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A Criança, a Psicanálise e a
Psicoterapia
Ensaio | Nota de pesquisa redigida para a revista “Le Carnet-PSY”, 2010.

Bernard Golse
Psiquiatra infantil-Psicanalista. Chefe do serviço de
Psiquiatria Infantil do Hospital Necker-Enfants Malades
(Paris). Professor de Psiquiatria da criança e do
adolescente na Universidade René Descartes (Paris 5).
Inserm, U669, Paris, França. Universidade Paris-Sud e
Universidade Paris Descartes, UMR-S0669, Paris, França.
LPCP, EA 4056, Universidade Paris Descartes. CRPM, EA
3522, Universidade Paris Diderot. Membro do Conselho
Superior de Adoção (CSA). Antigo Presidente do Conselho
Nacional para o Acesso às Origens Pessoais (CNAOP).
Presidente da Associação Pikler Loczy-França. Presidente
da Associação para a Formação de Psicoterapia
Psicanalítica da Criança de do Adolescente (AFPPEA).

Esta nota de pesquisa prolonga as reflexões que haviam sido apresenta-


das nas mesmas colunas no centro do dossiê “Psicanálise e psicoterapia:
debates e estratégias”1, bem como as reflexões que haviam sido retoma-
das na obra coletiva publicada para a Jornada Científica organizada por
Daniel Widlöcher e pela revista “Le Carnet-Psy” sobre o tema: “Psicanáli-
se e Psicoterapia – Continuemos o debate”2.

No que me diz respeito, eu concordo totalmente com a posição de


Widlöcher que diz que o conflito polêmico entre psicanálise e psicoterapia
não se resolverá enquanto a existência da psicanálise da criança não for
inteiramente reconhecida e admitida (com todas as implicações quanto
à formação).

1
GOLSE, B. Le point de vue d’un Pédopsychiatre-Psychanalyste. Le Carnet-Psy, v. 105,
p. 40-41, 2006.
2
GOLSE, B. Le point de vue d’un pédopsychiatre-psychanalyste. In: WIDLOCHER, D.
(dir.). Psychanalyse et psychothérapie. Paris: Erès, 2008. (Carnet/PSY), p. 17-24.
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De fato, se aceitamos plenamente a existência da psicanálise da criança,


resulta imediatamente:

– que nenhum processo psicanalítico é garantido antes do estabeleci-


mento do setting;

– que uma cura autenticamente psicanalítica pode se conduzir face a


face, e que o divã não representa nenhuma garantia a priori;

– que nossa teoria de interpretação, enfim, está ainda extremamente bal-


buciante.

Eu me sinto igualmente muito próximo a A. Ferro, quando ele diz que “a


psicanálise não pode ser senão única e inteira” e que ela só pode se reali-
zar nas situações diferentes.

Mas voltemos a cada um dos três pontos precedentes.

1) Com uma criança é comum, após o primeiro contato, que saibamos


exatamente o que fizemos, e se uma verdadeira dimensão psicanalítica
deste trabalho foi atingida ou não.

Quando um psicoterapeuta infantil recebe uma criança duas ou três ve-


zes por semana (isto ainda existe!), de fato, será aquele que poderia dizer
no início se o nível de trabalho que será obtido será do tipo analítico, ou
somente do tipo psicoterápico.

M. Ody e outros autores mostraram bem que a possibilidade de conduzir


ou não uma psicanálise infantil depende também, em parte, do funcio-
namento psíquico dos pais.

Por outro lado, o correspondente de analisibilidade dos adultos refere-se,


nas crianças, à fluidez e à plasticidade, efetiva ou não, de suas imagos
parentais, e existe aí, me parece, uma pista interessante de pesquisa quan-
to à linha de demarcação entre o psicanalítico e o psicoterápico.

Entretanto, com a criança, e talvez, sobretudo com ela, é a qualidade da


análise da parte inconsciente da contratransferência do cuidador que
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fará com que o trabalho possa, ou não, verdadeiramente se revelar de


natureza psicanalítica.

Daí o interesse, em minha opinião, da Federação Europeia de Psicoterapia


Psicanalítica (no serviço público) que consagra muitos esforços ao traba-
lho de supervisão, como eu já tive a oportunidade de mencionar nos es-
critos citados anteriormente.

2) O segundo ponto trata da questão da possibilidade ou não de uma


psicanálise fora do divã, quer dizer, além do enquadre da cura típica.

Evidentemente, é necessário que a prática psicanalítica deixe sua dimen-


são de “verdade local” ligada à situação transfero-contratransferencial,
mais específica do dispositivo divã-poltrona.

É, portanto, esta dimensão de “verdade local” que permite dispensar a


crítica poperiana de irrefutabilidade.

Mas, ainda assim... Algumas variações do enquadre não ameaçam a au-


tenticidade psicanalítica, a não ser, de novo, considerando que a psicaná-
lise infantil não existe e não existirá jamais!

Eu gostaria, assim, de evocar a este propósito duas problemáticas essen-


ciais, aquela generalizada do enquadre e aquela da aparência.

A partir de sua prática do psicodrama3, J.-M. Dupeu nos oferece, desde


muitos anos, um conceito fortemente heurístico que ele designa pelo ter-
mo “triplo desenvolvimento, desdobramento ou decondensação do con-
texto”, conceito que nos permite compreender como a dimensão psica-
nalítica de um trabalho pode ser efetivamente preservada fora do dispo-
sitivo clássico.

O enquadre do psicodrama – ao qual muitos psicanalistas não negam


um eventual valor psicanalítico – difere, de fato, da cura típica em três
pontos essenciais:

3
A questão da aparência é igualmente interessante de ser considerada.
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– o processo terapêutico não passa senão pela palavra (aí se acrescenta


a linguagem do jogo, dos corpos e do ato, cara a R. Roussillon);

– a transferência não se focaliza em um só terapeuta (presença de co-


terapeutas); e,

– a consideração exclusiva do registro intrapsíquico possível com os pa-


cientes bem diferenciados (principalmente neuróticos) considerando a
tomada do registro intersubjetivo ou interpessoal (o que é essencial com
os pacientes pouco ou mal diferenciados, aqueles ditos mais notadamente
arcaicos).

Este conceito me parece, pois, muito útil, por aprofundar o que pode re-
presentar de psicanalítico no trabalho com as crianças que exige, evi-
dentemente, enquadres variados e, por vezes, atípicos.

A questão da aparência é igualmente interessante a se considerar.

Freud realmente nunca explicou os motivos profundos que o levaram a


abandonar o quadro da cura hipnótica (no qual o terapeuta vê e toca o
paciente que também o vê) em troca do contexto psicanalítico no qual o
analista e o paciente não se comunicam se não se falando e se escu-
tando.

Suas explicações sobre este ponto foram sempre relativamente superfi-


ciais, enquanto hoje, à luz dos estudos sobre o bebê, podemos, sem dúvi-
da, melhor compreender os fundamentos desta ruptura metodológica
central, já que se trata, em realidade, de estimular a reflexibilidade psí-
quica do paciente (não mais ver para melhor ver, não mais tocar para
melhor tocar afetivamente e para melhor tocar a verdade dos objetos
internos…) como já haviam sublinhado, em seu tempo, autores como G.
Favez e D. Anzieu.

O que quer que sejam os estudos atuais sobre o bebê e sobre o desenvol-
vimento precoce – estudos tanto cognitivos quanto psicodinâmicos –
mostram-nos bem, de agora em diante, que é somente a apreensão
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polissensorial do objeto – por meio de um trabalho de “estruturação”4


(MELTZER, 1980) ou de comodalização sensorial (STRERI, 1991) – que nos
permite viver o objeto exteriorizado, quer dizer, como um objeto que não
faz parte de si, assim como sua apreensão monossensorial tem a tendên-
cia a copiar, a apagar ou a reduzir nossa percepção de afastamento
intrassubjetivo.

Este ponto é, assim, mais importante aos meus olhos, porque eu me per-
gunto, de fato, se para S. Freud, a decisão de se colocar atrás do paciente,
de renunciar a tocá-lo e renunciar a vê-lo, não corresponderia somente a
uma ruptura profunda com a hipnose e a sugestão, mas também a uma
tentativa (certamente não formulada na época) de religar, em relação ao
paciente, com um algum distanciamento da intersubjetividade e, assim
com as partes mais infantis e mais arcaicas de seu próprio funcionamen-
to?

O face a face corresponde, de fato, a uma situação altamente polissenso-


rial, situação que inclui um espaço material de atenção conjunta onde
convergem os olhares do paciente e do terapeuta (espaço jogando como
uma espécie de espaço potencial, de matriz dos co-fantasmas, dos co-
pensamentos e das co-simbolizações), proporcionando, então, uma esti-
mulação do “estar a três” e da intersubjetividade.

O dispositivo divã-poltrona, ao contrário, corresponde a uma situação


mais monossensorial (com um lugar central reservado à audição, en-
quanto o próprio S. Freud investia muito mais nas artes plásticas do que
na música!), situação fundada sobre uma dimensão mais imaginária e
simbólica que o material do espaço de atenção conjunta, permitindo,
assim, uma dialética mais leve entre o antes e o depois da
intersubjetividade, com uma ligação mais fluída das partes infantis da
psique, tanto do analista quanto do paciente.
Bem entendido, as coisas não são tão tramadas, e se trata apenas de sim-
ples pistas de reflexões preliminares.

3) O terceiro ponto concerne à nossa teoria de interpretação.

4
N. do T.: A palavra em francês usada pelo autor entre aspas foi mantèlement, cujo
significado não foi encontrado. No entanto, seu antônimo é “démantèlement” que significa
desmantelamento, desmembramento, divisão.
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Os bebês, principalmente, mas também as crianças e até os adolescen-


tes, mostram-nos que falar pode verdadeiramente ser compreendido
como um ato da palavra, um ato da linguagem, e não somente como
uma mensagem no sentido puramente da ideia.

O bebê entra principalmente na linguagem pela comunicação analógica,


quer dizer, pela música da linguagem, seja pelo não verbal do verbal, de
qualquer forma, (GOLSE, 2006), e a enunciação tem, assim, provavelmen-
te, tanta importância quanto o enunciado no sentido estrito, para com-
preender como o que dizemos faz alguma coisa ao outro, tem um impac-
to sobre seu mundo interno e, finalmente, o toca e o afeta.

Daí a nossa necessidade, no campo do trabalho com as crianças muito


jovens, de uma linguística menos saussuriana que subjetal e dinâmica.

Aqui, nossa teoria de interpretação no enquadre da cura típica necessi-


taria, sem dúvida, não ser exclusivamente centrada sobre o enunciado,
mas também sobre a enunciação, o que nos convida a ter realmente cons-
ciência da incompletude relativa atual de nossa teoria de interpretação
psicanalítica.

A partir disso, poderemos, sem dúvida, precisar melhor os pontos de con-


tato (convergências) e as diferenças (divergências) entre as interpreta-
ções propriamente ditas, e o que designamos como termo de interven-
ções.

Eu deixo de lado a questão das intervenções com um objetivo sugestivo,


que não entra no nosso propósito, para dizer algo sobre um problema
mais importante sobre as verbalizações (ALVAREZ, 1992), notadamente
com relação às crianças autistas ou psicóticas em particular.

A verbalização dos afetos de uma criança autista não é suficiente, certa-


mente, por si só, mas é seguidamente um longo preâmbulo necessário.

No entanto, esta verbalização pode, muitas vezes, ter uma função de in-
terpretação continente5 um ser-junto que atinge o objetivo, definido por

5
A distinção entre a interpretação continente e a interpretação mutativa, que deve-
mos a E. Jones, está longe de ser fácil, tanto nos adultos como nas crianças.
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F. Tustin, de poder “fazer sentir que um outro existe e que não é ameaça-
dor”.

Existe, dessa forma, uma dimensão de intervenção em toda interpreta-


ção e reciprocamente dito, o que relativiza muito, em minha opinião, o
limite da suposta fronteira entre psicanálise e psicoterapia.

A isto se acrescenta o fato de que, à luz dos trabalhos sobre os bebês,


surge a questão de saber se a interpretação deve também considerar, ou
não, a linguagem do corpo e a linguagem do ato.

É plausível pensar (ROUSSILLON, 1997; GOLSE; ROUSSILLON, 2010) que a


linguagem do ato não leva somente àquele que quer subtrair o discurso
verbal, que se utiliza apenas dos esquemas defensivos de repulsão, mas
que ele pode testemunhar igualmente alguma coisa que insiste em con-
tinuar a se “dizer” pelo canal pré-verbal, qualquer que seja sua eficácia,
em oposição ao canal da comunicação verbal.

Daí a dificuldade de saber se a interpretação não deve se basear estrita-


mente sobre o que é verbalizado. A resposta depende, provavelmente e
de maneira complexa, da estrutura do paciente, de sua idade e do mo-
mento da cura, além de outros fatores a esclarecer.

Conclusões

Não entrarei aqui no mérito da questão de se podemos dizer que a dife-


rença entre psicanálise e psicoterapia seria que a psicanálise visa ajudar
ao paciente a elaborar uma teoria pessoal de sua própria psique, enquanto
que a psicoterapia não procura senão aderir o paciente à teoria do
terapeuta, uma vez que, sem dúvida, esta observação trata de
psicoterapias não psicanalíticas.

Em contrapartida, P.Aulagnier insistia muito sobre a função autoteorizante


da psique, quer dizer, sobre o fato que ela procura se dar uma represen-
tação de seu próprio funcionamento, e L. Schacht, quanto a ela, bem
mostrou que na dinâmica de sua cura (quando esta é eficaz), a criança
retoma e simboliza efetivamente qualquer coisa de seu próprio cresci-
mento psíquico.
A Criança, a Psicanálise e a Psicoterapia
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Aqui talvez exista um ponto importante da diferença entre psicanálise e


psicoterapia.

Em qualquer um dos casos, a criança nos mostra o aspecto um pouco


fictício da fronteira entre psicanálise e psicoterapia. Pode, no entanto,
nos ajudar a repensar a psicoterapia no psicanalítico, e o psicanalítico na
psicoterapia.

Deste ponto de vista, o trabalho psicanalítico com a criança me parece


ser uma grande chance para a cura típica e a psicanálise em geral, mas
também é necessário aceitar a própria existência da psicanálise da cri-
ança, estratégia fundamental que nos leva à posição de D. Widlöcher,
evocada desde a introdução, e que supõe admitir que a sequência não
espera o Édipo... mas esta é uma outra história na qual as estratégias
sobre a formação não são pequenas!

Referências

ALVAREZ, A. Live company. London: Routledge, 1992. Traduction française:


Une présence bien vivante (le travail de psychothérapie psychanalytique
avec les enfants autistes, borderline, abusés, en grande carence affective).
Larmor-Plage: Ed. du Hublot – Regards sur les Sciences Humaines, 1997.
(Tavistock clinic).
ANZIEU, D. Le Moi-peau. Paris: Dunod, 1985.
AULAGNIER, P. La violence de l’interprétation – Du pictogramme à
l’énoncé. Paris: P.U.F., 1975. (Le fil rouge).
DUPEU, J.-M. Le psychodrame psychanalytique avec les enfants. Paris:
P.U.F., 2003. (Le fil rouge).
FAVEZ, G. Psychanalyste où es-tu? Paris: Ed. de l’Harmattan, 1999.
(Psychanalyse et civilisations).
FERRO, A. L’enfant et le psychanalyste – La question de la technique dans
la psychanalyse des enfants. Ramonville Saint-Agne: Erès, 1997. (Des
travaux et des jours).
GOLSE, B. L’Être-bébé (Les questions du bébé à la théorie de
l’attachement, à la psychanalyse et à la phénoménologie). Paris: P.U.F.,
2006. (Le fil rouge).
345 Orientações aos Colaboradores e Normas para Publicação

; ROUSSILLON R. La naissance de l’objet (une co-construction entre


le futur sujet et ses objets à venir). Paris: P.U.F., 2010. (Le fil rouge).
MELTZER, D. et al. Explorations dans le monde de l’autisme. Paris: Payot,
1980.
ODY, M. Limites du “tout analyser” chez l’enfant, et fin de la cure. Revue
Française de Psychanalyse, v. LVIII, n. 4, 1994.
SCHACHT, L. A propos de la signification de la confiance en analyse
d’enfant. Journal de la psychanalyse de l’enfant, v. 22, 39-63, 1998.
STRERI, A. Voir, atteindre, toucher. Paris: P.U.F., 1991. (Le psychologue).
. et al. Toucher pour connaître. Paris: P.U.F., 2000. (Psychologie et
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ROUSSILLON, R. La fonction symbolisante de l’objet. Revue Française de
Psychanalyse, v. LXI, n. 2, 399-415, 1997.
TUSTIN, F. Les états autistiques chez l’enfant. Paris: Le Seuil, 1986.
WIDLÖCHER, D. Les nouvelles cartes de la psychanalyse. Paris: Odile
Jaco, 1996.

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Tradução: Helena Mello
Revisão de português: Ana Rachel Salgado

Bernard Golse
Service de Pédopsychiatrie
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