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A irmã mais nova de Amália Rodrigues é a decana do fado. Cumpre 65 anos de carreira e actua
amanhã no São Luiz, em Lisboa
Aos 9 anos já trabalhava a descascar ervilhas enquanto sonhava em ser bailarina. Só cantava
com a irmã Amália, sempre como brincadeira. Celeste Rodrigues tornou-se fadista por acaso e
é hoje a decana do fado e celebra amanhã 65 anos de carreira. Com 87 anos, a ex-mulher do
actor Varela Silva chega para a entrevista com o neto Diogo Varela Silva, uma espécie de
agente que trata de tudo. Com os lábios pintados de vermelho, um casaco que parece um xaile
e uns grandes óculos de sol, Celeste continua a parecer-se com Amália Rodrigues e continua a
cantar nas casas de fado porque não quer ser um "trapo velho em casa".
Cantei com anginas, constipações, com as costelas partidas. A pior foi a do braço partido.
Estava na Bélgica e tínhamos ido ao McDonald''s com um músico. Tropecei num degrau e parti
o braço em quatro sítios diferentes. Fui para o hospital e o médico queria operar-me nesse
momento. Disse-lhe que não podia ser, que tinha concerto nessa noite. Se visse a cara dele.
Deu o concerto?
Dei, sim. Com o braço ao peito, tapado pelo xaile. Só exigi cantar sentada.
O fado quer isso. Com dor até se canta melhor. O aiii até sai mais forte.
Nem sei se sou profissional, gosto é de cantar. Sou pontual, mas noutras coisas sou uma
amadora. É tudo de improviso. Às vezes ele [aponta para o neto que está sentado ao seu lado]
diz para eu fazer umas coisas e não me apetece. Depois pergunta-me: "Afinal és uma artista ou
quê?". Eu respondo: "Sei lá".
Sim, no Café Luso e na Casa Linhares. Há dias em que não apetece, mas ouvimos as guitarras e
esquece-se tudo. Uma pessoa faz uma coisa durante tanto tempo que parar é triste. E não
quero ser trapo velho em casa.
Adoro trabalhar com eles. Divirto-me imenso. Também gosto de cantar com a gente jovem do
fado. Aprendo a sentir-me mais jovem e eles aprendem qualquer coisa comigo. Mas não a
cantar, que isso não se ensina.
Não?
Não, isso é para os clássicos. Aprender a cantar fado até estraga. O fado é povo. Desde que se
seja autêntico e não se desafine, toda a gente canta bem. Se se aprendesse, caramba. Eu teria
tido uma boa mestra, a minha irmã.
Na sensibilidade não, na voz sim. Ela tinha um timbre maravilhoso. A Amália cantava um fado e
estava tudo feito. Canto um ou dois fados dela porque consigo fugir ao estilo. Mas há uns que
nem me atrevo, só ia estragar.
Quais?
Não. Nem eu nem a minha irmã. Gostávamos era de cantar. Andávamos sempre "lá, lá, lá".
Comecei a trabalhar aos 9 anos a descascar ervilhas, depois numa fábrica de bolos em Santos e
não pensava em ser artista. Sonhava ser bailarina. Gostava tanto que pus as minhas filhas [Rita
e Mizé] no ballet.
Sim. Cantávamos folclore da beira, os fados dos ceguinhos e as cantigas da rua. Foi por acaso
que o resto aconteceu. Ela entrou num concurso de fados porque namorava com o guitarrista
e foi assim que tudo começou.
Íamos almoçar ao Mesquita, onde havia fados e pediam sempre à Amália para cantar. Ela
respondia que eu também cantava bem. Um dia tive coragem e cantei uma quadra à
desgarrada. Estava lá o Zé Miguel, empresário da minha irmã e do Casablanca [cabaré] que me
disse: "Tu vais cantar". Tratou-me do cartão de artista, fui aos ensaios, mas no dia da estreia
não queria entrar.
No início não. Dizia-se que numa das casas estava lá uma Maria do Carmo que era bêbada, a
minha mãe não gostou.
Porquê só duas?
Sei lá. Não dava. Se calhar, nunca quiseram ou não iam por timidez. Quem ia mais vezes era o
meu irmão Filipe que era boxeur.
Fiz 59 discos. Sou uma mandriona para gravar. Estamos ali a cantar sozinhas... Mas gravei
êxitos como o "Olha a Mala", a convite do Valentim de Carvalho. Foi um sucesso.
Confundiam-me sempre com a Amália. Era um bocado desagradável porque queria era ficar
sossegada e tinha gente a olhar para mim. Apostavam se era a Amália ou não. Até me escondi,
quando ela fez as "Capas Negras".
Não. Nem ela. A Amália não ligava nenhuma a isso. A fama é uma coisa muito pesada.
Arranjam-se famas horrorosas. Cantar não tem nada a ver com fama.
Tive vários convites, mas nunca quis. "O Pátio das Cantigas" foi feito para a Amália e para mim.
Como ela não quis, eu também não. Depois de velha é que entrei no "Xavier" [de Manuel
Mozos, 1992]. Pensei: "Agora quero lá saber".
Sim, em 1945. Diziam que tinha muita habilidade, mas quando a companhia veio para
Portugal, desisti. Lá estava à vontade, até mostrava as pernas. Aqui não.
Durante quatro anos. Era uma escrava. Mas ser escrava? Só do amor. Não tinha jeito para o
negócio. Dizia às pessoas: "Ai, não beba mais que faz mal". Mas tive uma casa sensacional,
com o melhor ambiente em Lisboa. Fui a única a conseguir ter o [Alfredo] Marceneiro a cantar
fixo durante anos.
Lá não tenho nervos. Não está lá nenhuma fadista melhor que eu. Uma vez, no Luxemburgo
estava a cantar coisas alegres e não segurava o público. Até que encostei a cabeça à parede e
mandei cantar um fado mais triste. Quando acabei estava uma senhora a chorar. Ela disse-me:
"Não percebi nada, mas é lindo."
Se não agarrar o xaile, a minha voz não sai da mesma maneira. Torço-o e a voz sai com mais
força.
É um horror. Nada daquilo é verdade. Põem-na como uma pateta. Dizem que é ficção, mas
com os nossos nomes.
Claro, éramos unha com carne. Não precisávamos de falar para nos entendermos. Seria
diferente nesse aspecto, na parte artística não.
Não houve nem nunca vai haver. Ela tinha humildade, gosto, sensibilidade e simpatia. Ela
crescia no palco, além dos saltos altos. Lembro-me de uma vez ela cantar a "Gaivota" tão bem
que lhe disse: "Cala-te que me estás a fazer doer com essa música."
Entrevista retirada do Jornal i, de 20 de Dezembro de 2010