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91 | 2010
Debate social e construção do território
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/4464
DOI: 10.4000/rccs.4464
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Edição impressa
Data de publição: 1 dezembro 2010
Paginação: 276-279
ISSN: 0254-1106
Refêrencia eletrónica
Luís Quintais, « Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios », Revista Crítica de Ciências
Sociais [Online], 91 | 2010, posto online no dia 03 dezembro 2012, consultado o 22 setembro 2020.
URL : http://journals.openedition.org/rccs/4464 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.4464
Revista Crítica de Ciências Sociais, 91, Dezembro 2010: 275-287
Recensões
Campos Costa, Pedro; Louro, Nuno (2009), Duas Linhas. Edição dos
autores, 224 pp.
Mais do que um road book o centro desta espécie de road map, ou de
O livro Duas Linhas é uma edição dos au- road book, a verdade é que Pedro Campos
tores, bilingue, publicada no âmbito dos Costa e Nuno Louro tiveram a inteligência
denominados “Projectos Tangenciais” de o tornar em algo mais do que um registo
promovidos pela Bienal Experimenta impressivo, circunstancial e auto‑centrado.
Design em 2009. A sua concepção resulta Neste sentido, convidaram dois artistas
de um projecto pessoal traçado por Pedro – os fotógrafos Daniel Malhão e Nuno
Campos Costa e Nuno Louro, e materiali- Cera – a completar o seu olhar subjectivo
zado numa dupla viagem que realizaram, sobre as cinco regiões portuguesas, mas
em Julho desse ano, ao longo do território também, e numa perspectiva interdisci-
português, de Norte para Sul – uma pelo plinar, cinco autores ligados à investigação
litoral; outra pelo interior – registando, em urbanística e paisagística, a discorrer, mais
suporte fotográfico, momentos dessas duas objectivamente, sobre temas despoletados
aparentes “linearidades” paisagísticas. por essa deriva geográfica. São eles: Mário
Formados, ambos, em arquitectura, em Alves, especialista em Ordenamento do
finais da década de 1990, com posteriores Território e Mobilidade; Álvaro Domin-
experiências de estudo e de trabalho fora gues, geógrafo do Centro de Estudos de
de Portugal, os dois autores encontraram, Arquitectura e Urbanismo da Faculdade
neste projecto, uma forma de “regressar” de Arquitectura da Universidade do Porto;
simbolicamente ao seu território, ou, tal João Nunes, paisagista e docente do Ins-
como afirmam, um modo de fazer uma tituto Superior de Agronomia da Univer-
“TAC” ao seu próprio país (7). Para o sidade Técnica de Lisboa; Samuel Rego,
efeito, estabeleceram 118 referenciais geo historiador ligado ao Instituto Camões; e
gráficos (59 pontos × 2 linhas) sobre um João Seixas, economista e geógrafo urbano
mapa de Portugal, ao longo dos quais rea do Instituto de Ciências Sociais da Univer-
lizaram 59 pares de fotografias, captadas sidade de Évora.
à mesma latitude (litoral e interior), nos Com esta inclusão, o projecto ganhou
mesmos dias, e, sempre que possível, em maior densidade crítica, como atestam os
horas coincidentes. textos preambulares que debatem e enri-
Pelo seu carácter assumidamente empi- quecem o imaginário documentado pelas
rista, este projecto não pretendeu com- 118 imagens captadas pelos arquitectos
petir com outras análises territoriais, de ‑autores, mas também pelos 10 retratos re-
índole científica, aproximando‑se mais, gionais propostos pelos artistas‑fotógrafos
na verdade, de uma deriva conceptual ou convidados.
de uma “performance” artística, passível Mário Alves escreve ironicamente sobre a
de ser documentada sob a forma de uma “dromologia da rotunda”, caracterizando
exposição‑instalação ou de um livro, como as novas e rápidas infraestruturas viárias
veio a acontecer. No entanto, e ainda que que se sobrepõem a um país de velhos e
as suas fotografias de viagem constituam morosos costumes, mas que “quis ser rico,
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que se serve ao longo da sua viagem pelos textos inaugurais. Refiro‑me a “Eteroto-
territórios da crítica. pia e storia degli spazi” (31‑44). Perante
Convirá então dizer que o pensamento as topologias da descontinuidade que o
de Teyssot se define tendo em conta três conceito de heterotopia reclama, onde fica
vértices maiores: Michel Foucault, Walter o projecto disciplinador ou normalizador
Benjamin, e Gilles Deleuze. que parece ter obcecado os modernos?
Georges Teyssot desenvolve o seu trabalho Dir‑se‑ia que todos os sistemas de regras
através de uma estratégia que implícita e a partir dos quais se pretendeu edificar a
explicitamente depende de três elementos pólis moderna estavam votados ao ilegis-
vocabulares que podemos colher, justa- lável da prática e da excepção, ou seja, a
mente, em Foucault, Benjamin e Deleuze: diuturnidade (a fluidez do real, a sua conti-
“heterotopia”, “passagem” e “multiplici- nuidade pautada pelo hábito e pela ausên-
dade”. Podemos, desde já, assinalar em cia de excepção) é afinal constantemente
Da teoria de arquitectura uma espécie de tomada de assalto pela descontinuidade e
generatividade constitutiva que tem por ausência de linearidade. Ao “consolo” pro-
parâmetros iniciais uma redescrição de metido pela “utopia” parece contrapor‑se
“heterotopia”, uma redescrição de “pas- o rosto irónico das figurações – espacia-
sagem”, e uma redescrição de “multiplici- lizadas – da heterotopia, figurações que
dade”. Redescrições que são assumidas no consagram, assim, os contra‑arranjos da
estudo introdutório que é “Por uma topo- pólis. A descontinuidade é, em Foucault
logia de constelações do quotidiano” (17 e em Teyssot, uma marca da história e da
‑28), onde escreve uma belíssima diatribe sua turbulência, uma inscrição que fractura
às pretensões metodológicas (e instrumen- irremediavelmente o vidro da história, e as
tais também) que se fazem ou podem fazer ilusões normativas e os nativismos da crí-
inscrever na crítica da arquitectura: tica e da sua tradução prática só podem
ser amplamente recusados, porque, de um
[E]sta colectânea de textos é apresentada modo ou de outro, estão condenados ao
de uma forma não‑metodológica; quer fracasso da incorrecta apreciação da histo-
dizer, não tanto uma ‘meta odos’ (já que ricidade que atravessa desenho e matéria.
em grego meta significa através dos meios A “teratologia do saber” (39) que Fou-
e odos a estrada, método é a super‑auto cault torna visível, envia‑nos para uma
‑estrada do pensamento), mas muito mais concepção da crítica que se recusa a di-
uma série de caminhos, atalhos que atra- luir a presença da complexidade. Teyssot
vessam a espessura da vida quotidiana, diz‑nos explicitamente que a história se
com as suas infelicidades oprimentes, define pela sua ausência de linearidade,
perpétuos maus hábitos, irreprimíveis sendo toda a ambição tipológica equívoca
depressões, desejos reprimidos, anseios já que se compraz numa tarefa destinada
inefáveis, melancolias não confessadas. à mera reescrita:
No entanto, esta obscuridade é desanu-
viada pela animada cavaqueira da má O trabalho dos demógrafos e dos histo-
‑língua, a segurança aconchegante do lu- riadores – como Philippe Ariès e Louis
gar comum, e o estranho conforto da Chevalier –, e do próprio Foucault, de-
familiaridade. (17) monstra que não há linearidade no que
diz respeito à história do ‘habitat’. Quan-
Em 1977, Teyssot fazia publicar na colec- do isso se tornou uma questão de reunir
tânea Il dispositivo Foucault um dos seus uma morfologia histórica da cidade
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pelo desenvolvimento dos OP, é possível diferentes entre si – não pode mais que
colocar‑se uma interrogação acerca do manter aberta a questão mais difícil: o OP
futuro do OP enquanto tecnologia parti- será substituído por outras formas de par-
cipativa e de governo. Pode, de facto, com- ticipação? Ou então: será que a sua elevada
partilhar o destino de outros instrumentos propensão para a hibridez lhe consentirá
de inovação da política, do fazer política uma sobrevivência evolutiva, assumindo
e do funcionamento das instituições: nas- mais uma vez formas e, acima de tudo,
cer, desenvolver‑se e morrer num espaço significados diferentes? Particularmente
de tempo frequentemente não muito supe- interessantes e promissoras a este propó-
rior a uma década. Pensemos na Citizens’ sito são as indicações conclusivas sobre
Charter, nos “orçamentos sociais”, nas as receitas (fiscais e não fiscais) enquanto
técnicas comunicativas de e‑government, objecto de participação (397 da edição ita-
nas diversas gerações de instrumentos de liana). Por sua vez, são levantadas as maio-
controlo, monitorização e avaliação das res perplexidades quanto às perspectivas
políticas e da acção administrativa. Em de hibridez com formas de inclusão basea-
comum, os muitos métodos de inovação das nos stakeholders (empresas e sociedade
têm uma facilidade intrínseca em passa- civil organizada), como nos últimos dois
rem de moda, visto serem substituídos por modelos‑tipo ideais (“mesa de negociação”
outros. Por isto, a pesquisa de Allegretti e e participação dos interesses organizados)
Sintomer – a partir da constatação de que delineados no volume.
hoje o OP originário se declina em formas
e assume sentidos políticos e sociais muito Ernesto d’Albergo
UN HABITAT (2010), State of the World’s Cities 2010/2011: Cities for All,
Bridging the Urban Divide. London, Washington: Earthscan, 224 pp.
O United Nations Human Settlements na elaboração de políticas urbanas e apre-
Programme (UN‑HABITAT) foi criado senta, no fim, recomendações para a cons-
em 1978, dois anos após da realização trução de cidades inclusivas. Na introdução
da H abitat Conference em Vancouver, do relatório, Anna K. Tibaijuka, Directora
Canadá. É uma agência da Organização Executiva do UN‑HABITAT, salienta que
das Nações Unidas para assentamentos “this Report contributes to bridge the gap
humanos, que “helps the urban poor by between scientific information and soci-
transforming cities into safer, healthier, etal action, which is a simple, but funda-
greener places with better opportunities mental requisite, to promote e quity and
where everyone can live in dignity” (UN sustainability for more harmonious cities.”
‑HABITAT’s Brochure, 2009). Uma das A Directora Executiva refere‑se aqui ao
suas principais publicações é State of the Relatório 2008/2009, que adoptou o con-
World’s Cities. Iniciada em 2001, a série ceito de cidade harmoniosa como quadro
– que actualmente é bianual – tem o obje- teórico para entender o mundo urbano e
tivo de destacar os desafios que a urbani- como instrumento operacional para en-
zação coloca às cidades do mundo. frentar os mais importantes desafios das
O Relatório de 2010/2011, publicado sob áreas urbanas. A ideia de unificar a cidade
o título Cities for All, Bridging the Urban através do planeamento (capítulo 4, Rel.
Divide, aponta uma mudança de paradigma 2008/2009) levou a que o Relatório de
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e pela politização do urbano em todo o The City and the Grassroots, obra que
mundo. Trata‑se de uma obra de ambição representa uma ruptura tanto no plano
teórica que, fundamentada no estrutura- teórico, afastando‑se do estruturalismo,
lismo, procurava propor um novo esquema quanto metodológico, realizando a pas-
de análise, o “sistema urbano” (55). Cas- sagem de um método hipotético dedutivo
tells critica a Escola de Chicago, rejeitando para um interactivo. Nesta obra, após
a análise do espaço focada na cultura ur- quinze anos de trabalho empírico, para
bana e propondo que esta seja realizada responder à problemática da produção
através da compreensão da estrutura so- da cidade e sob a influência de Alain Tou-
cial e da determinação do espaço pelos raine, Castells iria apoia‑se na análise dos
modos de produção: “o espaço torna‑se a actores sociais e na capacidade de trans-
expressão da estrutura social e sua análise formação da cidade e da sociedade pelos
leva a compreender como ele é determi- movimentos sociais urbanos.
nado pelos sistemas económico, político The Informational City, publicado em
e ideológico” (55). A inovação desta obra, 1989, demarcaria uma mudança temática
segundo o seu autor, foi a introdução da ligada a estudos realizados a partir de 1983
política e dos conflitos sociais no centro da sobre as relações entre inovações, novas
problemática urbana (64). tecnologias e territórios. A ambição desta
Em 1974, em colaboração com Francis obra foi de estudar as novas tecnologias
Godard, seria publicado Monopolville, da informação e os processos urbanos e
obra que, segundo Pflieger, representa um regionais, defendendo que o surgimento
testemunho da sociologia marxista urbana de um novo modo de desenvolvimento
durante a década de 70, cada vez mais informacional, conjugado com uma rees
estruturada pelo Estado sob a influência truturação profunda do capitalismo, teria
do Ministério do Equipamento urbano. gerado uma modificação radical na relação
Com esta procurou‑se, através da teoria entre produção, sociedade e espaço. Cas-
do sistema urbano desenvolvida em La tells destaca a colaboração dos estudantes
question urbaine, compreender a cidade de Berkeley na realização deste trabalho,
da fase monopolística do desenvolvimento afirmando que as suas obras são fruto de
do capital. Para tal, Castells elegeu como sua própria observação empírica de di-
maqueta quase experimental a cidade de ferentes regiões do mundo, inclusive da
Dunquerque, desenvolvendo uma enorme Califórnia, e do trabalho de análise de
pesquisa empírica que seria, segundo o diversos estudantes.
autor, um dos poucos méritos desta obra The Information Age, uma trilogia publi
que ligou de maneira demasiado estreita cada em 1996, 1997 e 1998, teve reper-
a pesquisa à política (115). Monopolville cussões tanto no universo académico
seria um ponto de ruptura para Castells, quanto no político e económico e entre os
que, na entrevista, critica os trabalhos movimentos sociais. Nesta obra, Castells
fundamentados na teoria do capitalismo anuncia um quadro de análise global da
monopolista pelo seu parco rigor empírico era da informação, o que representou um
e nulo valor intelectual. Depois da publica- alargamento da análise técnico‑económica
ção de Monopolville, Castells parte para os da cidade realizada em The Informational
Estados Unidos e dedica o fim da década City, passando da cidade à sociedade e dos
ao estudo dos movimentos sociais urbanos. Estados Unidos ao mundo inteiro.
Em 1983, quatro anos após haver chegado Percorrendo estas cinco obras de maneira
a Berkeley (Califórnia), Castells publica detalhada e exigente e sem deixar escapar
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