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BENEDICTA

O APOSTOLADO EM SEU LAR

VOLUME 02 • NÚMERO 04 • ABRIL 2021


EDITORA DA IRMANDADE DO CARMO

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________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA

Benedicta, Revista
V.2, N.4, abr. 2021. Uberlândia. 25p.
________________________________________

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Eventuais referências bíblicas são da Bíblia da Editora Ave Maria (2021) ou da tradução do Pe. Matos Soares (1950).
ÍNDICE

FIDES QUAERENS INTELLECTUM

São José: fortíssimo, 03 No quarto artigo sobre o Patrono da Igreja, as virtudes da fortaleza, obediência e
obedientíssimo e fidelíssimo fidelidade são brevemente destacadas no tempo e na eternidade de São José.

Padre Pio e os pecados 05 O terceiro texto sobre São Pio de Pietrelcina trata de sua prodigiosa atividade no
do mundo confessionário, pela qual mais realizou conversões e expiações na própria carne.

A profecia de São Simeão 08 A vida pública de Nosso Senhor Jesus Cristo desvelou os corações dos judeus,
e o sinal de contradição na sendo a espada que dividiu-os entre o verdadeiro povo de Deus, que se converteu
história ao Cristo Messias, e o falso povo de Deus, entusiastas da vinda do anticristo.

CATHOLICAE LITTERAE

Proslógio, 13 Neste opúsculo, S. Anselmo de Cantuária (1033-1109) demonstra a veracidade e


de S. Anselmo a necessidade da existência de Deus a partir de uma análise lógica conceitual.

DOMINUS VOBISCUM

O estado miserável 16 Para bem vivermos o tempo pascoal, Santo Afonso Maria de Ligório (1696-
dos que recaem no pecado 1787) aconselha a ressuscitarmos dos pecados, sobretudo dos já confessos, cuja
recidiva incorre em ofensa mais grave que a anteriormente cometida.

YSTORIA SANCTI

Santo Anselmo de 20 Em 21 de abril, a Liturgia lembra S. Anselmo de Cantuária, doutor da Igreja, que,
Cantuária a despeito de perseguições e exílios, cumpriu com caridade e diligência a função
de abade e arcebispo e combateu o cesaropapismo e a degeneração do clero.

EUTRAPELIAM

Mártires do mês de abril 24 Cruzadinha sobre alguns santos mártires da Liturgia de abril.
FIDES QUAERENS INTELLECTUM

SÃO JOSÉ:
FORTÍSSIMO,
OBEDIENTÍSSIMO
E FIDELÍSSIMO
BRUNO VIEIRA

Continuemos a falar das virtudes de São José.


Sobre a virtude da fortaleza, no ensino de Mons.
Auguste Saudreau, os “soldados destemidos, tena-
zes, inabaláveis é que são a honra e a força de uma
nação” [1]. Observa-se aí a beleza da força de ca-
ráter, que domina emoções e contém medos; que
faz prosseguir sem recuo, trabalhar sem temer, su-
perar obstáculos e não se ater a aborrecimentos. Como ensina o Manual de Espiritualidade [4],
No Catecismo, São Pio X a define como “a vir- “custa pouco um esforço passageiro: prova-se a
tude que nos dá coragem para não temer perigo al- verdadeira fortaleza da alma pela constância”.
gum, nem a própria morte, no serviço de Deus” [2]. Assim, a força não se verifica apenas na heroici-
Nessa perspectiva, a fortaleza afasta os medos exa- dade pontual, de um episódio ou outro; mas se trata
gerados. Por outro lado, também inibe as audácias do ápice da vida de fortaleza, isto é, apenas pode
temerárias, isto é, aquela coragem desordenada, agir com força heroica aquele que desenvolve gra-
inconsequente, que sede aos ataques do demônio e dativamente essa boa disposição.
às tentações diárias. Se é o amor que dá perseverança necessária para
Se a todo homem é possível desenvolver referida a capacidade de se sacrificar sem reservas e de ma-
virtude, quanto mais a São José. Consideremos neira cada vez mais ardente pelo amado [5], São
suas angústias, dentre elas, o medo da morte de Je- José não poderia seguir em caminho diverso, ele
sus, de Maria e de sua própria, fruto da odiosa per- que pôs sua vida a serviço do Filho de Deus.
seguição de Herodes; e a perda do Menino-Deus Sobre ele, podemos aplicar as palavras de São
em Jerusalém. Não esqueçamos, ainda, das labutas Francisco de Sales [6]: “Que invencível foi a sua
diárias, dos trabalhos e cansaços de nosso Patrono. firmeza! Nada conseguiu quebrá-la. Abraçou sem

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reserva as suas resoluções e as manteve sem exce- nios do Rei e recebeu Seu Filho para que O guar-
ção”. dasse dos males deste mundo. Na perseguição, to-
O que dizer, então, da obediência de São José? mou consigo a Mãe e o Filho e com eles fugiu para
Se Nosso Senhor Jesus Cristo se fez obediente até local seguro, confiante nas palavras do Pai. Do ne-
a morte de cruz (cf. Fl 2, 8), que caminho segui- cessário, nada faltou ao Filho de Deus. Vigiou e
riam os seus, senão o da obediência? Nessa linha, sustentou o Menino, ensinou-Lhe um ofício, e,
o Florilégio de São José [7] traça um interessante com diligência inigualável, tornou-se exemplo
paralelo: se o primeiro crime e pecado do mundo para os pais futuros, um esposo e pai cuja vigilân-
foi a desobediência, é pela submissão a Deus que cia e comprometimento são incomparáveis.
deve vir a salvação. Como nos ensina o Florilégio [9]:
Quando Maria se apresenta ancila Domini, ini-
cia-se a reparação do mal trazido por nossos pri- quando expirou nos braços de Jesus e de Maria,
tinha a consciência tranquila de haver cumprido a
meiros pais, Adão e Eva; sujeita-se aquela para
sua missão. Fiel esposo de Maria, fiel depositário
que nasça o Salvador de seu ventre preparado para
do Tesouro da Redenção, sempre fiel a Deus, tal
abrigá-Lo desde sua imaculada concepção. Subor- foi o Santo Patriarca. Procuremos todos imitar a
dina-se também o casto José, tomando a Santís- fidelidade de S. José, invocando sempre o seu Pa-
sima Virgem como esposa e servindo de pai terreno trocínio.

para Jesus. Por essa trajetória de obediência, Deus


Fortaleza, obediência e fidelidade, mais algumas
Pai reservou à Virgem e a ele lugares à direita e à
virtudes de nosso Santo Patriarca. Imitemo-lo, en-
esquerda de Deus Filho, os postos mais gloriosos
tão, a fim de que, fortes e firmes em Deus, curva-
na hierarquia dos santos no Reino dos Céus.
dos diante Dele, jamais nos arredemos de suas ve-
Conclui, então, o Florilégio [8]:
redas, recorrendo sempre e insistentemente àquele
Humilde, submisso em tudo à vontade de Deus, na que a Igreja tem a honra de chamar seu Patrono.
peregrinação, na pobreza, no trabalho e em todas
as tribulações da vida, S. José nos dá o exemplo
da obediência, dessa virtude hoje tão rara, e que é, Fontes:
entretanto, o fundamento da ordem e da paz em
todas as relações da vida. [1] SAUDREAU. Padre Auguste. Manual de Espirituali-
dade. São Caetano do Sul: Santa Cruz, 2021, p.175
Também a fidelidade de São José é indubitável: [2] Catecismo Maior de São Pio X: terceiro catecismo da
doutrina cristã. Niterói: Permanência, 2010, p.143
Fiel a Maria Santíssima, São José jamais deixou
[3] LÉPICIER, O.S.M., Cardeal Alexis Marie. São José,
de cuidar de sua amada esposa. Antes mesmo de
Esposo da Santíssima Virgem Maria. Campinas: CE-
recebê-la como tal, preocupou-se com sua honra, DET/Ecclesiae, 2014, p. 184.
na incerteza da gravidez anunciada. Antes deixá- [4] e [5] SAUDREAU. Padre Auguste. Op.cit. p.177
la que envergonhá-la! Em sua pobreza e simplici- [6] SÃO FRANCISCO DE SALES. Filoteia ou Introdução
à vida devota. Petrópolis: Vozes, 1986, p.480.
dade, proporcionou-lhe um lar e uma santa com-
[7] ESCOLAS PROFISSIONAES SALESIANAS. Florilé-
panhia, empenhando-se nos trabalhos diários para
gio de São José: breves meditações para o mez de março
cumprir com o sustento da família. (sic.). São Paulo, 1911, p.43-44.
Fiel a Deus Pai e seu Filho, acatou o dever que [8] idem, p.45.
lhe fora imposto. Com lealdade, aceitou os desíg- [9] ibidem, p.48.

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PADRE PIO
E OS PECADOS DO MUNDO
JOSÉ CARLOS ZAMBONI

Nada escandaliza mais as mentes modernas do visse pecado em tudo e considerasse a salvação
que o conceito de pecado, tanto pelas restrições que uma meta quase impossível. Muitos dos seus pe-
impõe à liberdade e aos caprichos individuais, nitentes ouviram-no dizer: “Isto não é pecado, mas
como por suas consequências eternas, nas quais fraqueza humana.”. Para ele, nada havia de mais
não creem. A inversão progressista chegou ao ab- natural que o pecado, parte integrante da condição
surdo de transformar o pecado em direito, como no humana desde a queda de Adão. Sabia ele que a
caso do aborto e da ideologia de gênero. vontade é a via de acesso que o demônio utiliza
Na visão do Padre Pio, que sempre caminhou na para entrar em nosso espírito: só os pensamentos e
contramão da modernidade, o pecado era a mais ações executados com plena adesão interior seriam
letal de todas as doenças. Sabia, como sacerdote, pecaminosos.
que viera ao mundo para cuidar da saúde das al- Quem, como Padre Pio, viveu pessoal e perma-
mas, curando-as desse mal satânico. Para o santo nentemente o drama da perseguição demoníaca não
de Pietrelcina, o ato maléfico voluntário é, antes de poderia ser indiferente à situação dos pecadores
tudo, um problema espiritual, que agride a inocên- comuns, que o procuravam, aflitos, no confessio-
cia de Deus. Não é só um obstáculo na ordem so- nário de São Giovanni Rotondo. O frade capuchi-
cial — muitas vezes nem chega a sê-lo —, mas nho dedicou a maior parte de sua vida a ouvir con-
uma áspera dissonância que viola a ordem da graça fissões, chegando a passar dezoito horas por dia no
e não pode ser absorvida pela harmonia divina. confessionário. Igual a outros confessores famo-
O tempo da misericórdia, para esse grande con- sos, como o Santo Cura d'Ars e São Leopoldo de
fessor, era aqui e agora. Só uma coisa devia assus- Castelnuovo, sofria sinceramente quando diante
tar o ser humano: o pecado. Uma vez fechados os dos que viviam e, sobretudo, comungavam em si-
olhos para este mundo, começaria o tempo da jus- tuação pecaminosa.
tiça, no qual súplicas e arrependimentos já não ser- Padre Pio se considerava, sobretudo, um confes-
viriam para mais nada. Era preciso temer não o ju- sor. Em seus oitenta e um anos de vida, atendeu
ízo dos homens, mas o de Deus, que é definitivo e confissões e celebrou Missas — as duas faces da
irreversível. mesma moeda da graça. Não escreveu livros, nem
Certamente, Padre Pio não era um jansenista que se destacou por brilhantes homilias. Viveu,

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principalmente, para rezar e curar pecadores (no tigos que a eles estariam destinados.
corpo e na alma), ajudando-os a defender-se do Jesus o ouviu e enviou-lhe as próprias chagas. O
principal inimigo do gênero humano. Conhecia, sentido da estigmatização, no Padre Pio, está li-
como ninguém, o valor de uma alma e o que sig- gado de forma muito íntima à sua atividade de con-
nificava a sua perdição eterna, dando como prefe- fessor. Compreendeu muito cedo que a eliminação
rível a morte ao pecado, que ofende o Criador e dos pecados do mundo cobra um preço muito alto:
desonra quem o comete. a hemorragia da Cruz. Dela, participou literalmente
A reconciliação com Deus era, para ele, um mi- com as cinco feridas que nunca deixavam de doer
lagre muito maior do que os milhares de curas fí- e sangrar. As conversões, realizadas em seu con-
sicas a ele atribuídas. A potência divina se mani- fessionário, não provinham do nada: o santo as pa-
festaria mais na conversão dos pecadores do que na gava com o próprio sangue.
própria criação do céu e da terra, pois há mais opo- Havia sempre uma fila imensa de pessoas à espera
sição entre pecado e graça, do que entre o nada e o de ajoelhar-se no confessionário de San Giovanni
ser. Escreveu certa vez, a uma filha espiritual, que Rotondo. Era preciso agendar com boa antecedên-
o nada está mais perto de Deus do que um pecador, cia. Duas coisas incomodavam particularmente o
o qual, em sua liberdade, tem o poder de resistir à confessor: falta de exame de consciência e de ar-
própria vontade divina. rependimento. Alguns homens e mulheres ousa-
Papa Pio XII, que gostava muito de Padre Pio, vam, no entanto, ajoelhar-se no confessionário
sempre procurava saber notícias dele. Quando, em sem ter feito o necessário autoexame e sem decisão
1947, recebeu o Bispo Andrea Cesarano, amigo do de mudar de vida. Eram os escorraçados do Padre
frade, sabendo da sua estima pelo estigmatizado, Pio, despedidos muitas vezes sem mais explica-
perguntou-lhe: “Como está Padre Pio?” “Está ti- ções, e que ele amava mais que a quaisquer outros.
rando os pecados do mundo, Santidade”, foi a res- Amando, porém, a Deus sobre todas as coisas, não
posta que ouviu. podia permitir que o lugar da reconciliação fosse
Tirar os pecados do mundo, em estreita união profanado. Esses homens e mulheres voltavam hu-
com o Cordeiro de Deus, foi o que fez Padre Pio milhados, muitos deles aos prantos, e geralmente
durante toda sua vida. Era sua santa obsessão. Di- retornavam depois, com o dever de casa cumprido.
zia que Jesus, cujo objetivo era salvar o maior nú- Essas confissões não podem ser bem compreen-
mero possível de almas, o tinha associado a essa didas, sem levar-se em conta um dos dons sobre-
missão. Ao contrário de hoje, quando certos peca- naturais de padre Pio: a capacidade de ler o coração
dos são tolerados ou não mais tidos como tais por alheio. Esse misterioso conhecimento da vida in-
muitos sacerdotes e bispos, Padre Pio não fazia terior dos penitentes foi fator de salvação para
acordos diplomáticos com o demônio. muitas almas, que de outro modo não teriam des-
A atividade de confessor era, nele, só uma face de pertado para a realidade da graça. Para espanto de
um projeto muito maior. Ainda no início de sua muitos, recordava-lhes velhos pecados esquecidos
vida religiosa, com pouco mais de vinte anos e a ou omitidos, com detalhes que só o pecador pode-
coragem que só os santos possuem, já sentia em si ria conhecer. Padre Pio sabia quando era esqueci-
uma grande necessidade de oferecer-se ao Senhor mento ou deliberada ocultação. Quando não per-
como vítima pelos pecadores e as almas do purga- cebia vontade sincera de conversão, despedia o pe-
tório, pedindo que viessem sobre si mesmo os cas- nitente sem absolvê-lo, algumas vezes até com
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aspereza. Era um método que fazia sofrer o peni- permanente contra os pecados veniais, que também
tente, mas também o confessor, como revelou mais maculavam a absoluta pureza de Deus.
de uma vez, porém sabendo que, em muitos casos, Ensinava a seus filhos espirituais que, sem a cer-
não havia outra solução: só um tratamento de cho- teza de haver perdido a graça de Deus, não se devia
que despertaria as almas do sono profundo do pe- abster da comunhão; e não se devia voltar, em pen-
cado. samento ou nas confissões, aos pecados já acusa-
Um de seus maiores biógrafos, Luigi Peroni, que dos anteriormente, pois, pela sincera contrição, já
também foi seu filho espiritual, viveu esse drama e tinham sido perdoados. Retornar àquelas culpas era
falou sobre o difícil período em que, no início de duvidar da misericórdia divina e sua bondade, des-
suas visitas a São Giovanni Rotondo, ajoelhando- merecendo o sangue derramado por Cristo. Só ha-
se várias vezes no confessionário, e repetindo pela via uma justificativa para regressar àquelas velhas
enésima volta as mesmas faltas, era despedido sem ofensas: derramar sobre elas as lágrimas redentoras
absolvição e sem mais justificativas. Foi um ano de do arrependimento.
sofrimento, antes da tão esperada liberdade. Padre Pio, imerso de corpo e alma no mare mag-
Não era fácil, ao entendimento comum, compre- num da caridade, viveu durante sua longa vida um
ender essa recusa da absolvição. Padre Pio sabia permanente martírio, que visava sobretudo o bem
com quem estava lidando e por que o fazia, va- eterno das almas, embora sem descurar do corporal
lendo-se de um método que podia ter consequên- e transitório (a criação do hospital Casa Alívio do
cias desastrosas, se utilizado por um sacerdote co- Sofrimento testemunha-o). Era o “comunismo” da
mum. Disse ele, certa vez, que os padres que ab- comunhão dos santos praticado com a mais ardente
solvem muito facilmente estão profanando um sa- militância. Que líder político teria tanta abnegação
cramento que custou muito sangue a Jesus; se con- pelo seu povo? O santo de Pietrelcina era o verda-
fessassem como deviam confessar, os fiéis seriam deiro herói: não um Dom Quixote de causas perdi-
como deviam ser. das, mas um cavaleiro andante da graça, de rosário
Esse santo diretor de almas exigia confissões bre- em punho, sempre arremetido contra o demônio.
ves e francas: recomendava que se começasse pe- Foi o super-homem que Nietzsche tanto procurou
los “peixes gordos”, fórmula com que designava os fora da Igreja, sem desconfiar que somente ali po-
grandes pecados, aqueles que mais envergonham o deria ser encontrado.
penitente. Raramente as confissões passavam de
cinco minutos, pois o confessor tinha pela frente
uma multidão que esperava por aquele momento Fontes:

privilegiado.
CASTELLI, Francesco. Padre Pio sob investigação. São
Recomendava, também, confissão semanal. Para
Paulo: Paulinas, 2012.
ele, a alma humana era como um cômodo que, PADRE PIO DE PIETRELCINA. Epistolario — II . S.
mesmo de portas fechadas ao pecado, só tinha a Giovanni Rotondo: Convento S. Maria delle Grazie, 1994.
ganhar com uma faxina rotineira. Procurava exigir PERONI, Luigi. Padre Pio, o São Francisco de nosso

sempre mais de seus penitentes, pois sabia, por ex- tempo. São Paulo: Paulinas, 2002.

periência mística, que a outra faxina, a do Purga-


tório, não seria fácil. Desejava que seus filhos es-
pirituais empreendessem desde logo uma luta
7
A PROFECIA DE
SÃO SIMEÃO
E O SINAL DE
CONTRADIÇÃO
NA HISTÓRIA
MARCOS DOMINGUES

São Simeão pronunciou uma das maiores profe-


cias de todos os tempos, quando, tomando o Me-
nino Jesus nos braços, disse: “Eis que este menino
está destinado a ser uma causa de queda e de soer-
guimento para muitos homens em Israel, e a ser um
sinal que provocará contradições, a fim de serem
revelados os pensamentos de muitos corações. E
uma espada transpassará a tua alma” (S. Lc 2,34-
35). Como profetizado, desde a Encarnação do
Verbo, houve uma divisão fundamental na socie-
dade humana, simbolizada pela espada que trans-
passa a alma da Virgem Maria. O povo de Deus
(Israel) se dividiu em dois partidos: de um lado, os
que aderiram a Cristo, e do outro, os que o rejei-
taram. Eis aí o sinal de contradição: o próprio
Deus se fez homem para destruir o império
do mal e instaurar seu Reino entre os po-
vos. Daí por diante, os homens passaram
a lutar incessantemente entre si em
campos opostos bem definidos: a-
queles que almejam os reinos do
mundo (cujo príncipe é Satanás)
contra aqueles que almejam o
Reino de Cristo.

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São Simeão pronunciou uma das maiores profe- O mistério da Encarnação é a espada que divide a
cias de todos os tempos, quando tomou o Menino cidade de Deus e dos homens. Os pastores na noite
Jesus nos braços e disse: “Eis que este menino está do Natal foram convidados a contemplar o Me-
destinado a ser uma causa de queda e de soergui- nino-Deus; São Dimas, primeiro santo canonizado
mento para muitos homens em Israel, e a ser um da Igreja, pelo próprio Cristo, confessou na cruz
sinal que provocará contradições, a fim de serem que Ele era seu Salvador. Entre essas e outras nar-
revelados os pensamentos de muitos corações. E rativas das Sagradas Escrituras, vemos que, desde
uma espada transpassará a tua alma” (S. Lc 2,34- o nascimento de Cristo até sua crucificação, foram
35). Como profetizado, desde a Encarnação do muitos entre o povo hebreu os que reconheceram
Verbo, houve uma divisão fundamental na socie- esse sublime mistério. São Simeão, indo além, re-
dade humana, simbolizada pela espada que trans- conheceu profeticamente na Encarnação o evento
passa a alma da Virgem Santíssima. O povo de fundamental da história humana. Assim como
Deus (Israel) se dividiu em dois partidos: de um Moisés dividiu as águas para libertar o povo hebreu
lado, os que aderiram a Cristo, e do outro, os que o da escravidão natural e causar a ruína dos egípcios,
rejeitaram. Eis aí o sinal de contradição: Deus, ao que representavam os povos pagãos e inimigos do
fazer-se homem para destruir o império do mal e povo de Deus, a Encarnação do Verbo é o divisor
instaurar seu Reino, desvelou os corações daqueles de águas que libertou de uma vez por todas o seu
que almejam os reinos do mundo (cujo príncipe é povo (Igreja) da escravidão espiritual do pecado e
Satanás) e daqueles que almejam o Reino de causou a ruína dos demônios e seus seguidores.
Cristo. Todavia, são também muitos os que não reconhe-
Essa profecia explica, direta ou indiretamente, ceram a Encarnação. Nos Evangelhos, conforme
muitos conflitos históricos, que começaram já no Nosso Senhor ensinava sua doutrina, as divergên-
tempo da vida pública de Nosso Senhor. As seitas cias entre Ele e os seus contraditores, especial-
da época (fariseus, saduceus, zelotes etc.) trataram mente os fariseus, aumentavam. No começo de sua
logo de combater a doutrina de Cristo conforme vida pública, Ele era tolerado em certa medida, e
entendiam que Nosso Senhor pregava o Reino dos os fariseus se limitavam a indagá-lo e colocá-lo à
Céus, reino sobrenatural que abrangeria todos os prova. A intolerância aumentava progressivamente
povos e nações. Tal doutrina divina confrontava as conforme Ele sinalizava, pela sabedoria e pelos
doutrinas político-messiânicas das seitas, que milagres, que era o Cristo, Filho de Deus encar-
apostavam na salvação terrena de Israel e na coro- nado. Há, por exemplo, o episódio de uma disputa
ação de seus líderes como os chefes das nações, em que Ele diz aos fariseus: “Em verdade, em ver-
descendentes da raça superior e eleita por Deus dade vos digo: antes que Abraão fosse, eu sou” (S.
para comandar espiritualmente todos os povos, aos Jo 8,58). Nosso Senhor fala claramente da sua
quais caberia obediência e servidão. Mas o sinal de eternidade e refere-se a si mesmo com as mesmas
contradição atinge seu ponto alto na negação da palavras que Deus-Pai à Moisés: “Eu sou aquele
Encarnação pelas seitas, que imbuídas do espírito que sou” (Êx 3,14). Os fariseus compreenderam
maligno e influenciadas pela metafísica da Ser- imediatamente suas palavras, e quiseram apedrejá-
pente (o gnosticismo), jamais poderiam aceitar que lo. Porque compreenderam a Encarnação, rejeita-
o espírito divino assumisse uma realidade corpó- ram-na, e então passaram a tramar a morte de Jesus
rea, considerada má em si mesma. Cristo.
9
Esses homens, a quem São João chama de falsos compromissos dos homens. Outras falas de Nosso
judeus e Sinagoga de Satanás (cf. Ap. 3,9), ao não Senhor sustentam ainda essa divisão: “Quem não
aceitarem, por malicioso orgulho, a Encarnação do está comigo, está contra mim” (S. Mt 12,30);
Messias predito pelos profetas — e seus doutores “Quem vos ouve, a mim me ouve; e quem vos re-
conheciam bem as profecias —, caíram em grande jeita, a mim me rejeita” (S. Lc 10,16); “Sereis odi-
desgraça, que se concretizou quando, num ato de ados de todos por causa de meu nome” (S. Mt
extrema rebeldia, escolheram Barrabás e proferi- 10,22); “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim,
ram sobre si mesmos a terrível maldição: “Caia so- vós que praticais a iniquidade” (S. Mt 7,23); “Re-
bre nós o seu sangue [de Cristo] e sobre nossos fi- tirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno
lhos!” (S. Mt 27,25). Desde então, esse povo, de- destinado ao demônio e aos seus anjos” (S. Mt
tentor da linhagem sanguínea da rebeldia, man- 25,41). Dessas falas, tiramos a conclusão certa: a
chado pela culpa do crime de deicídio, tornou-se humanidade estará dividida até o dia do Juízo, e o
errante, causa de discórdia nas nações que os aco- elemento central da separação entre os homens é a
lhem, das quais são constantemente expulsos; ao fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, quem distinguirá,
passo que os verdadeiros judeus, reconhecendo o por essa fé e pelas obras, os bodes das ovelhas.
Messias prometido, tornaram-se o fundamento da A profecia de São Simeão é a chave de interpre-
Igreja e os alicerces da sociedade de Deus (I S. Pd tação da história a partir da Encarnação. Na clara
2,4-5), sal da terra e luz do mundo (cf. S. Mt 5,13- divisão entre o Reino dos Céus anunciado por
14), verdadeiros herdeiros das promessas feitas a Cristo e o reino de Satanás promovido pelas hostes
Abraão (cf. Gl 2,29). infernais se encontra o elemento central dos con-
Ao longo de sua vida, Nosso Senhor reiterou por flitos humanos até o fim dos tempos. Já na Igreja
diversas vezes a divisão que haveria entre aqueles nascente, os judeus partidários do Anticristo tra-
que o seguiam e os que seguiam a velha Serpente. maram para que a culpa do grande incêndio de
Ao contar a parábola do joio e do trigo (cf. S. Mt Roma recaísse sobre os cristãos, que sofreram du-
13,24-30), alertou que os inimigos de Deus trama- ramente nas mãos do imperador. Além da perse-
riam contra sua Igreja, semeando a divisão e a dis- guição física, que produziu milhares de mártires, a
córdia em seu seio. Alertou também para a falsa Igreja sofreu com os ataques doutrinários das he-
paz do mundo (cf. S. Jo 14,27), contrária ao seu resias, muitas delas com influências judaizantes.
Espírito. Por isso Ele diz: “Não julgueis que vim Esses ataques, tanto nas perseguições sangrentas
trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a quanto nas heresias, repetiram-se ciclicamente na
espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o história. Foram inúmeras as heresias e as revolu-
pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e ções que recaíram sobre a cristandade com o intuito
os inimigos do homem serão as pessoas de sua pró- de, se não destruir completamente, mitigar o poder
pria casa” (S. Mt 10,34-36). Essas palavras de temporal da Igreja e reduzir ao mínimo a obra de
Nosso Senhor repetem a profecia de São Simeão: Jesus Cristo na terra.
Ele, Jesus Cristo, é sinal de contradição entre Vivemos na era em que a guerra entre a cidade de
aqueles que seguem a Deus e os que seguem ao Deus e a cidade dos homens chegou em seu ápice:
mundo, e essa contradição é tão absoluta que po- a era em que o Anticristo há de se manifestar aos
derá romper os laços de pais e filhos, pois o amor olhos do mundo, seduzindo de vez o homem mo-
a Deus é maior que o amor da carne e que todos os derno, que abandonou a luta espiritual pela Verda-
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de, isto é, abandonou o Logos, a sabedoria do seita-mãe é este: solve et coagula (dissolver e
Verbo Encarnado, para mergulhar nas falsas pro- aglutinar). Isso significa que a liberdade religiosa
messas da sociedade liberal preconizada pelo exér- e de consciência é promovida enquanto serve para
cito do Anticristo. Arregimentado na franco-ma- destruir a verdadeira religião, guardada pelo poder
çonaria, seita-mãe dos judeus, a qual os papas das chaves de São Pedro, sobre quem Cristo insti-
identificaram com a Sinagoga de Satanás dos anti- tuiu a Igreja Católica Apostólica Romana. Após o
gos perseguidores de Cristo e dos apóstolos, esse rebaixamento da santa religião da Igreja ao nível
exército está agora em seu apogeu, ocupando as das falsas doutrinas do mundo e sua dissolução no
primeiras fileiras das cátedras do Vaticano. Entre caldo homogêneo do indiferentismo religioso, será
as falsas promessas desses homens, a mais evidente a hora de aglutinar tudo em uma única religião uni-
é a paz mundial, a mesma condenada por Nosso versal. É nesse momento que será abandonado o
Senhor. Elaborada pela seita-mãe, essa paz se ba- discurso da igualdade das religiões, e os represen-
seia nos princípios da fraternidade universal ma- tantes do judaísmo-talmúdico serão exaltados
çônica e do novo ecumenismo da maçonaria ecle- como se ainda fossem o antigo povo-eleito de
siástica que tomou de assalto os poderes da Igreja. Deus, os quais, por direito divino, usarão de sua
Ela prega que os homens devem se abster de fazer autoridade para guiar espiritualmente a humani-
proselitismo religioso e aceitar todas as religiões dade; eles se considerarão os únicos que de fato
como válidas e iguais perante Deus. Eis porque podem se comunicar diretamente com Deus e ofe-
Nosso Senhor a condenou: porque ela nega que Je- recer a Ele um sacrifício agradável, no Templo de
sus seja o Cristo, o Filho de Deus encarnado, tor- Salomão reconstruído em Jerusalém.
nando inútil o seu Sacrifício. Ela reduz abomina- Aos outros povos restará a obediência servil à li-
velmente a santa religião cristã ao nível das falsas derança espiritual do suposto povo eleito e a ob-
religiões e seitas. Esse pacifismo ecumênico é o servância dessa religião universal aglutinada pelos
carro-chefe das autoridades eclesiásticas da Igreja princípios iluministas da igualdade, liberdade e
após o Concílio Vaticano II, que ignoram a profe- fraternidade. Eis aí a religião do tempo do Anti-
cia de São Simeão. Para elas, Cristo não é sinal de cristo, chamada noachismo, religião genérica pau-
contradição, pois não há contradição entre ser cris- tada em um monoteísmo anti-trinitário e na obser-
tão ou judeu, maometano, hindu, budista, protes- vância de uma parte dos mandamentos — dos três
tante. Essas autoridades pregam a liberdade religi- primeiros, que se referem diretamente a Deus e ao
osa e a liberdade de consciência, erros condenados culto divino, reservados exclusivamente ao povo
pelo Magistério da Igreja tempos antes de serem judeu. Nesse tempo, a única censura religiosa será
promulgadas oficialmente pelo Concílio. a pregação da Encarnação do Verbo, e então o sinal
Em tempo, é claro que o objetivo final da Sina- de contradição da profecia de São Simeão ficará
goga de Satanás não é a igualdade das religiões, mais evidente que nunca. Jesus poderá ser cultuado
pois que ela mesma tem sua religião: o luciferia- como um profeta, um anjo, uma reencarnação de
nismo. Também é claro que o luciferianismo não um espírito evoluído, um grande sábio ou filósofo,
se apresenta às claras, e tampouco usa esse nome. mas jamais como na profissão de fé de São Pedro:
Ele está traduzido, principalmente, nas doutrinas “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (S. Mt
do Talmud e na gnose da Cabala judaica. O prin- 16,16). Os que pregarem o Cristo encarnado e cru-
cípio de ação desse luciferianismo disfarçado de cificado serão tidos como loucos e fanáticos, como
11
previu São Paulo (cf. I Cor 1,23), e serão dura- venci o mundo” (S. Jo 16,33). Diante das tais pa-
mente perseguidos nesse tempo (cf. S. Mt 24,9). lavras, o que podemos temer? A amizade e com-
Todas essas coisas não servem, porém, para nos panhia de Nosso Senhor no Reino dos Céus vale
desanimar. Pelo contrário, devem servir para pre- todos os sofrimentos desse mundo. Quem deve te-
caver-nos na luta contra os inimigos de Nosso Se- mer não somos nós, mas seus inimigos, os ímpios,
nhor e para que se faça cumprir sua divina provi- os partidários da Serpente.
dência. É Ele mesmo quem nos anima: “Disse-vos Virgem Santíssima, dai-nos a fortaleza contra o
estas coisas, para que tenhais paz em mim. Haveis poder das trevas; São José, protegei a Igreja contra
de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu seus inimigos; São Simeão, rogai por nós.

12
CATHOLICAE LITTERAE tência da Bondade Absoluta. A segunda prova
parte da variedade das grandezas para remontar à
existência da Máxima Grandeza. A terceira prova
parte dos efeitos observados na criação para re-
montar à existência do Sumo Criador ou Causa
Primeira de tudo o que existe. A quarta prova parte
da existência dos graus de perfeição para remontar
à existência da Suprema Perfeição.
As quatro primeiras provas de Santo Anselmo são
chamadas de provas a posteriori, porque elas de-
pendem da experiência, isto é, partem da natureza
das coisas e dos efeitos da ação divina observados
no mundo para inferir a existência de um primeiro
princípio necessário, sem o qual nada mais poderia
haver. Mais tarde, o santo filósofo introduziu no
seu opúsculo Proslógio um novo argumento cha-
mado de prova a priori, independente da experiên-
cia, pois demonstra a veracidade e a necessidade
da existência de Deus a partir de uma análise lógica
PROSLÓGIO, do conceito “Deus”.

DE S. ANSELMO Embora o argumento seja baseado na razão natu-


ral, o ponto de partida de Santo Anselmo é o da fé,
baseado no princípio Credo ut intelligam (creio
para compreender). Diz o santo (1973, p. 108) que
MARCELO ROSA VIEIRA
a inteligência racional, que nos foi concedida por
Deus em defesa da fé, percebe com toda evidência
Santo Anselmo nasceu no ano de 1033 na cidade que Deus é “o ser do qual não é possível pensar
de Aosta, na Itália, tornou-se monge beneditino e nada maior”. Assim, do ponto de vista conceitual,
foi Arcebispo de Cantuária entre os anos 1093 e Deus pode ser definido como o maior ser pensável
1109. Considerado por muitos o primeiro escolás- ou concebível pela nossa inteligência.
tico, Santo Anselmo dedicou-se, sobretudo, ao Contudo, o maior ser concebível é um ser exis-
problema filosófico da existência de Deus, para o tente apenas na inteligência, ou Ele existe na rea-
qual formulou cinco soluções ou cinco provas ra- lidade? Podemos perguntar se existe verdadeira-
cionais. mente esse “ser do qual não é possível pensar nada
As primeiras quatro provas foram apresentadas maior”, uma vez que o insensato, do qual fala o
pelo Arcebispo na sua obra Monológio. No seu Salmo, “disse em seu coração: Não há Deus.” (Sl
conjunto, essas provas são compostas de inferên- 13,1). Ora — argumenta o Arcebispo de Cantuária
cias simples e naturais da razão humana e são ba- —, o insensato também ouve e compreende o sig-
seadas na experiência. A primeira prova parte da nificado da expressão que define Deus como “o
existência das coisas boas para remontar à exis- maior ser concebível”. O sentido dessa expressão
13
também se encontra em sua inteligência e pode ser pensar que Deus não existe. Pois, se “o ser do qual
percebido com a mesma evidência. Assim sendo, o não é possível pensar nada maior” admitisse ser
insensato há de concordar que “o ser do qual não é pensado como não-existente, Ele não seria o
possível pensar nada maior’ não pode existir so- maior, e sim outra coisa, uma vez que é mais per-
mente na inteligência” (ANSELMO, 1973, p. 108). feito “não admitir ser pensado como não-exis-
Ou seja, Ele tem que existir igualmente na reali- tente” do que admiti-lo. A conclusão necessária a
dade, caso contrário, Ele não seria o maior ser con- que isso leva é que Deus existe de tal modo que é
cebível, pois um ser que existisse apenas na inteli- impossível pensá-lo como não-existente, pois se a
gência seria menor do que um ser que existisse na mente do homem fosse capaz de conceber algo
inteligência e também na realidade. maior do que Deus, “a criatura elevar-se-ia acima
No argumento de Santo Anselmo, a existência de do Criador e formularia um juízo acerca do Cria-
Deus é uma consequência lógica da própria defi- dor. Coisa extremamente absurda” (Ibid., p. 109).
nição Dele. O Proslógio apresenta o raciocínio do Mas, se o insensato disse em seu coração que
seguinte modo: Deus não existe, como isso foi possível? Não é
Premissa 1: se “aquilo em relação ao qual não é verdade que, para dizê-lo no coração, é preciso
possível conceber nada maior” existisse somente primeiro pensá-lo? Para Santo Anselmo, o dizer
na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro aqui comporta dois sentidos que devem ser distin-
ser maior do que Ele, pois, além de pensado, esse guidos entre si: um é um dizer meramente verbal,
ser existiria também na realidade. o outro é um dizer com compreensão do que foi
Premissa 2: se é possível conceber a existência de dito. No dizer simplesmente verbal, a existência de
algo maior do que “o maior ser concebível”, isso, Deus pode ser negada, mas essa negação não pas-
certamente, seria uma contradição e um absurdo. saria de “palavras ao vento”, quer dizer, “palavras
Conclusão: logo, “o ser do qual não se pode pen- insensatas”, desprovidas de razão. No dizer com
sar nada maior’ existe, sem dúvida, na inteligência compreensão, ao contrário, a existência de Deus
e na realidade” (Ibid., p. 108). não admite negação possível, pois o conceito do
Dizendo o mesmo com outras palavras, podemos “maior ser concebível” já inclui lógica e necessa-
argumentar que o maior ser que se pode pensar riamente a existência, que não pode ser separada
deve possuir, por definição, todas as perfeições. dele sem que ele deixe de ser o maior.
Ora, se Deus é o maior ser que se pode pensar, se- Na história da filosofia, a prova de Santo An-
gue-se necessariamente que Ele possui todas as selmo de Cantuária recebeu o nome de prova on-
perfeições, e, sendo a existência uma delas, segue- tológica ou prova a simultaneo. Ontológica, porque
se necessariamente que Ele existe. Ora, vê-se com deduz a existência extramental de Deus a partir da
evidência que é melhor existir do que não existir, e análise do Seu conceito na mente; a simultaneo
que a existência é mais perfeita do que a não-exis- porque mostra que é simultaneamente uma e a
tência. Assim, se Deus existisse apenas na inteli- mesma coisa pensar Deus como ideia e considerá-
gência, ele seria um ser simplesmente mental, e sua lo como ser realmente existente.
perfeição seria menor do que a dos seres que exis- No entanto, o argumento não convenceu a todos.
tem tanto na mente quanto na realidade. Um monge de Marmoutier chamado Gaunilo, que
Santo Anselmo demonstra então que essa conclu- era discípulo do próprio Anselmo, levantou uma
são é tão verdadeira que nem sequer é possível objeção contra a licitude dessa passagem do ideal
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para o real: se basta pensar uma coisa como suma- João Duns Scoto em seu De primo principio. Entre
mente perfeita para considerá-la existente, então filósofos da Idade Moderna, tanto cristãos quanto
teríamos que admitir que as fábulas que se narram não-cristãos, a prova anselmiana foi bastante dis-
a respeito das Ilhas Afortunadas, de estarem reple- cutida, sendo criticada por Kant, mas acolhida po-
tas de riquezas, delícias e fertilidade, são histórias sitivamente por autores como Descartes e Leibniz,
necessariamente verídicas, e não simples fantasia. que a reformularam e utilizaram dentro de sua pró-
Enfim, basta formar uma ideia clara dessa ilha na pria filosofia, e por Hegel, que a defendeu. Na fi-
mente para que ela exista efetivamente, pois, losofia contemporânea, ela é ainda objeto de dis-
“como é melhor que uma coisa exista na inteligên- cussão, principalmente, entre filósofos da escola
cia e na realidade do que apenas na inteligência, ela analítica, como Plantinga, Hintikka, Knuuttilla,
necessariamente existe, porque, se não existisse, que tentaram provar sua validade sob a base da ló-
qualquer outra terra existente na realidade seria gica modal, que trata das modalidades de possibi-
melhor do que ela (…)” (Ibid., p. 134). lidade, realidade e necessidade.
A resposta de Santo Anselmo, porém, fez notar a Em suma, a fortuna crítica da prova anselmiana
Gaunilo que o exemplo da ilha perfeita não é ade- basta para mostrar a sua força lógica e a sua im-
quado, porque uma ilha é mais ou menos perfeita portância para a teologia racional. Cabe notar que
sempre em relação a outra ilha, sendo uma perfei- o argumento, embora seja simples, é de uma ine-
ção ou grandeza relativa. O ser perfeitíssimo, que gável profundidade, e ele ajuda, inclusive, a cor-
é Deus, do qual não se pode pensar nada de maior, roborar e fortalecer as quatro provas a posteriori.
não é perfeito relativamente a outra coisa, e sim Pois os diferentes graus de bondade, grandeza e
perfeito absolutamente. perfeição já pressupõem uma bondade, uma gran-
Posteriormente, a prova ontológica passou a deza e uma perfeição absolutamente infinitas, das
constituir um verdadeiro divisor de águas na his- quais aquelas participam. E esse ser infinito deve
tória da filosofia, sendo acolhida por muitos filó- existir necessariamente, caso contrário, o homem,
sofos e rejeitada por outros. Entre filósofos católi- que é finito, não seria capaz de pensá-lo. Se não
cos, ela sofreu uma reação crítica por parte de San- existisse, ele não seria infinitamente perfeito, nem
to Tomás de Aquino, nas suas “cinco vias”, mas, a bondade, grandeza e perfeição relativas teriam
ao mesmo tempo, foi bem recebida pelo beato São um ser a partir do qual existem por participação.

Edição resenhada:

ANSELMO DE CANTUÁRIA. Proslógio, cap. 2-4, em: Os


Pensadores, vol. 7, p. 107-110; crítica de Gaunilo, ibid. p.
129-135. São Paulo: Abril S. A. Cultural, 1973.

Fonte:
REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia.
Vol. 2. Patrística e Escolástica. Tradução de Ivo Storniolo.
São Paulo: Paulus, 2003.

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DOMINUS VOBISCUM

O ESTADO MISERÁVEL DOS


QUE RECAEM NO PECADO
SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO

“Não tenhais medo. Buscais Jesus de Nazaré, que peques, para não te acontecer coisa pior” (S. Jo
foi crucificado. Ele ressuscitou, já não está aqui.” 5,14). Pelas confissões feitas, suas almas são cu-
(S. Mc 16,6) radas, mas ainda não salvas; pois, se vocês retor-
Espero, meus queridos cristãos, que, como Cristo narem ao pecado, serão novamente condenados ao
ressuscitou, vocês, neste santo tempo pascal, te- inferno, e o dano causado pela recaída será muito
nham se confessado e ressuscitado de seus peca- maior do que aquele anteriormente sofrido. Ou-
dos. Atentem-se, contudo, ao que ensina S. Jerô- çam, diz S. Bernardo, os pecados voltam a ser
nimo: muitos começam bem, mas poucos perseve- ainda piores. Se um homem se recuperar de uma
ram. O Espírito Santo declara que quem persevera doença mortal e depois adquiri-la de novo, terá
na santidade até a morte, e não quem leva uma vida perdido tanto de sua força natural que a recupera-
mansa, será salvo (cf. Mt 24,13). A coroa do Pa- ção da recidiva será impossível. Isso é exatamente
raíso, diz S. Bernardo, é prometida a quem começa, o que acontecerá com os pecadores relaxados; vol-
mas só é dada a quem perseverar. Assim, como vo- tando ao vômito, isto é, levando a alma de volta
cês, irmãos, decidiram entregar a si mesmos a aos pecados vomitados nas confissões, ficarão tão
Deus, ouçam a admoestação do Espírito Santo: fracos que se tornarão objetos de diversão para o
“Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, diabo. S. Anselmo diz que o diabo conquista um
permanece firme na justiça e no temor, e prepara a certo domínio sobre eles, de modo que os faz cair
tua alma para a provação” (Ecl 2,1). e cair novamente, como ele deseja. O miserável
Não imagine que não terá mais tentações, mas pecador se torna como os pássaros com os quais
prepare-se para o combate e proteja-se contra a uma criança se diverte. Ela permite que, de vez em
recaída nos pecados já confessos; pois, se você quando, voem até certa altura, e então os puxa de
perder a graça de Deus novamente, achará difícil volta quando quer, por meio de uma corda amar-
recuperá-la. Pretendo hoje mostrar a vocês o es- rada a eles. Essa é a maneira com a qual o diabo
tado miserável dos pecadores que recaem; isto é, trata os pecadores que recaem. “Sed quia ab hoste
daqueles que, após a confissão, miseravelmente tenentur, volantes in eadem vitia dejiciuntur” (Mas
voltam aos pecados que confessaram. já que o inimigo tentava, voava para os mesmos
Tendo, então, amados cristãos, confessado since- vícios).
ramente seus pecados, Jesus Cristo diz a vocês o 2. S. Paulo nos diz que não devemos contender
que diz ao paralítico: “Eis que ficaste são; já não com homens como nós, feitos de carne e osso, mas
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com os príncipes do inferno (cf. Ef 7,12). Com es- Deus, e quanto maiores seus esforços para servi-
sas palavras, ele deseja nos advertir que não temos Lo, mais o inimigo é mirado com raiva e mais te-
forças para resistir aos poderes do inferno, e que, nazmente se esforça para entrar na alma da qual foi
para resistir a eles, o auxílio divino é absoluta- expulso. “Quando”, diz o Redentor, “um espírito
mente necessário: sem ele, seremos sempre derro- imundo sai do homem, anda por lugares áridos,
tados; mas, com a ajuda da graça de Deus, seremos, buscando repouso, não o achando, diz: Voltarei à
de acordo com o mesmo apóstolo, capazes de fazer minha casa, donde saí” (S. Lc 11,24). Se ele con-
todas as coisas e vencer todos os inimigos (cf. Fl seguir entrar novamente, ele não entrará sozinho,
4,13). Mas essa ajuda Deus dá apenas aos que re- mas trará consigo companheiros para se fortalecer
zam por ela (cf. Mt 7,7). Aqueles que negligenciam na alma da qual ele novamente possuiu. Assim, a
pedir, não recebem. Tenhamos então o cuidado de segunda destruição daquela alma miserável será
não confiar nas nossas resoluções: se nelas depo- maior do que a primeira (cf. S. Lc 11,26).
sitarmos nossa confiança, estaremos perdidos. 5. Para Deus, a recaída de cristãos ingratos é
Quando somos tentados a cair no pecado, devemos muito desagradável. Depois de os ter chamado e
colocar toda nossa confiança na ajuda de Deus, que perdoado com tanto amor, Ele vê que, esquecidos
infalivelmente ouve todos os que invocam seu au- da Sua misericórdia, voltam a Lhe dar as costas e
xílio. renunciam a Sua graça. Se o inimigo, diz o Senhor,
3. Aqueles que estão no estado de graça devem, insultasse-Me, eu teria sentido menos dor; mas vê-
de acordo com S. Paulo, ter cuidado para não cair lo rebelar-se contra Mim, depois de ter restaurado
em pecado (cf. I Cor 10,12), especialmente se eles Minha amizade a você, e depois de ter feito você
já foram culpados de pecados mortais; pois uma sentar-se à Minha mesa, para comer Minha própria
recaída no pecado traz maior mal à alma. “E a úl- carne, entristece-Me no coração e impele-Me a
tima condição desse homem vem a ser pior do que vingar-Me de você (cf. Sl 54,13-16). Miserável o
a primeira” (S. Lc 11,26). homem que, depois de tantas graças de Deus,
4. É-nos dito nas Sagradas Escrituras que o ini- torna-se inimigo, ao invés de amigo de Deus. Ele
migo “oferece sacrifícios à sua nassa, e queima encontrará a espada da vingança divina preparada
perfumes à sua rede porque, graças a elas, teve para castigá-lo (cf. Ecl 26,27).
pesca abundante e suculento manjar” (Hab 1,16). 6. Alguns de vocês podem dizer: Se eu recair,
Ao explicar essa passagem, S. Jerônimo diz que o logo me erguerei de novo; pois imediatamente me
diabo procura capturar em suas redes todos os ho- prepararei para a confissão. Para aqueles que falam
mens, a fim de sacrificá-los à condenação pela jus- dessa maneira, acontecerá o que aconteceu com
tiça divina. Pecadores, que já estão na rede, ele se Sansão. Ele se deixou iludir por Dalila: enquanto
esforça para ligá-los a novas cadeias; mas os ami- ele dormia, ela cortou-lhe o cabelo, e ele perdeu as
gos de Deus são seu “suculento manjar”. Para forças. Despertando do sono, disse consigo
torná-los seus escravos e roubá-los de tudo o que mesmo: “‘Sairei deles como das outras vezes e me
adquiriram, ele prepara armadilhas mais fortes. livrarei’. Ignorava Sansão que o Senhor se tinha
“Quanto mais fervorosamente”, diz Dionísio Car- retirado dele” (Jz 26,20.). Ele esperava livrar-se,
tuxo, “uma alma se esforça para servir a Deus, mais como em ocasiões anteriores, das mãos dos filis-
ferozmente o adversário se enfurece contra ela”. teus. Mas porque sua força havia partido dele, ele
Quanto mais íntima a união de um cristão com foi feito seu escravo. Eles arrancaram seus olhos e,
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amarrando-o com correntes, aprisionaram-no. como você se arrependerá? E sem arrependimento,
Depois de cair no pecado, o cristão perde a força como você pode obter perdão? Ah! o Senhor não
necessária para resistir às tentações porque o Se- se deixará zombar. “Não vos enganeis”, diz S.
nhor se afasta dele. Ele o abandona negando a Paulo, “de Deus não se zomba” (Gal. 6,7). S. Isi-
ajuda eficaz necessária para vencer as tentações; e doro nos diz que o homem que repete o pecado que
o homem miserável permanece cego e abandonado antes detestava não é um penitente, mas um escar-
em seu pecado. necedor da majestade de Deus (De Sum. Bono.) E
7. “Aquele que põe a mão no arado e olha para Tertuliano ensina que, onde não há emenda, o ar-
trás não é apto para o Reino de Deus” (S. Lc 9,62). rependimento não é sincero (De Pœnit.).
Veja a imagem fiel de um pecador em recaída. 9. “Arrependei-vos”, disse S. Pedro em um dis-
Marque as palavras: ninguém, diz Jesus Cristo, que curso aos judeus, “e convertei-vos, para serem
começa a me servir e olha para trás, é apto para apagados os vossos pecados” (At 3,19). Muitos se
entrar no céu. De acordo com Orígenes, adicionar arrependem, mas não são convertidos. Eles sentem
um novo pecado a outro cometido é antes como uma certa tristeza pelas irregularidades de suas vi-
adicionar uma nova ferida a uma ferida recém-in- das, mas não voltam sinceramente para Deus. Eles
fligida (Hom. I. in Ps.). Se uma ferida for infligida se confessam, batem no peito e prometem se
a qualquer membro do corpo, esse membro certa- emendar; mas não fazem uma resolução firme de
mente perderá seu vigor original. Mas, se receber mudar suas vidas. Aqueles que decidem firme-
um segundo ferimento, perderá toda a força e mo- mente por uma mudança de vida, perseveram, ou
vimento, sem esperança de recuperação. O grande pelo menos se preservam por um tempo conside-
mal de uma recaída no pecado é tornar a alma tão rável na graça de Deus. Mas aqueles que recaem
fraca que ela tenha pouca força para resistir à ten- no pecado logo após a confissão, mostram, como
tação. S. Tomás de Aquino diz: “Depois que uma diz S. Pedro, que se arrependem, mas não são con-
falta foi remediada, as disposições produzidas pe- vertidos; e tais pessoas terão no final uma morte
los atos precedentes permanecem” (1 p., qu. 86, art. infeliz. S. Gregório diz que os justos têm frequen-
5.). Todo pecado, embora perdoado, sempre deixa tes tentações para pecar, mas não se rendem a elas
uma ferida na alma. Quando a essa ferida se adici- (Pastor., P. 3, admoestar. 31.), porque sua vontade
ona uma nova, a alma se torna tão fraca que, sem os aborrece. Assim os pecadores sentem certos im-
uma graça especial e extraordinária de Deus, é im- pulsos para a virtude; mas isso não é suficiente para
possível para ela vencer as tentações. produzir uma conversão verdadeira. O Sábio nos
8. Vamos, então, irmãos, tremer ao pensar em cair diz que a misericórdia será mostrada para aquele
no pecado, e vamos tomar cuidado para não nos que confessa seus pecados e os abandona, mas não
valer da misericórdia de Deus e continuar a para aqueles que simplesmente confessam suas
ofendê-lo. “Ele”, diz S. Agostinho, “que prometeu transgressões (cf. Pr. 28,13). Aquele, então, que
perdão aos penitentes, não prometeu arrependi- não desiste, mas retorna ao pecado após a confis-
mento a ninguém”. Deus realmente prometeu per- são, não obterá misericórdia de Deus, mas morrerá
dão a todos os que se arrependessem de seus peca- vítima da justiça divina. Ele pode esperar morrer a
dos, mas não prometeu a ninguém a graça de se morte de um certo jovem inglês que, como é rela-
arrepender das faltas que cometeu. A tristeza pelo tado na história da Inglaterra, tinha o hábito de cair
pecado é um puro presente de Deus; se ele negar, em pecados contra a pureza. Ele sempre voltava a
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esses pecados após a confissão. Na hora da morte, de amor a Deus e de oblação das ações do dia. Re-
ele confessou seus pecados e morreu de uma ma- novem sua resolução de nunca ofender a Deus e
neira que lhe deu esperança de salvação. Mas, en- implorem a Jesus Cristo e sua Santa Mãe para pre-
quanto um santo sacerdote estava celebrando ou se servá-los do pecado durante o dia. Depois façam
preparando para celebrar a missa por sua alma fa- sua meditação e ouçam a Missa. Durante o dia, fa-
lecida, o jovem miserável apareceu a ele e disse çam leitura espiritual e visita ao Santíssimo Sacra-
que estava condenado. Ele acrescentou que, à beira mento. À noite, rezem o Rosário e façam um
da morte, sendo tentado a ceder a um pensamento exame de consciência. Recebam a sagrada comu-
ruim, sentiu-se forçado a consentir e, como estava nhão pelo menos uma vez por semana, ou mais fre-
acostumado a fazer na primeira parte de sua vida, quentemente, se seus diretores assim aconselha-
cedeu à tentação, e assim foi perdido. rem. Tenham o cuidado de escolher um sacerdote
10. Então, não há meio de salvação para pecado- a quem regularmente se confessarão. Também é
res que recaem? Eu não digo isso; mas adoto a má- muito útil fazer um retiro espiritual todos os anos
xima dos médicos: em doenças malignas, remédios em alguma casa religiosa. Honrem a Mãe de Deus
poderosos são necessários. Para retornar ao cami- todos os dias com alguma devoção particular e je-
nho da salvação, o pecador que recai deve fazer jum todos os sábados. Ela é a mãe da perseverança
grande violência contra si mesmo (cf. S. Mt 11,12). e promete obtê-la para todos os que a servem (Ecl.
No início de uma nova vida, o pecador que recai 24,30). Acima de tudo, é necessário pedir a Deus
deve violentar a si mesmo a fim de erradicar os todas as manhãs o dom da perseverança, e suplicar
maus hábitos que contraiu e adquirir hábitos de à Santíssima Virgem que o obtenha para vocês, es-
virtude; pois quando tiver adquirido hábitos de vir- pecialmente no tempo da tentação, invocando o
tude, a observância dos mandamentos divinos se nome de Jesus e Maria enquanto durar a tentação.
tornará fácil e até doce. O Senhor disse uma vez a Feliz o homem que continuará a agir dessa maneira
S. Brígida que, para aqueles que suportam com fir- e será encontrado agindo assim quando Jesus
meza as primeiras perfurações dos espinhos que Cristo vier para julgá-lo (cf. S. Mt. 24,46).
experimentam nos ataques dos sentidos, evitando
ocasiões de pecado e se afastando de conversas pe-
rigosas, esses espinhos se transformam gradual- Fonte:

mente em rosas.
SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Sermon XXI,
11. Para usar a violência necessária e levar uma
Easter Sunday: On the miserable state of relapsing sinners.
vida de regularidade, deve-se adotar os meios ade- Em: Sermons for all the Sundays in the year. Dublin: James
quados; caso contrário, nada será feito. Ao se le- Duffy, 1882. p. 152-159 (Tradução nossa).
vantar pela manhã, façam atos de ação de graças,

19
YSTORIA SANCTI
SANTO ANSELMO
DE CANTUÁRIA

Santo Anselmo nasceu no ano de 1033, na cidade


de Aosta, no então Reino de Borgonha. Pelo pai
maltratado e impedido de entrar para o mosteiro,
por volta dos 23 anos de idade, alguns anos após a
morte da mãe, passou cerca de três anos pela Bor-
gonha, França e Normandia. Atraído pela reputa-
ção do abade Lanfranco, então prior da abadia be-
neditina de Bec, na Normandia, tornou-se seu dis-
cípulo e amigo. Como estudava infatigavelmente,
ensinando e instruindo os outros, sacrificando o
corpo com vigílias, fome e frio, veio-lhe a ideia de
que não sofreria menos nas austeridades da vida
monástica e não perderia o mérito dos sofrimentos.
Retomou, então, o desejo que tinha, desde os
quinze anos, de ser monge.
Pensava em ir para as abadias de Clugni ou Bec.
Todavia, restava-lhe ainda um pouco de amor-
próprio: “Mas”, dizia tanto em relação a um como
a outro, “estará perdido o tempo que dediquei aos
estudos. Lá não poderei ser útil a ninguém. Em
Clugni, por causa da regularidade da observância;
em Bec, por causa da grande capacidade de Lan-
franco, por quem seria ofuscado”. Percebendo-se
vaidoso, decidiu: “Serei monge ou serei estimado
e preferido pelos outros? Não, é necessário que en-
tre para um lugar onde seja o mais desprezado,
onde seja tomado por nada”. Para confirmá-lo,
consultou Lanfranco, dizendo-lhe: “Tenho incli-
nação por estes três estados: ser monge ou eremita,
viver com meus recursos e servir aos pobres.
Rogo-vos que me determineis o caminho a se-
guir”. Morrera-lhe o pai e todos os bens lhe espe-
ravam. Lanfranco não quis decidir só. Conduziu-

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o, então, a Ruão para lá consultarem o arcebispo pela solidão de um eremitério, ele se sentiu opri-
Maurílio, que decidiu em favor da vida monástica. mido pela vida agitada e desejou deixar o ofício e
Em 1060, aos 27 anos, S. Anselmo foi recebido se entregar aos prazeres da contemplação. Mas o
como noviço na abadia de Bec. Sua vida de simples arcebispo de Ruão lhe ordenou que mantivesse o
monge durou apenas três anos, quando, em 1063, cargo e se preparasse para fardos ainda maiores: o
foi eleito para ocupar o lugar de Lanfranco, nome- venerável Herluíno, fundador da abadia de Bec, em
ado abade de Caen. Nessa época, dedicava-se ao vista da idade avançada, não podia desempenhar
estudo da teologia e da moral, resolvendo questões suas funções. Mais do que nunca, todo o governo
obscuras das Sagradas Escrituras e aconselhando do monastério recaiu em Anselmo. Morto o santo
abundantemente sobre as virtudes e os vícios. Ele abade, foi Anselmo eleito unanimemente para ser-
praticava as máximas por primeiro, e procurava ser lhe o sucessor. Fez tudo o que pôde, tanto por ar-
amável com todos. A reputação de que gozava se gumentos, como por orações, para não aceitar o
estendeu por toda a Normandia, passou para a cargo. Por fim, aceitou-o determinado principal-
França, atingiu Flandres e foi até a Inglaterra. De mente pelo que S. Excia. Dom Maurílio lhe dissera
todos os lados, hábeis funcionários e bravos cava- quando quis renunciar ao cargo de prior, função
leiros vinham submeter-se à sua direção e entre- que exerceu durante quinze anos. Contava quarenta
gar-se a Deus, com os bens que possuíam. O mos- e cinco anos quando foi eleito abade, em 1078. Re-
teiro crescia, interiormente, em virtudes; exterior- cebeu a bênção abacial de Dom Gilberto, bispo de
mente, em riquezas. Evreux, no dia da Cátedra de São Pedro, em 1079.
A princípio, sua promoção ao cargo desocupado Governou a abadia de Bec durante quinze anos.
por Lanfranco ofendeu alguns dos outros monges, Aos deveres institucionais acrescentou os de pro-
mas S. Anselmo venceu suas oposições com gen- fessor. Durante o priorado, compôs algumas das
tileza e, em pouco tempo, conquistou seu afeto e suas obras filosóficas e teológicas, o Monológio e
obediência. Um jovem monge, chamado Osberno, o Proslógio. S. Anselmo não deixava de ensinar,
muito dado ao trabalho, mas também de muito es- tanto de viva voz, como por escrito, as matérias
pírito de malícia, odiava-o. O santo homem, vendo mais elevadas, mais profundas, mais difíceis, como
nele um bom natural, tinha-lhe muita indulgência a teologia e a filosofia. E tudo isso com justeza,
e suportava-lhes as puerícias, tanto quanto podia, precisão, clareza, que lhe mereceram um lugar dos
sem prejuízo da observância. Assim, pouco a mais distintos entre os Padres e os doutores da
pouco, fez-se querido. O jovem começou a dar- Igreja, mesmo entre os que se convencionou cha-
lhe ouvidos e a se corrigir. S. Anselmo, conquis- mar de filósofos e metafísicos. Semelhantes ques-
tando-lhe a afeição, cortou-lhe as pequenas liber- tões sobre as quais se ocupava só viriam ser nota-
dades que lhe havia concedido e acostumou-o a das por homens célebres como Malebranche,
uma vida mais séria. Este fazia progressos na vir- Fénelon e Bossuet no século XVII; e ainda assim
tude e dava esperança de prestar grandes serviços estes não conseguiriam sobrepujá-lo. Filosofica-
à Igreja; todavia, acabou morrendo muito jovem, mente, o santo pendia ao neoplatonismo, embora
nos braços do doutor de Cantuária. tenha tido por toda a vida um modo aristotélico de
Além de dar bons conselhos aos monges sob seus raciocinar.
cuidados, S. Anselmo encontrou tempo para con- O novo rei da Inglaterra, Guilherme, o Ruivo,
solar outros com suas cartas. Opondo-se à atração portava-se mais como tirano do que como cristão.
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Quando um bispo ou abade morria, o rei se apos- mais ninguém que ousará opor-se a ele, e ele vos
esmagará a todos, como lhe aprouver.
sava de todos os bens da igreja ou da abadia e não
permitia que o cargo fosse preenchido enquanto
O arrependimento de Guilherme findou-se com a
seus oficiais ainda lá encontrassem algo do que se
doença e S. Anselmo viu acontecer o que predis-
aproveitar. Em 1089, com a morte do bem-aven-
sera. O antipapa Clemente estava disputando a au-
turado Lanfranco, então arcebispo de Cantuária,
toridade de Urbano II, reconhecido pela França e
Guilherme deixou esta sede vacante por quatro
pela Normandia. Não parece que o rei inglês fosse
anos completos para dilapidar-lhe as rendas. Jurou
partidário do antipapa, mas ele desejava fortalecer
mesmo que ninguém ocuparia esse arcebispado
sua própria posição, afirmando seu direito de de-
durante seu reinado. Mas então, quando estava em
cidir entre os pretendentes rivais. Portanto, quando
Gloucester, acometeu-lhe uma violenta doença.
S. Anselmo pediu licença para ir ao Papa, o rei
Todos os bispos e senhores do reino se reuniram e
disse que ninguém na Inglaterra deveria reconhecer
aconselharam-no a pensar na salvação da alma, em
nenhum dos papas até que ele, o rei, tivesse deci-
abrir as prisões e perdoar as dívidas, dar a liberdade
dido o assunto. O arcebispo insistiu em ir ao Papa
às igrejas e poder aos pastores, principalmente ao
Urbano, cuja autoridade ele já havia reconhecido.
de Cantuária. Santo Anselmo, que estava em região
Essa grave questão foi encaminhada a um conselho
vizinha e de nada sabia, foi convocado a aconselhar
do reino realizado em Rockingham em março de
o rei. Ele disse que o rei deveria começar por uma
1095. Aí, S. Anselmo corajosamente afirmou a au-
confissão sincera e prometer reparar de boa fé, as-
toridade de Urbano, um discurso memorável da
sim que recuperasse a saúde, os erros que come-
doutrina da supremacia papal. Ele era simples-
tera.
mente um papista: acreditava que São Pedro era o
Na ocasião, propuseram-lhe preencher a vaga de
Príncipe dos Apóstolos, sendo fonte de toda auto-
Cantuária. S. Anselmo empalideceu de espanto, e
ridade e poder eclesiástico; que o papa foi seu su-
resistiu tanto quanto pôde a receber a investidura.
cessor; e que, consequentemente, ao papa era de-
Todavia, ele foi arrastado à força para a cabeceira
vida, tanto dos bispos e metropolitanos quanto do
do rei, e um cajado pastoral foi colocado em sua
resto da humanidade, a obediência.
mão fechada; ele foi levado de lá para o altar onde
O arcebispo de Cantuária sofreu terríveis perse-
o “Te Deum” foi cantado. Naturalmente atraído
guições e exílios tanto por Guilherme, O Ruivo,
pela contemplação, S. Anselmo tinha pouca sim-
patia pelo cargo, mesmo em um período de paz; quanto por seu sucessor, Henrique I. Tal contenda
refletia a guerra entre a Igreja e o poder secular,
ainda menos poderia desejá-lo naqueles dias tem-
conhecida como Reforma Gregoriana, ou Revolu-
pestuosos. Antes de ser eleito e sagrado bispo de
ção Papal; na qual se pretendia combater o cesaro-
Cantuária em 1093, ele declarou:
papismo e restabelecer a autoridade do Papa sobre
predigo-vos que o rei me fatigará de diversas ma- a Igreja. Também nessa época, a Igreja condenou
neiras e comigo acabará, e a alegria que vos dou a simonia e estabeleceu a obrigatoriedade do celi-
agora pela esperança de vossa consolação se trans- bato sobre as ordens sagradas. S. Anselmo, durante
formará em tristeza, quando virdes a igreja de
um concílio em Londres, reformou os regulamen-
Cantuária recair em viuvez ainda em minha vida.
tos de sobriedade e vestuário do clero, a fim de
Quando o rei comigo tiver liquidado, não haverá
combater a degeneração clerical. O santo ainda

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pregou contra o tráfico humano, prática que crescia vimento o fatigava extremamente, queriam de-
entre os reinos europeus. movê-lo; com dificuldade, conseguiram obtê-lo
Em meados de 1098, durante seu primeiro exílio, cinco dias antes de sua morte. Na quarta-feira da
Urbano II fê-lo assistir ao concílio de Bari. Os gre- semana santa, pela tarde, perdeu a palavra: à noite,
gos ali propuseram a questão da procedência do enquanto cantavam as matinas na igreja, leram-lhe
Espírito Santo, pretendendo provar, pelo Evange- a paixão que deviam ler à missa: durante a leitura,
lho, que procedia apenas do Pai. O Papa respondeu como viam que estava prestes a expirar, tiraram-
com várias razões, e empregou alguns argumentos no do leito e colocaram-no sobre o cilício e a
tirados do Tratado da Encarnação, que S. Anselmo cinza. Ele entregou, assim, o espírito no começo do
lhe enviara outrora. Mas como a disputa continu- dia de Sexta-Feira Santa, 21 de abril de 1109, dé-
asse, chamou o próprio autor para tratar da matéria. cimo sexto ano de seu pontificado e septuagésimo
Todos ficaram tão esclarecidos que pronunciaram sexto de sua vida. Morreu em Cantuária e foi en-
anátema contra os que negassem que o Espírito terrado na sua catedral, perto do bem-aventurado
Santo procedia do Pai e também do Filho. Ainda Lanfranco, seu predecessor, e sobre cujo túmulo se
nessa ocasião, sabendo da obstinação do rei inglês realizaram inúmeros milagres.
contra a Igreja, o papa aprovou a excomunhão de
Guilherme, mas o arcebispo de Cantuária pôs-se
de joelhos e rogou-lhe que não o fizesse. Fontes:

Em 1107, Henrique I colocou fim ao exílio de S.


HOOK, W. Lives of the archbishops of Canterbury. V. 2.
Anselmo, que retornou à Inglaterra e morreu dois
London: Bentley, 1869. p. 183
anos depois. Sua última enfermidade se constituiu KENT, W. St. Anselm. Em: The Catholic Encyclopedia.
em náusea para com toda a espécie de alimento, e New York: Robert Appleton Company, 1907. p. 546-550
afligiu-o durante seis meses aproximadamente. PADRE ROHRBACHER. Santo Anselmo. Em: Vida dos

Não mais podendo andar, fazia-se carregar todos Santos. V. 7. São Paulo: Editora das Américas, 1959. p.
133-146
os dias ao santo sacrifício, pelo qual tinha devoção
particular. Os que o serviam, vendo que esse mo-

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EUTRAPELIAM

MÁRTIRES DO MÊS DE ABRIL

1. Hermenegildo/ 2. Pedro de Verona/ 3. Marcelino/ 4. Aniceto/ 5. Justino/ 6. Fiel/ 7. Tibúrcio/ 8. Cleto/ 9. So-
tero/ 10. Jorge

Dicas:
1. Filho de visigodos arianos, converteu-se ao catolicismo, foi preso e condenado à morte em 586.
2. Nascido em Verona de pais maniqueus, tornou-se dominicano e foi morto enquanto pregava, em 1252.
3. Papa que governou entre 296 a 304, durante a perseguição de Dioclesiano.
4. Décimo sucessor de S. Pedro. Enfrentou perseguições de imperadores e heresias do século II.
5. Maior apologista do século II. Converteu-se ao cristianismo após passar por diversas escolas filosóficas.
6. Capuchinho advogado dos pobres. De Sigmaringen, morreu tentando converter os protestantes dos Grisões.
7. Martirizado com S. Valeriano e S. Máximo durante o pontificado de Urbano I (222-230).
8. Segundo sucessor de S. Pedro, cujo nome consta no cânon da Missa.
9. Décimo primeiro papa, martirizado sob Marco Aurélio. Comemorado junto com o papa S. Caio.
10. Patrono dos exércitos cristãos, seu culto provém do Oriente, sendo celebrado por latinos e gregos.

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