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2º ENCONTRO REGIONAL SUL DE ENSINO DE BIOLOGIA

3ª Jornada de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC


Florianópolis, 02 a 04 de Novembro de 2006.

LEITURA E ESCRITA NO ENSINO DE CIÊNCIAS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A


FORMAÇÃO DO ALUNO-AUTOR

Odisséa Boaventura de Oliveira


Universidade Federal do Paraná
Setor de Educação - Departamento de Teoria e Prática de Ensino
odissea@terra.com.br

Fazer considerações acerca da possibilidade de se formar alunos-autores na


escola, mais especificamente, nas aulas de ciências, requer em primeiro lugar uma
abordagem sobre a concepção de linguagem que se adota. Aqui, tomo algumas
contribuições da Análise de Discurso (AD) de linha francesa, para expressar o referencial
teórico que embasa minha compreensão sobre autoria e relativamente às atividades de
leitura e escrita.
Para a AD, a linguagem deve ser pensada não em seus conteúdos, mas como
matéria estruturante dos sujeitos, desse modo, a linguagem assume papel constitutivo,
sendo considerada sempre uma tomada de posição. E se a linguagem é sempre uma
tomada de posição, podemos pensar que numa situação de sala de aula, quanto mais o
professor mantiver o controle, argumentar para garantir seu espaço de significação, maior
será o silêncio dos alunos. Tal postura se estende para as condições em que se
desenvolvem as atividades de leitura e escrita.
Estou então considerando que a instituição educativa é um local em que as
relações interdiscursivas são fundamentais, portanto estudar os discursos circulantes
nesse ambiente pode remeter às posições em que cada um dos atores (professor e
aluno) assume ou é submetido.
Outro aspecto a se destacar é a relação da linguagem com a exterioridade  suas
condições de produção, isto é, o falante, o ouvinte, o contexto da enunciação, o contexto
histórico-social (ideológico). A isto equivale considerar que o que se diz não resulta
somente da intenção do indivíduo em informar o outro, mas da relação de sentidos que se
estabelece entre eles num contexto social e histórico. Ou seja, pensar sobre: Quem é o
locutor? Quem é o interlocutor? Em que situação se dá a interação entre eles? Julgo esta
característica fundamental quando se toma os discursos circulantes no ambiente
educacional, pois valorizar os sentidos constituídos na relação do aluno com os saberes,
pode ser uma das maneiras de refletir sobre a possibilidade de reduzir desigualdades na

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aprendizagem, porquanto reconhecer que muitos significados são produzidos quando um


sujeito ouve ou lê é oferecer outra dimensão para o ato de ensinar.
O último aspecto que quero enfatizar é a não transparência da linguagem, ou seja,
concebê-la como tendo uma materialidade, mas que por um efeito da ideologia temos a
ilusão de que linguagem - pensamento - mundo se relaciona termo a termo. Ideologia, na
AD, deve ser entendida não como ocultação de sentidos, mas como apagamento do
processo de constituição dos sentidos, como aquilo que impõe evidências. É ela que
produz o efeito ilusório de que a linguagem e os sentidos sejam transparentes, dando a
impressão de que atravessando as palavras se chega aos seus conteúdos.
Esta concepção de linguagem (que a vê como tomada de posição, que atenta para
as condições de produção e para sua materialidade) remete para uma outra noção sobre
a leitura, já que numa visão reducionista ela é entendida como decodificação, apreensão
de um sentido (informação) que está dado no texto, sendo este visto como produto. Na
perspectiva da AD procura-se observar o processo de produção do texto, sua
significação, assim o leitor não apreende meramente um sentido que está lá, seu papel é
o de atribuir sentidos ao texto. Ou seja, a leitura é produzida e se procura determinar o
processo e as condições de sua produção. Portanto, a leitura é um momento de
constituição do texto porque é nesse momento que se desencadeia o processo de
significação.
Essas condições de produção da leitura seriam os sujeitos envolvidos (autor e o
leitor), a ideologia (os sentidos que serão produzidos), a história de vida e de leitura do
leitor, ou seja, considerar quem lê, o que lê, onde se dá a leitura, como se lê, para que se
lê. Depende, portanto dos sujeitos envolvidos nesta atividade e dos diferentes tipos de
discursos, por exemplo, um livro de literatura, um texto bíblico, um artigo científico,
produzirão diferentes modos de interação na leitura. E esses diferentes níveis de sujeitos
e de discursos vão determinar o grau de relação entre uma leitura parafrástica, que se
caracteriza pelo reconhecimento do sentido dado pelo autor (reprodução), e uma leitura
polissêmica, que se define pela atribuição de múltiplos sentidos ao texto. Podemos dizer
que num discurso poético é maior a possibilidade de leitura polissêmica, em um discurso
científico é menor. Mas, nem por isso devemos esquecer que a leitura parafrástica coloca
menos do conhecimento exterior (conhecimento de mundo, do poder, de outros textos) do
que a leitura polissêmica (Orlandi, 2000).

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A leitura deve ter na escola uma importante função no trabalho intelectual, para
isso, é preciso encará-la como uma questão pedagógica, lingüística e social. Pensá-la,
portanto, como produção, como possível de ser ensinada (pedagógica); como sujeita a
interpretação (lingüística), pois há leituras possíveis num mesmo texto e como resultante
das histórias do sujeito-leitor (social). Para Orlandi (2000) na aprendizagem da leitura
deve fazer funcionar a inscrição do sujeito nas redes de significantes, ou seja, propiciar ao
aluno que construa sua história de leitura estabelecendo as relações intertextuais e
resgatando a história dos sentidos do texto.
Como exemplo, tomo trabalho da Souza (2000) que muito bem demonstra o que
isso significa. A pesquisa desta autora aborda a leitura de textos diferenciados por alunos
da 8ª. Série do ensino fundamental sobre a temática fotossíntese. Um desses textos traz
trechos originais e impressões pessoais de alguns cientistas de séculos passados (como
Aristóteles, Van Helmont, Priestley) envolvidos no estudo desta temática. Solicitando que
após a leitura e antes de qualquer discussão sobre o texto os alunos escrevessem suas
respostas para as seguintes perguntas “o que você achou mais interessante?”, “o que
você não sabia?”, “o que você já sabia?”, obteve como resultado diferentes
manifestações, agrupadas por Souza em padrões relacionados: aos conceitos sobre
fotossíntese, ao amido, à parte histórica e outras dúvidas.
Apresento aqui apenas as identificações feitas sobre aquilo que os estudantes
disseram não saber e que o texto contribuiu para esta percepção. Sobre a fotossíntese
propriamente dita, a pesquisadora encontrou respostas que afirmavam desconhecer as
condições necessárias para sua realização, ou que as plantas revertiam os efeitos da
respiração, ou os organismos responsáveis por esta produção, por exemplo: “Pensava
que as plantas aquáticas não faziam fotossíntese”, ou ainda “Que não necessita apenas
de luz para fazer fotossíntese”.Também manifestaram visões antropocêntricas, do tipo “eu
pensava que as plantas produziam oxigênio para nós e não para elas” (Souza, 2000).
Quanto ao amido, os alunos apontaram em suas respostas o desconhecimento de
sua origem, o que ele é de fato, sua atuação no organismo humano e a parte da planta
responsável por sua produção. O que é possível observar nas seguintes falas:
“Não sabia que o amido é uma molécula grande com várias moléculas de glicose”.
“Depois de transformada, a glicose é energia, mas ainda preciso de outros alimentos
porque cada um tem uma função diferente no organismo”.

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“Eu não sabia que alguns alimentos transportam seu amido que é produzido nas folhas
para as raízes”.

A leitura de trechos escritos em diários pelos próprios cientistas que traziam a parte
histórica da construção do conceito fotossíntese, contribuiu para que os alunos
percebessem os equívocos na ciência, seu processo, os pensamentos dos envolvidos
nessa construção. Por exemplo, quando escreveram: “aprendi a maneira de pensar de
van Helmont sobre o crescimento de uma árvore em cinco anos e o de Priestley que ficou
muito perto de resolver o problema”, ou ainda “não sabia que Aristóteles considerava que
as plantas retiravam o alimento do solo” (Souza, 2000, p.178).
As dúvidas expressas pelos estudantes referiam-se a aspectos relacionados à
combustão, como pode ser visto em suas: “Eu não sabia que uma vela precisa de
oxigênio para ficar acesa”.
Assim, o texto permitiu que eles detectassem informações novas, entendessem
conhecimentos já estudados em séries anteriores, ampliassem significados, percebessem
erros e acertos na ciência, relativisassem visões antropocêntricas, além de provocar
contrariedades ao pensamento vigente nos alunos, como é possível observar nas falas
abaixo:
“Eu pensava a mesma coisa que Aristóteles, que as plantas retiravam o alimento
diretamente do solo. E o experimento de van Helmont que contraria totalmente a minha
forma de pensar”.

“A confusão que Aristóteles fez foi a mesma que eu fiz, porém ele passou por isto a 384
anos antes de Cristo e eu no ano 1997 depois de Cristo.” (Souza, 2000, p.170)

Neste resumido exemplo é possível perceber o que quero dizer por considerar as
condições de produção da linguagem (a relação com a exterioridade), a não transparência
(não há um único sentido) e como elemento que determina lugares sociais (os poderes
envolvidos na interlocução entre falante e ouvinte).
Para organizar este texto que seria lido pelos alunos, Souza (2000) observou que
eles tinham o hábito de escrever diários, especialmente por parte do sexo feminino,
portanto ler os diários dos cientistas poderia ser um atrativo, além de produzir uma
afinidade com a linguagem (escrita em primeira pessoa do singular). A autora também
agregou ao texto desenhos dos experimentos, mais uma forma de motivar os alunos
adolescentes para a leitura. Analisando essas três condições, o texto, o leitor e o autor,
nota-se que ocorreu uma aproximação do aluno com o material escrito tanto pela sua

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abordagem lingüística quanto pela interação discursiva possibilitada pela autora (a


pesquisadora, também professora neste caso). As questões propostas possibilitaram a
apropriação de sentidos pelos alunos o que os levou a deslizamentos e inter-relações
com vários aspectos não-ditos pelo autor.
Tais características expõem a situação de equivalência de poder entre a palavra do
professor e do aluno, do autor e do leitor, uma situação de diálogo em que muitos
significados são manifestados, e mesmo que diversos, eles estão imbricados. Não há,
portanto, uma perda do controle na exploração do texto, ao contrário, ocorre uma
especulação por parte do estudante, muitas vezes, não imaginada pelo docente.
Passo agora para a questão da escrita. A escrita em nossa sociedade, segundo a
AD, não deve ser apenas um instrumento propedêutico, mas lugar de relações sociais,
isto é, ela define o estatuto do saber discursivo que determina a produção de sentidos e a
posição dos sujeitos. É uma atividade que pode criar condições para um
reposicionamento dos sujeitos, particularmente do aluno perante o educador.
Coracini (1999) aponta que as atividades de escrita que ocorrem na escola não
contribuem para a construção da identidade, pois lidam com a noção de sujeito
controlador de si mesmo. A forma como o ato de escrever tem sido abordado na situação
escolar não envolve o sujeito, pois lida com a idéia de que para produzir um texto basta
juntar frases, ser autor nessas condições significa expressar um pensamento de maneira
correta, com isso a identidade do autor se dá fora do discurso.
Os livros didáticos também pouco contribuem para o desenvolvimento da autoria,
pois cobram apenas a fixação ou revisão de conceitos, fórmulas e conteúdos. São
atividades de escrita dirigidas do tipo: dê exemplos, descreva, cite, enumere, classifique.
Então ser autor na escola não é tematizar a noção de sujeito em si, nem de discutir
acerca da sua liberdade, mas refletir sobre a manifestação do problema da subjetividade
na relação com a leitura e a escrita, para isso as práticas discursivas dos alunos precisam
deixar de ser mediadas por imagens pré-construídas.
Assim, a escola pode ser considerada uma instituição muito mais “mantenedora” do
que “produtora” do discurso escrito, pois desde sua fundação valoriza a reprodução, o
acúmulo, a memorização de conhecimentos alheios, restando a professores e alunos o
papel de repetidores (Carmagnani, 1999). Mas ela tem condições de ultrapassar o estágio
de reprodução para o de autoria.

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Para isso, segundo Orlandi (2000), é preciso levar em conta as condições de


produção da escrita na escola, o que implica em refletir sobre as atividades que esta
instituição propõe, por exemplo, a de fazer cópias disfarçadas, tarefas que são parte do
discurso da escrita, mas que não possibilita a entrada neste discurso. Esta passagem
está ligada à necessidade de que o aluno assuma seu lugar social (responsabilidade pelo
que diz ou escreve), relacionando este lugar com a instituição na qual está inserido (é
preciso dominar um tipo de discurso para poder ser ouvido ou lido) e se veja como
responsável pelo agrupamento de discursos, pela sua unidade e coerência. Fornecer
condições para essa inscrição do aluno no discurso da escrita implica que, ao mesmo
tempo, o aluno assuma a responsabilidade pela produção e conheça as limitações que a
escrita lhe impõe (Carmagnani, 1999).
Foi buscando a autoria que em minha pesquisa de mestrado analisei a escrita de
cartas, diários, contos, relatos por alunos de 8ª série do ensino fundamental nas aulas de
ciências. Para isso tomei esta noção da obra de Orlandi (1999), que define a autoria em
função de três tipos de repetição. A repetição empírica, que se refere ao exercício da
memória, ocorre quando o indivíduo repete exatamente da forma como leu ou ouviu. A
repetição formal trata-se do exercício gramatical, quando o indivíduo repete o que leu ou
ouviu de maneira um pouco diferenciada, mudando as frases, ou melhor, diz a mesma
coisa com palavras diferentes. Já na repetição histórica ocorre a interpretação, pois o
repetível aqui faz parte da memória constitutiva do sujeito, ele consegue formular e
constituir seu enunciado no interior das repetições.
Outra idéia que discuti em minha pesquisa foi a do gênero do discurso (diálogo,
editorial, científico, manifesto, diário, carta, panfleto etc) que relacionado ao lugar e época
da enunciação, implica em pensar nas condições da comunicação e no estatuto assumido
pelo enunciador. Desta forma, o gênero é mais um elemento que legitima o lugar
enunciativo. Os gêneros se constituem em coerção, o que permite estabelecer hipóteses
sobre o porquê do aluno recorrer a um tipo de gênero ou outro. No caso dos alunos de
minha pesquisa a maioria optou por carta e se por um lado ocorreram coerções ao
escrever carta, diário, relato ou pequenas estórias, (já que as modalidades são diferentes)
por outro contribuíram para liberar o discurso do sujeito que ocupa a posição-aluno. A
meu ver isto se deveu ao fato de haver um interlocutor

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Então o lugar de onde se fala, é o que determina a identidade de cada indivíduo,


sendo que este também ao enunciar garante sua autoridade institucional. Esta posição de
onde fala o sujeito seria o lugar encenado no discurso.
Tenho pensado o gênero como constituidor de subjetividade (tomadas de posição
do enunciador ou como capacidade do locutor para se propor como sujeito, ela é
orientada pelo reconhecimento da diferença, pela importância do outro na constituição do
eu) e de identidade (ou seja, uma escrita que envolve o sujeito). Uma vez que considero
que a imagem que o sujeito tem de si é construída pelos outros com quem convive, ela é
móvel devido a sua definição histórica, é um processo em andamento no qual o sujeito
tenta preencher suas lacunas a partir do seu eu exterior. Para a constituição da autoria é
importante que o aluno vivencie o estranho, o diferente, o outro, trabalhando para que ele
desloque sentidos sedimentados e construa uma posição enunciativa própria produzindo
sentidos.
Observei nesta pesquisa o aparecimento da função autor em níveis diferenciados.
Olhei para os textos escritos pelos estudantes com a preocupação voltada para “o que” e
o “como” se deram as aulas, o que possibilitou constatar momentos em que o aluno
transforma esquemas em palavras, usa o enfoque histórico adotado, expressa sua visão
de ciência, incorpora a linguagem do texto lido, ou seja, momento em que o aluno
assumiu o discurso como seu. Ou ainda momentos em que ele somente repete aquilo que
ouviu ou leu.

Relato apenas para comparação a produção de dois textos sobre o tema Energia
Luminosa em dois momentos diferentes por uma aluna da 8ª série envolvida na pesquisa.
No mês de abril, foi solicitado que os estudantes escrevessem em uma questão de prova
um texto sobre luz envolvendo os conceitos estudados (dualidade onda- partícula, lentes,
refração, reflexão) e no mês de setembro que escrevessem em forma de diário, conto,
carta ou relato. Vejamos com as próprias palavras da aluna:

“A luz pode ser refletida, essa reflexão pode ser feita assim: um feixe de luz bate em um
espelho e volta para o lugar onde o espelho está apontando refletindo uma imagem.
Refração: o feixe de luz passa por um vidro ou água, mudando a sua direção. Onda é um
feixe de luz que viaja pelos espaços”.

“Campinas, 28 de setembro de 1998


Aos meus novos amigos.

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Vocês agora terão o privilégio de me conhecer, saberão como sou, o que pode acontecer
comigo, com o que estou relacionada.
Estou meio confusa sobre o que sou, as pessoas me definem como onda ou
partícula, não sei o que está certo. Algumas pessoas, alunos de uma escola pública,
tiveram a seguinte informação de seu professor: “Luz é comunicação com o resto do
universo: sinais luminosos que viajam no vácuo em linha reta com velocidade de
300.000Km/s”. essa é mais uma de minhas definições.
Agora vou falar sobre o que pode acontecer comigo. Eu posso ser refletida, isto é,
um raio que sai de mim ao tocar uma superfície polida e ai ele voltae muda de sentido.
Também pode ocorrer um tipo de refração, isto é, eu sofro desvios ao atravessar
superfícies de dois meios diferentes, isso que é refração, este desvio ocorre porque se eu
passar de um meio menos denso (ar) para um mais denso (água) eu perco velocidade.
Eu ajudo a formar uma coisa linda, o arco-íris quando eu passo através de em
prisma eu me desmancho toda e aí aparece todas as cores que me formam, vermelho,
alaranjado, amarelo, verde, azul, anil, violeta, isso também acontece quando eu atravesso
gotas d’água formando um lindo arco-íris.
Eu sou responsável pela visão, visão é a percepção da luz emitida pelos objetos
para a retina sendo daí transformada em sinais elétricos. E quando se tem algum
problema de visão usa-se lentes que ajudam as pessoas a enxergarem melhor, essas
lentes são chamadas divergentes e convergentes. Lentes divergentes são aquelas que
espalham os meus raios para vários pontos distintos. Convergentes são aquelas que
concentram meus raios em um só ponto.
Vocês agora sabem de uma forma resumida tudo sobre minha pessoa. Espero que
tenham gostado até outro dia, um abraço de sua amiga Luz
Luz da Silva”
Comparando as produções escritas acima podemos dizer que a escolha de um
gênero, em que havia um destinatário, possibilitou a esta aluna: a liberação de sua
criatividade, a exposição literária, a articulação de conceitos, a coesão de idéias, o
exercício da memória, o deslizamento de sentidos, a utilização de uma linguagem mais
poética, desdobramentos de conceitos científicos, a auto-referência como sujeito do e no
texto, a representação/encenação de um papel como um ator numa cena teatral, a
produzir uma narração com os entes da ciência.
Estamos, portanto, diante da repetição histórica, da autoria. Diferentemente, no
primeiro texto (uma questão colocada em situação de prova avaliativa), a aluna escreve
para o professor que, em seu imaginário, espera a resposta certa, repetida da mesma
maneira como foi ensinada, isto é alguém que valoriza a repetição empírica. Assim,
acredito que estes textos reforçam a idéia de que muito pode ser feito para que o
estudante assuma a função-autor nas aulas de ciências.

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Para tal, devemos conceber, como diz Foucault (1997) “todo texto deve dizer pela
primeira vez, aquilo que já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que no
entanto, não havia jamais sido dito”. Há, portanto um autor-leitor que compõe o seu texto
a partir de deslocamentos e de releituras de outros textos. Quando o autor lê o trabalho
do outro e produz um novo texto ele explicita sua relação com um saber e ao inscrever
sua leitura no texto ele se mostra como sujeito de um fazer. A análise dos sentidos
implicados nessas operações interpretativas pode revelar o lugar de onde esse autor-
leitor fala. (Gregolin, 2001)
Trata-se então de pensar a interpretação, conforme destaca Gregolin (2001) como
tarefa que tem uma amplitude e abertura irredutíveis, como teia de interpretação, para
que o sentido desloque imagens cristalizadas no imaginário, criando-se novos traços, mas
que conservam os rastros. Talvez algumas imagens possam ajudar a explicar melhor
essa idéia. Tratam-se de duas leituras feitas de um mesmo quadro, o primeiro deles,
criado por Escher.

A partir do desenho de Escher (Hand with reflecting sphere), o autor que se coloca
na posição de leitor e que lê a si mesmo, Milton Montenegro relê Escher e cria novos
sentidos. Conserva o essencial, a mão segura a esfera que reflete o corpo, no entanto o
corpo é de outro (Paulo Coelho). Cria-se um novo jogo com o leitor, pois o outro tomou o
lugar de enunciação. Katsushiro Otomo também relê Escher e mantêm o essencial, a mão
segura a esfera que reflete o corpo, é uma mão robótica e o corpo mecânico tomou lugar
do corpo de Escher (Gregolin, 2001).
Podemos relacionar esses deslocamentos, produzidos por Montenegro e Otomo,
ao que no ensino de ciências consideramos as leituras que os alunos fazem de nossas
aulas, ou seja a aprendizagem proporcionada. Valorizar tais deslizamentos requer que o

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professor se atenha a alguns princípios, como: tomar o eixo interpretação em detrimento à


repetição; atentar para o funcionamento discursivo da sala de aula em relação à memória;
conceber a produção do discurso dos alunos atrelada às condições sócio-históricas; olhar
para as respostas dos estudantes com a preocupação voltada para “o que” e o “como”
enfatizou nas aulas; conceber liberdade para o desenvolvimento da competência
comunicativa, social e cognitiva; dispensar atenção aos significados e sentidos
particularizados por cada um dos alunos; perceber que há sempre possibilidade de
desenvolver autonomia/autoria.
Assim, as imagens produzidas por Montenegro e Otomo são trabalhos de
composição do novo a partir da repetição de um já-dito e ilustram o que é autoria: uma
função discursiva de recorte e deslocamento de sentidos, ou seja, um processo de
interpretação que cria rotas de legibilidade inscritas nos rastros de memória (Gregolin,
2001).
Para destacar como percebo a função da escola, finalizo com João Cabral de Melo
Neto em “Rios sem discurso”:
“ Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais; porque assim estancada, muda e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para o outro poço, em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a seca ele combate. “

Este poema me provoca como professora a acreditar que, pelo menos, devemos
não estancar a água dos discursos-rio de nossos alunos e, que se conseguirmos lhes
oferecer espaços para que tenham voz poderemos distribuir fios de água para alimentar e
extravasar o poço da argumentação. Pois, considero que o conhecimento é de suma
importância, mas não é vital, o que realmente importa são as operações que ele engendra
para se constituir, ou seja, os conhecimentos significam na compreensão de nossas formas
sociais e culturais.

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Referências Bibliográficas
CARMAGNANI, Anna M. (1999) A questão da autoria e a redação em LE em cursos
de ensino superior. In: Coracini, M. J (org.) Interpretação, autoria e legitimação
do livro didático. Campinas: Pontes

CORACINI, Maria José. (1999) A produção textual em sala de aula e a identidade do


autor. In: CORACINI, M. J (org.) Interpretação, autoria e legitimação do livro
didático. Campinas: Pontes

FOUCAULT, Michel. (1997) O que é um autor? Porto: Veja, 3 ed

GREGOLIN, Maria Rosário (2001) Onde o autor é leitor todos os caminhos se


bifurcam. In: GREGOLIN, M. R. et al (org) Análise do discurso: entornos do
sentido. São Paulo: Cultura Acadêmica

OLIVEIRA, Odisséa B. (2001) Possibilidades da escrita no avanço do senso


comum para o saber científico na 8ª série do ensino fundamental.
Campinas: FE/UNICAMP, Dissertação de Mestrado

ORLANDI, Eni (1996) Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho


simbólico. Petrópolis: Vozes

_____________ (1999) Reflexões sobre a escrita, educação indígena e sociedade.


Escritos. Campinas: LABEURB, n.5, p.7-22

___________ (2000) Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 5ed

SOUZA, Suzani C. (2000) Leitura e fotossíntese: proposta de ensino numa abordagem


cultural. Campinas: FE/UNICAMP, Tese de doutorado

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