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I

“ Saiba, ó príncipe, que entre os anos em que os oceanos beberam a


Atlântida e suas cidades reluzentes, e os anos da ascensão dos
Filhos de Aryas, houve uma era inimaginável, na qual reinos
brilhantes se espalhavam pelo mundo como estrelas sob mantos
azuis. . Nemédia, Ophir, Britúnia, Hiperbórea, Zamora, com
suas mulheres de cabelos negros e torres misteriosas assombradas por
aranhas, Zingara, com sua cavalaria, Koth, que fazia fronteira com
as terras pastorais de Shem, Stygia, com suas tumbas guardadas
pelas sombras, e a Hirkânia, cujos cavaleiros vestiam aço, seda
e ouro. Mas o reino mais orgulhoso do mundo era aAquilônia,
soberana suprema do ocidente. Para lá foConan,
i o cimério,
de cabelos escuros, olhos sombrios e espada na mão; um ladrão,
um salteador, um assassino, possuidor de melancolia gigantesca e
contentamento titânico, para pisotear os tronos adornados de joias em
todo o mundo com seus pés calçados.”
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A Fênix na Espada

A cima dos pináculos sombrios e das torres reluzentes jaziam


as trevas espectrais e o silêncio que precede a alvorada. Num
beco escuro, parte de um autêntico labirinto de misteriosos
caminhos sinuosos, quatro figuras mascaradas atravessa-
ram apressadas uma porta aberta por uma mão negra. Sem se falar, os
vultos se misturaram rapidamente à escuridão, enrolados em seus mantos
e, silenciosos como os fantasmas de homens assassinados, desapareceram
nas trevas. Atrás deles, a porta parcialmente aberta emoldurava feições
sardônicas; um par de olhos diabólicos fulgurou no breu.
— Vão para a noite, criaturas noturnas — uma voz zombou. — Ah,
tolos, a destruição persegue seus calcanhares como um cão cego, mas vo-
cês não fazem ideia.
O interlocutor fechou a porta e a aferroou. A seguir, virou-se e atra-
vessou um corredor, segurando uma vela. Era um gigante sombrio, cuja
pele morena denunciava seu sangue stygio. Chegou a uma câmara inter-
na, onde um homem alto e delgado trajando veludo estava deitado num
divã de seda, preguiçoso como um grande felino, bebericando vinho de
um grande cálice dourado.
— Bem, Ascalante… — disse o stygio, deixando a vela de lado. — Os
idiotas ganharam as ruas como ratos que vão para as tocas. Você trabalha
com ferramentas estranhas.
— Ferramentas? — Ascalante respondeu. — Bem, talvez eles me
considerem assim. Há meses, desde que os Quatro Rebeldes me convoca-
ram do deserto ao sul, tenho vivido bem no coração dos nossos inimigos,
escondendo-me durante o dia nesta casa obscura e esgueirando-me por
becos escuros e vielas sombrias durante a noite. E consegui fazer o que
esses nobres rebeldes não puderam. Trabalhando por intermédio deles e
de seus agentes, muitos dos quais jamais viram a minha face, permeei o
império com sedição e inquietação. Em tempo, trabalhando nas sombras,
preparei a queda do rei que se senta no trono à luz do sol. Por Mitra, eu era
um estadista antes de ser um fora da lei.
— E esses idiotas que se julgam seus mestres?
— Eles continuarão a achar que eu os sirvo até que nossa tarefa esteja

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Conan, o Bárbaro

completa. Quem são eles para equipararem sua astúcia à de Ascalante?


Volmana, o conde minúsculo de Karaban; Gromel, o gigante comandante
da Legião Negra; Dion, o barão obeso de Attalus; Rinaldo, o menestrel
desatento. Eu sou a força que soldou o aço e endureceu a argila em cada
um deles e, quando a hora for propícia, os esmagarei. Mas isso ficará para
o futuro. Esta noite, o rei morrerá.
— Dias atrás, vi os esquadrões imperiais cavalgarem para fora da
cidade — disse o stygio. — Eles cavalgaram até a fronteira que os pictos
bárbaros atacaram… graças ao licor forte que contrabandeei para deixá-
-los enlouquecidos. A grande riqueza de Dion tornou tudo possível. E
Volmana afastou as tropas imperiais que permaneceram na cidade. Por
meio do parentesco principesco que ele tem na Nemédia, foi fácil con-
vencer o rei Numa a solicitar a presença do conde Trócero, de Poitain,
senescal da Aquilônia. É claro que na jornada ele será acompanhado por
uma escolta imperial, pelas próprias tropas e também por Próspero, o
braço direito do rei Conan. Isso deixará somente a guarda pessoal na
cidade, além da Legião Negra. Usando Gromel, eu corrompi um oficial
pródigo da guarda, subornando-o para afastar seus homens da porta do
rei à meia-noite. Então, com dezesseis vilões desesperados meus, aden-
traremos o palácio por um túnel secreto. Quando terminado, mesmo se
o povo não nos receber, a Legião Negra de Gromel bastará para manter
a cidade e a coroa.
— E Dion acha que a coroa será dada a ele?
— Sim. O gordo imbecil a reclama por ser descendente de sangue real.
Conan cometeu um grave erro ao deixar vivos homens que ainda descen-
dem da antiga dinastia da Aquilônia, cuja coroa ele arrancou.
— Volmana deseja ser reintegrado à realeza da qual fazia parte no an-
tigo regime. Assim ele conseguirá restaurar a grandeza das suas proprie-
dades, agora reduzidas à penúria. Gromel odeia Pallantides, comandante
dos Dragões Negros, e deseja o pleno controle do exército, com toda a
teimosia de um bossoniano. Já Rinaldo, diferente de todos nós, não tem
ambições pessoais. Ele vê Conan como um bárbaro rústico e sanguiná-
rio, que veio do norte para pilhar o mundo civilizado. Idealiza o rei que

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A Fênix na Espada

Conan matou para obter a coroa, lembrando-se de seu ocasional patro-


cínio às artes, mas se esquecendo das maldades de seu reinado. E está
fazendo o povo esquecer também. A plebe já canta abertamente O lamen-
to do rei, em que Rinaldo ovaciona o vilão santificado e denuncia Conan
como “aquele selvagem de cabelos negros vindo do abismo”. Conan ri,
mas o povo rosna.
— Por que ele odeia Conan?
— Poetas sempre odeiam quem está no poder. Para eles, a perfeição
está na próxima esquina, ou na seguinte. Eles fogem do presente em so-
nhos sobre o passado e o futuro. Rinaldo é uma brasa inflamada de idea-
lismo, que pensa estar ascendendo para derrubar um tirano e libertar o
povo. Quanto a mim… Bem, alguns meses atrás, eu tinha perdido todas
as ambições, julgando que assaltaria caravanas para o resto da vida; ago-
ra, antigos sonhos se agitam. Conan morrerá; Dion sentará no trono e,
então, também morrerá. Um a um, todos que se opõem a mim perecerão.
Por fogo, pelo aço ou por aqueles vinhos letais que você sabe preparar tão
bem. Ascalante, rei da Aquilônia! Como soa para você?
O stygio encolheu os largos ombros.
— Houve uma época — ele comentou sem esconder o amargor — em
que minhas próprias ambições fariam as suas parecerem infantis e espa-
lhafatosas. A que ponto caí! Meus pares e rivais de outrora sem dúvida
se surpreenderiam se vissem Thoth-Amon, do Anel, servindo de escravo
para um estrangeiro fora da lei e auxiliando os interesses triviais de ba-
rões e reis!
— Você depositou sua confiança na magia e na pantomina — Asca-
lante respondeu descuidadamente. — Eu confio na minha astúcia e na
minha espada.
— Astúcia e espadas são ninharias contra a sabedoria das Trevas
— rosnou o stygio, seus olhos escuros brilhando com luzes e sombras
ameaçadoras. — Se eu não tivesse perdido o Anel, nossas posições es-
tariam invertidas.
— Não obstante — respondeu o foragido, impaciente —, você sente
nas costas o toque do meu chicote. E provavelmente continuará a sentir.

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Conan, o Bárbaro

— Não tenha tanta certeza! — O ódio demoníaco do stygio queimou


por um breve instante em seus olhos inflamados. — Um dia, de algum
modo, reaverei o Anel e, quando o fizer, pelas presas de serpente de Set,
você pagará…
O aquiloniano tempestuoso se pôs de pé e golpeou-o firme na boca.
Thoth recuou, com sangue escorrendo pelos lábios.
— Está ficando impetuoso, cão — rosnou o fora da lei. — Tenha cui-
dado… ainda sou seu mestre e aquele que conhece seu segredo obscuro.
Vá aos telhados das casas e grite que Ascalante está na cidade, tramando
contra o rei… se ousar.
— Eu não ouso — murmurou o stygio, limpando o sangue da boca.
— Não, não ousa — Ascalante sorriu com frieza. — Pois se eu morrer
pelo seu aço ou por traição, um sacerdote eremita no deserto do sul saberá
e quebrará o selo do manuscrito que deixei em suas mãos. E, tendo-o lido,
notícias serão sussurradas na Stygia e um vento soprará do sul à meia-
-noite. Onde então esconderá sua cabeça, Thoth-Amon?
O escravo estremeceu, seu rosto moreno empalidecendo.
— Chega! — Ascalante mudou o tom ditatorial. — Tenho trabalho
para você. Não confio em Dion. Pedi a ele que cavalgasse para sua pro-
priedade no campo e aguardasse até que o trabalho desta noite estivesse
concluído. O tolo jamais conseguiria esconder seu nervosismo diante do
rei. Cavalgue até ele e, se não o alcançar na estrada, dirija-se à sua pro-
priedade e permaneça ao seu lado até que o convoquemos. Não o perca de
vista. Ele está desorientado de tanto medo e pode estragar tudo… pode até
entrar em pânico e acabar revelando toda a trama a Conan, na esperança
de salvar a própria pele. Vá!
O escravo se curvou, ocultando o ódio nos olhos, e fez conforme lhe
fora ordenado. Ascalante voltou-se para seu vinho mais uma vez. Sobre
os pináculos reluzentes, o amanhecer era tão vermelho quanto o sangue.

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