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ESTUDOS NO LIVRO DE JÓ 1

MONÓLOGO DE JÓ - Cp. 03

INTRODUÇÃO

No estudo anterior vimos que Jó, mesmo passando por muitas tribulações,
permaneceu fiel a Deus. No capítulo 03 entramos naquele grande bloco (cps. 03-41)
desconhecido para a maioria de nós. E aqui encontramos um Jó diferente,
desesperado. O que estará acontecendo?

Creio que a pergunta que fizemos acima revela nossa concepção de vida cristã.
É muito comum hoje em dia uma visão triunfalista do cristianismo. Somos os “filhos do
Rei”, aqueles que “declaram” a bênção de Deus aos outros e sobre nós mesmos, e que
afirmam que nossa cidade “é de Jesus”. Parece que não existem problemas, que a
vitória já é vivida sem dificuldades. Não há lugar para o sofrimento. Para muitos o
cristão não pode, nunca, ficar triste, abatido! Será que não mesmo?!

ORIENTAÇÃO PARA O ENTENDIMENTO DO TEXTO

Creio que é hora de aproveitarmos uma dica que o narrador nos dá para que
entendamos o livro. Afinal, como saber quem está correto em tudo quanto será dito? A
partir do capítulo 04 entrarão em cena de modo efetivo os amigos de Jó analisando
categoricamente os acontecimentos trágicos que envolveram o companheiro através de
seus discursos. Estarão certos ao afirmar que Jó sofre porque pecou? Como entender
a complexidade dos discursos? É aqui que a dica entra em funcionamento. Como já
vimos no estudo anterior, tanto no Prólogo (1.1-2.13) quanto no Epílogo (42.7-17) o
autor faz questão de deixar claro que Jó não pecou – 1.1, 8, 22; 2.3, 10, mas falou o
que era reto sobre Deus – 42.7b, 8. Importante agora são as afirmações com respeito
aos amigos: “vós não falastes de mim o que era reto, como o meu servo Jó” (42.8, cf.
v. 7). Mesmo que suas palavras fossem revestidas de piedade e sabedoria, não
expressavam o pensamento de Deus. Devemos manter em nossa mente esse texto
quando examinarmos as palavras de Jó, como faremos neste capítulo, e também ao
estudarmos as manifestações de seus amigos nos capítulos seguintes.

Portanto, este Jó que vemos sofrendo e desesperado no capítulo 03, e que


causa-nos espanto, tanto quanto aos seus amigos que o criticarão mais adiante, não
está errado. É dentro desse contexto que devemos analisar tudo quanto Jó falará no
livro!

Para entendermos todos os sentimentos manifestados neste capítulo devemos


observar que são expressos através de um gênero literário chamado de lamento. É o
tipo de linguagem que as pessoas usam quando estão em provação. Os problemas
enfrentados pelo que lamenta podem vir de três fontes diferentes: Deus, os homens
(inimigos) ou a própria pessoa. Tomemos um exemplo:

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Salmo 13.1-2

Até quando, Senhor? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Deus


Até quando ocultarás de mim o teu rosto?
Até quando estarei eu relutando dentro em minha alma, Salmista
com tristeza no coração cada dia?
Até quando se erguerá contra mim o meu inimigo? Inimigos

Neste salmo ficam evidentes as três áreas de conflito. Primeiramente o salmista


questiona Deus pelo seu (aparente) esquecimento. Parece que o Senhor está indiferente
ao seu sofrimento. Depois volta-se para as conseqüências dessa relação tumultuosa
com Deus que causam-lhe distúrbios. Luta consigo mesmo. Sente tristeza em seu
coração, as forças somem, e não consegue mais perseverar. Finalmente, as tribulações
vêm da relação com outras pessoas. São seus inimigos. Eles manifestam-se
ameaçando-o ou então tentando fazer-lhe mal. Perceba que diante dessas três
situações o salmista coloca a frase: “até quando?” Parece que não consegue mais
resistir. Está quase desistindo. Quando isso acontece, ele lamenta.

Nem sempre essas três origens dos problemas surgem ao mesmo tempo. Às vezes
manifestam-se duas, ou apenas uma. Depende do tipo de situação em que a pessoa se
encontra, e o que lhe é mais difícil suportar. Quando o contexto de pressão dos
inimigos for mais premente, então ele lamentará diante de Deus a situação de perigo
pela qual passa (cf. Sl 3).

Jó sempre usa o lamento em seus discursos. Mas não devemos entender o


lamento dentro de seu uso moderno, como se fosse um murmúrio, uma lamúria, um ato
de quem está descompromissado com Deus, como a conduta daquele tipo de pessoa
que, embora se diga cristã, vive reclamando do tempo, da saúde, do vizinho, etc, etc.
Pessoas que tornam-se quase insuportáveis na convivência diária. Só usa o lamento,
por outro lado, aquele que tem fé suficiente para derramar seu coração diante do
Senhor, expressando tudo o que sente e esperando que ele atue alterando o quadro de
sofrimento. Quem reclama da vida olha somente para o passado. O que lamenta vê a
tribulação no presente, apresenta-a diante de Deus, e espera a libertação no futuro. O
lamento sempre conduz ao louvor.

Temos vários exemplos de lamento na Bíblia. Quando o povo de Israel estava


sob dura servidão no Egito, “clamou” ao Senhor e foi ouvido (Ex 2.23). O ato de
clamar a Deus era um lamento diante do sofrimento e da opressão dos egípcios. O
livro de Juízes apresenta-nos vários momentos em que, sofrendo sob as mãos de povos
que os submetiam, Israel “clamava” ao Senhor (3.9, 15; 4.3) e este o libertava através
de juízes. O livro de Salmos apresenta o lamento num esquema mais desenvolvido.
Observe que os salmos de lamento apresentam em geral três partes: o clamor do
salmista, declaração de confiança em Deus, e louvor pela libertação que virá (Sl 3, 5,
7, 17, 22, etc).

Exemplo clássico de lamento é o profeta Jeremias. Diante do ministério de


profetizar o exílio de Israel na Babilônia devido a seus pecados (cp. 6), o profeta foi
preso e colocado no tronco como inimigo da nação (20.1-2). Nessa situação de

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sofrimento e solidão, ele lamenta ao Senhor em um texto muito semelhante ao capítulo


que estamos estudando (20.14-18).

Encerro com um último exemplo. Jesus. Na expectativa da cruz, sentindo


aproximar-se cada vez mais o terrível momento de seu suplício, o Senhor, como homem
que era, sentiu medo. Tomou seus amigos e levou-os para o Getsêmani para que
compartilhassem desse momento tão atroz. Uma angústia terrível toma conta de seu
coração. Sente a alma triste até à morte e ora: “Meu Pai, se possível, passe de mim
este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres” (Mt 26.37-39).
Já estando na cruz, brada em alta voz: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt 27.46). O Senhor lamentou usando as palavras do salmo 22.1,
que por sua vez é um salmo de lamento.

Todos os exemplos citados acima mostram que o servo de Deus passa por
momentos terríveis na vida, e que o certo, aquilo que agrada a Deus, não é fugir dos
problemas, nem aparentar que não é afetado. Devemos, sim, colocar na presença de
Deus o que sentimos juntamente com nosso pedido de libertação.

Jó expressa sua angústia através do lamento no capítulo 03! É o homem de fé


que não consegue entender por que está sofrendo e que tem coragem de colocar seus
sentimentos diante de Deus. Você já fez algo assim? Tem coragem?

ESTRUTURA

O capítulo divide-se em três partes:

I. Maldição sobre o dia do nascimento - v. 3-10.

Depois de meses de solitário sofrimento (7.3) e de sete dias e sete noites


de silêncio diante de seus amigos (2.13), Jó fala, e agora é uma palavra muito diferente
daquela ouvida nos dois primeiros capítulos. Ele amaldiçoa o dia de seu nascimento (v.
1). Usando o conceito dia/luz - noite/trevas o autor deseja que tanto um quanto o outro
deixassem de existir ( v. 3), bem como o seu fruto, Jó.

A partir do v.4 o conceito “noite/trevas” vai tomando o lugar do


“dia/luz” no texto. Tudo está na escuridão (vs. 4, 5, 6, 7, 9). Isso nos lembra as trevas
que pairavam sobre a terra antes que Deus fizesse a ordenação de todos os elementos
(Gn 1.2). Elas são o símbolo do caos, da desordem. E é exatamente com esse objetivo
que Jó usa o conceito. Quer mostrar que sua vida está sem sentido, num verdadeiro
caos! Isso é muito importante. Não devemos esquecer que este é um livro de Sabedoria
(exemplo clássico é o livro de Provérbios), e que esse tipo de literatura procura, por
um lado, analisar a ordem do mundo para que os homens se conformem com ela, mas,
por outro, denunciar a falta dessa estrutura ordeira mostrando claramente a realidade
da vida. É isso que Jó faz. E ao fazê-lo, ele revela não apenas o seu sofrimento, mas o
de tantos outros como ele. Nesse sentido, o livro serve como uma denúncia do estado
caótico que atinge a vida dos homens em todos os tempos.

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O dia do nascimento assume para Jó o papel que os inimigos exercem


nos salmos de lamento. É contra esse dia que Jó reclama diante de seus amigos e de
Deus.

II. Desejo de ter morrido antes de nascer - v. 11-19.

Nesta seção Jó manifesta o desejo de não ter nascido (v. 11). Aqui ele
trabalha com os conceitos vida - morte. Por que nascer? Por que ser amamentado (v.
12)? Para ele, o melhor lugar seria a morte, pois nela há tranqüilidade (v. 13, 17, 18)
e todas as pessoas são iguais ( v. 14-16, 19). Estas afirmações nos permitem perceber o
estado de perturbação pelo qual Jó passava, levando-o a desejar a morte, visto que
nela poderia descansar, e o sentimento de estar sendo injustiçado, colocado como
alguém que, culpado, merece ser penalizado, o que o faz querer novamente a morte,
pois nela todos são iguais, não havendo diferenciação entre pessoas. É bom lembrar
que este homem havia perdido todos os seus bens, saúde, e, pior, sua família (cp. 1-2).

Aqui vemos o lamento sobre si mesmo, sua vida. Quantas vezes


deveríamos reconhecer tal situação em nossa existência! Mas não fazemos. Temos
medo! Por isso mesmo, muitos cristãos vivem frustrados e cheios de traumas.

III. Protesto pelo sofrimento em que vive - v. 20-26.

Somente aqui Jó explica por que amaldiçoou o dia de seu nascimento e


por que desejava não ter nascido. Volta a falar da luz mencionada na primeira parte
(v. 20a), e da vida citada na segunda (v. 20b). Ao unir esses dois conceitos enfatiza que
a vida está realmente envolta em um caos e que não vale mesmo a pena viver (v. 20-
23). Vemos nesta parte do capítulo o lamento contra Deus (v. 23). Pela primeira vez no
livro Jó tece uma crítica direta a ele. Por que Deus dá luz e permite que o homem viva,
se Ele mesmo fica cercando-o, prendendo-o? Novamente devemos perceber que nosso
personagem não fala apenas de si mesmo, mas reflete a situação de muitos outros. Ele
faz menção ao “miserável” e aos “amargurados de ânimo” (v. 20). O problema pelo
qual passa não é exclusividade sua. Estava presente em sua sociedade, assim como está
na vida de muitos outros no decorrer dos séculos. Por fim, Jó explicita seu sofrimento:
ao invés de pão, tem gemidos; o que teme lhe sobrevém; não tem descanso e está muito
perturbado (vs. 24-26).

CONCLUSÃO

Creio que este capítulo nos assusta um pouco. Esperávamos um homem calmo,
administrando seu sofrimento, e o que vemos é alguém que já não agüenta mais sofrer.
Diríamos: “tenha fé”. Mas é exatamente por que tem fé que lamenta e questiona Deus.
O lamento é o primeiro passo para sair do sofrimento. É o questionamento de Deus
através da fé. Como Deus pode, em meio a tanto caos, ser Senhor de tudo? Bem, a
resposta a isso cabe a ele. E ela será fornecida no decorrer do livro.

A questão que deve ficar para nós é: talvez não entendamos Jó porque nunca
sofremos como ele. É muito fácil exigir fé, paciência, fidelidade a Deus quando não
somos nós que passamos por dificuldades. Talvez, se tivéssemos o mesmo tipo de

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sofrimento que Jó experimentou, nossa espiritualidade ruiria. É necessário que, de


fato, passemos por tribulações para podermos entender o sofrimento do outro (2 Co
1.4).

Para o que sofre o lamento é uma benção. Ele permite que primeiramente
coloquemos para fora nossos questionamentos, dores e fantasmas, para depois sermos
fortalecidos por Deus. Somente assim podemos continuar perseverando e olhando à
frente a fim de vislumbrarmos o livramento de Deus. Os grandes homens de Deus
sempre agiram assim. Jesus também!

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