeto histórico estão
mergulhados na mesma temporalidade (FICO, 2012, p. 45). Sublinha-se ainda que,
no Brasil, o fazer-se da história do tempo presente não estava enraizado nas
práticas historiográficas nos anos de 1960, quando, como chama a atenção José
Roberto do Amaral Lapa, ocorria uma paulatina preeminência dos estudos sobre o
período Colonial em favor daqueles sobre a fase da República (LAPA, 1981, p. 46).
Com efeito, podemos notar como os trabalhos sobre a participação estadunidense
no golpe de 1964 produzido por historiadores tendem a ser modestos, e esse tema é
dominado pela ciência política.

Para realizar um balanço historiográfico, traçando as nuances, rupturas e


continuidades do conteúdo em questão, foram selecionadas três obras de grande
impacto acadêmico que foram fundamentais para a elaboração da “perspectiva
histórica” e que, ainda hoje, compõem o corpo bibliográfico de qualquer estudo sério
sobre o Golpe de 1964 e as relações Brasil-EUA no período. Muitos trabalhos de
peso tiveram que ser omitidos – pelos próprios limites impostos por esse trabalho–
porém, a maioria deles partem das discussões levantadas pelos autores aqui
trabalhados.

Deste modo, tem-se: 1) a impactante obra da historiadora estadunidense


Phillys R. Parker, reveladora dos detalhes sobre a da Operação Brother Sam,
publicada no Brasil em 1977 com o título 1964: O Papel dos Estados Unidos no
Golpe de 31 de Março. 2) com uma abordagem sobre a história das relações
internacionais entre os dois países temos Requiem for Revolution: the United
Statesand Brasil, 1961-1969 da historiadora estadunidense Ruth Leacock, lançada
em 1990, ainda sem tradução no Brasil. Por fim, 3) a obra mais recente, de autoria
1Uma dessas exceções é o historiador brasilianista Thomas Skidmore, que lançou Politics in Brazil,
1930-1964: anexperiment in democracy, ainda em 1966, que logo foi traduzido no Brasil com o título
Brasil: de Getúlio a Castelo.
do historiador Carlos Fico intitulada O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos
Anos de Chumbo, de 2008, que foi elaborado com o objetivo de atualizar o tema e
acrescentar novas questões no debate historiográfico.

Phillys R. Parker: Documentos Revelados

Desde que o golpe civil-militar se concretizou em abril de 1964, diversas


especulações surgiram sobre a participação dos Estados Unidos nas articulações
com os militares insurgentes. Vários indícios apontavam para uma influência direta
e não apenas um acompanhamento velado dos acontecimentos, como alegavam os
principais funcionários da diplomacia estadunidense no Brasil, como o embaixador
estadunidense Lincoln Gordon2 e o adido militar Vernon Walters3.

O primeiro livro acadêmico publicado no Brasil sobre o tema foi autoria de


Phillys R. Parker, historiadora estadunidense que se utilizou de documentos
desclassificados no Departamento de Estado dos EUA e que foram disponibilizados
para consulta. Em 1974, Parker ingressou no mestrado na Lyndon B. Johnson
School of Public Affairs, em Austin, Texas. Interessada em política externa e
educação, buscou na Biblioteca Lyndon B. Johnson algum material que lhe pudesse
interessar. Na biblioteca presidencial, Parker foi informada de que novos
documentos sobre o Brasil seriam postos à disposição para consulta. O Arquivo
possuía uma grande quantidade de documentos sobre o Brasil e haviam sido
recentemente liberados ao acesso público. Utilizando-se da referencial obra de
Thomas Skidmore, Politics in Brazil, Parker tratou de trabalhar com os documentos.
Logo percebeu que o material que tinha em mãos era valioso (GREEN; JONES,
2009, p. 68):

De início, olhei para os papeis pensando em apenas acrescentar


algo ao que Skidmore tinha escrito. À medida que os lia, pensava
sobre o porquê de Skidmore não ter incluído aquelas informações em

2 Lincoln Gordon atuou como embaixador dos Estados Unidos no Brasil de 1961 a 1968. Colaborou
com a força tarefa designada para definir as diretrizes e pôr em prática a Aliança para o Progresso na
América Latina e é considerado um dos personagens centrais nas articulações estadunidenses com
os conspiradores civis e militares no Brasil nos idos de 1964.
3 Vernon Walters foi indicado por Lincoln Gordon como adido militar na embaixada dos Estados

Unidos no Rio de Janeiro, por suas ligações antigas como Exército Brasileiro.
seu livro. Teria ele guardado para o final? Consultei ainda o livro de
John Dulles e constatei, nesse meio tempo, que eles não a
conheciam (GREEN; JONES, 2009, p. 69).

Os documentos revelaram a existência da Operação Brother Sam, arquitetada


por Lincoln Gordon e por chefes do Estado Maior dos EUA. A operação forneceria
apoio logístico e suprimentos aos conspiradores brasileiros. Desde 1964, setores de
esquerda já acusavam o governo dos Estados Unidos de ter apoiado diretamente o
golpe que depôs João Goulart. Phillys Parker encontrou a documentação que
provava a veracidade das especulações: instituições governamentais dos EUA
estavam diretamente envolvidas na conspiração.

O ponto central da obra de Parker demonstra o extremo contraste entre a


política externa dos Estados Unidos efetivamente aplicada e a retórica daqueles que
a defendem. A autora salienta que a formação dos Estados Unidos é sustentada por
valores que compreendem ideais de justiça, igualdade e liberdade, defendidas como
direitos invioláveis. Porém, segundo Parker, esses valores se aplicam apenas aos
cidadãos estadunidenses e frequentemente à custa do sacrifício dos mesmos
direitos em outras nações. Partindo deste pressuposto, a autora relata as atividades
dos Estados Unidos no Brasil durante o governo de João Goulart.

Os documentos utilizados por Parker apontam Lincoln Gordon como figura


central das articulações do apoio governamental dos Estados Unidos à conspiração
militar. Gordon assume as credenciais em 3 de outubro de 1961, logo após a crise
envolvendo a posse de Goulart na presidência, negociada com os ministros
militares, que só o aceitaram como presidente sob um regime parlamentarista. Logo
que assume a pasta, Gordon se concentra em aplicar a Aliança para o Progresso no
Brasil e garantir que fosse dado prosseguimento ao programa econômico de
estabilização financeira (PARKER, 1977, p. 23-24).

Naquela conjuntura, um fator importante que gerou preocupação por parte do


governo dos Estados Unidos, pontuado por Phillys Parker, é o novo perfil na política
externa que estava sendo implementada no Brasil a partir de 1961. Formulado por
Afonso Arinos de Mello Franco, ainda no governo Jânio Quadros, e aprofundada
pelo ministro das relações exteriores de João Goulart, San Tiago Santas, a Política
Externa Independente (PEI) prezava por uma terceira via no contexto mundial da
Guerra Fria. Baseada nos preceitos de coexistência pacífica e da emancipação dos
povos, a PEI surge no processo de desenvolvimento nacionalista do Brasil, em que
era necessária a expansão dos mercados e da indústria, reabrindo frentes de
comercialização até mesmo com os governos do bloco socialista.

A autora endossa a grande preocupação dos EUA, principalmente do


Secretário de Estado Dean Rusk, sobre os posicionamentos que o Brasil tomaria em
relação a Cuba na Organização dos Estados Americanos (OEA). A tentativa de
invasão em Playa Girón (Baía dos Porcos), ação militar arquitetada pela CIA com a
ajuda de refugiados cubanos que tinha por objetivo depor o governo de Fidel Castro,
foi um fracasso. Por meio da OEA, o governo estadunidense tentou conseguir aval
para intervir militarmente em Cuba, o problema, porém, consistiu na oposição dos
maiores países da América Latina, como Chile, México, Argentina e, principalmente,
o Brasil. Contrário a qualquer tipo de intervenção, o Brasil defendia a coexistência e
a autonomia de Cuba e votando contrário a qualquer intervenção ou sanções
econômicas contra a ilha4, causando o claro descontentamento dos EUA.

Pode-se afirmar com certa precisão que o grande trunfo da obra de Phillys R.
Parker seja a descoberta e os detalhes acerca da Operação Brother Sam, provendo
evidências concretas de que o apoio estadunidense não se deu apenas no campo
político ou diplomático. Segundo a autora, a posição de força com a qual os Estados
Unidos gradativamente influíram no campo diplomático causou resultados negativos
no cenário político interno do Brasil.

Por fim, Parker conclui que Goulart era um presidente fraco, sem habilidades
de liderança, que teria incitado a cisão entre os militares, causando sua derrubada.
Ademais, Goulart não dispunha de vantagens econômicas; para a autora, ele utilizou
seu prestígio entre os movimentos de trabalhadores como “um trampolim para
expandir sua base de poder” (PARKER, 1977, p. 131). Todavia, as críticas de Parker
4Para uma análise mais profunda sobre o tema ver BANDEIRA, Moniz. De Martí a Fidel – A
Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998.
quanto à política adotada pelos Estados Unidos acompanham toda a obra. Para ela,
os estrategistas estadunidenses, norteados pelos seus interesses econômicos e
pelo anticomunismo, vincularam os programas de assistência financeira, como a
Aliança Para o Progresso, aos seus objetivos políticos, desrespeitando toda a
integridade e soberania da nação brasileira.

Ruth Leacock: o Nation Building

Em 1990, a historiadora estadunidense Ruth Leacock lançou o livro Requiem


for Revolution, infelizmente ainda sem tradução no Brasil. Seu foco é a história das
relações Brasil-EUA sob a ótica da Guerra Fria, entre os anos de 1961 e 1969. Na
obra, Leacock utiliza-se do conceito de nation building, elaborado por intelectuais
liberais da época, que conduziram a política externa dos Estados Unidos após a
Revolução Cubana em 1959. Todas as suas análises levam essa questão como
elemento central, seja as de determinações mais amplas, como as políticas de
Kennedy para a América Latina, ou as ações particulares, como aquelas centradas
na figura de Lincoln Gordon. O nation building representava uma nova abordagem
em relação aos países subdesenvolvidos, um contraponto democrático ao avanço
do comunismo internacional. A autora salienta que, para os formuladores do
conceito, se era possível àUnião Soviética exportar para os corações e mentes
latino-americanos a sua ideologia marxista, certamente os Estados Unidos poderiam
fazer o mesmo com o seu American Dream (LEACOCK, 1990, p.7).

Por que a preocupação dos Estados Unidos com os países


subdesenvolvidos? Leacock nos diz que, antes da subida de Fidel Castro ao poder,
os problemas da América Latina tocavam pouco as mentes dos estadunidenses;
apenas quando os seus problemas internos transbordavam as fronteiras de seus
respectivos países, colocando interesses da potência econômica em risco, é que o
governo dos EUA utilizava-se de medidas mais enérgicas para abafar as crises.
Momentos de uma certa sensibilidade. A administração Kennedy-Johnson
representou um desses momentos.
Após a Revolução Cubana, ficou evidente para os EUA que as Américas não
poderiam mais ser vistas como zonas de influência automaticamente alinhadas com
os seus interesses. Era necessário fornecer aos governos latino-americanos um
novo viés de superação do subdesenvolvimento, a fim de funcionar como um
catalizador dos anseios produzidos pelos crescentes movimentos de massas
populares que, inspiradas em Cuba, ameaçavam solapar o capitalismo na América
Latina.

O livro de Leacock sintetiza essas análises na crise brasileira de 1961 a 1969,


que para a autora, serviu de antecâmara para as outras ações na América Latina –
uma versão mais extremista teria ocorrido no Chile. O posicionamento é claro:
demonstrar como as políticas adotadas pelos EUA contribuíram para o agravamento
da crise brasileira. Todavia, Leacock simpatiza com a nova política externa e com a
idéia do nation building, propondo apresentar como os preceitos da Aliança para
Progresso foram restringidos pelo próprio Congresso dos EUA e pelo lobby das
empresas multinacionais, levando o programa ao insucesso.

O conceito de nation building foi uma tentativa de John F. Kennedy de lançar


um novo perfil para as relações internacionais com a América Latina e seus
preceitos foram sintetizados na Aliança para o Progresso. A proposta se construiu a
partir dos estudos de intelectuais liberais durante a década de 1950, mas
principalmente dois professores do M.I.T: Max F. Millikan e Walt W. Rostow. Dos
dois, a análise de Rostow obteve maior impacto sobre a administração Kennedy-
Johnson na década seguinte, quando ocupou o cargo de Director of Policy Planning
no Departamento de Estado (1961-1966). A vértebra desses estudos está reunida
no livro A Proposal: Key to and Effectice Foreign Policy, de 1957 (LEACOCK, 1990,
p. 50).

Leacock, Rostow e Kennedy comungam da idéia de que era necessária uma


modificação profunda em relação à política externa estadunidense para com os
países chamados de Terceiro Mundo. As prioridades no jogo global da Guerra Fria
estavam mudando. A União Soviética sob o comando de Nikita Khrushchev
modificava paulatinamente seu campo de ação para áreas periféricas, onde o
capitalismo condenava-as ao atraso secular, mesmo que isso fosse feito apenas de
modo retórico. Quando Kennedy tomou posse, diz Leacock, sabia da crise que
enfrentaria na América Latina e estava disposto a superá-la. O jovem presidente
estava ansioso para provar o seu valor. E na época, os candidatos à presidência
eram avaliados pela sua capacidade agressiva de lidar com as crises (LEACOCK,
1990, p. 16).

Rostow tecia profundas críticas à política externa do governo Eisenhower e


sobre toda a tradicional diplomacia estadunidense, e esse tradicionalismo pode ser
resumido em dois pontos:

(1) A construção de alianças militares ao longo de uma linha de


contenção e (2) promover os interesses dos negócios americanos no
exterior. Para um grau muito mais modesto, fornecer ajuda
humanitária e assistência técnica limitada aos países
subdesenvolvidos (LEACOCK, 1990, p. 51-52, tradução nossa)5.

Em conjunto com outros intelectuais liberais, Rostow criticava o auxílio militar


dos EUA aos países periféricos, dizendo que era apenas um desperdício de
recursos, afinal esses países não serviriam em grandes conflitos armados. A tímida
ajuda humanitária também não colocaria fim na imensa desigualdade social da
região. Era necessário que os Estados Unidos tomassem a liderança de um vasto
programa econômico de parceria internacional visando superar o
subdesenvolvimento. Após 1960 a nation building foi a pedra fundamental da política
externa dos EUA para o Terceiro Mundo (LEACOCK, 1990, p. 51).

Fica claro, ao longo da discussão, o posicionamento favorável de Ruth


Leacock pelas idéias do nation building, o que traz um tom diferenciado ao livro, uma
visão estadunidense sobre a complexa trama dos eventos. Afinal, ela dialoga com
todos os pontos que estavam em debate na década de 1960 nos EUA e no Brasil.
Logo em seu início, a Aliança para o Progresso já se demonstrou ineficaz num país

5
(1) building military alliances along a containment line and (2) promoting the interests of American
business abroad. To a much more incidental degree, it also provided humanitarian relief and limited
technical assistance to the underdeveloped countries.
mergulhado na crise política e econômica como o Brasil. As ações dos EUA na
Conferência em Punta Del Leste e a tentativa de Invasão na Baía dos Porcos em
Cuba, em 1961, logo inflamaram ainda mais o discurso anti-imperialista na América
Latina e o nation building, traduzido pela Aliança, passa a ser visto como um
programa de cunho idealista.

Em termos gerais, Leacock utiliza de um argumento que vale a pena


considerarmos. Na obra, vimos que, em resposta às críticas severas da comunidade
empresarial e do Congresso, Kennedy abandonou sua política inicial de minimizar o
papel das empresas privadas estadunidenses no desenvolvimento da América
Latina, já que na teoria do nation building, o governo desenvolveria o papel central.
O presidente passou então a defender os interesses do empresários estadunidenses
noBrasil, o que envolveu o governo diretamente em atividades para desestabilizar
João Goulart (LEACOCK, 1990, p. 172-173).

Carlos Fico: novas contribuições

Carlos Fico é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e


atualmente é um dos maiores especialistas na história da Ditadura Militar. Possui
uma grande quantidade de publicações sobre o assunto, entre as quaisAlém do
Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar (Record, 2004),
Como Eles Agiam: os subterrâneos da Ditadura Militar – espionagem e polícia
políticae outros que versam sobre o tema. O objetivo de O Grande Irmão, diz Carlos
Fico, é fornecer uma exposição contextualizada dos novos documentos do
Departamento de Estado dos EUA em relação ao Brasil entre 1964 e 1973, muitos
ainda inéditos, disponibilizados nos anos recentes por intermédio da rotineira
desclassificação dos papéis. A obra não abarca um período preciso ou um tema
específico, mas traz uma compreensão abrangente sobre a evolução das relações
Brasil e EUA, passando do apoio incondicional aos conspiradores até o
constrangimento do governo estadunidense em admitir sua associação a um
Regime Ditatorial acusado de torturar prisioneiros políticos e promover a censura.
Os dois primeiros capítulos são os que harmonizam com nosso objetivo. No
primeiro, o autor apresenta uma breve explanação sobre a história estadunidense
nos governos John F. Kennedy, Lyndon B. Johnson e Richard Nixon e discute a
representação do Brasil no imaginário dos funcionários diplomáticos. No segundo
capítulo, realiza uma análise sobre a conspiração e o Golpe de 1964, incluindo
novos fatos sobre a Operação Brother Sam.

Sobre a imagem dos funcionários estadunidenses em relação à América


Latina, Carlos Fico cita que apesar de nem todos no governo dos EUA
considerassem desimportante o estabelecimento de relações privilegiadas com o
Brasil, ou que não visualizassem nenhum potencial econômico no país, numa
avaliação geral, a América Latina havia se tornado desinteressante no ponto
estratégico-militar desde os anos 1950.

A atuação de Thomas Mann à frente da Aliança para o Progresso, como


secretário assistente para Assuntos Interamericanos e assistente especial do
presidente para a América Latina representou um endurecimento das relações com
o Brasil após a morte de John F. Kennedy. Sob o governo de Lyndon B. Johnson a
América Latina passa a não ter o mesmo zelo com que tratava seu antecessor.
Porém, é valido lembrar que a idéia de apoiar os militares brasileiros já estava
presente nos discursos de Kennedy com Lincoln Gordon

A Aliança para o Progresso parecia solapada por uma teia de ineficácia e


Johnson não podia simplesmente abandonar a iniciativa anunciada com tanto
entusiasmo para a América Latina. Numa tentativa de superar a crise, Johnson
nomeia um homem-chave, com carta-branca para agir e que concentrasse os
assuntos latino-americanos. Escolheu o antigo embaixador do México, Thomas C.
Mann.

Mann assume a pasta em janeiro de 1964 e permanece no cargo apenas até


março de 1965, mas, afirma Carlos Fico, sua atuação foi decisiva no delineamento
na abordagem para a América Latina. Mann via a Aliança para o Progresso como
uma ferramenta útil, porém, deveria funcionar apenas com indutora do
desenvolvimento. Era imprescindível, a seu ver, a participação dos investidores
privados – logo Mann abre as portas para o grupo de empresários capitaneados por
David Rockefeller agirem. Thomas Mann também representa a retirada do corpo de
intelectuais na condução da política externa – como Schlensinger, Goodwin e outros
– que, consequentemente, passaram a tecer duras críticas as diretrizes de Mann.

Essa atuação de Mann marca profundamente a relação de Johnson com a


América Latina, precisamente ficou conhecida como “Doutrina Mann”,

segundo a qual os Estados Unidos deixariam de questionar a


natureza dos regimes que estavam recebendo sua assistência
militar e econômica, desde que se mantivessem
anticomunistas, mesmo que fossem autoritários ou ditatoriais
(FICO, 2008, p. 35).

Todavia, o autor alerta que as mudanças propostas por Thomas Mann,


embora importantes, não era uma completa novidade, Kennedy já assumia uma
postura mais flexível em relação agovernos ditatoriais no fim de seu governo. Para
Fico, é mais adequado falarmos de uma mudança de ênfase do que propriamente
de uma alteração profunda na política externa. Ela não era nova como afirmava os
seus críticos. Podemos falar de uma revivescência do “Corolário Roosevelt” de
1904, quando o governo estadunidense permitia-se intervir em nações latino-
americanas para coibir casos de “injustiça ou impotência”, mas agora sob a égide da
Guerra Fria. Mas, efetivamente, a aproximação da administração Johnson com os
regimes autoritários era maior (FICO, 2008, p. 36-37).

Outro dado novo, revelado a partir das pesquisas de Fico e que ainda não
havia sido apontado por outros analistas, é que, ao contrário dos depoimentos dos
funcionários estadunidenses, como Gordon e Waters houve envolvimento de
brasileiros na Operação Brother Sam. A existência de um contato brasileiro que
cuidaria da entrega das armas, munição e combustível é reveladora. Trata-se do
general-de-brigada José Pinheiro de Ulhoa Cintra, que segundo Castello Branco “era
um dos grandes revolucionários do Exército”, era seu subordinado fiel dos campos
da Itália e, portanto, bastante confiável (FICO, 2008, p. 94-95).
Em 28 de março de 1964, Gordon informou que o general Cintra ficaria
encarregado de fazer uma avaliação sobre a necessidade suplementar de armas
destinadas as forças golpistas e avisaria Vernon Walters;essas armas seriam
enviadas por meia daOperação Brother Sam. A preocupação de Gordon era com os
poucos recursos da polícia e do Exército Brasileiro, incapazes de resistir a grandes
distúrbios internos. Desse modo, Gordon defendeu nos últimos dias antes do golpe
uma participação quase militar dos Estados Unidos no Brasil, descartada por seus
superiores. Ele insistia no risco do país tornar-se comunista. Durante todo o mês de
março, de acordo com Fico, Gordon exerceu um papel fundamental na interpretação
e convencimento do Departamento de Estado de que havia um grande risco no
Brasil.

A nova polêmica levantada por Fico demonstra que a Brother Sam foi
conhecida e planejada com a cumplicidade de brasileiros, como o general Ulhoa
Cintra, auxiliar de Castello Branco, que também estava informado sobre a operação.
Assim, conclui o autor, ocorre uma sucessão de erros por parte do governo dos
EUA, desde o financiamento secreto nas campanhas governamentais de 1962, a
inútil e embaraçosa Operação Brother Sam, o reconhecimento do novo governo
militar com Goulart ainda no Rio Grande do Sul, assim como a aceitação do AI-2,
sintetizam o rol de desastres por parte do governo estadunidense com atuação
central de Gordon.

Considerações Finais

A análise historiográfica realizada a partir da exibição das principais


contribuições dos autores para a formação de uma perspectiva histórica, neste caso,
sobre a relação dos Estados Unidos com o governo João Goulart, concluímos que o
tema ainda é cheio de lacunas, discussões e problemáticas, não havendo – e não
deveria haver – qualquer consenso sobre o papel do governo estadunidense no
golpe, mesmo entre aqueles que identificam os EUA como ator político fundamental
para a conclusão do golpe civil-militar de 1964. Nota-se, no entanto, que qualquer
estudo sério ainda em 1964 já incluía em suas analises, sejam elas que qual campo
for, que a participação estadunidense nos eventos era, no mínimo, relevante, se não
crucial.

Referências

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a


América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo.
O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.

GREEN, James N.; JONES, Abigail. Reinventando a História: Lincoln Gordon e


suas múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 29, n.
57, p. 67-89, 2009.

LAPA, José Roberto do Amaral. Historiografia Brasileira Contemporânea: a


história em questão. Petrópolis: Vozes, 1981.

LEACOCK, Ruth. Reaquiem for Revolution: the United States and Brazil, 1961-
1969. Kent: Kent State University Press, 1990.

NAPOLITANO, Marcos. O Golpe de 1964 e o Regime Militar Brasileiro:


apontamentos para uma revisão historiográfica. Revista Contemporánea –
historia y problemas del siglo XX, Montevidéu, v. 2, n. 2, 2011.

PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de estado de 31


de março. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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