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Revista Crítica de Ciências Sociais 

91 | 2010
Debate social e construção do território

Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze


ensaios
Luís Quintais

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/4464
DOI: 10.4000/rccs.4464
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 dezembro 2010
Paginação: 276-279
ISSN: 0254-1106
 

Refêrencia eletrónica
Luís Quintais, « Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios », Revista Crítica de Ciências
Sociais [Online], 91 | 2010, posto online no dia 03 dezembro 2012, consultado o 22 setembro 2020.
URL : http://journals.openedition.org/rccs/4464  ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.4464
Revista Crítica de Ciências Sociais, 91, Dezembro 2010: 275-287

Recensões

Campos Costa, Pedro; Louro, Nuno (2009), Duas Linhas. Edição dos
autores, 224 pp.
Mais do que um road book o centro desta espécie de road map, ou de
O livro Duas Linhas é uma edição dos au- road book, a verdade é que Pedro Campos
tores, bilingue, publicada no âmbito dos Costa e Nuno Louro tiveram a inteligência
denominados “Projectos Tangenciais” de o tornar em algo mais do que um registo
promovidos pela Bienal Experimenta­ impressivo, circunstancial e auto­‑centrado.
Design em 2009. A sua concepção resulta Neste sentido, convidaram dois artistas
de um projecto pessoal traçado por Pedro – os fotógrafos Daniel Malhão e Nuno
Campos Costa e Nuno Louro, e materiali- Cera – a completar o seu olhar subjectivo
zado numa dupla viagem que realizaram, sobre as cinco regiões portuguesas, mas
em Julho desse ano, ao longo do território também, e numa perspectiva interdisci-
português, de Norte para Sul – uma pelo plinar, cinco autores ligados à investigação
litoral; outra pelo interior – registando, em urbanística e paisagística, a discorrer, mais
suporte fotográfico, momentos dessas duas objectivamente, sobre temas despoletados
aparentes “linearidades” paisagísticas. por essa deriva geográfica. São eles: Mário
Formados, ambos, em arquitectura, em Alves, especialista em Ordenamento do
finais da década de 1990, com posteriores Território e Mobilidade; Álvaro Domin-
experiências de estudo e de trabalho fora gues, geógrafo do Centro de Estudos de
de Portugal, os dois autores encontraram, Arquitectura e Urbanismo da Faculdade
neste projecto, uma forma de “regressar” de Arquitectura da Universidade do Porto;
simbolicamente ao seu território, ou, tal João Nunes, paisagista e docente do Ins-
como afirmam, um modo de fazer uma tituto Superior de Agronomia da Univer-
“TAC” ao seu próprio país (7). Para o sidade Técnica de Lisboa; Samuel Rego,
efeito, estabeleceram 118 referenciais geo­ historiador ligado ao Instituto Camões; e
gráficos (59 pontos × 2 linhas) sobre um João Seixas, economista e geógrafo urbano
mapa de Portugal, ao longo dos quais rea­ do Instituto de Ciências Sociais da Univer-
lizaram 59 pares de fotografias, captadas sidade de Évora.
à mesma latitude (litoral e interior), nos Com esta inclusão, o projecto ganhou
mesmos dias, e, sempre que possível, em maior densidade crítica, como atestam os
horas coincidentes. textos preambulares que debatem e enri-
Pelo seu carácter assumidamente empi- quecem o imaginário documentado pelas
rista, este projecto não pretendeu com- 118 imagens captadas pelos arquitectos­
petir com outras análises territoriais, de ‑autores, mas também pelos 10 retratos re-
índole científica, aproximando­‑se mais, gionais propostos pelos artistas­‑fotógrafos
na verdade, de uma deriva conceptual ou convidados.
de uma “performance” artística, passível Mário Alves escreve ironicamente sobre a
de ser documentada sob a forma de uma “dromologia da rotunda”, caracterizando
exposição­‑instalação ou de um livro, como as novas e rápidas infraestruturas viárias
veio a acontecer. No entanto, e ainda que que se sobrepõem a um país de velhos e
as suas fotografias de viagem constituam morosos costumes, mas que “quis ser rico,
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depressa”. Como diz o especialista: “Este – o grande problema do litoral é a mobili-


projecto obriga­‑nos a reflectir estas contra- dade versus o imobilismo do interior. Nada
dições – pede­‑nos para parar e observar, mais erróneo. Ambas as linhas sofreram
num tempo em que, dizem­‑nos, não se metamorfoses deveras significativas a nível
pode parar” (22­‑23). social, económico e cultural ao longo dos
Álvaro Domingues aprofunda, no ensaio séculos” (67).
mais longo do livro, a tensão entre as pola­ Por fim, João Seixas escreve sobre o sen-
ridades que povoam a paisagem urbana tido desta viagem deambulatória entre dois
portuguesa: cidade/campo; rua/estrada; tempos de um mesmo Portugal. Nota que
litoral/interior; centro histórico/cidade “a pós­‑modernidade portuguesa, tão dis-
genérica. Em jeito de síntese, o geógrafo léxica e metaforicamente tão expressa nas
deixa um aviso: “O zapping paisagístico que novas estradas, parece vir bem espelhada
as imagens registam é o sismograma do país nas paisagens destas duas linhas, e nas
que muda, mas o que verdadeiramente tem diferentes escalas de olhar que elas nos
que mudar é a forma de olhar e avaliar essa evocam. […] Mas por detrás do Portugal
mudança. […] A paisagem continua a ser pós­‑moderno, em cada canto das telas,
um conceito­‑esponja de uma tal porosidade ainda tanto do Portugal pré­‑moderno: uma
que é capaz de tudo absorver e de tudo paisagem de descompasso, ainda bem por-
expulsar, em apertando. Pergunte­‑se mais tuguesa. […] Acaso faltaria escrever, por
para que serve e o que transporta o discurso todo o território: Mind the gap” (72­‑73).
e a representação sobre a paisagem” (56). Como se depreende, este é um livro sobre
Indagando sobre essa mesma utilidade fu- a paisagem portuguesa, embora já não no
tura, João Nunes afirma que este projecto seu sentido estático, bucólico ou catártico
pode servir de base a um desejável “Obser- de outrora. Essa “outra” paisagem revelada
vatório da Paisagem”, algo que, segundo o pelas sucessivas fotografias de viagem, as-
autor, constituiria “um instrumento capaz sim como pelas diferentes reflexões que as
de estabelecer métodos de observação e referenciam, corporiza o mapa de um país
registo das transformações da paisagem, em acelerada mutação, sempre hesitante
capaz de implementar esse registo no ter- entre essas “duas linhas” de desenvolvi-
reno, e de gerir a sua utilização para a pro- mento. O mesmo mapa que “embrulha”,
dução de estudos sobre o passado e sobre em jeito de sobrecapa, esta bela edição
o futuro do território” (61). composta graficamente pelo atelier de de-
Já Samuel Rego desmistifica muitos clichés sign R2. Um road map que, enfim, pode
estabelecidos em torno das assimetrias ler­‑se como um roteiro da nossa própria
entre as “duas linhas”. Como diz, “ocorre identidade nacional.
vulgarmente a tentação simplista de iden-
tificar problemas por oposição, do género Nuno Grande

Teyssot, Georges (2010), Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios. Lisboa:


Edições 70; Coimbra: Edarq, 295 pp.
O volume de ensaios do historiador e ao desenho que este percurso vai fazendo
crítico da arquitectura Georges Teyssot será, talvez, o de definir com clareza as
perfaz um arco temporal de mais de trinta figuras­‑chave que o alimentam e o tipo de
anos. Um modo de aceder globalmente utensilagens metafóricas e conceptuais de
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que se serve ao longo da sua viagem pelos textos inaugurais. Refiro­‑me a “Eteroto-
territórios da crítica. pia e storia degli spazi” (31­‑44). Perante
Convirá então dizer que o pensamento as topologias da descontinuidade que o
de Teyssot se define tendo em conta três conceito de heterotopia reclama, onde fica
vértices maiores: Michel Foucault, Walter o projecto disciplinador ou normalizador
Benjamin, e Gilles Deleuze. que parece ter obcecado os modernos?
Georges Teyssot desenvolve o seu trabalho Dir­‑se­‑ia que todos os sistemas de regras
através de uma estratégia que implícita e a partir dos quais se pretendeu edificar a
explicitamente depende de três elementos pólis moderna estavam votados ao ilegis-
vocabulares que podemos colher, justa- lável da prática e da excepção, ou seja, a
mente, em Foucault, Benjamin e Deleuze: diuturnidade (a fluidez do real, a sua conti-
“heterotopia”, “passagem” e “multiplici- nuidade pautada pelo hábito e pela ausên-
dade”. Podemos, desde já, assinalar em cia de excepção) é afinal constantemente
Da teoria de arquitectura uma espécie de tomada de assalto pela descontinuidade e
generatividade constitutiva que tem por ausência de linearidade. Ao “consolo” pro-
parâmetros iniciais uma redescrição de metido pela “utopia” parece contrapor­‑se
“heterotopia”, uma redescrição de “pas- o rosto irónico das figurações – espacia-
sagem”, e uma redescrição de “multiplici- lizadas – da heterotopia, figurações que
dade”. Redescrições que são assumidas no consagram, assim, os contra­‑arranjos da
estudo introdutório que é “Por uma topo- pólis. A descontinuidade é, em Foucault
logia de constelações do quotidiano” (17­ e em Teyssot, uma marca da história e da
‑28), onde escreve uma belíssima diatribe sua turbulência, uma inscrição que fractura
às pretensões metodológicas (e instrumen- irremediavelmente o vidro da história, e as
tais também) que se fazem ou podem fazer ilusões normativas e os nativismos da crí-
inscrever na crítica da arquitectura: tica e da sua tradução prática só podem
ser amplamente recusados, porque, de um
[E]sta colectânea de textos é apresentada modo ou de outro, estão condenados ao
de uma forma não­‑metodológica; quer fracasso da incorrecta apreciação da histo-
dizer, não tanto uma ‘meta odos’ (já que ricidade que atravessa desenho e matéria.
em grego meta significa através dos meios A “teratologia do saber” (39) que Fou-
e odos a estrada, método é a super­‑auto­ cault torna visível, envia­‑nos para uma
‑estrada do pensamento), mas muito mais concepção da crítica que se recusa a di-
uma série de caminhos, atalhos que atra- luir a presença da complexidade. Teyssot
vessam a espessura da vida quotidiana, diz­‑nos explicitamente que a história se
com as suas infelicidades oprimentes, define pela sua ausência de linearidade,
perpétuos maus hábitos, irreprimíveis sendo toda a ambição tipológica equívoca
depressões, desejos reprimidos, anseios já que se compraz numa tarefa destinada
inefáveis, melancolias não confessadas. à mera reescrita:
No entanto, esta obscuridade é desanu-
viada pela animada cavaqueira da má­ O trabalho dos demógrafos e dos histo-
‑língua, a segurança aconchegante do lu- riadores – como Philippe Ariès e Louis
gar comum, e o estranho conforto da Chevalier –, e do próprio Foucault, de-
familiaridade. (17) monstra que não há linearidade no que
diz respeito à história do ‘habitat’. Quan-
Em 1977, Teyssot fazia publicar na colec- do isso se tornou uma questão de reunir
tânea Il dispositivo Foucault um dos seus uma morfologia histórica da cidade
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transmitindo uma ‘evolução’ de ‘tipolo-


Passagen­‑Werke. Estamos face a um re-
gias’ residenciais, houve que fazer dedu-
gisto que espacializa a fluidez dos abertos
ções a posteriori com base em diagramas
e dos fechados, dos interiores e dos exte-
reconstrutivos do século XIX, bem como
riores, das transparências e das opacidades.
em arquivos civis, incluindo registos de
A grande metrópole moderna pode assim
impostos e tributação, que na melhor das
ser pensada como um espaço consagrado
hipóteses forneceram um levantamento
à liminaridade, ou seja, a experiências
do desenvolvimento da habitação baseada
que são em simultâneo interiores e exte-
num estudo da subdivisão de lotes e fun-
riores. Não é por acaso que Teyssot apela,
ções dos compartimentos. (40)
logo de início, à noção de heterotopia e à
centralidade desses “espaços outros” na
Teyssot parece assim mostrar­‑nos, através cidade. E não é ainda por acaso que, ao
da sua incursão em território foucauldiano, longo de Da teoria, irá fazer uma analítica
que é com extrema reserva e enorme parci- das condições materiais e simbólicas em
mónia que devemos encarar a investigação que se desdobram as passagens e os flu-
histórica do fenómeno urbano e da arqui- xos da urbanidade. O betwixt and between
tectura. Em particular, não há em Teyssot ­poderá ser aqui assimilado a um conjunto
o menor interesse pelas soluções salvacio- de apreciações que põem em relação a
nistas ou nativistas que reivindicam uma materialidade dos espaços e dos objectos
morfologia de grafismo exemplar. Trata­‑se com a experiência das passagens que aí se
de um crítico desassombrado de um tema anuncia constantemente. Dos móveis às
caro à modernidade. Refiro­‑me àquele janelas, passando pelas construções em
que se prende com a pureza e resgate da vidro e metal, tudo parece estar destinado
“origem” (o que marca a emergência das à recursiva experiência liminar em que se
ciências humanas, e que terá interpelado alicerça a vida quotidiana na grande metró-
Foucault ao longo de uma parte apreciável pole, onde o público e o privado se meta­
do seu percurso). Não são apenas as suas morfoseiam reciprocamente, revelando a
observações sobre Heidegger que aqui se instabilidade mercurial do moderno:
tornam relevantes, mas antes, e sobretudo,
o modo como, em Da teoria, Teyssot em- Esses ‘espaços de passagem’ flutuantes,
preende uma singular viagem em torno da percorridos por toda a espécie de fluidos,
noção de “tipo”, chamando­‑nos a atenção, atravessados por ventos e por feixes lumi-
por exemplo, para a centralidade que aí as- nosos, ‘onde já não mora ninguém’, como
sumem os estudos de Franz Gall em torno diz Ernst Bloch, constituem a morada
da fisiologia e craniologia. ideal do trabalhador moderno e nómada.
Georges Teyssot é alguém que recorren- O ‘alojamento de passagem’ esvazia­‑se
temente promove um regresso à com- também de móveis. É, de resto, a imobi-
plexidade e à multidimensionalidade da lidade do móvel a consentir a mobilidade
experiência quotidiana e dos seus fluxos, do habitante e a condicionar o seu noma-
revelando um interesse acentuado por pre- dismo. (104)
posições e verbos (ligações e processos).
Dá preferência aos limiares e às regiões Estamos face a uma constante remissão
de contágio entre objectos, uma prefe- para espaços, habitações, corpos, onde se
rência que se poderá assimilar à experiên­ desenham percursos, derivas, flutuações,
cia das “passagens” que Benjamin terá dissonâncias, multiplicidades. E este vo-
interrogado de forma magistral no seu cábulo (“multiplicidades”, precisamente)
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ganha em Teyssot um sabor acentuada- Teyssot poderia subscrever no seu texto


mente deleuziano. este regime de experimentação e de trans-
Dir­‑se­‑ia que o habitar de Teyssot trai gressão criativa que se anuncia no Kafka
constantemente uma cartografia aberta e de Deleuze e Guattari. Toda a regulari-
dobrada que Deleuze e Guattari soube- dade é feita de um regime de multiplici-
ram identificar em Franz Kafka através dades onde a “repetição” e a “diferença”
da leitura que lhe dedicaram no extraor- se afiguram como instrumentais para o
dinário Kafka. Pour une littérature mineur “devir­‑teórico” do crítico e para a expe-
publicado em 1975. Descobre­‑se em K ­ afka rimentação que ele deve promover. Um
uma arquitectura descontínua, perma- crítico que não se encontrasse devorado
nentemente fluida. Esta arquitectura das pela tentação hermenêutica seria, certa-
descontinuidades poderá ser assimilada mente, um melhor crítico, parece querer
à narrativa dos anos vinte Der Bau. Nesse dizer­‑nos Teyssot. Daí a importância que
conto inacabado (e é sintomática a natu- aufere no percurso de Teyssot a concep-
reza inacabada do conto, como, aliás, de tualização de multiplicidades deleuzianas
parte considerável do trabalho de Kafka que explicitamente convoca no seu ensaio
quando a confrontamos com a leitura de- “Arquitectura híbrida: um ambiente para
leuziana), um animal assimilável a uma o corpo prostético” (259­‑275) onde são
toupeira constrói um elaboradíssimo destacados os conceitos de “máquinas
complexo de túneis que se revelam, na sua desejantes” e “corpo sem órgãos”. Neste
complexidade e proliferação, um disposi- contexto, poder­‑se­‑á afirmar que Teyssot
tivo cuja configuração acentrada poderá hibridiza as práticas crítica e construtiva de
ser a melhor resposta aos dilemas da fra- maneira radical, ao restablecer constante-
gilidade desta criatura ameaçada (da qual mente a recursividade múltipla entre a ar-
pouco sabemos) que se interroga sobre a quitectura, tomada como uma arte que faz
“máquina” kafkiana/deleuziana que cons- conexões, ligações, assemblamentos, e o
truiu e a qual percorre incessantemente. corpo onde as inscrições técnicas se torna-
O espaço deleuziano (rizomático, prolife- ram amplamente codificadas no presente.
rante, e múltiplo) encontra­‑se amplamente
ilustrado em Der Bau. Luís Quintais

Allegretti, Giovanni; Sintomer, Yves (2009), I bilanci partecipativi in


Europa. Nuove esperienze democratiche nel vecchio continente. Roma:
Ed. Ediesse, 480 pp.1
Qual é a relação entre os objectivos, as ex- de Giovanni Allegretti e Yves Sintomer
pectativas e as consequências efectivas das I bilanci partecipativi in Europa. Nuove
práticas participativas? E qual é a relevân- esperienze democratiche nel vecchio conti-
cia global (política, institucional, social) da nente2 ajuda a esclarecer e dar resposta a
oferta de oportunidades participativas por estas e outras questões, apresentando os
parte das instituições políticas? O volume resultados de uma pesquisa que traça um

1   A publicar em versão portuguesa com o título 2


  Título em português: Os orçamentos participativos
Os Orçamentos Participativos na Europa (Coimbra: na Europa. Novas experiências democráticas no velho
Almedina, 2011). continente [N.T.].
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mapa dos orçamentos participativos (OP) características e consequências práticas;


europeus. Assinala e interpreta analogias e (ii) uma segunda que, por sua vez, tem
diferenças, além de propor elementos para por objecto mais geral a participação. Esta
a interpretação das potencialidades e limi- é sobreponível à primeira e, sobretudo,
tes do fenómeno participativo. propõe uma interpretação dos significa-
Os autores apostam numa clara aborda- dos presumíveis dos diferentes desenvolvi-
gem sociológica, tornando bem perceptí- mentos dos OP: democracia participativa,
veis os seus valores de referência. Utilizam democracia de proximidade, moderniza-
um desenho de investigação fundado so- ção participativa, parceria participativa,
bre um ideal­‑tipo, que identifica no OP de neocorporativismo. O modo como são
Porto Alegre o modelo de uma prática que apresentadas as variáveis, sobre as quais
determina as características em presença são construídas as duas tipologias, ofe-
das quais é possível falar da existência de rece algumas dúvidas, visto que variáveis
um OP ou medir as suas mutações. De dependentes e independentes nem sem
facto, com as suas adaptações, o OP revela sempre são distinguidas de forma clara.
ser uma prática fortemente dependente do Além do mais, outras poderiam ser consi-
contexto: inserido em ambientes distintos deradas, como por exemplo as condições
pode alterar não só formas e métodos, económicas: onde se encontra o ambiente
como também o seu significado de fundo mais favorável para a instalação de práticas
e, por fim, perder o seu sentido inicial e como os OP, e para os diferentes tipos de
profundo enquanto prática antitética ao OP? Em economias locais ricas, em dinâ-
neoliberalismo nas políticas locais e à go- micas de crescimento, ou entre aquelas
vernação fundada em parcerias público­ afectadas pelo subdesenvolvimento e até
‑privadas. Deste modo, o OP surge do por crises, deslocalizações, etc.? Por ou-
estudo como um caso de “glocalização” tras palavras, será que as condições das
política e cultural, podendo representar economias locais, que se reflectem sobre
– de perspectivas teóricas diferentes da- o estado das finanças municipais quando
quelas utilizadas no texto – um caso de estas têm autonomia impositiva, são im-
policy transfer (transferência no tempo e portantes para favorecer a implementação
no espaço de modelos e soluções para as de práticas participativas? E de que tipo?
políticas públicas), de institutional trans- A dupla tipologia proposta mantém­‑se,
plantation, ou de translação (metáfora no entanto, o contributo mais importante
linguística usada para indicar a inevitável, do trabalho, pois o sentido dos orçamen-
ainda que parcial, deturpação que ocorre tos participativos é reconstruído a partir
quando se traduz uma obra numa outra da diversidade de ninhos favoráveis ao seu
língua para torná­‑la legível a um público desenvolvimento, no mais amplo e dife-
diferente). renciado florescer de práticas participati-
Desta declinação plural do OP, a inves- vas. Aqui são colocadas as questões mais
tigação também individualiza alguns fac- interessantes, algumas das quais ainda em
tores explicativos. Em particular, para aberto. A mais importante diz respeito à
pôr ordem entre as diferentes transfor- capacidade de os diversos tipos de OP
mações, derivas e reinvenções do OP, os europeus terem impactos de democrati-
autores efectuam um importante esforço zação, capacitação e redistribuição de
de sistematização, propondo duas tipolo- poder, sendo a resposta moderada e rea-
gias: (i) uma que classifica os OP efectiva- lista: os “orçamentos participativos euro-
mente realizados, de acordo com as suas peus, na maior parte dos casos, ocupam­‑se
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mais de painting e talvez de building, mas orientados para a valorização do espaço


não de housing”. Existem importantes em termos coerentes com as políticas de
potencialidades de democratização nos competitividade. Assim, as práticas parti-
tipos de OP mais próximos do modelo de cipativas que têm uma dimensão de demo-
Porto Alegre (modelos de “democracia cratização e redistribuição social, embora
participativa” e de “desenvolvimento de mínimas, tendem a manter­‑se confinadas
comunidade”), sendo que nos outros ca- no âmbito de nichos específicos e des-
sos existem quase sempre oportunidades politizados. Isto pode resultar de vários
de encontro com processos de “moderni- factores, entre os quais a necessidade de
zação administrativa”. Também o recurso um contrapeso na governação local rela-
a este conceito pode originar alguns equí- tivamente às formas mais exclusivas de
vocos, tendo em conta, nomeadamente, o diálogo entre elites políticas e económicas.
carácter pouco neutro do seu uso mais Ou então o efeito de regimes políticos de
difundido, associado à ideia de inovação coligação, em que às componentes mino-
organizativa nas administrações públicas ritárias e radicais de alianças fragmentadas
dominantes nos últimos 25 anos e que são atribuídos âmbitos de iniciativa polí-
corresponde a valores e instrumentos em tica e de despesa menor, mas correspon-
sintonia com o New Public Management dente às suas preferências, desde que não
e com a administração organizada do perturbem o carácter totalmente liberal
neoli­beralismo. das políticas locais, assim como as rela-
Mas a dificuldade em concretizar a de- ções privilegiadas entre sistema político e
mocracia participativa, na qual o OP actores económicos.
dá provas de ser um instrumento com A investigação aponta também para uma
potencialidades democráticas e de re- reflexão crítica sobre a ênfase amplamente
distribuição social maior do que os ou- divulgada nas supostas vantagens das prá-
tros, parece sobretudo corro­borar o que ticas deliberativas. Segundo os resultados
também outras pesquisas evidenciaram: previstos por Allegretti e Sintomer, sinte-
a participação, entendida como envolvi- tizados na tabela da página 314 da edição
mento nos processos públicos de indi- italiana, a qualidade deliberativa não é um
víduos ou de actores da sociedade civil factor que, por si só, diversifique de modo
portadores de visões orientadas para os significativo as tipologias de participação.
bens comuns, produz efeitos sobre as de- Além disso, poderia ser considerada a hi-
cisões tanto mais intensas quanto menor pótese segundo a qual as experiências do
é a saliência política do que é posto em OP se inserem no modelo de democracia
jogo – isto é, quando o que está em jogo participativa por terem aquele perfil espe-
diz respeito a aspectos de proximidade e cífico, ou seja, por serem uma das poucas
não a perspectivas de desenvolvimento práticas deliberativas democráticas. Como
de uma cidade ou de um território. Por tal, parece no entanto não fugir ao limite
outro lado, quando nas decisões públi- do que está em jogo, normalmente mais
cas a distribuição de recursos é mais im- “micro” do que estratégico, especialmente
portante, prevalecem outras formas de na Europa.
inclusão, que transportam a marca da Obviamente, uma boa investigação não
governação neoliberal (parceria público­ pode colocar, e muito menos responder,
‑privada, planificação estratégica). Nestes a todas as possíveis questões sobre o fe-
casos, os protagonistas não são sujeitos nómeno indagado. Em particular, consi-
sociais débeis, mas interesses económicos derando o arco temporal até aqui coberto
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pelo desenvolvimento dos OP, é possível diferentes entre si – não pode mais que
colocar­‑se uma interrogação acerca do manter aberta a questão mais difícil: o OP
futuro do OP enquanto tecnologia parti- será substituído por outras formas de par-
cipativa e de governo. Pode, de facto, com- ticipação? Ou então: será que a sua elevada
partilhar o destino de outros instrumentos propensão para a hibridez lhe consentirá
de inovação da política, do fazer política uma sobrevivência evolutiva, assumindo
e do funcionamento das instituições: nas- mais uma vez formas e, acima de tudo,
cer, desenvolver­‑se e morrer num espaço significados diferentes? Particularmente
de tempo frequentemente não muito supe- interessantes e promissoras a este propó-
rior a uma década. Pensemos na Citizens’ sito são as indicações conclusivas sobre
Charter, nos “orçamentos sociais”, nas as receitas (fiscais e não fiscais) enquanto
técnicas comunicativas de e­‑government, objecto de participação (397 da edição ita-
nas diversas gerações de instrumentos de liana). Por sua vez, são levantadas as maio-
controlo, monitorização e avaliação das res perplexidades quanto às perspectivas
políticas e da acção administrativa. Em de hibridez com formas de inclusão basea-
comum, os muitos métodos de inovação das nos stakeholders (empresas e sociedade
têm uma facilidade intrínseca em passa- civil organizada), como nos últimos dois
rem de moda, visto serem substituídos por modelos­‑tipo ideais (“mesa de negociação”
outros. Por isto, a pesquisa de Allegretti e e participação dos interesses organizados)
Sintomer – a partir da constatação de que delineados no volume.
hoje o OP originário se declina em formas
e assume sentidos políticos e sociais muito Ernesto d’Albergo

UN HABITAT (2010), State of the World’s Cities 2010/2011: Cities for All,
Bridging the Urban Divide. London, Washington: Earthscan, 224 pp.
O United Nations Human Settlements na elaboração de políticas urbanas e apre-
Programme (UN­‑HABITAT) foi criado senta, no fim, recomendações para a cons-
em 1978, dois anos após da realização trução de cidades inclusivas. Na introdução
da ­H abitat Conference em Vancouver, do relatório, Anna K. Tibaijuka, Directora
Canadá. É uma agência da Organização Executiva do UN­‑HABITAT, salienta que
das Nações Unidas para assentamentos “this Report contributes to bridge the gap
humanos, que “helps the urban poor by between scientific information and soci-
transforming cities into safer, healthier, etal action, which is a simple, but funda-
greener places with better opportunities mental requisite, to promote e­ quity and
where everyone can live in dignity” (UN­ sustainability for more harmonious cities.”
‑HABITAT’s Brochure, 2009). Uma das A Directora Executiva refere­‑se aqui ao
suas principais publicações é State of the Relatório 2008/2009, que adoptou o con-
World’s Cities. Iniciada em 2001, a série ceito de cidade harmoniosa como quadro
– que actualmente é bianual – tem o obje- teórico para entender o mundo urbano e
tivo de destacar os desafios que a urbani- como instrumento operacional para en-
zação coloca às cidades do mundo. frentar os mais importantes desafios das
O Relatório de 2010/2011, publicado sob áreas urbanas. A ideia de unificar a cidade
o título Cities for All, Bridging the Urban através do planeamento (capítulo 4, Rel.
Divide, aponta uma mudança de paradigma 2008/2009) levou a que o Relatório de
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2010/2011 se concentrasse sobre o conceito de migrantes do campo para áreas urba-


urban divide entre a cidade legal e a favela. nas e outro quarto de pessoas que viviam
A informalidade urbana também já tinha em áreas rurais nas periferias das cidades
sido a tónica no Relatório de 2006/2007. e que viram as suas residências engolidas
Os Objetivos do Milénio foram o quadro pelo crescimento urbano. Porém, o Rela-
referencial pelo qual o UN­‑HABITAT tório não se delonga muito a explicar como
analisou a cidade e a favela. Colocando tal aconteceu, retomando a abordagem do
à prova a capacidade de intervenção urban divide para apresentar um quadro
dos Estados africanos, asiáticos, latino­ referencial baseado em direitos como a
‑americanos e caribenhos, os países foram dignidade humana.
classificados de acordo com as seguintes O Relatório inicia­‑se com a constatação de
categorias: (i) on track: baixa incidência ou que há taxas cada vez mais altas de urba-
rápido declínio nas taxas de crescimento nização da população mundial, e que mui-
das favelas; (ii) stabilizing: estabilização tas cidades, principalmente dos países em
ou reversão das taxas de crescimento e desenvolvimento, estão despreparadas
necessidade de monitoração; (iii) at risk: para intervir nos processos de urbanização.
crescimento moderado a alto das taxas, O estudo argumenta que esse contexto cria
moderada incidência e necessidade de cidades divididas, o que é drasticamente
políticas corretivas; (iv) off risk: alta pro- visível nas maiores cidades do mundo
porção, rápido crescimento e necessidade ­através do contraste entre arranha­‑céus e
de acções urgentes e imediatas. Os países favelas.
at risk e off risk precisavam de se esforçar Na primeira parte – Urban Trends – o
para cumprir os Objetivos do Milênio – em Relatório discorre sobre o crescimento
especial o número 7, meta 11: melhorar a do urbano no mundo. São identifica-
vida de pelo menos 100 milhões dos 1,4 das cidades­‑região, corredores urbanos
bilhões de moradores a morar em favelas e mega‑regiões classificadas como mo-
previstos para 2020; segundo a estimativa tores da economia global e regional.
do Relatório, haveria 715 milhões de pes- Ao relacionar urbanização e pobreza, o
soas a morar em favelas em 1990. Relatório define dois recortes espaciais
Para Anna K. Tibaijuka, a publicação do para centrar a sua análise: o primeiro
Relatório de 2010/2011 ocorre “in a very concentra­‑se nos ­países africanos, asiáti-
important year – a key milestone that cos, latino­‑americanos e caribenhos, e o
marks the halfway point towards the dead- segundo nas favelas das grandes cidades
line for the slum target of the Millenium desses países. O Relatório apresenta, então,
Development Goals”. E congratula­‑se com um ranking dos países no que respeita ao
o facto de os governos terem “collectively progresso alcançado na redução das fave-
exceeded the slum target of Millennium las. Os países que, em números absolutos,
Development Goal 7 by at least 2,2 times, mais reduziram a população das favelas,
and 10 years ahead of the agreed 2020 entre 2000­‑2010, foram a China (65,31 mi-
deadline”. De acordo com o Relatório, 227 lhões), a Índia (59,73 milhões), a Indonésia
milhões de pessoas em todo o mundo dei- (21,23 milhões) e o Brasil (10,38 milhões).
xaram a favela; mesmo assim, a população Por outro lado, as que mais diminuíram
das favelas cresceu de 776,7 milhões para a percentagem da população residente
827,6 milhões durante a última década. Do nas favelas foram a Indonésia (47,5%),
crescimento ocorrido, metade veio de pes- Marrocos (45,8%), a Argentina (40,7%),
soas que já viviam em favelas, um quarto a Colômbia (39,7%) e o Egipto (39,2%).
284 | Recensões

Na segunda parte – The Urban Divide – o da inclusão económica, social e política, o


Relatório confirma a abordagem da cidade Relatório demonstra como as dinâmicas
dividida – entre incluídos e excluídos – regionais operam no que respeita a es-
para argumentar que essa divisão estimula sas categorias e defende uma abordagem
a desigualdade e a estratificação social, que multidimensional da inclusão e da cultura
reflectem as diferenças em que o espaço e enquanto factor de grande importância.
as oportunidades são produzidos, apro- Por fim, o Relatório estabelece cinco estra-
priados, transformados e usados. A cidade tégias para uma cidade inclusiva: (i) avaliar
inclusiva é apresentada, então, como uma o passado e medir o progresso; (ii) criar
abordagem positiva, que estabelece uma instituições mais eficazes ou fortelecer as
dinâmica baseada em direitos: o direito à existentes; (iii) criar alianças entre os níveis
cidade. É através desse quadro referencial de governo; (iv) desenvolver uma visão de
que a relação entre as quatro dinâmicas promoção da inclusão; e (v) assegurar a
da equidade – económica, social, política distribuição equitativa das oportunidades.
e cultural – se poderia tornar, de mero Se fizermos uma abordagem histórica da
paradigma conceitual, numa abordagem série State of the World’s Cities, verifica-
inclusiva e sustentável. Através da aná- mos que algumas perguntas dos Relató-
lise destes aspectos do urbano dividido, rios anteriores continuam em aberto. Se
o Relatório pretende demonstrar como os o Relatório de 2008/2009 pregava uma
processos inclusivos devem estar relacio- cidade unida, através do preceito da har-
nados com as dinâmicas da equidade para monia, por que razão é que o Relatório
que se possa romper com os processos de actual debate apenas as favelas dos países
marginalização da sociedade. africanos, asiáticos, latino­‑americanos e
Na terceira parte – Bridging the Urban Di- caribenhos ao invés do fenómeno da ur-
vide – o Relatório pretende avançar com o banização como um todo? O que aconte-
debate sobre o direito à cidade, que teria ceu com os países definidos em 2006/2007
como princípios: (i) a indivisibilidade dos como on track (Egipto, Porto Rico, Uru-
direitos humanos; (ii) a inclusão e a não guai, Cuba, Sri Lanka, Tunísia, Geórgia e
discriminação; (iii) a prioridade para gru- Tailândia)? Excluindo o Egipto, nenhum
pos vulneráveis e marginalizados; e (iv) a dos outros países apareceu no Relatório
equidade de género. Incluído nas Cons- de 2010/2011 como um caso de progresso
tituições Federais do Brasil, em 1988, e na diminuição da população das favelas.
do Equador, em 2008, o direito à cidade, E o que explica que os países que, em
segundo o Relatório, já foi implantado em 2006/2007, estavam na categoria at risk
diversos países com diferentes escalas de (China, Índia, Marrocos e Argentina) te-
sucesso, e não pode ser confundido com nham demonstrado, em 2010/2011, um
um simples instrumento legal. Deste modo, grande melhoramento? Talvez tenhamos
muitos municípios, de forma explícita ou estas respostas em 2012.
não, reforçam a efectividade do direito ao
implantarem políticas inclusivas. Partindo Juliano Geraldi
Recensões | 285

Pflieger, Géraldine (2006), De la ville aux réseaux/dialogues avec Manuel


Castells. Lausanne: Presses Polytechniques et Universitaires ­Romandes,
325 pp.
A crescente consciência a respeito da im- autor (La question urbaine, Monopolville,
portância das dimensões espaciais das so- The City and the Grassroots, The Informa-
ciedades e um olhar que concebe o espaço tional City e The Information Age), ten-
como grandeza fundadora e essencial da tando associar a discussão de cada livro a
nossa relação com o mundo são os pon- uma descrição do mundo de Castells e do
tos de partida e de motivação da colecção contexto de realização do trabalho. Após
­espace en société, penseurs d’espace, na qual um primeiro capítulo dedicado à biografia
se insere a obra de Géraldine Pflieger. intelectual e pessoal de Castells, cada uma
Partindo de uma série de entrevistas reali- das obras escolhidas é apresentada num
zadas quase na totalidade face­‑à­‑face com capítulo distinto. Os capítulos iniciam­‑se
Manuel Castells no ano de 2004, a autora, invariavelmente pela síntese e contextuali-
colaboradora científica do Laboratório de zação do respectivo livro, cuja abordagem
Sociologia Urbana da Escola Politécnica foi desenvolvida numa das entrevistas rea­
Federal de Lausanne e cuja trajectória é lizadas, organizada por temas e transcrita
marcada pela preocupação com objectos em seguida, e finalizam­‑se com a apresen-
e problemáticas extremamente próximos tação das principais críticas suscitadas pela
dos de Castells, propõe­‑se a (re)traçar a obra em questão.
génese e a evolução da produção cientí- O primeiro capítulo, de carácter bio-
fica desta “antiga emblemática figura da gráfico, destaca a riqueza intelectual e
sociologia urbana marxista” (2) nascida em política da juventude de Castells, vivida
Barcelona. Para tal, Pflieger desenvolveu sob diferentes influências ideológicas:
um trabalho de “historicismo reflexivo”, o anarquismo, o marxismo e a “tentação
método utilizado anteriormente pelo so- revolucionária”. A entrevista abrange
ciólogo Christian Topalov, que consiste desde os primeiros anos na universidade
em situar a obra no contexto dos múlti- em Espanha até à experiência vivida em
plos debates e controvérsias dos quais ela 1968, quando, exilado no Chile, estudou os
foi objecto no momento de sua produção, movimentos de bairro daquele país, tendo
tanto no mundo académico quanto entre contacto com a “pobreza desesperada,
os actores sociais. O objectivo desta opção o terceiro mundo” (42). Entre estes dois
foi de evitar o risco de uma abordagem momentos, incluem­‑se episódios da vida
anacrónica, que, por meio de um olhar do estudante anarquista que lutou contra
distante, se limitasse a analisar uma pro- o franquismo e que, exilado em França,
dução – anos depois de sua realização – teve como orientador de tese o sociólogo
com um foco redutoramente centrado no Alain Touraine, e do professor assistente
seu carácter ultrapassado, nas suas falhas da Universidade de Nanterre que, tendo
e desfasamentos. Para escapar a este risco, como aluno Daniel Cohn­‑Bendit, se envol-
seria necessário situar a produção da obra veu directamente no movimento de Maio
de Castells no seu contexto científico e in- de 68 até ao exílio no Chile.
telectual, evidenciando o seu impacto e a Em 1972, Castells publica La question
sua recepção no cerne dos debates teóricos ­urbaine, uma abordagem marxista sobre a
e ideológicos. Assim, Pflieger analisa aque- questão urbana realizada num contexto ca-
las que julga serem as principais obras do racterizado pela explosão das lutas urbanas
286 | Recensões

e pela politização do urbano em todo o The City and the Grassroots, obra que
mundo. Trata­‑se de uma obra de ambição representa uma ruptura tanto no plano
teórica que, fundamentada no estrutura- teórico, afastando­‑se do estruturalismo,
lismo, procurava propor um novo esquema quanto metodológico, realizando a pas-
de análise, o “sistema urbano” (55). Cas- sagem de um método hipotético dedutivo
tells critica a Escola de Chicago, rejeitando para um interactivo. Nesta obra, após
a análise do espaço focada na cultura ur- quinze anos de trabalho empírico, para
bana e propondo que esta seja realizada responder à problemática da produção
através da compreensão da estrutura so- da cidade e sob a influência de Alain Tou-
cial e da determinação do espaço pelos raine, Castells iria apoia­‑se na análise dos
modos de produção: “o espaço torna­‑se a actores sociais e na capacidade de trans-
expressão da estrutura social e sua análise formação da cidade e da sociedade pelos
leva a compreender como ele é determi- movimentos sociais urbanos.
nado pelos sistemas económico, político The Informational City, publicado em
e ideológico” (55). A inovação desta obra, 1989, demarcaria uma mudança temática
segundo o seu autor, foi a introdução da ligada a estudos realizados a partir de 1983
política e dos conflitos sociais no centro da sobre as relações entre inovações, novas
problemática urbana (64). tecnologias e territórios. A ambição desta
Em 1974, em colaboração com Francis obra foi de estudar as novas tecnologias
Godard, seria publicado Monopolville, da informação e os processos urbanos e
obra que, segundo Pflieger, representa um regionais, defendendo que o surgimento
testemunho da sociologia marxista urbana de um novo modo de desenvolvimento
durante a década de 70, cada vez mais informacional, conjugado com uma rees­
estruturada pelo Estado sob a influência truturação profunda do capitalismo, teria
do Ministério do Equipamento urbano. gerado uma modificação radical na relação
Com esta procurou­‑se, através da teoria entre produção, sociedade e espaço. Cas-
do sistema urbano desenvolvida em La tells destaca a colaboração dos estudantes
question urbaine, compreender a cidade de Berkeley na realização deste trabalho,
da fase monopolística do desenvolvimento afirmando que as suas obras são fruto de
do capital. Para tal, Castells elegeu como sua própria observação empírica de di-
maqueta quase experimental a cidade de ferentes regiões do mundo, inclusive da
Dunquerque, desenvolvendo uma enorme Califórnia, e do trabalho de análise de
pesquisa empírica que seria, segundo o diversos estudantes.
autor, um dos poucos méritos desta obra The Information Age, uma trilogia publi­
que ligou de maneira demasiado estreita cada em 1996, 1997 e 1998, teve reper-
a pesquisa à política (115). Monopolville cussões tanto no universo académico
seria um ponto de ruptura para Castells, quanto no político e económico e entre os
que, na entrevista, critica os trabalhos movimentos sociais. Nesta obra, Castells
fundamentados na teoria do capitalismo anuncia um quadro de análise global da
monopolista pelo seu parco rigor empírico era da informação, o que representou um
e nulo valor intelectual. Depois da publica- alargamento da análise técnico­‑económica
ção de Monopolville, Castells parte para os da cidade realizada em The Informational
Estados Unidos e dedica o fim da década City, passando da cidade à sociedade e dos
ao estudo dos movimentos sociais urbanos. Estados Unidos ao mundo inteiro.
Em 1983, quatro anos após haver chegado Percorrendo estas cinco obras de maneira
a Berkeley (Califórnia), Castells publica detalhada e exigente e sem deixar escapar
Recensões | 287

as influências vividas por Castells e os Castells, são revelados os cenários da pro-


­actores que participaram de seu universo dução sociológica e as principais correntes
intelectual, Géraldine Pflieger fornece uma presentes naquele contexto em França e
interessante e abrangente visão de uma nos Estados Unidos. De entre as inúme-
produção que, no formato apresentado, ras questões levantadas por Pflieger, Cas-
desperta curiosidade e interesse por parte tells evidencia a relevância que confere ao
do leitor de De la ville aux réseaux/dialo- trabalho empírico e a indispensabilidade
gues avec Manuel Castells que não conhece deste na pesquisa sociológica. No entanto,
a obra deste autor. A originalidade da obra apesar de a autora explorar a utilização
de Pflieger encontra­‑se não somente no destes trabalhos na elaboração das obras,
formato que elegeu, que, através de diá- pouco fica claro sobre os métodos utiliza-
logos, possibilita relacionar cada uma das dos por Castells para tal. A obra completa­
obras com a antiga e a actual perspectiva ‑se oferecendo a bibliografia completa de
de Castells, mas sobretudo na visibilidade Castells e um rico glossário das definições
que confere às rupturas e continuidades utilizadas pelo autor.
presentes no percurso intelectual e na pro-
dução do autor. Juntamente ao universo de Lays Silva

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