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trauma e cultura:
um debate
Myrian Sepúlveda dos Santos
RESUMO ABSTRACT
memória coletiva. O percurso do argumento os homens fazem sua própria história, não
estará dividido em três etapas. Nas três pri- como querem, mas sob circunstâncias lega-
meiras seções deste artigo serão analisadas das e transmitidas pelo passado, escreve que
as contribuições dos clássicos das ciências a tradição de todas as gerações mortas opri-
sociais; as diversas percepções de história me como um pesadelo o cérebro dos vivos.
inerentes às respectivas teorias; e os usos Mais adiante, lemos que o principiante que
dessas teorias para a compreensão da me- aprende um novo idioma precisa esquecer
mória por autores como Maurice Halbwa- sua própria língua para produzir livremente.
chs e Roger Bastide. Em segundo lugar, será No mesmo capítulo ainda há a afirmativa de
analisado o debate entre tradição e moderni- que a revolução social do século XIX não
dade. Finalmente, com base nas abordagens pode tirar sua poesia do passado, mas do fu-
anteriores, serão analisados novos conceitos turo. Nessa direção, escreve ele ainda que, a
que têm por base teorias externas às ciên- fim de alcançar seu próprio conteúdo, a re-
cias sociais, como a teoria do trauma de Sig- volução deve deixar que os mortos enterrem
mund Freud e a tese das sobrevivências de seus mortos, pois, se antes a frase ia além do
elementos simbólicos ao longo dos séculos conteúdo, no século XIX, a proposição deve-
estabelecida pelo historiador da arte alemão ria ser inversa (Marx, 2011). A influência do
Aby Warburg. Em questão está a possibili- passado sobre ações humanas foi associada à
dade de percebermos a memória não a partir produção de ignorância, superstição e intole-
de estudos empíricos e comparativos de re- rância, em contraposição a uma razão crítica
presentações constituídas no presente, mas, capaz de libertar o homem de suas amarras e
sim, da análise interpretativa e semiótica, de conduzi-lo para um futuro melhor. Mais do
imagens e símbolos, que tem por pressuposto que isso, Marx aponta a possibilidade de um
uma dimensão de temporalidade múltipla e presente distante de influências do passado
não linear. e voltado para a realização de suas propostas
no futuro.
MUDANÇAS HISTÓRICAS A ênfase dada por Marx ao desenvolvi-
SEGUNDO MARX E WEBER mento das forças produtivas, em obras como
Manifesto Comunista, faz com que sua visão
A relação entre ciências sociais e dife- de história apareça como sendo resultado de
rentes formas de historicidade não tem sido um fator único causal, as condições mate-
objeto de muita atenção. Além da clássica riais de existência. A luta de classes, para
antinomia entre ação e estrutura, questões ele, traria como desdobramento um bem co-
relativas às contradições entre sociologia e mum, uma sociedade sem explorações. Mas
cultura, ou seja, à mudança e à permanên- seu sucesso, a conquista da emancipação do
cia, são consideradas. As bases teóricas homem, dependeria da capacidade do prole-
que fundam as ciências sociais, portanto, tariado, daqueles que reagiriam ao sistema
não aprofundam o debate sobre as diversas a partir da insurgência à exploração, do dis-
formas de pensarmos o tempo da história, tanciamento das “amarras” do passado, ou
que geralmente é percebida por uma leitura seja, da sociedade de classes (Marx, 1996).
linear. Entre os teóricos que fundaram as Em 1859, o livro Contribuição à Crítica da
ciências sociais, Karl Marx e Max Weber Economia Política foi publicado, com um
destacaram-se pela ênfase dada à história em prefácio que se tornou referência para as
suas abordagens. Vejamos sobre que tipo de diversas abordagens teóricas marxistas. A
história eles escrevem. tese marxista, ainda que apresentada de for-
Karl Marx, no primeiro capítulo de O 18 ma dialética, pois Marx continuou a seguir
de Brumário de Luís Bonaparte, texto que a dialética hegeliana, apenas substituindo
foi escrito sobre o golpe de Estado de 1851 na o espírito universal do filósofo pelas forças
França, após a famosa frase que afirma que produtivas e relações de produção, traz com
Reprodução
mais é que o desenvolvimento das forças
produtivas. A emancipação não seria uma
consequência da vontade, da razão, mas da
situação específica de exploração do ho-
mem pelo homem, ou seja, da luta de classes
(Marx, 1983). Há, portanto, em Marx, uma
análise histórica das mudanças e transfor-
mações que apontam para a possibilidade da
ação revolucionária e emancipatória. Mais
do que isso, Marx acreditava que a supera-
ção das contradições inerentes às relações
de produção capitalistas levaria ao término
da “pré-história da sociedade humana”, ou
seja, à reprodução de relações de explorações
Max Weber
(Marx, 1983, p. 25).
defendeu o
Embora partindo de uma análise bem pluralismo causal
distinta, também para Max Weber a história nas investigações
tornou-se um campo aberto às estratégias do históricas
presente, distante de sobrevivências ou de-
terminações do passado. A associação entre intenções em detrimento das determinações
causalidade histórica e bases materiais foi sobre esse indivíduo. Ele não se interessou
rejeitada por Max Weber, para quem a pri- por qualquer realidade independente da con-
mazia seja das condições materiais, seja das duta dos indivíduos. Até mesmo quando des-
ideias, dependeria de uma série de variantes creveu a conduta tradicional, sua explicação
da história. Weber defendeu o pluralismo foi a de que esta seria uma forma de compor-
causal nas investigações históricas; cada se- tamento em que indivíduos conscientemente
quência teria sua própria singularidade, sem optavam pela perpetuação de valores tradi-
que fosse possível estabelecer regras gerais cionais. Somente a ação individual, à medida
sobre causalidades. A análise causal históri- que era orientada para outros, seria um fato
co-comparativa desenvolvida por ele tem por histórico capaz de ser verificado e interpre-
princípio a ação racional, que seria inerente tado empiricamente.
à interpretação das diversas possibilidades No estudo comparativo que Weber faz
objetivas. sobre religiões e, mais particularmente,
Na introdução a sua principal obra, Eco- sobre a especificidade do protestantismo,
nomia e Sociedade, Max Weber desenvolveu surge como fundamental a identificação de
o argumento de que a sociologia seria uma uma racionalidade econômica, presente na
ciência que se volta para a compreensão da ética calvinista, que orienta a ação em suas
ação social (Weber, 1978). Em Weber encon- diversas dimensões. A partir da superiori-
tramos uma teoria que tem como ponto de dade técnica e eficiência das organizações
partida indivíduos que agem e que dão sig- burocráticas, presentes na industrialização e
nificado à realidade a partir de suas relações nas decisões políticas, essas ações se tornam
com outros indivíduos. A tarefa científica legítimas (Weber, 1976). A racionalização,
tem por base o individualismo metodoló- portanto, torna-se o conceito central da pes-
gico, ou seja, o estudo sobre as motivações quisa weberiana sobre modernidade. Por um
ou intenções capazes de influenciar as ações lado, ela leva os homens ao desencantamento
individuais. Para explicar o porquê de indi- do mundo, pois ações políticas que se voltam
víduos agirem de determinada maneira e não estritamente para a adequação entre meios e
de outra, Weber valorizou o indivíduo e suas fins são incapazes de propiciar a liberdade
humana. Mas, por outro lado, essa racionali- coletiva comum, nas últimas, eles teriam
dade moderna dá a oportunidade para ações por base a especialização e a complementa-
conscientes e responsáveis. Diferentemente ridade de funções. Haveria, portanto, socie-
das sociedades em que as tradições eram dades mecânicas ou tradicionais, em que a
reproduzidas, trata-se agora da escolha de solidariedade ocorreria a partir de um com-
ações a partir de um cálculo racional voltado partilhamento daqueles valores associados
para a satisfação dos interesses. ao trabalho, à educação e à vida religiosa,
O sociólogo Reinhard Bendix, estudio- e sociedades mais evoluídas, as modernas
so dos trabalhos de Marx e Weber, em uma ou industriais, em que a coesão social teria
avaliação cuidadosa da proposta teórica we- por base a condição de dependência que os
beriana, apontou, em 1946, as limitações indivíduos tinham uns dos outros. Socieda-
impostas pela teoria da história de Weber à des tradicionais estariam sob o controle de
sociologia, uma vez que não é possível igno- normas rígidas e regimes autoritários, en-
rar que os significados inerentes às condutas quanto as modernas se caracterizariam por
individuais podem também ter origem em uma regulação moral bem mais complexa,
costumes, que são adotados pelos indivíduos capaz de compor as diferenças de forma ne-
sem muita, se alguma, modificação (Bendix, gociada. Associou a ausência de uma vida
1946, p. 520). Bendix também questionou o moral comum a comportamentos desviantes
método histórico weberiano por este se ba- e a sociedades anômicas (Durkheim, 2004).
sear sempre em orientações de valor, ou seja, No que tange à metodologia, a sociolo-
na escolha do investigador sobre o fato histó- gia deveria efetuar uma abordagem científica
rico relevante, e na capacidade da sociologia dos fatos sociais, que teriam uma existência
de derivar regularidades da conduta huma- própria e só poderiam ser explicados por
na a partir de estudos históricos singulares outros fatos sociais (Durkheim, 2007). O
(Bendix, 1946, pp. 521-3)2. sociólogo estava preocupado em estabele-
cer generalizações, tipologias e leis, e, nesse
A REPRODUÇÃO DAS sentido, compreendia a tarefa da história.
TRADIÇÕES: DURKHEIM E Enquanto memória coletiva, a história teria
HALBWACHS a função de manter as sociedades em estado
de recordação do passado3.
Diferentemente de Weber e Marx, em O autor definiu a reprodução de normas e
2 Sobre o tema, ver, que ações estratégicas, individuais ou de estruturas, bem como o caráter funcional da
ainda os questio -
namentos de dois grupo foram valorizadas pelo seu poten- moral e dos bons costumes. Se antes a histó-
estudiosos do pen- cial para ocasionar mudanças, o sociólogo ria era associada a um movimento linear ou
samento weberia-
no, Guenther Roth e
Émile Durkheim se voltou para o estudo das às ações estratégicas capazes de ocasionar
Wolfgang Schluchter relações de solidariedade e de uma ordem mudanças, agora, ela é uma das fontes ex-
(1984, p. 205), à con-
moral para explicar o funcionamento das plicativas de estruturas atuais. Conforme en-
tradição entre forças
de racionalização e sociedades. Para ele, se não houvesse uma fatizado por Bellah (1959, pp. 450-1), em As
forças de persistência base moral que proporcionasse respeito mú- Regras do Método Sociológico, Durkheim
e mudança.
tuo entre os indivíduos, as sociedades não deixou claro que causas históricas seriam
3 Bellah (1959, p. 448)
cita a passagem de
seriam possíveis. Portanto, ele não se preocu- admissíveis em explicações científicas se
Durkheim em que pou em explicar ações estratégicas ou revo- elas estivessem presentes nas variáveis que
este afirma que so-
luções sociais, mas se deteve no estudo de operam no presente; não se trata de acu-
ciologia e história de-
vem ser consideradas como a ordem social era mantida. A partir mular documentação para comprovar fatos
como dois pontos de uma perspectiva histórica evolucionista, históricos empiricamente, mas de criar uma
de vista, contendo,
contudo, as mesmas Durkheim estabeleceu a diferença entre so- tipologia comparativa e explicativa. Mais
abordagens metodo- ciedades mecânicas e orgânicas: enquanto tarde, em As Formas Elementares da Vida
lógicas, publicada em
L’Anée Sociologique 6 nas primeiras os indivíduos compartilhariam Religiosa, quando desenvolveu seus con-
(1903). valores e crenças, e teriam uma consciência ceitos sobre a natureza sagrada da religião,
Reprodução
ção de tempo se fez presente nas estruturas
ou sistemas investigados (Durkheim, 2007,
2003). Segundo Durkheim, representações
coletivas, uma vez institucionalizadas, se-
riam capazes de exercer influência ao longo
de um período excepcional, sobrevivendo a
muitas mudanças sociais e culturais. Ainda,
segundo o autor, enquanto representações
coletivas fossem funcionais, elas não desa-
pareceriam, mas, quando fossem questio-
nadas, novos conjuntos de ideias surgiriam
para estabilizar o sistema social. Bellah cita Maurice
o caso do cristianismo, cujas ideias princi- Halbwachs,
o primeiro
pais atravessam séculos, como dever e ideia
sociólogo a tratar
moral, estando na base da cultura ocidental. da memória
A dimensão do tempo estaria associada à du- coletiva ou
ração da representação coletiva, que poderia memória social
ser passageira, como a de um grupo desvian-
te temporário, ou mais duradoura, como a de relacionado à desagregação dos indivíduos
uma nação ou religião (Bellah, 1959, p. 459). seria descartado pela memória dos grupos;
Maurice Halbwachs, o primeiro sociólo- acreditou ser importante apontar os vínculos
go a se dedicar ao tema da memória coletiva de solidariedade responsáveis pela coesão in-
ou memória social, em um trabalho que hoje terna das sociedades4.
se tornou referência obrigatória, Les Cadres Segundo o sociólogo francês Gérard
Sociaux de la Mémoire, abordou, de forma Namer, que dedicou grande parte de suas
bem ampla, construções coletivas de pessoas pesquisas ao trabalho de Halbwachs, este
e grupos relacionadas ao passado; lugares, não pode ser reduzido ao funcionalismo;
datas, palavras e formas de linguagem se- Halbwachs teria sido responsável pela re-
riam representações partilhadas por todos novação da sociologia francesa, entre 1925
aqueles que têm lembranças (Halbwachs, e 1945, ao rever as teses de Durkheim de-
1994, pp. 51-2). Para ele, a memória social fendidas em O Suicídio, associando-as a seu
não seria uma expressão do que aconteceu conhecimento sobre técnicas estatísticas e às
no passado, mas uma construção coletiva contribuições dos grandes sociólogos de seu
do passado realizada pelos indivíduos de tempo, em particular, as de Max Weber. Ain-
determinada coletividade. Tal como em da segundo Namer, em Morphologie Sociale,
Durkheim, a dimensão de tempo seria aque- Halbwachs foi capaz de prolongar sua tese
la presente nos quadros sociais da memória. inicial defendida em Les Cadres Sociaux de
Para o discípulo de Durkheim, essas constru- la Mémoire ao apontar que a memória co-
ções ocorreriam necessariamente a partir de letiva associa-se tanto a correntes quanto a
processos seletivos, em que parte dos even- grupos sociais. O processo interativo tornou-
tos do passado seria esquecida e outra lem- -se mais complexo à medida que passou a ser
brada. Ao enfatizar a natureza social dessas considerado na interação dos indivíduos com
construções por famílias, grupos religiosos e o grupo e na interação do grupo com outros
operários de fábrica, entre outros, Halbwachs grupos através da mediação dos indivíduos
priorizou o estudo dos textos, presentes em (Namer, 1997, pp. 14-5). A memória coletiva, 4 Para uma análise mais
narrativas, objetos materiais, imagens e ins- nesse caso, passa a ser simultaneamente a detalhada do traba-
lho de Halbwachs,
tituições, identificados por ele como quadros memória constituída por grupos e a memória ver: Santos, 2012, pp.
sociais da memória. Tudo o que estivesse que constitui os mesmos grupos. Podemos, 39-59.
nesse sentido, pensar em uma aproximação logo Franklin Frazier e o antropólogo Mel-
entre macro e microanálises no estudo de re- ville Herskovits, sobre a influência da cultura
presentações coletivas a partir do trabalho de africana na sociedade norte-americana 5. A
Halbwachs. A recuperação de seu trabalho partir da construção da distância entre as
a partir da década de 1980 insere-se nessa duas linguagens, a dos mitos e a dos rituais,
vertente. É interessante, nesse sentido, ob- já estabelecida por Lévi-Strauss6, Bastide ar-
servar duas correntes de pensamento que gumentou que, embora a escravidão tivesse
certamente influenciaram a apropriação da destruído a possibilidade de transmissão dos
obra de Halbwachs nas últimas décadas: o mitos, ou seja, das estruturas mais comple-
estruturalismo e a fenomenologia. xas que organizavam os africanos, estes se
reorganizaram no Brasil a partir de práticas
BASTIDE E A NOÇÃO DE rituais, sempre dependentes das circunstân-
BRICOLAGEM cias pontuais, em que ocorriam a reprodução
e a reinterpretação de alguns costumes arcai-
O sociólogo francês Roger Bastide este- cos, ainda que sem a plena consciência do
ve no Brasil, entre 1938 e 1954, ocupando a significado dos mitos constituídos na África.
cadeira deixada por Lévi-Strauss, que lá per- Ele explicou, dessa forma, que o empobre-
manecera entre 1935 e 1939, e tendo por mis- cimento da mitologia africana no Brasil não
são a organização da Faculdade de Filosofia, teria ocorrido devido ao esquecimento ou
Ciências e Letras da Universidade de São coerção de outros grupos sociais, mas à au-
Paulo. Desempenhou um papel importante sência de estruturas ou “quadros sociais da
na formação de toda uma geração de inte- memória” – reinterpretando aqui o conceito
lectuais brasileiros. Em 1955 publicou, com de Halbwachs – que possibilitassem sua re-
Florestan Fernandes, Relações Raciais entre construção plena. No entanto, à medida que
Negros e Brancos em São Paulo. Apesar da antigas estruturas encontraram indivíduos
pesquisa voltada para a condição do negro capazes de desempenhar as mesmas práti-
como trabalhador na sociedade de classes, cas rituais do passado, tradições puderam
tema caro aos sociólogos, Roger Bastide in- ser reconstituídas. A cerimônia religiosa era
vestigou a presença de traços culturais afri- constituída por rituais, em que cada indiví-
canos em rituais religiosos que aconteciam duo tinha certas falas a dizer e movimentos
no Brasil. Procurou o significado da África a desenvolver. Se os rituais africanos antes
5 Sobre o debate, ver para os brasileiros, dedicando-se a estudos eram associados ao caos, à abolição de re-
o excelente artigo de
Livio Sansone (2012).
sobre o candomblé, com seus rituais e sua gras e a uma maior permissividade e anar-
capacidade de organizar os escravos africa- quia sexual, após Bastide ficou mais difícil
6 Ver a apresentação
de Lévi-Strauss, de nos no novo mundo (Bastide, 1958, 1960). não perceber que a aparente loucura estava
26 de maio de 1956, Em As Religiões Africanas no Brasil, submetida a normas e regras.
sobre a relação entre
a mitologia e o ritual, Bastide (1971) recorreu, entre outros, ao Em “Mémoire Collective et Sociologie
seguida de debate conceito de “quadros sociais da memória,” du Bricolage”, trazendo uma abordagem
com diversos parti-
cipantes, entre ou-
que Maurice Halbwachs (1994) estabelecera mais sofisticada que a de seus antecesso-
tros, Louis Dumont, em 1925, criticando, contudo, o funcionalis- res, Bastide (1970) substituiu as noções de
Alfred Métraux, Ja- mo do discípulo de Durkheim e propondo a aculturação, de miscigenação e mesmo de
cques Lacan, Mauri-
ce Merleau-Ponti e maior autonomia entre a estrutura dos mitos sincretismo pelo conceito de bricolagem.
Lucien Goldmann. e aquela presente nos rituais, e, consequen- A partir do pluralismo teórico de Gurvitch,
Disponível em:
h t t p : // p t . s c r i b d . temente, do indivíduo no processo de trans- Bastide criticou os trabalhos de Halbwachs,
com/doc/27390069/ missão de tradições. A preocupação de Bas- dessa vez citando explicitamente “A Topo-
Levi-Strauss-Sur-les-
-rapports-entre-la-
tide é encontrar uma alternativa ao impasse grafia Legendária dos Evangelhos em Terra
-mythologie-et-le- colocado por sociólogos e antropólogos na Santa”, texto em que a noção de pensamen-
-rituel. Acessado em análise do encontro entre duas culturas, mui- to religioso se confunde com a de memória
15/4/2013.
to na esteira do debate travado entre o soció- coletiva. Bastide subordinou as lembranças,
feita pela autora sobre a produção criativa nós lidamos com uma memória cultural, a
do escritor alemão W. G. Sebald sobre o Ho- qual, por sua vez, difere da memória que é
locausto (Hirsch, 2008). construída por grupos sociais, tal como des-
Como vimos, conceitos como tradição, crita por Maurice Halbwachs em Memória
memória coletiva e memória social remetem Coletiva. Através da criação de uma tipo-
a fenômenos relacionados à relação entre logia para a memória, eles associam a me-
passado e presente. Cabe, portanto, o ques- mória constituída por grupos sociais como
tionamento sobre o termo “pós-memória” memória comunicativa, e defendem a exis-
para denominar um investimento imagina- tência de outro tipo de memória, a memória
tivo e criador de uma segunda geração de cultural, cujo mecanismo de reprodução é
sobreviventes do Holocausto. Segundo a au- diferente. Para os autores, especialistas, res-
tora, o conceito de pós-memória se refere à pectivamente, em literatura e arqueologia,
experiência que é transmitida entre gerações, a memória cultural transcende situações, é
de forma intersubjetiva, experiência esta que transmitida por meio de formas simbólicas
reativa comportamentos que se caracterizam incorporadas na sociedade; ela pode durar
como uma reação ao trauma. Embora não milênios. A memória cultural, diferentemen-
sejam transmitidas narrativas, são transmi- te da memória comunicativa, é instituciona-
tidas sensações e emoções. Hirsch procura lizada, celebrada, cultivada, formalizada,
mostrar um vínculo entre gerações, uma estabilizada por meio de símbolos materiais;
forma específica de transmissão de experi- ela não faz parte da comunicação do dia a
ências. Os traumas vivenciados impediram a dia, mas é transmitida por rituais, máscaras,
transmissão de histórias entre gerações, mas danças e símbolos; são formas de conheci-
o vazio de narrativas provocou uma empatia mento institucionalizadas15.
na geração subsequente, ou seja, a experiên- Novamente podemos nos perguntar por
cia foi transmitida. A segunda geração, como que denominar essa codificação simbólica
é chamada, ao mesmo tempo em que tem um de memória se por memória compreende-
vínculo muito forte com a geração que sofreu mos a capacidade que um indivíduo tem
o trauma, tem um comportamento diferen- de lembrar? O termo memória, contudo, já
ciado que é capaz, inclusive, de escapar das tem sido utilizado regularmente para indicar
fugas e repetições compulsivas da primeira imaginários coletivos relacionados ao pas-
geração. sado partilhados por determinados grupos
A denominação de “memória” à trans- sociais. Esses imaginários têm suas especi-
missão de experiências entre gerações, ainda ficidades, pois cumprem a função de permi-
que na ausência de tradução, expande-se para tir que indivíduos se lembrem do passado,
fenômenos que são transmitidos por longos constituam suas identidades e reconheçam
períodos a partir da cultura. Nesse caso, não sua forma de pertencimento a algo maior.
são os conceitos psicanalíticos que dão base Aleida Assman faz uma crítica à afirmação
teórica ao termo memória, mas aqueles que se de Pierre Nora de que se falamos tanto de
vinculam à ideia de estrutura. A partir da no- memória é porque ela não existe mais. Para
ção de que a cultura pode transmitir aspectos a autora, há uma diferença entre imaginários
mnemônicos por até milhares de anos, alguns constituídos e mnemotécnica. Tal como Jan
autores passaram a fazer uma distinção entre Assmann, também para ela a memória cultu-
a memória que é transmitida oralmente entre ral tem como especificidade o fazer lembrar a
gerações, denominada memória comunicati- partir de pontos fixos; representa um gatilho
va, e a memória que é transmitida ao longo de para nossas memórias, promove a lembran-
séculos através de símbolos ou pontos fixos, a ça. A memória cultural é mais ampla que as
15 Ver, nesse sentido: memória cultural. diversas memórias construídas, como memó-
Assmann, 2011c, pp.
15-141. Sobre o tema, Os intelectuais alemães Aleida e Jan Ass- ria familiar, memória de um grupo social,
ver ainda: Erll, 2011. mann destacam-se na defesa da ideia de que memória nacional e assim por diante. Ela
B I B LI O G R AFIA
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