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Manoel

de
ADALBERTO MÜLLER JR.
Barros:
o avesso O livro de Manoel de Barros, lançado no final

de 2001, Tratado Geral das Grandezas do Ínfi-

mo veio reafirmar a relevância que esse poeta

passou a ter nas nossas letras desde meados dos

visível anos 70, quando começa a se firmar como uma

das vozes maiores da nossa poesia. Tal relevân-

cia, porém, nos anos 80 e 90 passa por uma espé-

cie de inflação midiática, o que terá despertado a

alegria excessiva de uns e a indiferença rancoro-

sa de outros. “Meu avesso é mais visível do que

um poste”, disse o poeta em Livro sobre Nada. É


ADALBERTO MÜLLER
JR. é doutorando em por esse avesso, que escapa aos olhares dos apres-
Literatura Francesa pela
sados e dos indiferentes, que talvez devêssemos
USP, tradutor e poeta.
É autor de Ex officio (Jean começar a considerá-lo.
F. Phinera). Prepara
atualmente a publicação Em dezenas de entrevistas dadas por escrito a
de O Sabão, de Ponge.
diversos jornais e revistas, que constituem parte
Tratado Geral das
Grandezas do Ínfimo, de considerável de sua obra, Manoel de Barros vem
Manoel de Barros, Rio de
chamando a atenção para as peculiaridades de sua
Janeiro, Record, 2001.
estética. Numa das mais notáveis, resultante de

mais de vinte cartas trocadas ao longo de um ano

entre o poeta e os editores da revista Bric-à-Brac,

Manoel de Barros chama a atenção para o cuidado

com a construção da frase:

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“Anoto tropos. Palavras que normalmente e as imagens que o choque entre as pala-
se rejeitam, eu caso, eu himeneio. Conti- vras suscita. Em suma, o “desencontro en-
güidades anômalas, seguro com letras tre a palavra e a idéia”, como ele costuma
marcadas em meu caderno. De repente uma dizer. De Oswald de Andrade, enfim, acre-
palavra me reconhece, me chama, me ofe- dito, a grande lição é menos o desrespeito
rece. Eu babo nela. […] As palavras que- às normas lingüísticas que uma certa leve-
rem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro- za semântica, um flerte rápido e violento
lhes o verniz e os vôos metafísicos. […] As com o humor verbal, como num poema
palavras compridas se devem cortar como recente: “O céu tem só três letras./ O sol
nós de lacraia. O verso balança melhor com tem só três letras./ O inseto é maior” (4).
palavras curtas. Os ritmos são mais varia- Seria preciso falar outro tanto de Proust,
dos se você trabalhar com dissílabos, com Pessoa e Rosa. Ou de Raul Bopp. Em se
monossílabos. Exemplo: Parou bem de tratando de Manoel Barros, as filiações li-
frente pra tarde um tordo torto.” (1). terárias são, na verdade, tão ou mais mó-
veis quanto as águas do Pantanal. E elas
A constante oscilação entre os termos não bastam para se compreender a arte desse
“verso” e “frase”, conforme se lê nessa e autor. Por ora quero arriscar um pensamento
em outras entrevistas, aponta para uma que se move em outra direção. O Tratado
indiferenciação entre a prosa e a poesia. Geral das Grandezas do Ínfimo não é um
Essa indiferenciação, que nada tem de for- livro. Não no sentido comum. Claro, co-
tuita, guarda uma semelhança formal com mercialmente, e concretamente, é um li-
o próprio Pantanal, lugar ambíguo onde as vro. Mas não é só isso. Manoel de Barros
águas e as terras se confundem. A escritura está escrevendo o mesmo livro, desde mea-
de Manoel de Barros tem algo de líquido, dos dos anos 60. Todos os livros de Manoel
ela é como o líquido de que fala Ponge: são amostras de um só livro. Observe-se
“recusa-se a todo instante a manter toda que os títulos todos apontam para a nature-
forma” (2). Não será fortuita, portanto, a za lingüística e retórica da experiência
menção constante que Manoel de Barros barriana: Compêndio, Gramática, Ensaios,
faz a três autores que considera essenciais: Livro, Tratado. Para cada um dos livros,
o padre Vieira, Rimbaud e Oswald de Manoel de Barros fabrica uma série de
Andrade. Com Vieira, Manoel teria “apren- cadernos, que ele encapa com ilustrações e
dido” ainda jovem a manter a frase na ten- preenche a lápis. São milhares e milhares
são exata, entre o clássico e o barroco, en- de versos e frases ao longo desses anos.
tre o erudito e o popular. Como diz um dos Para quem? Sobre o quê? Com quem ele
poemas do Tratado Geral das Grandezas dialoga esses anos todos no seu “antro”,
do Ínfimo, o padre Vieira “pregava de en- como ele chama o escritório em Campo
costar as orelhas/ na boca do bárbaro” (p. Grande, recheado de livros e dicionários?
47). É de Vieira também que vem esse gosto Uma coisa é certa: ele não está escre-
pela frase, que sustenta a anfibologia pro- vendo sobre o Pantanal ou sobre a Nature-
1 Bric-à-Brac , n. 3, Brasília,
1989. Retomada em Gramáti- sa/poesia. De Rimbaud, sobretudo do za, ou ainda “sobre as coisas pequenas”.
ca Expositiva do Chão (Poesia
Quase Toda), na seção “Con-
Rimbaud de Iluminations, aquele que dá à Não apenas. Há muito ele abandonou essa
versas por escrito”. prosa uma dimensão poética nunca antes pretensão ingênua, que o poeta Nietzsche
2 Cf. Francis Ponge, O Partido vista, o poeta brasileiro seguiu dois conse- denuncia nos versos de “O Pintor Realis-
das Coisas, São Paulo, Ilumi-
nuras, 2000, p. 102. A tradu- lhos: a desregramento dos sentidos e o apre- ta”: “Como obter da Natureza uma ima-
ção aqui é minha. ço pelas “pinturas idiotas”. Releiam-se as gem completa?/ Infinito é o mais ínfimo
3 Cito a tradução de Rodrigo Iluminations sob um prisma barriano, e cisco do mundo!/ Enfim, ele pinta o que lhe
Garcia Lopes e Maurício Arruda
Mendonça: Iluminuras: Gravu- muito se encontrará: “a doçura florida das vem à cabeça./ E o que lhe vem? O que sai
ras Coloridas , São Paulo,
Iluminuras, 1996.
estrelas”; ou esta: “eu abracei a aurora de de sua paleta” (5). Manoel de Barros está
verão” (3). Eis o que Manoel de Barros competindo com o Pantanal, com a Nature-
4 Publicado na Folha de S. Paulo
(Folhinha) de 19/1/2002. chamaria de “balanço da frase”, criado pela za. Por isso ele insiste que sua natureza é a
5 A tradução é minha. tensão entre a economia e a rítmica verbais palavra, que não pretende descrever o real,

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mas fantasiar: “desprezo o real porque ele idéia de uma linguagem transparente em
exclui a fantasia” (6). Poeta da “natureza relação ao mundo, e uma poesia que sofre
da palavra”, mais do que da palavra da e faz sentir um abalo nos alicerces da sub-
natureza, embora esta seja um de seus jetividade, na qual o sujeito lírico se des-
motivos preponderantes. Mas o que é mes- personaliza, exatamente porque é posto e
mo a natureza, já que tanto se fala dela a se põe numa distância irônica em relação a
respeito de Manoel de Barros? Pode-se falar si mesmo e ao mundo. O Eu descobre o
da Natureza como o conjunto dos entes, da Outro na poesia antes que seja formulada a
natureza por oposição à cultura e, finalmen- idéia de uma psicanálise. Ao se desper-
te, da natureza humana. Se assim entender- sonalizar, o poeta não mais se vê pisando
mos a palavra, todos os poetas falam e sem- no solo firme de uma retórica: a linguagem
pre falaram da natureza. E é assim, de fato, se torna opaca, incapaz de traduzir literal-
que devemos entender Manoel de Barros. mente o mundo e as angústias da existên-
Por isso é que no Tratado há lugar para cia. Mallarmé fala disso em Crise do Ver-
todas as formas de natureza: a natureza da so, e Valéry define a linguagem da poesia
poesia (“Disfunção Lírica”); a natureza dos como um abismo. Ponge proclama a neces-
bichos e seres inanimados (“As Formigas”, sidade de uma retórica por poema. Pois
“A Pedra”, “Os Caramujos”); a natureza da bem, essa é a fonte onde bebe a poesia de
infância (“Infantil”) e a natureza dos seus Manoel de Barros. A pedra que fala no
personagens, seres marcados pelo abando- poema é, portanto, o Outro, ou o eutro (7).
no, pelo isolamento e pela incapacidade de
viver no mundo civilizado (“O Urubuzei- Mas não é só quem fala, o que interessa
ro”, “Joaquim Sapé”, “O Bandarra”). Mas saber. Pois o que nos toca é o como. É o
talvez seu grande tema seja a sua própria quê. A poesia de Manoel de Barros se sus-
natureza, a natureza do eu-lírico, que está tenta num equilíbrio frágil entre o erudito
se mostrando em todas as partes de sua obra, e o popular, entre o clássico e o moderno.
como neste belo poema “A Pedra”: Nos versos do poema citado, o decassílabo
sustenta uma frase que beira a fala regio-
“Pedra sendo nal: “eu tenho gosto de jazer no chão”. Mas
Eu tenho gosto de jazer no chão. se olharmos (e ouvirmos) mais atentamen-
Só privo com lagarto e borboletas. te, percebemos que o jazer quebra a viga-
Certas conchas se abrigam em mim […] mestra do discursivo-coloquial, introduzin-
Às vezes uma garça me ocupa de dia. do um elemento de estranhamento na frase.
Fico louvoso […] O mesmo ocorre com o privar com no ver-
E o sol me cumprimenta por primeiro” so seguinte. A construção da frase com
(p. 27). privar com é de uso raro (um arcaísmo),
significando “conviver intimamente, ser
Há tempos Manoel de Barros vem repe- íntimo”. O encanto das frases de Manoel
tindo que não basta descrever as coisas provém dessa fusão da linguagem arcaica
poeticamente, é preciso saber dar voz às do homem do sertão com a melhor tradição
coisas, é preciso sê-las. O poema é, plena- clássica da língua: “Fico louvoso”. Vá o
mente, na medida em que torna possível a leitor aos dicionários em busca desse adje-
eclosão do Ser. O Ser, aprendemos com tivo. Talvez não o encontre. Pois Manoel
Heidegger, não nos é dado: ele advém (ou de Barros sabe onde e como inventar. De
não) por intermédio de uma busca que pres- um músico, ouvi certa vez uma definição
supõe um Projeto. Toda a poesia da alta da arte de Manoel de Barros: “ele abre a
6 Entrevista à Bric-à-Brac, obra
modernidade diz isso, de Baudelaire a linguagem por dentro, e a deixa escancara- citada acima.
Celan, de Ruben Darío a Drummond. da” (8). Não encontro forma mais acabada 7 Essa palavra foi forjada num
Baudelaire, aliás, marca a cisão profunda de dizer o essencial. ensaio escrito pelos tradutores
de Rimbaud (cf. nota acima).
entre uma poesia que se fundamenta no Enfim, interessa o quê. Falar de pedra
8 O músico é Paulo Brandão, do
ipseísmo da subjetividade, ancorada na depois de Paul Celan, Zbigniew Herbert e extinto Aquarela Carioca.

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João Cabral é coisa assaz complicada. Mas Manoel, Sabastião tem uma “disfunção”.
a pedra de Manoel de Barros em nada lem- Da mesma forma que Bernardo de O Guar-
bra a secura e a aridez desses mestres, nem dador de Águas é capaz de entrar “em es-
tampouco a inquietude existencial, a nausée tado de árvore” e que o João de Matéria de
sartriana da coisa. A pedra de Manoel de Poesia é capaz de poesia porque “quebra-
Barros canta. E encanta. Dir-se ia que ela é ram dentro dele/ um engradado de estre-
simplesmente alheia às dores dos homens. las”. Diz-se que a maioria dos personagens
Esteja nas margens plácidas das águas do de Manoel de Barros existe de fato. Mas,
Pantanal ou nas florestas ensangüentadas da como Proust, o poeta os reinventa. E todos
Bósnia, ela se entrega ao mero deleite de ser. esses personagens passam a fazer parte
“O que me me espanta mais no mundo hoje”, desse “minhocal de pessoas” de quem o
disse o poeta, “não é a crueldade: é a inocên- poeta fala, ou que falam de dentro do poeta.
cia” (9). É certo que é necessário entender a Assim como se transforma na “voz em que
pedra do Holocausto, de que fala Celan; a uma pedra fale”, o poeta tem o condão de
pedra da miséria, de que fala Cabral. Mas ver o mundo pelos olhos de um Bernardo,
devemos esquecer dessa pedra que “toma de um Mário-Pega-Sapo. Mas ele relata o
banho de orvalho da manhã”? que vê, traduz o que vê em poesia, e assim
O Tratado Geral das Grandezas do nos faz ver o mundo através dos olhos da
Ínfimo é parte de um grande livro, que vem inocência. O procedimento mais uma vez é
sendo escrito desde os anos 60. Mas esse kafkiano, pois em A Metamorfose (10)
livro já tinha seus prenúncios no opúsculo vemos o mundo e, o que é mais, sentimo-
de 1937, Poemas Concebidos sem Pecado. lo, graças à estratégia de um narrador que
Lá temos um poeta contador de histórias, se situa na medida exata entre o persona-
que narra as peripécias de personagens meio gem e o leitor. Também é kafkiana essa
insanos como o Mário-Pega-Sapo, cujo economia narrativa, que beira o fantástico
nome incomodava um “literato oficial”, que e o surreal que se vê em outra narrativa,
advogava a mudança de nome do sujeito “Infantil”:
para Mário-Captura-Sapo, para não
“macular [sic] a língua nacional lá dele…”. “O menino ia no mato
Uma das características pouco notadas de E a onça comeu ele.
Manoel de Barros é a sua extraordinária Depois o caminhão passou por dentro do
capacidade narrativa, com a qual condensa [corpo do
em poucas palavras uma série de eventos, menino
à Kafka, como se pode ver no começo des- E ele foi contar para a mãe”
sa narrativa curta que é “O Urubuzeiro”: (p. 29).

“Meu amigo Sabastião estourou a Manoel de Barros está escrevendo há


[infância dele e mais anos o mesmo livro. Por isso, ele se repete.
duas pernas Um dos sinais mais visíveis dessa repeti-
No mergulho contra uma pedra na ção é o tom didático de algumas composi-
[Cacimba da Saúde” ções, que geralmente compõe a primeira
(p. 21). parte de cada um dos livros. O didatismo,
que também pode ser chamado de meta-
A partir daí, Sabastião, que passa a se linguagem, é certo, vem se exacerbando,
arrastar como um “caranguejo trôpego”, é desde os últimos livros. Por isso, talvez, o
9 “Auto-retrato aos 80”, in Cara-
col Noturno, caderno especial
contratado para espantar urubus num lugar Tratado tenha incomodado alguns leitores.
editado por Douglas Diegues onde se charqueia carne. É então que o fan- Mas por que Manoel de Barros tanto quer
em 1996.
tástico passa a acontecer: o toco de gente, se explicar? Para quem? Eis as questões
10 Devo essa comparação à artis-
ta plástica Martha Barros, que, ao invés de espantar os urubus, passa a que aguardam resposta.
além de ilustrar os livros de “conversar em estrangeiro” com as aves de Que é fácil cair no fastio de uma poesia
Manoel de Barros, é uma exce-
lente leitora dessa poesia. rapina. Como todos os “personagens” de tão didática, isso é verdadeiro. Essa poesia

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talvez deixe evidente um certo desejo de erótica que leva o poeta a desejar o chão, as
ser compreendido que tanto tem incomo- coisas viscosas, e o estado animal/vegetal
dado o poeta. Um desejo, digamos logo, de torpor. Mas não bastam conhecimentos
infantil. Gostaria até de dizer primitivo. psicanalíticos para compreender essa poe-
Esse desejo fica à mostra como a carta do sia, pois a sua pulsão erótica se fundamenta
conto “A Carta Roubada” (“The Purloined e se realiza com as palavras, desde as ori-
Letter”) de Edgar Allan Poe. É um desejo gens do poeta: “percebi aquele gostinho
recorrente, repetitivo. Um desejo de ser raro, escondido, de mexer com as palavras
descoberto, mas de ser descoberto de for- até que elas dessem uma resposta de mim.
ma inteligente. No conto de Poe, um minis- Era uma aventurinha secreta como fazer
tro rouba uma carta que compromete mo- atrás do muro” (12).
ralmente a família real. A polícia parisiense Assim como erotiza o verbo, e se erotiza
é chamada para resolver o caso, e apesar de nele e com ele, Manoel de Barros erotiza a
os investigadores esquadrinharem minucio- natureza com suas imagens, como se vê em
samente, de forma científica, o apartamen- um dos poemas curtos do “Livro de Ber-
to do ministro, nada encontram. Entra em nardo”, que encerra o Tratado:
cena Arsène Dupin, que descobre a carta
observando não a casa, mas as atitudes do “O corpo do rio prateia
dono da casa, o ministro. Assim, descobre quando a lua
que a carta estava em cima da lareira, num se abre”
porta-cartões, lugar por demais visível. Em (p. 56).
geral, os críticos de Manoel de Barros têm
agido como aqueles investigadores da polí- Essa volúpia da e pela imagem é uma
cia francesa: esquadrinham, analisam, de- das peças de resistência da poesia de Ma-
compõem matematicamente, e nada encon- noel de Barros. Precisão e lirismo aí se
tram, embora o poeta diga: “o meu avesso é conciliam, mas a imagem é opaca. Não a
mais visível que um poste”. Será preciso – vemos de cara. Só aos poucos, aqui, a ima-
evitando a contaminação (11), outro peri- gem fálica do rio despejando o sêmen-luz
go – elaborar um discurso crítico que atue no corpo aberto da lua se fixa, mas de for-
como a técnica de Dupin: uma fusão de ma imprecisa. Será que estou vendo o que
matemática e poesia. estou vendo? Será que estamos lendo a
Lacan, ao comentar o conto de Poe num poesia de Manoel de Barros sem atentar
de seus seminários, comparou a carta ao para essa opacidade que a cada novo livro
inconsciente: ele está ali, evidente, embora vai ficando mais transparente? Será que essa
não o percebamos, ou não o queiramos poesia não está aí bem aberta, como a carta 11 Na incapacidade de elaborar
perceber. A poesia de Manoel de Barros se do conto de Poe, para que a descubramos um discurso crítico, muitos co-
mentadores da obra de
articula como tal inconsciente. Ela se mos- com outro olhar senão aquele que analisa, Manoel de Barros acabam fa-
zendo meras paráfrases “poé-
tra escondendo-se, e mais se oculta quanto recorta, esquadrinha, invade, estupra? Será ticas” dos textos desse autor. É
mais se expõe. Por isso o seu fundamento preciso talvez começar a olhar para a obra o que em crítica literária se cha-
ma de contaminação.
nos remete ao domínio do erotismo e da de Manoel de Barros como um todo articu-
12 Entrevista a Giovanni Ricciardi,
sexualidade. Não é de hoje que o poeta só lado em torno de um projeto tenaz e insis- em Auto-retratos, Martins Fon-
fala nisso, ou naquilo: “não bastam as li- tente, mas cujas fronteiras (semânticas, dis- tes, 1991. Citei, ao longo des-
se artigo, trechos de outras
cenças poéticas, é preciso chegar às licen- cursivas) se movem e se deslocam cons- entrevistas, a partir da edição
do conjunto das entrevistas es-
ciosidades”; “é preciso chegar aos limites tantemente, obrigando o leitor a um pro- critas por Manoel de Barros,
mais fróidicos das palavras”; “fazer vagi- cesso também constante de rememoração que estou preparando, e que
deverá ser publicada em
nação com as palavras”, etc. É uma pulsão e ressignificação. 2003.

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