Você está na página 1de 5

26/10/2015 Page­3 

| Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS

Home O Movimento Ações Culturais Cursos Online Na Mídia Doações Contato

Para receber os convites e
Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS - Fala final de Luiz Fuganti informativos, registre­se aqui
Página 3 de 4
Índice do Artigo
  Redes Sociais Contador de
Saúde Integral, Poder,
Acesso
Luiz Fuganti: Algumas pessoas colocaram de fato questões e outras já Cultura e AIDS
deram sugestões e colocações. Já tem muito pensamento, envolvendo Intervenções do Público Visualizações de
isso tudo: atitudes, práticas e a questão seletiva. Na medida em que eu Fala final de Luiz Fuganti Conteúdo : 1204008
for me lembrando de algumas questões essenciais eu vou falando e aí
Fala final de Luiz Fuganti
peço  a  generosidade  de  vocês.  Se  eu  me  ausentar  de  algumas
Todas as Páginas
questões,  me  sinalizem  de  novo:  “olha,  e  essa  questão  e  aquela...,
aqui você esqueceu, aqui você passou e assim por diante”.

Eu vou tentar falar segundo o que está me afetando mais imediatamente e as questões mais gerais do
ponto  de  vista  das  políticas  públicas  que  eu  me  lembro  foram  levantadas.  A  gente  pode  começar  pela
questão de como o Brasil ultrapassou as dificuldades iniciais. Eu digo que são iniciais, porque ainda há
muitas dificuldades. Também no Brasil, acredito que ainda se morre de Aids. É muito menos, acho que é
apenas uma minoria, mas acho que ainda acontece isso. Felizmente o Brasil tem algumas comunidades,
alguns movimentos, muito ativos em algumas áreas. O Brasil também tem um setor que é bem forte. Existe
muito homossexualismo no Brasil. As comunidades homossexuais são muito organizadas ou aprenderam
a se organizar e a se defender, porque também no Brasil existe muito preconceito contra homossexuais.
Inicialmente os próprios norte­americanos, a Europa, a moral estabelecida e as religiões diziam que era
uma doença de homossexuais. Era uma doença de libertinos, era uma doença que pegavam aqueles que
se  comportavam  mal.  Era  uma  espécie  de  castigo  divino  ou  de  outra  espécie.  Mas,  enfim,  era  preciso
mudar  o  seu  comportamento.  O  que  eu  quero  dizer  é  que,  no  Brasil,  esse  discurso  moralista,  nesses
movimentos,  não  pegava.  E  esses  movimentos  começaram  a  se  organizar  e  a  se  defender  muito
fortemente. E começaram a tomar atitudes em relação à maneira de se relacionar sexualmente e inventar
meios de esclarecimento, meios de se fazer prognósticos, diagnósticos, de remediar, de desestigmatizar
etc. Esse lado, não só das comunidades homossexuais, mas de muitos outros movimentos ­ como também
os GAPs, Grupos de Apoio aos Portadores de HIV, de artistas, de mulheres, mães, porque no Brasil tem
muitos movimentos ativistas se organizando em torno de entidades civis ­ foram muito importantes para
forçar o governo brasileiro a ter uma atitude mais ativa e criar uma política pública direcionada para essa
questão. A gente sabe também que onde o capitalismo é um pouco mais desenvolvido percebe­se que ele
atua  diretamente  naquilo  que  desagrega  socialmente  e  que  também  viabiliza  a  condição  de  sua
reprodução. Então o HIV não se tornou simplesmente uma ameaça para a vida e para as comunidades.
Ele se tornou também uma ameaça para o modo de viver em sociedade, de acumulação econômica, de
negociações etc., de uma sociedade que precisa, digamos assim, da paz, da saúde e da estabilidade para
realizar bons negócios. Então isso faz parte também de uma atitude de um país que quer manter o seu
nível econômico, seu desenvolvimento econômico. Mas essencialmente teve de fato uma atitude do poder
público e do Ministério da Saúde. Houve uma política do SUS – Sistema Único de Saúde ­ muito ligada é
claro à ação direta dessas comunidades que respondeu à altura e teve atos de Estado que tomaram a
saúde  pública  como  sendo  uma  prioridade  em  relação  aos  negócios  privados.  Por  exemplo,
recentemente, o atual governo do Lula quebrou a patente de um grande laboratório norte­americano, pela
primeira  vez  na  História,  porque  esse  laboratório  não  queria  abrir  mão  dos  lucros  exorbitantes  que  ele
estava tendo em cima de uma descoberta que produzia um medicamento importantíssimo que faz parte do
coquetel que atua para manter a vida dos portadores do HIV. Há, então, uma atitude estatal forte nesse
sentido, há uma intervenção do Estado muito forte, mas que não é simplesmente uma vontade de um bom
governo,  mas  uma  conquista  social.  Os  próprios  movimentos  sociais  se  impõem,  de  alguma  maneira,
conjugados com o ministério e fazem essa atuação direta. Uma vez que a pobreza no Brasil é muito forte,
as  desigualdades  no  Brasil  são  muito  grandes,  existem  ricos  muito  ricos,  mas  muito  mesmo,  e  existem
pobres muito pobres; existem pobres não tão pobres; pobres ainda um pouco menos pobres. Enfim, existe
de tudo, mas a grande maioria é pobre e talvez tenha até 30% de gente que viva naquela linha abaixo da
pobreza. Eu preciso ver isso, pode ser que não chegue a ser 30%, mas bem acima de 20% vive na linha
abaixo da pobreza. Então o Brasil é um país de grandes desigualdades e sabe­se muito bem que onde há
muita pobreza e falta de condições, se o Estado não intervir, existe uma calamidade pública mesmo, uma
epidemia  que  não  tem  mais  nenhum  controle.  O  brasileiro  gosta  muito  de  sexo;  faz  muito  sexo.  É  uma
cultura de sexo, é uma cultura que vitaliza e que prioriza do corpo; as pessoas gostam dos prazeres da

http://escolanomade.org/programacao/saude­integral­poder­cultura­e­aids/page­3 1/5
26/10/2015 Page­3 | Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS
vida. A sexualidade faz parte da vida, é uma coisa bonita. E é por isso que aqui eu já aproveito e respondo
uma questão sobre o não uso do preservativo. Não é que é uma boa ou má idéia. Eu sinto que é uma
idéia que não convence. Porque a natureza, a vida não funciona por proibição ou por uma sugestão de
abstinência.  É  mais  ou  menos  como  você  dizer:  a  tua  vida  tem  mil  faces,  mas  tem  cem  ou  cento  e
cinqüenta faces que você não pode viver, que é proibido você viver. É uma coisa estranha para a vida. Um
dia desses, lá na Matola sede, me perguntaram sobre a questão do sexo com animais e queriam saber,
em outras palavras, se isso era legítimo. Se isso deveria ser feito ou não. Aí eu respondi que a questão
não era se deve ou não deve; se há relação, é porque pode. Se há é porque pode, mesmo que tenha uma
proibição. A questão é que se é natureza, ela gosta do que pode, faz o que pode. A questão então é não
proibir  o  que  pode,  mas,  aí  sim,  fortalecer  a  capacidade  seletiva  para  que  tudo  o  que  ela  puder  seja
vitalizador, seja potencializador; que não se morra pela boca e não se beba o próprio veneno ou morda a
isca que nos mata. Então é esta a questão. Não exatamente proibir a relação, mas agir nessa relação de
um  modo  tal  que  você  tenha  a  capacidade,  tenha  a  prudência,  tenha  a  defesa  para  não  ser  destruído.
Então,  se  relacionar  sim,  mas  de  modo  suficientemente  protegido  para  que  você  se  fortaleça  a  cada
relação que você tenha e não se enfraqueça. E assim, sob todos os pontos de vista e não apenas sob o
ponto de vista do HIV. Do ponto de vista ético; do ponto de vista das idéias; do ponto de vista da vitalidade
do corpo; da alegria coletiva; da coletividade; da cultura; de todos os pontos de vista: todas as relações
que a gente tem, a gente pode ter. Mas a questão é: de que jeito que você pode ter? Não é de qualquer
jeito, não é de qualquer maneira. Então essa é a capacidade seletiva, aí entra a questão que a própria
cultura, na sua essência é isso.

“A cultura cria a maneira de viver. Essa é a postura ativa da cultura. É por isso que a cultura não pode se
jogar fora, não pode se menosprezar. Porque as culturas criam estilos próprios de viver e aquilo que se
chama cultura simplesmente como uma tradição estagnada, isso não é cultura. A cultura é sempre viva, é
sempre dinâmica, ela sempre se modifica”.

Então o que o Estado geralmente faz em relação à cultura, dizendo que isso vai para o Ministério, vai para
um departamento, é folclorizar a cultura. A cultura vira folclore. E por que vira folclore? Porque é um objeto
de  troca,  uma  mercadoria.  Eu  posso  vender  uma  dança,  um  canto,  uma  atitude:  ‘Olha  que  bonito,  que
exótico’. Aquilo tem valor de mercado.

É o capitalismo já matando a cultura, folclorizando a cultura, mas a cultura em sua essência é outra coisa.
É uma atitude ativa que seleciona maneiras de viver. Modos de vida que não proíbem as relações como:
‘Ah, uso camisinha ou não uso camisinha...’. Não é pela produção é pela capacidade de fazer com que
cada relação seja fortalecedora e não enfraquecedora. É uma capacidade que faz com que toda relação
tenha algo de positivo para dar, uma vez que para que haja relação tem que ter algo em comum. Então,
essa  postura  responde  à  questão  de  ‘Ah,  não  use  camisinha,  mas  se  abstenha  do  sexo”.  Não  vai
funcionar.  Ao  menos  para  mim  não  funcionaria  e  acho  que  para  muita  gente.  Então,  tem  gente  que  é
capaz de se abster. Existe gente que é capaz, mas são muito poucos. Você vê a igreja católica. Os padres
são proibidos de casar. Mas há muita promiscuidade nos conventos, entre as freiras, entre os padres. Há
muitos casos de pedofilia, safadeza, sacanagem. Há muito nessas instituições que proíbem o padre de ter
relações sexuais. A proibição sempre chama a transgressão. Então a questão é outra, a gente tem que ir a
favor da natureza e não contra a natureza; a favor do amor, a favor da vida, a favor do sexo, a favor de tudo
o que é bom. Porque isso é bonito, faz parte da vida e não estigmatizar a vida e dizer que há um modelo
de  comportamento,  que  deve  ser  assim  e  não  deve  ser  assado,  porque  não  vai  funcionar.  Não  é  uma
atitude boa. Então, a sociedade brasileira, ainda voltando àquela outra questão de como o Brasil resolve
isso...

“De alguma maneira, a sociedade brasileira é mais plural nesse sentido. Ela já admite várias maneiras de
se relacionar. Vou dar como exemplo uma política municipal na cidade de Santos”.

Houve um prefeito que morreu há uns três ou quatro anos de câncer, chamado David Capistrano. Mas,
antes  disso,  ele  foi  secretário  da  saúde  do  município,  na  época  da  prefeita  Telma  de  Souza,  do  PT  ­
Partido dos Trabalhadores. Nessa gestão, Santos foi a primeira cidade no Brasil que começou a distribuir
seringas descartáveis e camisinhas no Porto de Santos. O Porto de Santos era o lugar onde mais havia
contaminação de Aids, por causa da prostituição e também porque a droga rolava solta. Então, você vai
dizer o que? Não use drogas? Enquanto isso os jovens vão se drogando, usando a mesma seringa e isso
e aquilo e a Aids vai se espalhando e se torna uma calamidade pública. A prefeitura começou a distribuir
seringas e os moralistas tiveram uma atitude radical. A Igreja, vários setores reacionários da sociedade
disseram que era um absurdo que estavam incentivando o uso das drogas, aprovando uma prática que
deveria ser proibida. O que se entendia na época era que uma atitude moral não iria resolver. As pessoas

http://escolanomade.org/programacao/saude­integral­poder­cultura­e­aids/page­3 2/5
26/10/2015 Page­3 | Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS
usavam drogas do mesmo jeito.

Assim, pensou­se, ao menos, em como conter a contaminação. Com a camisinha foi a mesma coisa. As
prostitutas do Porto de Santos não só espalhavam a Aids na própria cidade e no Estado de São Paulo,
mas para o mundo inteiro, porque é um porto internacional e os marinheiros poderiam espalhar a Aids
para  o  mundo  também.  Santos  era  a  cidade  com  o  maior  nível  de  contaminação  de  HIV  e  reduziu
drasticamente.  Foi  uma  atitude  política  do  Partido  dos  Trabalhadores.  Foi  este  secretário  da  Saúde
municipal, prefeito mais tarde, mas na época David ainda era secretário municipal, quem desospitalizou o
Anchieta,  sendo  o  primeiro  manicômio  brasileiro  a  ser  fechado.  Soltou  os  loucos,  tratando­os  de  outra
maneira.  Porque  até  então  eles  recebiam  eletrochoques,  camisas­de­força.  Então,  são  práticas,  são
atitudes públicas necessárias e favoráveis à vida e não contra, do tipo “não faça, não faça”, porque se a
vida pode ela vai fazer, ela vai dar um jeito de fazer.

Aí entra uma outra questão que atravessou aqui. As camisinhas fora do prazo ou que estão contaminadas
com algum tipo de bactéria. Isso pode acontecer. Então tem que se desenvolver laboratórios ou ter lugares
de checagem. Esta deve ser uma exigência dos movimentos e dizer que querem checar a positividade
desse  produto.  É  preciso  a  garantia,  a  autenticação  do  Ministério  da  Saúde:  um  selo  do  Ministério  da
Saúde  dizendo  que  o  produto  é  bom.  Mostrar  que  não  vai  fazer  mal  à  população,  mas  sim  defendê­la,
levando  esse  produto  para  ela,  seja  alimento,  seja  camisinha,  medicamentos  em  geral.  Isso  é
fundamental.

Respondendo a uma outra questão em relação às ofertas de alimentos que vêm do exterior. Esse tipo de
oferta muitas vezes vem bem intencionado, digamos assim. Existe muita gente que realmente é solidária e
sensível à pobreza dos povos, às doenças. Tem muita gente assim. Mas, o problema é que essa mesma
gente  não  tem  o  controle  do  processo  do  envio  e  recebimento.  Então  os  que  detêm  o  controle  do
processo,  geralmente  é  gente  de  poder.  É  gente  que  enriquece  às  custas  disso.  Provavelmente  se
apodera dos próprios alimentos, troca os alimentos. É possível que haja donos de supermercados ou de
distribuidoras  de  alimentos  que  simplesmente  modificam  esse  tipo  de  questão.  Eu  sei  que  existem
instituições sérias como, por exemplo, os médicos sem fronteira. Parece que é gente muito séria. Na Cruz
Vermelha, também há gente séria, não tenho bem certeza, mas parece que ela é uma instituição séria. A
questão é se aliar com instituições sérias, criar alianças mesmo. Se o governo não ouve, vá direto a essas
instituições,  mostrando  que  os  problemas  existem,  são  sérios  e  é  preciso  resolvê­los.  Que  precisamos
checar se as camisinhas que chegam são válidas, são boas. O mesmo em relação aos alimentos. Ou seja,
criar um posto de fiscalização, laboratórios. E essa atitude tem de vir de vocês mesmo e chegar até os
órgãos que podem realmente ter força de decisão para que o governo tome uma atitude diferente.

E,  agora,  respondendo  a  uma  outra  questão.  O  governo  ­  ou  o  atual  Estado  ­  não  digo  o  Guebusa...  E
quem sou eu para falar de Guebusa, de Chisano? De Machel, acho que posso falar, porque simpatizo com
muita  coisa  que  vi  aqui.  Tenho  também  minhas  críticas,  a  gente  pode  falar  entre  amigos,  não  vou  sair
falando, mas enfim. Tinha realmente uma atitude de unidade nacional, o espírito de vigilância, de cuidado
com o inimigo, o espírito de força de trabalho, a partir do próprio povo, de construção da própria riqueza,
da atitude que alguém estava falando antes – acho que foi você – de a gente ter uma atitude criativa e não
esperar simplesmente favores de fora. Então, a riqueza se faz em casa; a riqueza se faz pela atitude; pela
capacidade produtiva que tem de se desenvolver, enfim. Entretanto, o Estado atual é um Estado que vem
com duas insígnias: liberdade e democracia, certo? Mas o modelo é ocidental. Esse Estado democrático e
livre  é  o  mesmo  que,  em  nome  do  povo,  enriquece  poucos,  se  serve  da  máquina  administrativa  e
burocrática  para  fazer  negócios  privados  e  espúrios  e  rouba  ou  desvia  literalmente  orçamento  público,
senão diretamente, de modo indireto. Onde tem suas propriedades, valoriza aqui, valoriza ali. Ou seja, há
um  direcionamento  para  que  se  acumule  e  que  se  privatize.  Então  eu  digo  sempre  que  o  Estado
democrático e livre ocidental, que é tão propalado e querido como um valor universal tem um conteúdo
terrível. O conteúdo dele é o capital. Então, o Estado é apenas o gerente do capital. O Estado não está a
favor das populações. Ele só está a favor das populações da mesma maneira que certas igrejas estão a
favor do povo quando o povo está fraco, doente e miserável. Daí essas mesmas igrejas dizem: o reino dos
céus é dos miseráveis, dos pobres, dos doentes, dos desvalidos; é deles o reino dos céus. É engraçado.
Então, eles precisam que as populações miseráveis aumentem; que fiquem cada vez mais miseráveis e
pobres e doentes. Porque sem essas populações, o reino de Deus não se estabelece. Então o reino de
Deus cresce, mas na verdade que reino é esse? É o reino dos sacerdotes, dos padres, do papa, disso e
daquilo. Ou seja, tem que ter cuidado; tem que ter espírito crítico. O Estado faz a mesma coisa. Ele não
quer ver cidadãos fortes e livres, ao menos esse Estado democrático liberal que é gerente do capital. Por
que?  Porque  o  capital  precisa  dos  trabalhadores  para  aumentar  a  mais  valia  do  capitalista.  E  o
trabalhador só aumenta a mais valia porque é prisioneiro de um salário e de uma função que é ativada
pelo próprio capital. Então, o trabalhador tem de se tornar refém. Tem de comer na mão do capitalista. E o
capitalista diz que agora é por aqui; depois, por ali: você come na minha mão, faz o que eu quero. É mais
ou menos isso que é a liberdade do Estado, o liberal e democrático. O Estado está aí não para ajudar as

http://escolanomade.org/programacao/saude­integral­poder­cultura­e­aids/page­3 3/5
26/10/2015 Page­3 | Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS
populações, de fato. Ele está aí para gerenciar a acumulação de capital e sempre com a cara de bonzinho;
sempre  com  a  cara  de  “em  nome  do  povo”,  “em  nome  dos  interesses  nacionais”.  Só  que  o  interesse
nacional geralmente é o interesse de uma multinacional. O povo geralmente é “eu”, “meu bolso”: “eu sou o
povo”. Enfim, eu não estou dizendo que o Estado moçambicano tenha se transformado nisso. Eu estou
falando que isso já chegou aqui e que isso poderá ser ou já é dominante. Existem velhos combatentes da
Frelimo ­ Frente de Libertação de Moçambique e outros, com outras atitutes, até com certas divergências
em  relação  à  Frelimo,  mas  que  têm  atitudes  favoráveis  ao  povo,  que  não  se  confundem  com  esses
corruptos que estão aumentando o bolso e aumentando as propriedades.

A questão então é essa: será que o Estado moçambicano realmente está favorável? Eu sinto, e agora vou
falar a minha opinião de estrangeiro que está a poucos dias aqui, que parece que o Guebusa está numa
outra  direção.  Não  sei.  Oxalá,  como  dizem  no  Brasil,  tenha  essa  atitude.  Agora,  é  complicado,  quando
simplesmente se reforça a segurança pública e a gente sabe que a violência é estimulada pela própria
miséria ou pela fabricação da miséria. É como ser contra o terrorista e continuar invadindo o Afeganistão,
o Iraque... Você está fazendo fábricas de terroristas, porque o terrorista faz a guerra a sua maneira. É ruim,
é errado, mas o que você vai dizer a alguém que dá sua vida e se explode com outras pessoas? Que é um
imoralista? O cara está dando a vida, ele já perdeu tudo, inclusive a vida na explosão. Então não adianta
moralizar  a  atitude  do  terrorista  e  dizer:  pára,  é  mal...  Sim,  mas  o  que  adianta  classificar?  O  fato  é  que
estão  multiplicando  os  terroristas.  Por  que?  Por  atitudes  autoritárias  do  Ocidente.  Vão  lá,  em  nome  da
democracia  roubam  todo  o  petróleo  iraquiano.  O  petróleo  custava  25  dólares  o  barril.  Em  nome  da
manutenção do preço foi feita essa guerra toda e hoje está em 60 e poucos dólares, porque as empresas
norte­americanas  se  apoderaram  dos  poços  iraquianos.  Eles  mesmos  aumentaram  os  preços  e
financiaram a guerra. Ou seja, são estados perversos. Pensam na acumulação do capital. A questão crítica
então que se põe aqui é: será que o Estado moçambicano, a partir de 90, 92, com os acordos de paz, com
a  nova  Constituição,  com  a  eleição  de  94,  com  os  dois  mandatos  do  Chisano,  será  que  não  entrou  no
espírito  neoliberal?  Na  verdade,  o  nome  exato  é  neocolonial.  Então,  a  questão  essencial  que  se  põe,
nesse sentido, é essa: o Estado pode ter uma atitude de proteção de seus cidadãos, simplesmente para
que sobrevivam trabalhadores suficientes para fazer a riqueza dos outros. Sendo assim, o interesse do
Estado é outro. O interesse nosso é diferente do interesse do Estado. Nós aqui: a gente compõe. O Estado
quer combater o HIV e nós também, mas por motivos diferentes. Mas, então, vamos nos aliar nesse ponto,
certo? A questão não é saber se o Estado tem mesmo boas intenções, isso ou aquilo.

“O Estado, na verdade, é apenas uma forma reguladora que é apoderada por forças de várias naturezas.
A questão é a gente saber que forças se constituem e atravessam o Estado”.

Se  há  uma  composição  com  essas  forças  das  comunidades,  das  ONGs,  dos  movimentos  sociais,  das
associações, que realmente falam a partir do ponto de vista imanente da sociedade, então, que bom. A
questão é que sempre tem que se conquistar essa posição. O Estado não vai dar isso de mão beijada. É
uma conquista. Não tem de se ter ilusão em relação a isso não; é preciso manter firme essa questão na
base.  Pode­se,  em  nome  dos  mesmos  valores  que  o  Estado  veicule,  cobrar.  A  questão  não  é
transparência? A questão não é investimento direcionado dos gastos em relação à Saúde Pública? Onde
o Estado está investindo em Saúde Pública? O que é Saúde Pública? Aí entramos em outra questão que
foi tocada aqui também. A questão do saneamento, por exemplo.

O saneamento é fundamental. Não vai se eliminar o cólera, a malária e outras doenças sem saneamento.
Então,  a  questão  do  saneamento,  é  uma  questão  de  política  pública.  A  questão  do  urbanismo,  por
exemplo, planos diretores de uma cidade ou inclusive de áreas rurais. Como se organiza e se distribui o
espaço humano? Como é que se distribuem essas relações? Isso tudo pode ser uma questão de saúde
pública. Então a questão é muito mais ampla. Mas, na verdade, tudo tem que partir da base, da atitude. É
não  esperar  que  o  governo  faça,  porque  é  improvável  que  ele  faça.  Se  ele  fizer,  vai  ser  por  interesses
outros  que  não  a  vida  potente  de  uma  população.  Porque  a  população  potente,  livre  e  soberana  não
interessa a qualquer Estado que exerce captura ou tira lucro do seu povo. Porque, na verdade, o Estado é
apoderado  por  um  certo  grupo.  O  Estado  em  vez  de  ser  coisa  pública  é  apoderado  por  elementos
privados, por quem tem interesses privados. De novo, estou insistindo aqui, que não estou dizendo que
seja  o  caso  de  Moçambique,  porque  isso  pode  acontecer  aqui  e  eu  sinto  que  tem  um  capitalismo
selvagem, destruidor, entrando sutilmente no país. Não sei nem se é sutil ou já escancarado. Eu soube
que a Igreja Universal do Reio de Deus entrou nas barbas da Frelimo, na sede da Frelimo, em Maputo.
Alugaram um espaço lá dentro do prédio. O que está acontecendo com a Frelimo, não é? Eu acho, que se
eu estivesse aqui em Moçambique, eu seria um dos maiores defensores da Frelimo. Eu acho que foi uma
coisa linda, bonita, da independência de Moçambique; esses movimentos todos que foram feitos em nome
da expulsão do colonialismo, do chibalo, da exploração. A independência é um valor fundamental. Mas
será que essa independência não foi agora mascarada com o nome de democracia e liberdade. Será que
essa independência não virou uma dependência mais sutil? Eu digo sempre que, no Brasil, nós tivemos a

http://escolanomade.org/programacao/saude­integral­poder­cultura­e­aids/page­3 4/5
26/10/2015 Page­3 | Saúde Integral, Poder, Cultura e AIDS
independência  feita  por  uma  português,  que  foi  D.  Pedro  I.  Ele  simplesmente  era  filho  de  um  rei  de
Portugal.  E  ele  bradou:  ­  Independência  ou  Morte!  Esta  terra  é  livre!  Livre?  Ora,  na  verdade,  era  o
capitalismo instalado lá e havia uma monarquia para garantir a remessa dos lucros e a acumulação. Então
foi uma maneira de manter o poder nas mãos de quem criou a independência. Então a independência
pode ser uma máscara, assim como democracia e liberdade. “ ­ Ah, a democracia é um valor fundamental,
um valor universal”, diriam. Não existe valor em si. O valor precisa de uma força ou de uma potência que o
sustente. Então a questão fundamental é a qualidade das relações afetivas e de força e de potência entre
as  pessoas,  entre  as  sociedades  e  não  simplesmente  uma  forma  ideal,  porque  forma  ideal  nós  temos
suficiente. Por exemplo, a ONU.

<< Anterior ­ Próximo >>

Atualizações do Acervo

Conferências em Moçambique (04 conferências
transcritas)
SAÚDE INTEGRAL, PODER, CULTURA E AIDS
SAÚDE ÉTICA E POLÍTICA (em Matola) ÉTICA
E POLÍTICA (em Maputo)  ...

Copyright © 2015 Escola Nômade de Filosofia. Todos os direitos reservados.

http://escolanomade.org/programacao/saude­integral­poder­cultura­e­aids/page­3 5/5

Você também pode gostar