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Curadoria de exposições∗

A situação brasileira: anotações


para uma discussão

ARACY AMARAL

Quando estrangeiros se reúnem para analisar, refletir, debater sobre a


curadoria de exposições e participamos desses encontros, a minha
impressão é sempre, como quando por ocasião de encontros
internacionais de museus, de que estamos transportados subitamente a
Marte, tal é a distância entre a problemática que se coloca e a realidade
brasileira. Não se creia que isso me incomoda, ao contrário. Considero
instigantes as colocações sobre exposições de arte organizadas com
cunho antropológico, ou "para as pessoas brancas da cidade", ou ainda
em torno ao fato de que "galerias e museus estão longe de serem
neutros", como discutiu em sua conferência de Veneza Guy Brett, no ano
passado, com sua usual e rara sensibilidade para um anglo-saxão
europeu.
Há quatro itens que poderíamos discutir numa mesa-redonda sobre
curadoria: 1) as curadorias que se fazem no exterior para o exterior; 2) as
curadorias que se fazem no exterior a partir da arte de países do Terceiro
Mundo para seu público "civilizado"; 3) as curadorias que fazemos no
Brasil – e ainda a indagação que poderia ser discutida: existem
curadorias, no sentido pleno do termo, como atividade regular no Brasil?;
4) este último ponto poderia ser ampliado: quais as condições mínimas


Rio de Janeiro, 28 ago. 1991.

Texto gentilmente cedido por Aracy Amaral para www.novoscuradores.com.br


© AMARAL, Aracy. Permitida a divulgação e reprodução desde que citada a fonte. 1
necessárias para que existam curadorias de nível médio e alto em
determinado país?

1. As curadorias que se fazem no exterior para o exterior.


Aqui é procedente o posicionamento de Guy Brett, seu questionamento
em torno à política dos museus e galerias do Primeiro Mundo. Ou seja:
para quem os museus organizam as mostras, as exposições temáticas, o
dado comemorativo institucional, a raridade das mostras que geram
polêmicas ou marcam um tempo, como "Zeitgeist", ou "Magiciens de la
Terre", ou mesmo a partir de intenções, quiçá, como "Metropolis", a
importância do público, a intencionalidade de eventos preparados. Refiro-
me em particular à exposição de arte latino-americana no Bronx Museum,
por exemplo, há cerca de dois anos.

2. As exposições que se fazem no exterior a partir do Terceiro Mundo,


em particular, a partir da arte da América Latina.
A exceção de "Modernidade" pelas mãos de Marie Odile Briot.
O que me tocam são as exposições sobre a América Latina. Não há
especialistas em América Latina. Da impossibilidade da existência
desses especialistas. Viajar, contatar, refletir sobre, permanentemente,
impossível.
Marta Traba o fez, em parte, sobre o mundo hispânico, nos anos 1950 e
60. Damian Bayon, em parte, nos anos 1960 e 70. O que vemos surgir de
curadorias do exterior sobre a América Latina é uma bibliografia paralela
àquela que é editada aos poucos, gradualmente em nossos países, a
partir do exterior, de autores estrangeiros que não vivenciaram nossa
realidade artística, porém apenas prepararam exposições como
profissionais, e que muito dificilmente são estelares para poder nos intuir
em três a cinco dias de visitas rápidas ao país, usualmente sem conhecer
nosso idioma. E que conhecem nada ou pouco de nossa historiografia,
por desinteresse, pressa ou desconhecimento de nossa língua. Preside,
nesses trabalhos, a demanda do público de seus países, the audience,
palavra mágica no Primeiro Mundo.
3. As curadorias que se fazem no Brasil.
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Quais as exposições marcantes no mundo artístico brasileiro dos últimos
tempos? Podemos afirmar que há ambiente e condições para a
existência de uma linhagem de curadores no Brasil?
Pessoalmente, se me fosse perguntado de minha experiência
profissional, mencionaria, antes de meu trabalho museológico (na
Pinacoteca do Estado e no MAC-USP), quatro exposições, para que se
perceba que a soma de vivência ocorre ao longo dos anos: a exposição
sobre os nipo-brasileiros no MAC, em 1966; a exposição antológica de
Tarsila no MAM-Rio, em 1969; a exposição retrospectiva de Volpi,
também no MAM-Rio, em 1972, ambas valendo aos dois artistas o
Golfinho de Ouro, o que é claro, deu-me muita satisfação; e a
“ExpoProjeção”, em São Paulo, em terreno neutro – uma galeria
especializada em vídeos, opção minha, sobre as formas alternativas de
expressão de artistas conceituais de inícios da década de 1970, isso em
1973.
Dirigir a Pinacoteca (de 1975 a 79) e o MAC-USP (de 1982 a 86)
forneceu-me a possibilidade de organizar "n" exposições, temáticas, por
analogia de linguagem, e, no MAC, de organizar eventos com as
gerações que emergem em começos dos anos 1980, etc. Inclusive,
quando na Pinacoteca, participei da polêmica organização e, em
particular, da coordenação do catálogo de "Projeto Construtivo Brasileiro
na Arte", iniciativa conjunta da Pinacoteca do Estado e do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 1977.
Essa exposição, contudo, marcou para mim uma série de experiências
dolorosas, na expressão da palavra, de que foi igualmente exemplar a
co-curadoria de "Modernidade". Neste caso, era como se todos os
artistas temessem que fosse a oportunidade única de serem
selecionados para um evento internacional. E, na verdade, apesar de
todas as críticas que hoje possamos lhe fazer, de perspectiva, e as há
muitas, "Modernidade" foi o primeiro de uma série de eventos
internacionais de que participaram artistas brasileiros.

A problemática maior da curadoria no Brasil: a falta de estrutura dos


museus, a perda de estrutura de museus que tiveram estrutura e cuja
descontinuidade é o dado de dramaticidade maior que possamos
apresentar como carência para que outros países se interessem por nós
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como sede ou local de circuito de exposições. Esse é o dado que
devemos questionar. Por que se dá a ausência de continuidade em
nossas entidades museológicas ou instituições culturais?
Pessoal técnico: ser dotado de uma estrutura é conhecer, por intermédio
de uma equipe treinada, portanto confiável, a manipulação de obras; é
possuir técnicos igualmente experientes, ao longo de anos, para
montagem, iluminação de exposição, embalagem e reembalagem de
obras de arte, depósito do patrimônio sob sua guarda. Quantos museus
no Brasil possuem, ao longo dos anos, essas condições mínimas para
atrair circulantes?
Finanças: a situação brasileira. Do Rio de Janeiro para o norte e centro
do país é regra geral o patrocínio do governo federal. Há exceções que
confirmam a regra. No desinteresse do governo federal, a inação.
Exemplo disso é a ociosidade relativa de belos espaços culturais no Rio
de Janeiro (Banco do Brasil, Paço Imperial, Casa de Cultura França-
Brasil, etc.) Inútil pensar em novos templos ou arquiteturas projetadas se
a mentalidade não se alterar. Parece ser mais fácil, em alguns casos,
construir do que montar uma equipe, que só se solidifica ao longo de
anos ou décadas (curadoria, pessoal técnico referido, etc.), a fim de
tornar realidade uma tradição de realizações no campo, por exemplo, das
artes visuais.
A iniciativa privada, que garante a continuidade maior de eventos, ou os
meios para sua concretização, só se percebe de São Paulo para o sul do
país. Há aqui um caminho a ser percorrido. Como consequência desta
situação ao longo dos anos, inevitavelmente gozamos de razoável
posição em São Paulo, em comparação ao restante do Brasil, embora
não a melhor em termos internacionais. Possuímos historiadores de arte,
em função de uma tradição de vinculação do meio cultural paulista com a
Universidade de São Paulo, curadores com longa, média e recente
experiência, que apesar do pecado de não-permanência numa única
instituição (ao nível de seniors, juniors e postulantes), trabalharam já em
entidades as mais variadas, seja em algumas das 21 Bienais de São
Paulo, seja em seus museus (MASP, MAM, MAC-USP, Pinacoteca), e
nos centros culturais públicos e privados da municipalidade. O que causa
espécie é o não-aproveitamento de muitos desses profissionais – ao
contrário do que ocorre no mundo – quando um ou dois curadores são

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contratados por um dos museus. Frequentemente as escolhas parecem
ser baseadas na simpatia pessoal, na política, etc. O que é contraditório,
tendo em vista nosso plantel já existente em São Paulo, ou seja, existe
de fato entre nós um panorama de profissionais, aptos, intelectualmente
e do ponto de vista de experiência, a assumir cargos, e que são
descartados.
Há, assim, mesmo curadores de uma única exposição. Claro que não há
nível de excelência, mas se comparado ao restante do país, possuímos
já escritórios de arte para montagem de exposições ou publicação de
livros de arte. Há também equipes como as da Expomus, que produzem
exposições, inclusive em nível internacional. Tenho a sensação, em São
Paulo, mesmo apesar de existir entre nós uma iniciativa privada que se
deve pressionar para promover eventos, que temos profissionais
habilitados "saindo pelo ladrão".
Nos demais Estados, fora o Rio Grande do Sul e o Paraná, de atividade
bastante respeitável, vivenciamos uma modorra assustadora. Exceção
deve ser aberta, recentemente, pelo Pará, onde, a partir de Belém, sente-
se uma vontade promissora de realizações. Porém, como sacudir essa
modorra generalizada? Só incentivando os profissionais em atividade na
área, infundindo responsabilidade na nomeação e seleção de
profissionais curadores, fazendo aparecer um clima novo de
consideração pelos mais experimentados assim como pelos jovens com
realizações importantes. E esperar que nossos governantes, numa
próxima geração, tenham um nível cultural que lhes permita
sensibilizarem-se diante da importância de eventos no meio artístico.
Creio que só assim.
Porque em termos de museus e curadorias estamos ainda do outro lado
da problemática dos países do Primeiro Mundo. Ao contrário deles,
vivemos num deserto, em museus em permanente crise, vazios.

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