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BENEDICTA

O APOSTOLADO EM SEU LAR

VOLUME 02 • NÚMERO 05 • MAIO 2021


EDITORA DA IRMANDADE DO CARMO

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________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA

Benedicta, Revista
V.2, N.5, maio. 2021. Uberlândia. 24p.
________________________________________

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução sem permissão expressa do Editor-chefe.
Todos os trabalhos com autoria discriminada são de responsabilidade dos autores, não cabendo qualquer responsabi-
lidade legal sobre seu conteúdo à Revista Benedicta.
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Eventuais referências bíblicas são da Bíblia da Editora Ave Maria (2021) ou da tradução do Pe. Matos Soares (1950).
ÍNDICE

FIDES QUAERENS INTELLECTUM

São José: amante da pobreza, 3 O verso da ladainha que intitula o quinto artigo sobre São José convém de modo
modelo dos operários especial neste mês, iniciado pelo dia do trabalho, cujo patrocínio dado ao Santo
Carpinteiro em 1955 visa resgatar o sentido evangélico da pobreza e do labor.

O homem que fugia de 7 Os prodígios de Padre Pio atraíam também o meio artístico e cultural, front da
Padre Pio modernidade que deveras colidia com a Igreja. O santo frade converteu inúmeras
celebridades; mas uma em especial fugia-lhe da Cruz: o escritor Graham Greene.

São Pedro, primeiro Papa 11 Na segunda parte deste artigo sobre a primazia de São Pedro sobre os apóstolos,
da Igreja (Parte II) são expostos mais alguns fatos que comprovam que, desde o começo, São Pedro
já se portava como o chefe da cristandade nascente.

CATHOLICAE LITTERAE

Tratado da verdadeira devoção 14 O precioso Tratado do venerável São Luís Maria de Montfort (1673-1716) é in-
à Santíssima Virgem, dicado para os católicos que desejam viver consagrados a Cristo por meio da
de S. Luís Maria de Montfort devoção a Nossa Senhora; sendo leitura propícia sobretudo neste mês mariano.

DOMINUS VOBISCUM

Sobre a Ascensão 18 Este discurso de São Leão Magno (? - 461) nos instrui para o tempo vindouro
da Ascensão, a partir do comportamento dos santos apóstolos e discípulos ao
longo dos quarenta dias em que Nosso Senhor ressuscitado esteve entre eles.

YSTORIA SANCTI

Santo Atanásio 20 Em 2 de maio, a Liturgia lembra Santo Atanásio (29?-373), bispo de Alexandria
e doutor da Igreja, que personificou a ortodoxia no combate à crise dogmática do
polêmico século IV, marcado por graves heresias e perseguições aos cristãos.

EUTRAPELIAM

Ato de Consagração 23 Em honra ao mês mariano de maio e ao dia de Nossa Senhora de Fátima, e no
propósito de incentivar as consagrações, publicamos o Ato de Consagração a
Nosso Senhor Jesus Cristo pelas mãos de Maria, Sua Mãe Santíssima.
FIDES QUAERENS INTELLECTUM

SÃO JOSÉ:
AMANTE DA POBREZA,
MODELO DOS OPERÁRIOS
BRUNO VIEIRA

Num tempo em que alguns dos pastores da Igreja as tenha e, se não as tem, não as busca ansiosa-
exaltam a pobreza material como o caminho para a mente, sofrendo com resignação a perda ou retirada
salvação e a riqueza como vereda oposta, o exem- delas.
plo de São José deve ser observado, a fim de res- Por sua vez, ensina o Florilégio de São José :
gatar o verdadeiro significado evangélico da po-
breza e do trabalho. a ninguém é vedado possuir bens temporais, e a
riqueza pode ser até uma fonte de mérito, quando
De fato, o Patriarca de Nazaré era desprovido de
dela desprendido o coração, os ricos a empregam
grandes valores e bens. Mas essa pobreza que lhe
em socorro dos necessitados e alívio dos que pa-
distinguia, para além de puramente financeira, era decem, pois isso está na ordem da Providência,
sobretudo espiritual, como o bem-aventurado das quando distribui os seus dons. [2]
palavras de Nosso Senhor no Sermão da Monta-
nha: “Bem-aventurados os pobres de espírito, por- Não nos enganemos: os bens deste mundo, os
que deles é o Reino dos céus” (S. Mt 5,3). bens humanos, não são, por si, maus, já que Deus
Nesse ponto, São Pio X, no Catecismo Maior [1], os criou, e tudo o que Ele fez e faz é bom. Entre-
ensina que o pobre de espírito é aquele que tem o tanto, é a idolatria que sobressai do apego a eles
coração desapegado das riquezas; faz bom uso caso que vem a ser condenada por Nosso Senhor (cf. S.

3
Mt 6,24), ratificando o ensino eterno do Pai (cf. Sl “ter o Reino dos Céus”, mas é necessária a dispo-
62,10; Ecl 5,10-11). Nessa linha, o Catecismo Ro- sição de alma que é acessível a todos os homens,
mano ensina que: pobres ou ricos.
Ademais, a vida pobre e resignada de São José e
Devemos pedir e desejar esses bens humanos, ou de Maria Santíssima era propícia ao nascimento do
porque assim o requer a disposição de Deus; ou
Salvador. Como ensina o Pe. Maurício Meschler
porque eles nos são necessários, para conseguir-
[6], Deus dispôs os sofrimentos vivenciados pela
mos os bens divinos, enquanto nos servem de ins-
trumentos para chegarmos ao fim que nos é pro- descendência de Davi de forma que a levou à po-
posto – o Reino e a glória do Pai Celestial – pela breza; e, como destaca o Florilégio [7], estavam
fiel observância dos Mandamentos, que são para nos desígnios da Providência a pobreza e a humil-
nós a expressa manifestação da vontade de Deus.
dade materiais em meio as quais apareceria o Re-
[3]
dentor neste mundo, para que maior fosse seu
triunfo e ainda mais brilhassem Sua glória e ma-
Afasta-se da santa conduta, portanto, o acúmulo
jestade.
desmedido de bens, com o único intuito de usufruir
Eis a glória de São José: virtude e santidade que,
do que é terreno e ignorar o que é eterno; porque o
decorridas do Eterno Rei, honraram-No até mesmo
sábio acumula tesouros no Céu, “onde a traça e a
na pobreza e na humilhação. Tudo sofreu e aceitou
ferrugem não destroem, e onde os ladrões não ar-
por amor de Cristo, aderindo aos desígnios da Pro-
rombam nem furtam” (S. Mt 6,20).
vidência, que queria que o Salvador nascesse no
É que, como já mencionávamos em artigo ante-
meio da resignada família de Davi; e, sendo rico,
rior [4], a virtude e a santidade prevalecem sobre a
fizesse-se pobre por nós, a fim de nos enriquecer
pobreza material ou sobre seu oposto, privilegi-
por Sua pobreza (cf. II Cor 8,9).
ando-se a mortificação da alma, a fim de que, en-
Sabia nosso Santo que
tregue ela a Deus, e dominada a carne, nada da
Terra lhe tire do caminho do Céu. ou Deus atende o que Lhe pedem, e assim [os fiéis]
Ensina S.S. o Papa Leão XIII que: alcançam a satisfação de seus desejos; ou não
atende, e nisso vai a certeza absoluta de não ser
Quem tiver na sua frente o modelo divino, com- salutar, nem proveitoso, o que Deus nega aos bons
preenderá mais facilmente o que nós vamos dizer: cristãos. Pois Deus cuida mais de sua salvação, do
que a verdadeira dignidade do homem e a sua ex- que eles próprios o poderiam fazer. [8]
celência reside nos seus costumes, isto é, na sua
virtude; que a virtude é o patrimônio comum dos Mortificada, então, a descendência real, pôde
mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e dos
Nosso Senhor nascer, efetuando nossa redenção
grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os
não apenas no seio da linhagem real, mas unindo-
méritos, seja qual for a pessoa em quem se encon-
trem, obterão a recompensa da eterna felicidade. se com uma outra família, muito mais extensa: “o
[5] gênero humano todo, pobre, necessitado, sujeito à
lei do trabalho cotidiano” [9].
Em suma: ser pobre de recursos não significa vir- Nessa esteira, e neste mês que se inicia com a
tude, e a riqueza de alguém não indica uma vida Festa de São José Operário, ou Artesão, convém
entregue ao pecado. Assim, não basta que alguém traçar algumas linhas sobre a importância e o real
seja desprovido de grandes quantias e/ou bens para sentido do trabalho na vida humana.

4
Para além de apenas fornecer ao homem um sa- na linha do dever, pela conformidade com a von-
tade de Deus. [12]
lário, e com isso sua subsistência, o trabalho traz
consigo não a desonra, mas o enobrecimento dos
Por meio da revolta contra a ordem, essas doutri-
homens, quando se entrelaça com a prática das vir-
nas e correntes prometem a soberania econômica.
tudes [10]. Como as mãos devem ser empregadas
O rico explora mais seu empregado; e sob a ilusão
no trabalho, assim também a alma deve ser entre-
de vencer a opressão do patrão e ser senhor de si
gue a Deus, a fim de que cada gota de suor dispen-
mesmo, o operário se torna ainda pior que o mais
dida se transforme numa pérola celeste de mereci-
injusto dos senhores, pois oprime a própria alma
mento e glória [11]. Por isso, o exemplo de São
com a vingança, a inveja e a ganância. Ambos vo-
José surge como um modelo: ninguém melhor que
luntariamente trocam o “ópio da religião”, que
o homem que serviu de mestre ao Divino Aprendiz,
educa para a salvação, pelo ópio da revolução, que
Nosso Senhor Jesus Cristo, e ensinou-O um ofício,
aliena para o esvaziamento do espírito e a perdição
tornando-O “o Filho do carpinteiro” (S. Mt 13,55).
eterna, como o rebanho guiado pelo mercenário (S.
Contudo, o aperfeiçoamento espiritual pelo tra-
Jo 10,12-13).
balho, cerne da vida social cristã, tem sido distor-
Como ensina o Papa Pio XI, a sociedade, movida
cido, nos últimos séculos, pelas mais diversas ide-
por esses ideais, seria
ologias, sobretudo as econômicas, que imputam
nos homens uma visão materialista da realidade.
uma coletividade, sem outra hierarquia mais do
Por consequência, estabelece-se a cizânia entre os que a derivada do sistema econômico. Teria por
filhos de Deus, que, enganados pela fábula liberal missão única a produção de riqueza por meio do
ou socialista, reduzem a realidade a uma luta de trabalho coletivo, e único fim o gozo dos bens da
classes, cujos pilares eugenistas e revolucionários terra num paraíso ameníssimo de delícias onde
cada qual ‘produziria conforme as suas forças e
não participam de outra coisa senão do mistério da
receberia conforme as suas necessidades’. [13]
iniquidade.
Adverte o Florilégio: O conjunto de doutrinas revolucionárias

O gênio do mal, sagaz e astuto na escolha dos


despoja o homem da sua liberdade na qual consiste
meios de levar avante a sua obra nefasta de per-
a norma da sua vida espiritual; e ao mesmo tempo
versão moral e social, veio insuflar na grande
priva a pessoa humana da sua dignidade, e de todo
massa dos operários, o seu ódio secular contra Je-
o freio na ordem moral, com que possa resistir aos
sus Cristo e sua Igreja, contra a religião e seus mi-
assaltos do instinto cego. [14]
nistros, contra a ordem e a paz da vida social.
Sendo incalculável o número dos deserdados da
É nesse contexto que a Igreja envidou esforços
sorte, que devem granjear a subsistência com o
trabalho de suas mãos, com o suor de seu rosto, é para retirar o significado revolucionário do 1º de
uma perfídia, uma perversidade explorar essa du- maio, buscando, com grande ânimo,
reza de vida, para semear a revolta entre as classes
operarias contra a ordem social. E como o funda- a reconquista das massas que as correntes esque-
mento de toda a ordem está na religião, que acon- cidas de Deus procuraram escravizar, fazendo do
selha a resignação, a paciência e a conformidade homem um autômato, uma simples máquina, nele
em qualquer situação da vida por mais penosa que vendo não aquilo que verdadeiramente faz o ho-
seja, daí procede a guerra contra essa religião de mem - a alma - mas o que poderá proporcionar
paz e de amor, única que pode manter os homens materialmente. [15]
5
Com merecimento, São José deve ser exemplo
Com isso, a festa de São José Artesão visa dar para todos os trabalhadores.
nova fisionomia ao dia do trabalhador, transfor-
mando-o em um dia de celebração cristã, e não de
agitação sindical ou insurreição, de desassossego e Fontes:
de ódio [16]. Como salientado por Pio XII,
[1] Cf. Catecismo Maior de São Pio X: terceiro catecismo
da doutrina cristã. Niterói: Permanência, 2010, p. 145-146.
é certo que nenhum trabalhador jamais foi tão per-
[2] ESCOLAS PROFISSIONAES SALESIANAS. Florilé-
feita e profundamente penetrado por ele [o Espírito
gio de São José: breves meditações para o mez de março
do Evangelho] como o pai putativo de Jesus, que
(sic.). São Paulo, 1911, p. 6.
viveu com Ele na mais estreita intimidade e co-
[3] Catecismo Romano. Nova versão portuguesa baseada
munidade de família e trabalho. Assim, se queres
na edição autêntica de 1566, pelo Frei Leopoldo Pires Mar-
estar perto de Cristo, também hoje repetimos ‘Ite
tins, OFM, 1950, p. 537.
ad Ioseph’: Ide a José! [17]
[4] São José: filho de Davi, Luz dos Patriarcas. Em: Revista
Benedicta, Uberlândia, v.2, n.1, jan. 2021. p. 3-5.
Cabe-nos apenas, e sem mais delongas, entregar
[5] LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum – sobre a
a Deus nossa vida e nosso trabalho, a fim de que, condição dos operários. Disponível em: http://www.vati-
através dele possamos granjear méritos no céu e, can.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-
transformando a rotina cotidiana num hino de lou- xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html#_ftnref18.
[6] MESCHLER S.J., Pe. Maurício. São José na vida de
vor ao Pai, agarremo-nos em prece ao Santo Pa-
Cristo e da Igreja. Transcrição disponível em: https://ale-
triarca, a quem foi consagrado este ano e também
xandriacatolica.blogspot.com/2014/03/o-livro-recem-pos-
a festa do primeiro dia deste mês. Sem qualquer tado-no-almas-devotas.html.
escrúpulo, tomemo-lo por nosso companheiro nas [7] op. cit., p. 65.
labutas diárias, ele que, mais do que ninguém, co- [8] Catecismo Romano, p.546.
[9] Cf. MESCHLER S.J., Pe. Maurício. Op. cit.
nheceu a responsabilidade do trabalho, principal-
[10] LEÃO XIII. Carta Encíclica Quamquam Pluries. 1889.
mente ao ter por aprendiz o Menino-Rei, o Filho
In: LÉPICIER, O.S.M., Cardeal Alexis Marie. São José,
de Deus, e, através de seus labores, conceder-Lhe Esposo da Santíssima Virgem Maria. 1ª ed. Campinas: CE-
a dignidade material. DET/Ecclesiae, 2014. p. 303-308.
[11] Florilégio de São José, p. 69.
[12] idem, p. 67.
[13] PIO XI. Carta Encíclica Divini Redemptoris – sobre o
comunismo ateu. Disponível em: http://www.vati-
can.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-
xi_enc_19370319_divini-redemptoris.html. Item 12.
[14] idem, item 10.
[15] PADRE ROHRBACHER. Vida dos Santos. Volume
VIII, São Paulo: Editora das Américas, 1960, p.43.
[16] idem.
[17] PIO XII. Discurso por ocasião da Festa de São
José Operário. 1º de Maio de 1955. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/pius-xii/it/spee-
ches/1955/documents/hf_p-xii_spe_19550501
_san-giuseppe.html. Tradução livre.

6
O HOMEM QUE
FUGIA
DE PADRE PIO
JOSÉ CARLOS ZAMBONI

A relação do Padre Pio com artistas e escritores


italianos contemporâneos revela aspectos dignos
de consideração sobre a própria relação da Igreja
com um front importante da modernidade em seu
combate à moral cristã: o mundo da cultura e do
espetáculo.
Nomes famosos do chamado “showbiz” foram
atraídos e convertidos pelo frade de Pietrelcina,
como o cantor lírico Beniamino Gigli, o ator Carlo
Campanini, o cantor Lucio Dalla, entre outros. Vá-
rios escritores e jornalistas — alguns por fé, outros
movidos por simples curiosidade — quiseram co-
nhecer aquele homem, cuja fama se espalhava pelo
mundo, e se dirigiram a San Giovanni Rotondo, o suicídio.
como os romancistas Ricardo Bacchelli, Guido Pi- Graham Greene nasceu, em 1904, na pequena ci-
ovene, Giovanni Battista Angioletti, Piero Bargel- dade histórica de Berkhamsted, na região leste da
lini, Antonio Baldini. Até o célebre D’Annunzio, Inglaterra. Foi jovem para Londres e estudou em
em certa altura de sua vida, mostrou interesse pela Oxford. Aos vinte e um anos, em 1926, conheceu
figura do Padre Pio. aquela que seria sua esposa, Vivien Dayrell-
Fora do âmbito nacional do Padre Pio, merece ser Browning, jovem de vinte anos que, quatro anos
conhecida a paradoxal ligação do grande roman- antes, tinha escandalizado a própria família ao dei-
cista Graham Greene com o santo italiano. O es- xar o anglicanismo e fazer a profissão de fé cató-
critor inglês, sempre catalogado entre os maiores lica. Ela teve um desenvolvimento intelectual pre-
romancistas católicos do século XX, experimentou coce e aos treze anos já publicava seu primeiro li-
a depressão desde a infância e teve uma vida espi- vro, prefaciado por ninguém menos do que Ches-
ritual atormentada (suas duas autobiografias o tes- terton, que era amigo da família.
temunham). Gostava de uma frase de Thomas No início do relacionamento com a católica Vi-
Browne, que exprimia a sua própria luta interior: vien, o agnóstico Graham sentiu a necessidade in-
“Há um outro homem, dentro de mim, que está telectual de conhecer melhor a fé professada pela
zangado comigo”. E, de fato, tentou algumas vezes moça, e inscreveu-se, por esta única razão, numa
7
paróquia londrina para o curso de catequese. Con- O condenado (Brighton Rock,1938), O poder e a
tudo, após alguns encontros com o sacerdote, já glória (The power and the Glory, 1940), inscre-
não tinha dúvidas sobre a plausibilidade lógica do vem-se na lista permanente dos grandes romances
catolicismo. contemporâneos.
E, assim, esse homem, intelectualmente conver- O permanente conflito interior de Graham Greene
tido, aceitou batizar-se na Igreja romana. Conta, — Deus existe ou não? —, aliado à bipolaridade
em sua autobiografia, que quando foi recebido na psíquica, fez de sua vida um verdadeiro inferno,
Igreja, não se sentiu tocado emocionalmente, mas mas, é preciso reconhecer, foi a matéria-prima pri-
apenas intelectualmente convicto da verdade cató- vilegiada de seus romances carregados de verda-
lica. Praticava formalmente a religião: ia à Missa deira humanidade, nos quais o ser humano apare-
aos domingos, confessava-se mais ou menos uma ce por inteiro, corpo e espírito, ao contrário da
vez ao mês e, nas horas vagas, lia sempre com in- maioria de seus colegas de ofício, que ideologica-
teresse os teólogos, ora fascinado, ora com repulsa. mente tendiam a reduzir o comportamento humano
Foi nesse contexto que ele e Vivien se casaram, a algo por demais simplificado, à margem da rea-
tiveram dois filhos e permaneceram juntos por lidade sobrenatural.
vinte anos, de 1927 a 1947. Quando Graham pediu No ensaio “Graham Greene & o estigmatizado”,
o divórcio, a católica Vivien recusou, e eles per- publicado no prestigioso “The New York Review
maneceram oficialmente casados até 1991, quando of Books”, o jornalista americano Kenneth L. Wo-
o marido morreu, depois de mais ou menos trinta odward faz algumas revelações interessantes sobre
anos de relacionamento com Yvonne Cloetta, sua a relação do escritor inglês com a Igreja e, em es-
última amante. pecial, com o Padre Pio, a partir de uma carta que
Graham Greene deixava, então, uma obra literária recebeu do próprio Greene.
das mais respeitadas, no terreno da ficção. Alguns Nessa carta, o escritor deixava transparecer que
de seus romances, entre as dezenas que publicou, seu interesse por Padre Pio não vinha só dos seus
como O cerne da questão (The Heart of the Matter, misteriosos estigmas (que o obrigava a usar cura-
1948), Fim de caso (The End of the Affair, 1951), tivos semelhantes a faixas de algodão para estancar

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o sangramento das mãos), embora Greene se ad- mas é claro que elas não conseguiam escondê-los.
Provavelmente não podia usar luvas. Eu tinha sido
mirasse daquele sangue que vazava, estancava e
avisado que a Missa dele era muito longa, por isso
voltava a correr. Assombrava-o muito mais a ca-
fiquei surpreso ao verificar que estava na média
pacidade do frade capuchinho de “ler corações”, em termos de duração…. Fiquei ainda mais sur-
conhecendo a vida íntima dos que o procuravam preso quando saímos da igreja e descobri que eram
antes que abrissem a boca, fosse no confessionário sete horas, sem ter ideia de como esse longo perí-
odo de tempo tinha passado. (Carta a Kenneth L.
ou fora dele.
Woodward)
Na mesma carta ao jornalista Woodward, Greene
fala ainda de suas experiências com a Missa do Pa-
Nessa mesma carta, o escritor também revelava a
dre Pio, provavelmente no final dos anos cin- sua admiração pelo papa Pio XII, a quem conhe-
quenta. Greene, então já separado de sua esposa, ceria mais tarde e, em sua opinião, entraria para a
esteve em San Giovanni Rotondo com a sua
História como um dos maiores papas de sempre.
amante da época, Catherine Walston, e esperava Dos dois Pios, porém, o autor inglês preferia cla-
ser recebido pelo frade, que era amigo de um
ramente o frade capuchinho, apesar do que tinha
grande amigo seu, o marquês Patrizzi.
ouvido, em Roma, a respeito do futuro santo, sobre
O encontro estava marcado para a noite, no mos- o qual um monsenhor do Vaticano lhe havia dito
teiro. Na hora combinada, porém, Greene arranjou
que não passava de “uma velha e piedosa fraude”.
uma desculpa qualquer para não ir. Explicou, de- Greene deixava claro que não compartilhava da-
pois, que ele e sua amante (também católica) não quela opinião.
queriam que suas vidas mudassem. Padre Pio, que
Em 1960, num escrito intitulado “Duas missas”,
certamente nunca leu um romance de Graham Gre- escreveu Graham Greene, a propósito daquela vi-
ene, mas sabia ler a alma dos interlocutores como agem à Itália:
nenhum psicólogo, seguramente “leria”, no cora-
ção do escritor e de sua amante, a situação peca- Certa vez, um visitante, em resposta a uma per-
minosa em que viviam, e exigiria (não se sabe se gunta formal do Papa, disse que havia duas missas
com bons modos) que deixassem de uma vez das quais ele sempre se lembraria.

aquela vida. Uma delas tinha sido às cinco e meia da manhã,


num altar secundário do pequeno convento fran-
No entanto Greene conta que, no dia seguinte, ele
ciscano de San Giovanni Rotondo, na nua provín-
e Catherine acordaram de madrugada para ir à cia meridional da Puglia, quando a hóstia foi er-
Missa de Padre Pio: guida pelas mãos do Padre Pio.
A outra missa memorável foi a Missa Jubilar do
Na época, ele não estava autorizado a celebrar a Papa, em Roma, com a enorme multidão amonto-
missa no altar-mor, mas apenas em um pequeno ada na Basílica de São Pedro, homens e mulheres
altar lateral, e ele teve que dizer sua missa às 5:30 que exultavam e choravam enquanto o Papa en-
da manhã. Havia apenas algumas mulheres do lado trava pela nave da igreja, com jovens atirando bo-
de fora dos portões do mosteiro esperando que nés pelo ar. Via os seus belos traços transparentes,
abrissem e, durante a missa, estávamos a cerca de como que impressos sobre uma medalha, apare-
um metro e oitenta de distância dele. As mulheres cendo e desaparecendo pelo caminho, o braço er-
foram imediatamente ao confessionário quando a guido numa benção resoluta, o sorriso que reve-
missa acabou, onde ele ficou até a hora do almoço. lava um profundo afeto. Depois, o Papa sozinho
Durante toda a missa, ele tentou esconder os es- no altar, quando os cardeais que o assistiam se
tigmas, puxando as mangas até o meio das mãos, afastaram; e que se movia com graça e precisão
9
em todas as partes da missa, fazendo o que cada Não era este que prometia ficar rezando na por-
sacerdote faz todos os dias, como servo dos servos
taria do Céu, sem entrar, esperando que por ele
de Deus.
passasse o último de seus filhos espirituais? Temos
Mas como é diferente a santidade sob os afrescos
de contar com a possibilidade do santo frade do
de Michelangelo, entre a multidão que aplaude
através das audiências diárias, e naqueles campos Gargano ter intercedido, nos últimos momentos de
pedregosos da Puglia, onde o Padre Pio está con- vida, por esse seu filho espiritual cuja experiência
finado! Esta é a força da Igreja na Itália, que per- de fé nunca foi tranquila, sempre atormentado pe-
mite semelhantes extremos, na qual o mesmo Es-
las dúvidas e presunções da modernidade.
pírito possa ser encontrado num homem que se
ajoelha em meio a uma pequena multidão, na ma-
drugada de um pobre convento franciscano, e nou-
tro homem exaltado pelas grandes multidões en- Fontes:
tusiasmadas em São Pedro.
MOTTA, Antonio. Scrittori per Padre Pio. Novara:
Enfim, não se deve perguntar: ‘Como poderá so-
Edizione Interlinea, 1999.
breviver uma instituição como a Igreja?’. A per-
GREENE, Graham. Pontos de fuga. Trad. de Sônia
gunta correta é outra: ‘Como poderia ser derrotada
Coutinho. Rio de Janeiro: Record, 1980.
uma Igreja como essa?’
GREENE, Graham. Quase uma vida. Trad. de Jorge.
A. Fortes. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
Apesar de, no período final de sua vida, aos oi- WOODWARD, Kenneth L. Graham Greene & the
tenta anos, Greene se dizer um “católico ateu ou stigmata. Em: The New York Review, 10/02/2005. Dispo-
nível em: https://www.nybooks.com/arti-
agnóstico”, o certo é que ainda insistia em carregar
cles/2005/02/10/graham-greene-the-stigmata/
em sua carteira uma fotografia do Padre Pio.

10
SÃO PEDRO,
PRIMEIRO PAPA DA IGREJA
(PARTE II)
MARCOS DOMINGUES
11
Apesar da evidente autoridade de chefe dos após- crucificado. Ele ressuscitou, já não está aqui. Eis o
tolos que Nosso Senhor outorgou a São Pedro, lugar onde o depositaram. Mas ide, dizei a seus
como vimos na Parte I deste texto [1], os protes- discípulos e a Pedro que ele vos precede na Gali-
tantes e demais seitas insistem em negar a sua pri- léia. Lá o vereis como vos disse” (S. Mc 16,6-7).
mazia, recorrendo a infindáveis subterfúgios. Mas 5. Nos Atos dos Apóstolos vemos a liderança de
para que fique ainda mais claro, citaremos mais al- São Pedro. No capítulo 4, sob inspiração do Espí-
guns fatos extraídos das Escrituras para provar que, rito Santo, ele responde pela Igreja quando inter-
de fato, São Pedro se apresentava como o líder da rogado pelos chefes dos judeus. No capítulo 5, ele
cristandade nascente. Eis alguns desses fatos: julga com autoridade única Ananias e sua mulher.
1. Nas Escrituras, o nome de São Pedro é citado No capítulo 10, o anjo diz ao centurião convertido
em maior quantidade: são 190 menções, seguido de para que procure São Pedro, e ele, estando na casa
São João, com 29 menções; os nomes de todos os do centurião, ensina com autoridade os artigos da
apóstolos combinados somam 130 citações. Só no fé, estabelecendo a necessidade do batismo.
livro dos Atos dos Apóstolos, por exemplo, São 6. Lemos nas Escrituras um incrível paralelo entre
Pedro é citado 56 vezes. o Rei Davi, chefe do povo judeu (prefigura da
2. Em algumas passagens os apóstolos são lista- Igreja), e São Pedro, chefe do povo católico. No
dos, e o nome de São Pedro é sempre mencionado Antigo Testamento, na ocasião do Concílio de Je-
primeiro, e Judas por último (cf. S. Mc 3,16-19; S. rusalém, Davi se levanta em meio ao Concílio: “E
Lc 6,13-16). Na lista dos apóstolos em S. Mt 10,2, pôs-se o rei Davi em pé, e disse-lhes...” (I Cr
São Pedro é referido literalmente no grego como 28,2), e então confirma sua autoridade: “O Senhor,
protos (πρῶτος), que significa primeiro, chefe, Deus de Israel, escolheu-me [ἐξελέξατο] de toda a
principal: “Eis os nomes dos doze apóstolos: o pri- casa de meu pai para ser rei de Israel para sempre”
meiro, Simão, chamado Pedro; depois André, seu (I Cr 28,4). Da mesma forma, no Novo Testa-
irmão. Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão mento, São Pedro se levanta em meio ao Concílio
[...]” [2]. de Jerusalém: “Ao fim de uma grande discussão,
3. Em algumas passagens, São Pedro é mencio- Pedro levantou-se e lhes disse...” (At 15,7), e
nado pelo nome, enquanto que os outros apóstolos como Davi, confirma sua autoridade: “Irmãos, vós
são mencionados como aqueles que estão com Pe- sabeis que já há muito tempo Deus me escolheu
dro: “Ao ouvirem essas coisas, ficaram compungi- [ἐξελέξατο] dentre vós, para que da minha boca os
dos no íntimo do coração e indagaram de Pedro e pagãos ouvissem a palavra do Evangelho e cres-
dos demais apóstolos: Que devemos fazer, ir- sem” (Atos 15,7). Vemos que São Pedro age e fala
mãos?” (At 2,37); “Pedro e os apóstolos replica- muito similarmente a Davi, usando a mesma pala-
ram: importa obedecer antes a Deus do que aos ho- vra exelexato (ἐξελέξατο) para indicar a autori-
mens” (At 5,29); “Simão [Pedro] e os seus com- dade com que fora escolhido por Deus para presidir
panheiros saíram a procurá-lo” (S. Mc 1,36); “En- aquele Concílio.
tretanto, Pedro e seus companheiros tinham-se 7. Num outro paralelo (e é importante nos aten-
deixado vencer pelo sono” (S. Lc 9,32). tarmos a eles, pois que no Antigo Testamento estão
4. O anjo menciona São Pedro destacado dos de- muitas figuras do Novo Testamento) lemos que o
mais apóstolos: “Ele [o anjo] lhes falou: Não te- Rei Davi confiou o Templo de Jerusalém a seu fi-
nhais medo. Buscais Jesus de Nazaré, que foi lho Salomão: “É Salomão, teu filho, disse-me ele,
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que construirá minha casa e meus átrios, porque eu Para além das Escrituras, temos ainda os textos
o escolhi por filho e ser-lhe-ei um pai. Firmarei dos Pais da Igreja, que confirmam sem sombra de
para sempre seu reino, se ele continuar a cumprir, dúvida a primazia do Bispo de Roma, sucessor de
como hoje, meus mandamentos e minhas ordens” São Pedro, como o chefe da cristandade. Desde o
(I Cr 28,6-7). Da mesma forma Jesus Cristo confia começo se recorria à Sé de Pedro nos momentos de
sua Igreja a São Pedro: “E eu te declaro: tu és Pe- dúvida e disputas sobre questões de fé e moral, e
dro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as as decisões do Papa sempre foram obedecidas
portas do inferno não prevalecerão contra ela” (S. como definitivas. Os cismáticos e hereges, desejo-
Mt 16,18). sos de romper com a essa autoridade petrina, para
8. Ainda temos um outro paralelo entre o Pri- seguir suas consciências orgulhosas e incutir novas
meiro Ministro do Rei de Israel, aquele que car- doutrinas, perderam-se todos. Os cismáticos se
regava literalmente as chaves do reino em seu pes- tornaram igrejas nacionais, governadas doutrinal-
coço, e o chefe dos apóstolos, São Pedro, a quem mente pelos príncipes sem nenhuma autoridade
Nosso Senhor outorgou a mesma autoridade de doutrinal, caindo em heresias. Os protestantes, si-
Primeiro Ministro de sua Igreja e deu as chaves do milarmente, iludidos de que podiam reformar a
Reino dos Céus, do qual o Reino de Israel era uma Igreja separando-se da sua cabeça visível que é o
prefiguração. Vejamos: “Naquele dia chamarei Papa, formaram um antro de hereges e saqueadores
meu servo Eliacim, filho de Helcias. Revesti-lo-ei dos bens da Igreja, e por onde se instauraram des-
com a tua túnica, cingi-lo-ei com o teu cinto, e lhe truíram a fé cristã, colocando no lugar um simula-
transferirei os teus poderes; ele será um pai para os cro de cristianismo que nada mais é que um filo-
habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá. Porei judaísmo para “gentios”. Por isso, entendemos que
sobre seus ombros a chave da casa de Davi; se ele a negação de São Pedro como chefe dos apóstolos
abrir, ninguém fechará, se fechar, ninguém abrirá” e primeiro Papa da Igreja é uma das raízes da Re-
(Is 22,20-22). E então comparemos: “E eu te de- volução que o Anticristo move contra a Igreja
claro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a desde o início. Nós, católicos, devemos lutar para
minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão que a memória dos Santos Papas não se apague e
contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos céus: para que os dogmas que proclamaram, que signifi-
tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e cam a confirmação da fé exigida por Nosso Senhor
tudo o que desligares na terra será desligado nos a São Pedro, mantenham-se firmes, como susten-
céus” (S. Mt 16,18-19). Trata-se de um inegável táculos da verdade, para a manutenção da pureza
paralelo entre a religião da Antiga Aliança e a re- da doutrina de Cristo.
ligião da Nova Aliança.
Como vemos, as Escrituras mostram São Pedro
sempre liderando os apóstolos e tomando a inicia- Fontes:

tiva das ações, como quando saltou da barca para


[1] São Pedro, primeiro Papa da Igreja (Parte I). Em: Re-
andar nas águas até Nosso Senhor (cf. S. Lc 5,1-
vista Benedicta, Uberlândia, v.2, n.3, mar. 2021. p. 10-13.
11), ou quando foi repreendido por Nosso Senhor [2] Gingrich, F. W.; Frederick, W. D. Léxico do Novo Tes-
no lava-pés (cf. S. Jo 13,1-17), ou quando foi o tamento: Grego/Português, 1984.
primeiro na pesca milagrosa a lançar-se nas águas
ao reconhecer Nosso Senhor (cf. S. Jo 21,1-14).
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CATHOLICAE LITTERAE

TRATADO
DA VERDADEIRA
DEVOÇÃO À SAN-
TÍSSIMA VIRGEM,
DE S. LUÍS MARIA
DE MONTFORT
CAMILA SEVERINO

Esta obra de S. Luís Maria de Grignion de Mon- Os artigos reunidos sob o primeiro capítulo tra-
tfort (1673-1716), descoberta por providência di- tam da necessidade da devoção a Virgem Maria. A
vina mais de um século após sua morte, e pouco princípio, sem precisão alguma, Deus quis servir-
tempo antes do Vaticano declarar todos seus escri- se por meio de Maria na Encarnação; e sendo imu-
tos isentos de erro (12/05/1853), é um clássico da tável, é de se crer que, pelos milênios seguintes,
literatura católica. Por meio dela, S. Luís condena não diminuísse Sua consideração por ela. Além
toda devoção a Deus esquecida de Sua Mãe San- disso, Deus Pai reuniu em Maria tudo o que havia
tíssima. Trata-se de um tratado mariano profunda- de precioso na criação, e nela encerrou Seu próprio
mente cristocêntrico, que se abre com esta funda- Filho. Por sua vez, comunicando-lhe no seio do-
mental constatação: “Foi por intermédio da Santís- méstico tudo o que adquiriria por Sua vida e morte,
sima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao isto é, os méritos infinitos e virtudes admiráveis,
mundo, e é também por meio dela que Ele deve Deus Filho fez de sua Mãe Santíssima a tesoureira
reinar no mundo” (p. 13). de Sua herança; assim como o fez Deus Espírito
Toda a vida, Maria permaneceu escondida e se- Santo, dispensando-a Seus dons inefáveis. Com
creta — Alma Mater —; sendo a discrição e a hu- isso, a Santíssima Trindade se serviu de Maria na
mildade os maiores traços dessa obra-prima do santificação das almas. Por consequência desse
Altíssimo, cujo conhecimento e domínio reservou agir divino, Maria é Rainha dos corações; é neces-
para Si. Hoje, quando Nossa Senhora é também in- sária aos homens para chegarem ao seu fim último
suficientemente conhecida, é porque Cristo tam- — a salvação ou algum chamado de perfeição par-
bém não é conhecido como deve ser; e isso tudo ticular —, especialmente, nos últimos tempos.
significa que ela O deu ao mundo a primeira vez, e Encontram-se no capítulo dois as verdades fun-
no Reino porvir, fá-Lo-á novamente resplandecer. damentais circunscritas à devoção a Santíssima
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Virgem. A primeira verdade é que Jesus Cristo é o Senhora deve ser, portanto: interior, parte do cora-
fim último da devoção a ela; Jesus esteve sempre ção; terna, confiante na Virgem Mãe; santa, reso-
com Maria e ela, sempre com Ele, sendo, portanto, luta contra o pecado e adepta das virtudes; cons-
digna de devoção, e indigno de graça aquele que a tante, sem deixar-se dominar por nada que abale a
ofender. A segunda verdade é que pertencemos a firmeza da devoção e; desinteressada, feita por
Jesus e a Maria na qualidade de escravos, pois amor.
tendo sido inseparável de Sua Mãe aqui na terra, As práticas que acompanham a verdadeira devo-
deu-lhe relativamente Sua majestade; portanto, ção podem ser didaticamente divididas em interi-
devemos oferecer a eles todas as nossas ações e ores e exteriores. As interiores consistem no culto
pensamentos. Escravos não porque somos Suas de hiperdulia (honrá-la sobre todos os santos, a
criaturas, e muito menos por constrangimento — primeira depois de Jesus Cristo); na meditação de
como os demônios e os réprobos —, mas sobretudo suas virtudes, privilégios e atos; na contemplação
por livre-arbítrio, como os justos e os santos. A de suas grandezas; em dedicar-lhe atos de amor,
terceira verdade consiste na necessidade de despo- louvor e reconhecimento; na invocação cordial; no
jar-nos do que há de mau em nós: nosso fundo de oferecer-se e unir-se a ela; ter a intenção de agra-
maldade, nossa incapacidade para todo bem, nossa dar-lhe em todas as ações; começar, continuar e
fraqueza em todas as coisas, nossa inconstância em acabar todas as ações por ela, nela, com ela e para
todo tempo, nossa indignidade de toda graça e ela. Já as práticas exteriores abarcam a associação
nossa iniquidade em todo lugar. A quarta verdade a alguma confraria ou congregação; o ingresso em
é que necessitamos de um medianeiro junto ao alguma ordem instituída em sua honra; a publica-
próprio medianeiro que é Cristo, pois aproximar- ção de seus louvares; a esmola, o jejum e a morti-
mos diretamente da Suma Santidade sem uma re- ficação do espírito e do corpo em sua honra; trazer
comendação é um erro e grande falta de humildade. consigo suas insígnias, como o rosário ou terço, o
Por fim, a quinta verdade é que nos é muito difícil escapulário ou a cadeiazinha; recitar com devoção,
conservar a graça de Deus; coisa em que Nossa Se- atenção e modéstia o santo rosário ou terço, a coroa
nhora nos ajuda a perseverar. (em homenagem a seus anos de vida na terra) ou a
O terceiro capítulo trata da escolha da verdadeira coroinha (em honra a sua coroa de doze estrelas),
devoção a Santíssima Virgem, que se distingue ra- o ofício da Santíssima Virgem, o saltério composto
dicalmente das sete espécies de falsos devotos: os por São Boaventura; enfim, quaisquer outras ora-
críticos, que discriminam a devoção de boa-fé das ções, hinos e cânticos, como Salve Regina, Alma
gentes simples; os escrupulosos, que receiam de- Mater, Ave Regina caelorum ou Regina caeli (con-
sonrar o Filho honrando a Mãe; os exteriores, que forme os tempos litúrgicos), Ave, Maris Stella, O
fazem consistir toda a devoção em apenas práticas gloriosa Domina, Magnificat; fazer-lhe genufle-
exteriores, supervalorizando o sensível sobre o es- xões ou reverências várias vezes ao dia, dizendo-
pírito interior; os presunçosos, que dormem placi- lhe, pela manhã “Ave, Maria, Virgo Fidelis” e, à
damente em seus pecados e imperfeições, sem se noite “Ave, Maria, Mater Misericordiae”, para ao
violentarem para se corrigir; os inconstantes, tíbios longo do dia obter graças e ao fim do dia, o perdão
ou negligentes com as práticas da devoção; os in- dos pecados; ter zelo por suas confrarias, ornar
teresseiros, que recorrem a Virgem só para neces- seus alteres e imagens; fazer conduzir sua imagem
sidades pontuais. A verdadeira devoção a Nossa ou nome nas procissões, igrejas, casas, entrada de
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cidades; consagrar-se a ela de maneira especial e obediente à mãe e imitando, na medida de sua ca-
solene. pacidade, suas virtudes. A conduta de Jacó revela
O quarto capítulo instrui para a perfeita devoção muito da conduta diária dos que pretendem ser fi-
a Mãe de Deus ou a perfeita consagração a Jesus lhos de Maria: devem viver em casa com a Mãe,
Cristo. Começa-se pela entrega de si mesmo a ela, isto é, amarem e viverem o recolhimento, aperfei-
a fim de, por ela, pertencer inteiramente a Seu Fi- çoarem a vida interior e se aplicarem à oração; mas
lho. Isso significa dar-lhe os membros e sentidos sem absterem-se de sair ao mundo para cumprir o
do corpo, as potências da alma, os bens materiais dever de estado. Os réprobos dizem que amam Je-
presentes e futuros, e os bens espirituais — as vir- sus, que honram Maria, mas não com seus haveres
tudes e as boas obras. Também significa a renova- (cf. Pr 3,9), ao ponto de sacrificar-lhes os sentidos
ção dos votos batismais: a renúncia a satanás e a e as paixões, como fazem os predestinados. Por sua
sujeição a Cristo. vez, a Santíssima Virgem retribui como a melhor
No quinto capítulo são expostos os motivos para mãe: ama seus filhos, espreita-os, aconselha-os,
a devoção a Mãe de Deus. Primeiro: trata-se de purifica-os e prepara ao gosto de Deus; mantém-
uma consagração ao próprio Jesus Cristo. Se- los, condu-los, defende-os, protege-os e intercede
gundo: leva-nos a imitar Nosso Senhor, submisso por eles.
a Maria por trinta anos, e assim pertencer-Lhe Os efeitos produzidos por esta devoção à alma fiel
mais perfeitamente e praticar a humildade. Ter- são compilados no capítulo sétimo. A alma obterá
ceiro: proporciona-nos as boas graças de Nossa do Espírito Santo o conhecimento e o desprezo de
Senhora, pois ela se dá a quem é seu escravo, pu- si mesmo, e Nossa Senhora dará uma parte de sua
rifica nossas obras e as torna aceitáveis para seu incomparável fé. A Mãe amantíssima ainda alivi-
Filho. Quarto: contribui para a maior glória de ará nosso coração de todo escrúpulo e temor servil,
Deus. Quinto: conduz-nos à união com Nosso Se- a fim de alargar a graça do puro amor e a intimi-
nhor, sendo um caminho fácil, curto, perfeito e se- dade de filho. Ela encherá a alma de grande confi-
guro. Sexto: estimula a liberdade interior, tirando ança em Deus e nela. Para glorificar o Senhor, seu
da alma todo escrúpulo e temor servil e inspirando espírito habitará o devoto de tal modo que o Espí-
um amor terno e filial a Deus Pai. Sétimo: concede rito Santo, encontrando sua querida Esposa repro-
frutos para nosso próximo, vivo ou padecente no duzida nas almas, a elas descerá abundantemente.
purgatório. Oitavo: é um meio admirável de perse- Assim sendo cultivada em nossa alma, Maria,
verança na caminhada para o fim último, pois a Santo dos santos, dará seu fruto, que não é outro
Virgem é fiel e sustenta aqueles que nela se ape- senão Nosso Senhor Jesus Cristo. E galgando pelos
gam. prodígios de Maria, o maior efeito de todos será a
O sexto capítulo se ocupa em traçar um paralelo maior glória de Deus, haja vista que ela foi a cria-
entre Maria e Deus Filho e Rebeca e seus filhos tura que mais perfeitamente O glorificou.
Esaú e Jacó (cf. Gn 27). É consenso entre os Santos No oitavo e último capítulo, S. Luís enumera e
Padre que Jacó é figura de Jesus e dos predestina- melhor detalha as práticas exteriores e interiores
dos, enquanto Esaú, que nada fazia pela mãe e ven- próprias da devoção a Maria. Por exteriores, escla-
deu o próprio irmão mais novo, prefigura os répro- rece que se refere a práticas que contenham qual-
bos. Jacó, franzino, meigo e sossegado, permane- quer exterioridade, enquanto as interiores assim o
cia em casa o máximo possível, sendo submisso e são estritamente. Antes do ato da consagração,
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essas práticas devem participar do momento de Tais práticas exteriores não devem ser negligenci-
preparação, que consiste em ao menos doze dias adas ou desprezadas, mas feitas com comprometi-
para desapegar-se do espírito do mundo, e três se- mento na medida que o estado e as condições de
manas para encher-se de Nosso Senhor por inter- cada um o permitem. Àqueles que são chamados
médio da Santíssima Virgem. Na primeira semana, pelo Espírito Santo a mais alta perfeição, S. Luís
devemos pedir o conhecimento de nós mesmos e a acrescenta mais algumas práticas interiores, que
contrição de nossos pecados. Para tanto, convém consistem em fazer todas as ações por Maria, com
meditar sobre a miserável condição humana, Maria, em Maria e para Maria; a fim de fazê-las
acrescentando a recitação diária da ladainha do Es- mais perfeitamente por Jesus, com Jesus, em Jesus
pírito Santo; e recorrer a Maria para obter essas e para Jesus.
graças, dizendo-lhe diariamente o Ave, Maris A verdade teológica, caros leitores, é que nasce-
Stella e sua ladainha. Durante a segunda semana, a mos escravos de satanás. Por mais que lutemos
tarefa é conhecer a Santíssima Virgem, acrescen- para permanecer em estado de graça, há uma so-
tando às orações da primeira semana e ações coti- berba primordial que só pode ser abatida pela hu-
dianas o santo rosário ou terço. A terceira semana mildade primordial, da qual Nosso Senhor é Rei e
é empregada para conhecer Nosso Senhor, acres- Nossa Senhora, Rainha. Portanto, devemos mudar
centando-se às orações e práticas a ladainha do radicalmente de senhor, não apenas para sermos li-
Santíssimo nome de Jesus. Ao fim das três sema- vres do inimigo, mas por amor a Quem misericor-
nas, devemos nos confessar e comungar na inten- diosamente nos libertou. Aproveitemos o mês ma-
ção de nos darmos a Nosso Senhor na condição de riano de maio para consagrar-nos, considerando
escravos por amor, pelas mãos de Nossa Senhora. especialmente o método do Tratado.
Após a comunhão, cujo método consta no Tratado, S. Luís Maria de Montfort, rogai por nós!
devemos recitar a fórmula de consagração, assiná-
la e guardá-la.
Após a consagração, S. Luís aconselha a prática Edição resenhada:

diária da coroinha da Santíssima Virgem, o uso das


MONTFORT, SÃO LUÍS MARIA G. DE. Tratado da ver-
cadeias de ferro, a devoção especial ao mistério da
dadeira devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Vozes,
Encarnação, à Ave-Maria e ao terço; a recitação do
2018. 199p.
Magnificat e o desprezo e a fuga ao mundo iníquo.

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DOMINUS VOBISCUM

SOBRE A ASCENSÃO
SÃO LEÃO MAGNO

Depois da bendita e gloriosa Ressurreição de O Espírito da Verdade de forma alguma teria per-
Nosso Senhor Jesus Cristo, quando o divino poder, mitido que essa hesitação, agitada pela fraqueza
“em três dias, ergueu” o verdadeiro “templo” de humana, entrasse no coração de seus pregadores se
Deus que a maldade judaica tinha “destruído” (cf. suas tremendas inquietações e consequentes ques-
S. Jo 2,19; At 2,24 e 3,15) neste dia, caríssimos, o tionamentos não tivessem servido aos fundamentos
número dos quarenta dias sagrados está completo. de nossa fé.
Enquanto o Senhor prolonga o tempo de sua pre- Essencialmente, as dúvidas dos apóstolos repre-
sença corporal, nossa fé em sua Ressurreição é re- sentam as nossas próprias dúvidas - o perigo pri-
forçada pelos sinais necessários. Tudo isso foi pla- mordial. Com os apóstolos, fomos instruídos con-
nejado pela sagrada Providência e tornou-se útil tra as calúnias dos ímpios e as provas da sabedoria
para nossa instrução. terrena. Sua “visão” nos instruiu, sua “audição”
A Morte de Cristo perturbou consideravelmente o nos informou, seu “toque” nos fortaleceu (cf. I S.
coração dos discípulos. Oprimidos pela tristeza de Jo 1, 1-3). Devemos agradecer ao desígnio divino
Seu sofrimento na Cruz, de Seu último suspiro, do pela lentidão de espírito dos Santos Padres (cf. S.
sepultamento de Seu corpo sem vida, certa descon- Lc 24,25). Eles duvidaram para que não precisás-
fiança entorpeceu suas mentes. Quando as santas semos duvidar (cf. S. Mt 28,17).
mulheres, como nos conta a história do Evangelho, Esses dias, queridos filhos, entre a Ressurreição e
proclamaram que a pedra fora movida para fora do a Ascensão do Senhor, não passaram desproposi-
túmulo, que o sepulcro estava vazio do corpo e que tados. Neles se confirmaram grandes sacramentos
os anjos eram testemunhas do Senhor vivo (cf. S. e mistérios. Ao longo desses quarenta dias, o medo
Lc 24,1-11), suas “palavras pareciam” aos após- da morte foi aplacado e a imortalidade, não apenas
tolos e outros discípulos puro “absurdo” (cf. S. Lc da alma mas também da carne, foi assegurada.
24,11). Dentro desses dias, o Espírito Santo foi derramado
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em todos os apóstolos pelo “sopro” do Senhor (cf. estavam em dúvida quanto à fé em Sua Ressurrei-
S. Jo 20,22); e ao bendito Pedro acima de todos os ção, foram fortalecidos pela verdade manifesta. O
outros, conforme as “chaves do reino” (cf. S. Mt resultado foi que eles não apenas não foram afligi-
16,19), o cuidado das ovelhas do Senhor foi con- dos pela tristeza, mas ficaram cheios de “grande
fiado (cf. S. Jo 21,15-17). alegria” (cf. S. Lc 24,52) quando o Senhor subiu
Durante esses dias, o Senhor se juntou a dois dis- às alturas do Céu.
cípulos na estrada como um terceiro companheiro Foi uma grande e indescritível fonte de alegria
(cf. S. Lc 24,15), e, para dissipar toda a névoa de quando, aos olhos das multidões celestiais, a natu-
nossas dúvidas, repreendeu a lentidão de espírito reza de nossa raça humana ascendeu à dignidade
desses homens assustados e trêmulos (cf. S. Lc das criaturas celestiais, para ultrapassar as ordens
24,25). Iluminados, seus corações receberam a angélicas e ser elevada além das alturas dos arcan-
chama da fé, e esses, que eram mornos, tornaram- jos (cf. Ef 1,20-21). Em Sua Ascensão, o Filho não
se fervorosos quando o Senhor lhes “abriu as Es- parou em nenhuma outra altura a não ser na sede
crituras” (cf. S. Lc 24,26-27 e 32). E mais: ao do Pai Eterno, para ser associado ao trono glorioso
“partir” o pão, sentados com Ele à mesa, seus olhos Daquele a cuja natureza divina foi unido.
“são abertos” (cf. S. Lc 24, 30-31). Abriram-se os Haja vista que a Ascensão de Cristo é nossa ele-
olhos desses dois discípulos ante a glorificação de vação, e que a glória da Cabeça precedeu e deu es-
sua própria natureza, manifestada em Cristo, com perança ao corpo, exultemos, caríssimos, com ale-
muito mais alegria que os olhos daqueles primeiros gria e agradecimento. Hoje estamos estabelecidos
pais de nossa raça, diante das vergonhosas menti- não apenas como possuidores do Paraíso, mas até
ras. mesmo penetramos as alturas dos céus em Cristo,
Entre essas e outras maravilhas, quando os discí- preparados mais plenamente pela indescritível
pulos ardiam de ansiedade, o Senhor apareceu no graça de Cristo, que havíamos perdido por causa
meio deles e disse: “A paz seja convosco”; para da “má vontade do diabo” (cf. Sb 2,24). Aqueles
que o que revirasse seus corações não permane- que o violento inimigo derrubou da primeira mo-
cesse em seus pensamentos (cf. S. Lc 24, 36-38). rada, o Filho de Deus reergueu, incorporando-os
Ele preservou as feridas dos cravos e da lança (cf. em Si mesmo, à direita do Pai; o Filho de Deus que
S. Lc 24,39; S. Jo 20, 25-27) para curar os cora- vive e reina com Deus Pai Todo-Poderoso e com
ções dos incrédulos, de modo que, com prova evi- o Espírito Santo para todo o sempre. Amém.
dente, não uma fé hesitante, eles entendessem que
essa natureza que estava no túmulo subiria ao seu
lugar no trono de Deus Pai. Fonte:

Durante esse período entre a Ressurreição e a As-


SÃO LEÃO MAGNO. Sermão 73. Em: The Fathers of the
censão, caríssimos filhos, a Providência de Deus
Church: Vol. 93. Washington: Editorial Board, 1996. p.
pensou, ensinou e penetrou os olhos e corações dos 138-143 (tradução nossa).
apóstolos com isto: que eles deveriam reconhecer
o Senhor Jesus Cristo como verdadeiramente res-
suscitado, que verdadeiramente nasceu, sofreu e
morreu. Os abençoados apóstolos e todos os discí-
pulos que se assustaram com Sua Morte na Cruz e
19
YSTORIA SANCTI
SANTO
ATANÁSIO

Santo Atanásio, bispo de Alexandria (328-373) e


doutor da Igreja, nasceu, ao que parece, em Ale-
xandria, muito provavelmente entre os anos 295 e
298. Cresceu nesse centro cosmopolita, onde pro-
liferavam cristãos ortodoxos, arianos e melecianos,
e em cujos guetos viviam os judeus ao lado dos
pagãos adoradores do deus greco-egípcio Serápis,
misturados aos maniqueus e gnósticos. Da vida fa-
miliar, sabe-se apenas que foi instruído nas disci-
plinas cristãs e teve pouco estudo, apenas para não
ser considerado ignorante. Aos dezessete anos foi
escolhido pelo bispo Alexandre para ocupar o
cargo de leitor e, aos vinte e três anos, tornou-se
diácono e secretário episcopal. Na juventude, pas-
sou um tempo considerável sob a orientação de S.
Antão, a quem servia como discípulo. Já dirigente
da Igreja de Alexandria, retirava-se ao deserto,
saindo somente à noite para dirigir e consolar os
fiéis. Foi nesse noviciado que aprendeu a meditar
e imitar a Jesus Cristo. A vida retirante provavel-
mente foi determinante para moldar seu interesse
canônico e pastoral pelos assuntos teológicos. As
Escrituras Sagradas se tornaram ferramenta vital e
inspiradora nas mãos de S. Atanásio, como a ma-
téria-prima a um artesão. Provou-se prodigiosa a
lucidez de sua argumentação bíblica nos ensina-
mentos pastorais e sobretudo na condenação da he-
resia ariana e na definição solene do Credo, o qual
rezamos até hoje.
No polêmico século IV, marcado pelas disputas
intelectuais e teológicas, não raro de fundo polí-
tico, S. Atanásio destacou-se como o pilar da or-
todoxia. A principal controvérsia era sobre o rela-
cionamento entre Deus e Jesus Cristo; agitada pelo
20
crescente e insidioso arianismo. O heresiarca, pa- episcopado de quarenta e seis anos não foi senão
dre Ário, estudou em Antioquia e começou a pre- uma série contínua de provações e de perseguições
gar em Alexandria em 318. A principal tese dessa pela fé católica. Já exilado nas Gálias, já errante
heresia era que Cristo não era Deus, mas uma mera nos desertos do Egito, já refugiado em Roma, já
criatura, que embora fosse mais santo que nós, não foragido na sepultura de seu pai, sempre sustentou
era isento do pecado; tese da qual decorria que não a divindade de Jesus Cristo contra a impiedade dos
houve redenção. Devido a considerável perversão arianos. Lutou contra Ário e seus correligionários,
de clérigos pelas artimanhas de Ário, o assunto contra os cismáticos melecianos, contra o próprio
preocupou igualmente autoridades eclesiásticas e imperador Constâncio e, por vezes, contra certos
padres, que viam como parte integrante da santi- defensores tortos e intransigentes do símbolo de
dade a ética cristã de seus membros e a educação Nicéia.
correta dos leigos. Nesse ponto, o imperador Cons- Graves foram as investidas de Ário contra S. Ata-
tantino, mesmo sem ser batizado, temendo a cisão násio, já bispo de Alexandria. Ario acusou-o, num
política do império ameaçada pela crise entre ca- sínodo, de ter matado o bispo Arsênio, que estava
tólicos e arianos, convocou o Concílio de Nicéia. dado como desaparecido. Todavia, S. Atanásio sa-
No evento, a distinta contribuição de S. Atanásio bia que Arsênio estava no deserto e o levou ao sí-
foi na definição do propósito das Escrituras para nodo para provar sua inocência. Noutra ocasião,
esclarecer a relação entre Deus Pai e o Verbo En- Ário acusou-o de ter atacado uma freira, o que
carnado, destacando-se dos hereges e mesmo de também se provou mentira quando S. Atanásio pe-
outros apologistas pela constante “busca pela face diu a um amigo padre de mesmo nome que des-
de Deus”. mascarasse a freira (que não sabia qual Atanásio
Algum tempo após o Concílio de Nicéia, cele- devia acusar). Por fim, o heresiarca conseguiu acu-
brado em 325, os arianos, intrigantes e bajuladores, sar o patriarca de Alexandria de sabelianismo, que
principiaram a envolver em artimanhas o impera- acabou desterrado para Tréveros, nas Gálias —
dor Constantino e a fazê-lo chamar o ímpio Ário ocasião em que deu a conhecer ao Ocidente a vida
do exílio ao qual ele o havia condenado. Seu filho monástica. Em 336, estando S. Atanásio ainda exi-
Constâncio, que lhe sucedeu, fez ainda pior: con- lado, o imperador determinou que Ário fosse sa-
turbou toda a Igreja, perseguiu quase todos os bis- grado bispo e que o povo o recebesse com festa;
pos católicos durante seu reinado de vinte e cinco outra versão conta que o imperador obrigou o ar-
anos. Depois, devotado aos arianos, Juliano, o cebispo Alexandre a dar-lhe a sagrada Eucaristia.
Apóstata, empenhou-se em restabelecer o paga- Mas, no meio do caminho, Ário se retirou sozinho
nismo. Após Juliano, morto seu sucessor Joviano para um banheiro público e ali foi encontrado
depois de oito meses de reinado, Valente, impera- morto, com os intestinos para fora.
dor do Oriente, perseguiu novamente os católicos Em meio às perseguições que sofreu S. Atanásio
em favor do arianismo. Em suma, sempre a Igreja da parte dos imperadores e dos arianos, encontrou
teve o que sofrer, e um de seus mais firmes susten- apoio sempre firme e constante em Roma, junto
táculos nessa época foi S. Atanásio. Exilado por dos papas S. Júlio e S. Damaso. Os partidários dos
Constantino, chamado de volta e exilado nova- arianos também recorreram ao papa S. Júlio, como
mente por Constâncio, acossado por Juliano e por chefe de toda a Igreja, tentando envolvê-lo com
Valente, caluniado e difamado pelos arianos, seu blandícias, com as quais já haviam embaído os
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imperadores. Todavia, foram infrutíferos seus es- cristianismo; e pode-se dizer que ele mais moldou
forços contra a Sé de São Pedro. Na carta do Papa os eventos em que participou do que foi moldado
Júlio aos acusadores de S. Atanásio, ressalta so- por eles. A vida privada do doutor de Alexandria
bretudo o que diz no tocante aos julgamentos ecle- não foi menos admirável. Grande em suas obras,
siásticos e à autoridade da Igreja romana. “Não sa- diz S. Gregório Nazianzeno, foi humilde de cora-
beis que é costume consagrado escrevermos nós ção: de uma verdade inatingível, era, não obstante,
em primeiro lugar, e que daqui deve partir a deci- acessível a todos, doce, afável, sem cólera, com-
são do que é justo?” passivo, amável nas prédicas, mais amável ainda
Em tempo, o exílio de S. Atanásio no Ocidente na conduta, repreendendo com doçura, indulgente
constituiu um manancial de bênçãos que ainda per- sem fraqueza, firme sem dureza. As pessoas de to-
siste. Primeiramente, aqui fez conhecer a vida pro- das as condições encontravam nele algo que admi-
priamente monástica. Até então os monges eram rar, que imitar. Era fervoroso e assíduo nas ora-
desconhecidos ou desprezados, sobretudo, em ções, austero nos jejuns, infatigável nas vigílias e
Roma, cidade de luxo e de prazer. Mas quando S. no canto dos salmos, cheio de caridade para com
Atanásio se refugiou com o Papa Júlio, veio acom- os pobres, condescendente para os humildes, intré-
panhado de dois monges distintos: Amônio e Isi- pido contra os soberbos, dedicando-se, enfim, a
doro. Dessarte, a vida monástica encontrou o ca- todos para ganhá-los a Deus. Como recompensa,
minho para Roma, e expandiu-se brevemente, subiu aos Céus em 2 de maio de 373.
sempre por S. Atanásio, na Gália. Em tempo, man-
tinha com os monges desse país contato assíduo, e
escreveu para eles a vida de S. Antão. Fontes:

S. Atanásio foi uma daquelas raras personalida-


ALTANER, B.; STUIBER, A. (orgs.) Introdução. Em:
des que derivam incomparavelmente mais de seus
Santo Atanásio. Coleção Patrística, vol. 18. São Paulo:
próprios dons nativos de intelecto e caráter do que Paulus, 1988.
da fortuna de descendência ou do ambiente. Sua PADRE ROHRBACHER. Santo Atanásio. Em: Vida dos
carreira quase personifica uma crise na história do Santos. Vol. 8. São Paulo: Editora das Américas, 1959. p.
59-63.

22
EUTRAPELIAM

ATO DE CONSAGRAÇÃO
A JESUS CRISTO PELAS MÃOS DE MARIA

Sabedoria eterna e encarnada! Ó Amabilíssimo e adorável Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro

Ó homem, unigênito Filho do eterno Pai e da sempre Virgem Maria, adoro-Vos profundamente no
seio e nos esplendores de Vosso Pai, durante toda a eternidade, e no seio virginal de Maria,
Vossa Mãe digníssima, no tempo de Vossa Encarnação.
Dou-Vos graças por Vos terdes aniquilado a Vós mesmo, tomando a forma de escravo, para livrar-me do cruel
cativeiro do demônio. Eu Vos louvo e glorifico por Vos terdes querido submeter a Maria, Vossa Mãe Santíssima,
em todas as coisas, a fim de por ela tornar-me Vosso fiel escravo. Mas ai de mim, criatura ingrata e infiel! Não
cumpri as promessas que vos fiz solenemente no Batismo. Não cumpri minhas obrigações; não mereço ser cha-
mado Vosso filho nem Vosso escravo; e, como nada há em mim que de Vós não tenha merecido repulsa e cólera,
não ouso aproximar-me por mim mesmo da Vossa santíssima e augustíssima Majestade. É por esta razão que
recorro à intercessão de Vossa Mãe Santíssima, que me destes por medianeira junto a Vós, e é por este meio que
espero obter de Vós a contrição e o perdão de meus pecados, a aquisição e conservação da Sabedoria.
Ave, pois, ó Maria Imaculada, tabernáculo vivo da Divindade, onde a eterna Sabedoria escondida quer ser ado-
rada pelos anjos e pelos homens!
Ave, ó Rainha do céu e da terra, a cujo império é submetido tudo o que está abaixo de Deus!
Ave, ó seguro refúgio dos pecadores, cuja misericórdia a ninguém falece! Atendei ao desejo que tenho da divina
Sabedoria, e recebei, para este fim, os votos e as oferendas apresentados pela minha baixeza.
Eu, ________________________________________________________________________, infiel pecador,
renovo e ratifico hoje, nas vossas mãos, os votos do Batismo. Renuncio para sempre a satanás, suas pompas e suas
obras, e dou-me inteiramente a Jesus Cristo, a Sabedoria Encarnada, para segui-lo levando minha cruz, em todos
os dias de minha vida. E, a fim de lhe ser mais fiel do que até agora tenho sido, escolho-vos neste dia, ó Maria
Santíssima, em presença de toda a corte celeste, para minha Mãe e minha Senhora.
Entrego-vos e consagro-vos, na qualidade de escravo, meu corpo e minha alma, meus bens interiores e exteri-
ores, e até o valor de minhas boas obras passadas, presentes e futuras, deixando-vos direito pleno e inteiro de
dispor de mim e de tudo o que me pertence, sem exceção, a vosso gosto, para maior glória de Deus, no tempo e
na eternidade. Recebei, ó benigníssima Virgem, esta pequena oferenda de minha escravidão, em união e em honra
à vossa Maternidade; em homenagem ao poder que tendes ambos sobre este vermezinho e miserável pecador; em
ação de graças pelos privilégios com que vos favoreceu a Santíssima Trindade. Protesto que quero, de agora em
diante, como vosso verdadeiro escravo, buscar vossa honra e obedecer-vos em todas as coisas. Ó Mãe admirável,
apresentai-me a vosso amado Filho, na qualidade de escravo perpétuo, para que, tendo-me remido por vós, por
vós também me receba favoravelmente. Ó Mãe de misericórdia, concedei-me a graça de obter a verdadeira Sa-
bedoria de Deus, e de colocar-me, para esse fim, entre o número daqueles que amais, ensinais, guiais, sustentais
e protegeis como filhos e escravos vossos. Ó Virgem fiel, tornai-me em todos os pontos um tão perfeito discípulo,
imitador e escravo da Sabedoria Encarnada, Jesus Cristo, vosso Filho, que eu chegue um dia, por vossa intercessão
e a vosso exemplo, à plenitude da sua idade na terra e da sua glória nos céus. Amém. Assim seja.
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