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Memória coletiva,

trauma e cultura:
um debate
Myrian Sepúlveda dos Santos

REVISTA USP • São Paulo • n. 98 • p. 51-68 • JUNHO/JULHO/agosto 2013 51


dossiê Memória

RESUMO ABSTRACT

Os estudos sobre memória se multipli- Studies on memory have increased from


caram a partir da década de 80, abrindo the 1980’s, opening an interdisciplinary
uma agenda interdisciplinar e questio- agenda and theoretical questions. In
namentos teóricos. Na última década, the last decade, it has been considered
considera-se uma diferenciação entre a differentiation between everyday and
a memória cotidiana ou comunicativa, communicative memory, directly formed
diretamente formada por grupos sociais, by social groups, as theorized by the French
conforme estabelecido pelo sociólogo sociologist Maurice Halbwachs, and cultural
francês Maurice Halbwachs, e a memória memory, which happens through the links
cultural, que seria a relação entre a memó- between the individual memory and a fixed
ria individual e do grupo com um ponto point. In the latter case, authors such as the
fixo. Nesse último caso, autores como German art historian Aby Warburg have
o historiador alemão Aby Warburg têm been considered. Furthermore, we observe
sido considerados. Além disso, há estu- studies on the transmission of traumatic
dos sobre a transmissão de experiências experiences. The North-American author
traumáticas. A norte-americana Marianne Marianne Hirsch, specialized in comparative
Hirsch, especializada em literatura com- literature, coined the term post-memory to
parada, criou o termo “pós-memória” characterize the experience of those people
para caracterizar a experiência daqueles who grew up dominated by narratives and
que crescem dominados por narrativas e silence of those who lived traumatic events.
silêncios daqueles que viveram eventos The main purpose of this article is to analyze
traumáticos. O objetivo deste artigo é the theoretical relevance of concepts such as
analisar a pertinência teórica de conceitos cultural memory and post-memory.
como memória cultural e pós-memória.

Keywords: social theory, collective me-


Palavras-chave: teoria social, memória mory, social memory, communicative
coletiva, memória social, memória comu- memory, post-memory.
nicativa, pós-memória.

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O
s estudos sobre memó- antinomias entre ação e estrutura certamente MYRIAN
SEPÚLVEDA
ria se multiplicaram a influenciaram a percepção dos estudos sobre DOS SANTOS
partir da década de 80, memória coletiva realizados por sociólogos, é professora
associada da
abrindo uma agenda cientistas políticos e antropólogos contem- Universidade do
interdisciplinar e im- porâneos. Podemos classificar os estudos Estado do Rio de
Janeiro (Uerj) e
portantes questiona- sobre memória coletiva segundo essas mes- autora de, entre
mentos teóricos. Além mas antinomias; há abordagens que analisam outros, Memória
Coletiva e Teoria
da clássica antinomia entre ação e estrutura, representações sobre o passado por meio de Social (Annablume).
questões relativas à permanência e mudança surveys e análises comparativas; outras que
passam a ser reconsideradas. Na última déca- estão interessadas nos processos interativos
da, aponta-se uma diferenciação entre a me- de construção do passado, e utilizam-se dos
mória cotidiana ou comunicativa, teorizada instrumentos analíticos caros às abordagens
pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, etnográficas, como entrevistas e observação
e diretamente formada por grupos sociais, e participante, e outras, ainda, que visam os
a memória cultural, que seria a relação entre mecanismos ou meios de comunicação res-
a memória individual e do grupo com um ponsáveis pela transmissão da memória co-
ponto fixo, obtido pela formação cultural letiva entre diversas gerações. Certamente
(Olick & Robbins, 1998). Neste último caso, que, ao analisarem os processos constituti-
apoiados pelos escritos deixados pelo histo- vos dessas representações sobre o passado,
riador de arte alemão Aby Warburg, autores alguns autores preocupam-se com os consen-
afirmam que a memória não teria necessa- sos obtidos nas comemorações reiteradas, e
riamente ancoragem direta em um grupo de outros, com o esquecimento, o silêncio e/ou
indivíduos. Além disso, há estudos sobre a a amnésia coletiva1.
transmissão não apenas de signos, represen- O objetivo deste artigo é analisar a per-
tações e estruturas, mas de experiências trau- tinência teórica do uso do conceito “memó-
1 Dois artigos se des-
máticas, entre gerações contíguas. ria” para denominar diferentes fenômenos, tacam ao analisarem
Em caráter introdutório podemos dizer desde a investida imaginativa ao passado as várias teorias e téc-
nicas metodológicas
que as bases teóricas que fundam as ciên- pela segunda geração de sobreviventes de que têm sido utiliza-
cias sociais, e aqui me refiro basicamente situações traumáticas à volta de símbolos de das nos estudos sobre
aos trabalhos de Marx, Weber e Durkheim, eras passadas. Não é possível em um artigo memórias coletivas
nas últimas décadas:
apontam para o antagonismo entre tradição e o aprofundamento de todas as contradições Olick & Robbins, 1998,
modernidade. As tentativas de superação das e debates que proliferam em torno do tema e Conway, 2010.

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memória coletiva. O percurso do argumento os homens fazem sua própria história, não
estará dividido em três etapas. Nas três pri- como querem, mas sob circunstâncias lega-
meiras seções deste artigo serão analisadas das e transmitidas pelo passado, escreve que
as contribuições dos clássicos das ciências a tradição de todas as gerações mortas opri-
sociais; as diversas percepções de história me como um pesadelo o cérebro dos vivos.
inerentes às respectivas teorias; e os usos Mais adiante, lemos que o principiante que
dessas teorias para a compreensão da me- aprende um novo idioma precisa esquecer
mória por autores como Maurice Halbwa- sua própria língua para produzir livremente.
chs e Roger Bastide. Em segundo lugar, será No mesmo capítulo ainda há a afirmativa de
analisado o debate entre tradição e moderni- que a revolução social do século XIX não
dade. Finalmente, com base nas abordagens pode tirar sua poesia do passado, mas do fu-
anteriores, serão analisados novos conceitos turo. Nessa direção, escreve ele ainda que, a
que têm por base teorias externas às ciên- fim de alcançar seu próprio conteúdo, a re-
cias sociais, como a teoria do trauma de Sig- volução deve deixar que os mortos enterrem
mund Freud e a tese das sobrevivências de seus mortos, pois, se antes a frase ia além do
elementos simbólicos ao longo dos séculos conteúdo, no século XIX, a proposição deve-
estabelecida pelo historiador da arte alemão ria ser inversa (Marx, 2011). A influência do
Aby Warburg. Em questão está a possibili- passado sobre ações humanas foi associada à
dade de percebermos a memória não a partir produção de ignorância, superstição e intole-
de estudos empíricos e comparativos de re- rância, em contraposição a uma razão crítica
presentações constituídas no presente, mas, capaz de libertar o homem de suas amarras e
sim, da análise interpretativa e semiótica, de conduzi-lo para um futuro melhor. Mais do
imagens e símbolos, que tem por pressuposto que isso, Marx aponta a possibilidade de um
uma dimensão de temporalidade múltipla e presente distante de influências do passado
não linear. e voltado para a realização de suas propostas
no futuro.
MUDANÇAS HISTÓRICAS A ênfase dada por Marx ao desenvolvi-
SEGUNDO MARX E WEBER mento das forças produtivas, em obras como
Manifesto Comunista, faz com que sua visão
A relação entre ciências sociais e dife- de história apareça como sendo resultado de
rentes formas de historicidade não tem sido um fator único causal, as condições mate-
objeto de muita atenção. Além da clássica riais de existência. A luta de classes, para
antinomia entre ação e estrutura, questões ele, traria como desdobramento um bem co-
relativas às contradições entre sociologia e mum, uma sociedade sem explorações. Mas
cultura, ou seja, à mudança e à permanên- seu sucesso, a conquista da emancipação do
cia, são consideradas. As bases teóricas homem, dependeria da capacidade do prole-
que fundam as ciências sociais, portanto, tariado, daqueles que reagiriam ao sistema
não aprofundam o debate sobre as diversas a partir da insurgência à exploração, do dis-
formas de pensarmos o tempo da história, tanciamento das “amarras” do passado, ou
que geralmente é percebida por uma leitura seja, da sociedade de classes (Marx, 1996).
linear. Entre os teóricos que fundaram as Em 1859, o livro Contribuição à Crítica da
ciências sociais, Karl Marx e Max Weber Economia Política foi publicado, com um
destacaram-se pela ênfase dada à história em prefácio que se tornou referência para as
suas abordagens. Vejamos sobre que tipo de diversas abordagens teóricas marxistas. A
história eles escrevem. tese marxista, ainda que apresentada de for-
Karl Marx, no primeiro capítulo de O 18 ma dialética, pois Marx continuou a seguir
de Brumário de Luís Bonaparte, texto que a dialética hegeliana, apenas substituindo
foi escrito sobre o golpe de Estado de 1851 na o espírito universal do filósofo pelas forças
França, após a famosa frase que afirma que produtivas e relações de produção, traz com

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ela a afirmação de que toda a história nada

Reprodução
mais é que o desenvolvimento das forças
produtivas. A emancipação não seria uma
consequência da vontade, da razão, mas da
situação específica de exploração do ho-
mem pelo homem, ou seja, da luta de classes
(Marx, 1983). Há, portanto, em Marx, uma
análise histórica das mudanças e transfor-
mações que apontam para a possibilidade da
ação revolucionária e emancipatória. Mais
do que isso, Marx acreditava que a supera-
ção das contradições inerentes às relações
de produção capitalistas levaria ao término
da “pré-história da sociedade humana”, ou
seja, à reprodução de relações de explorações
Max Weber
(Marx, 1983, p. 25).
defendeu o
Embora partindo de uma análise bem pluralismo causal
distinta, também para Max Weber a história nas investigações
tornou-se um campo aberto às estratégias do históricas
presente, distante de sobrevivências ou de-
terminações do passado. A associação entre intenções em detrimento das determinações
causalidade histórica e bases materiais foi sobre esse indivíduo. Ele não se interessou
rejeitada por Max Weber, para quem a pri- por qualquer realidade independente da con-
mazia seja das condições materiais, seja das duta dos indivíduos. Até mesmo quando des-
ideias, dependeria de uma série de variantes creveu a conduta tradicional, sua explicação
da história. Weber defendeu o pluralismo foi a de que esta seria uma forma de compor-
causal nas investigações históricas; cada se- tamento em que indivíduos conscientemente
quência teria sua própria singularidade, sem optavam pela perpetuação de valores tradi-
que fosse possível estabelecer regras gerais cionais. Somente a ação individual, à medida
sobre causalidades. A análise causal históri- que era orientada para outros, seria um fato
co-comparativa desenvolvida por ele tem por histórico capaz de ser verificado e interpre-
princípio a ação racional, que seria inerente tado empiricamente.
à interpretação das diversas possibilidades No estudo comparativo que Weber faz
objetivas. sobre religiões e, mais particularmente,
Na introdução a sua principal obra, Eco- sobre a especificidade do protestantismo,
nomia e Sociedade, Max Weber desenvolveu surge como fundamental a identificação de
o argumento de que a sociologia seria uma uma racionalidade econômica, presente na
ciência que se volta para a compreensão da ética calvinista, que orienta a ação em suas
ação social (Weber, 1978). Em Weber encon- diversas dimensões. A partir da superiori-
tramos uma teoria que tem como ponto de dade técnica e eficiência das organizações
partida indivíduos que agem e que dão sig- burocráticas, presentes na industrialização e
nificado à realidade a partir de suas relações nas decisões políticas, essas ações se tornam
com outros indivíduos. A tarefa científica legítimas (Weber, 1976). A racionalização,
tem por base o individualismo metodoló- portanto, torna-se o conceito central da pes-
gico, ou seja, o estudo sobre as motivações quisa weberiana sobre modernidade. Por um
ou intenções capazes de influenciar as ações lado, ela leva os homens ao desencantamento
individuais. Para explicar o porquê de indi- do mundo, pois ações políticas que se voltam
víduos agirem de determinada maneira e não estritamente para a adequação entre meios e
de outra, Weber valorizou o indivíduo e suas fins são incapazes de propiciar a liberdade

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humana. Mas, por outro lado, essa racionali- coletiva comum, nas últimas, eles teriam
dade moderna dá a oportunidade para ações por base a especialização e a complementa-
conscientes e responsáveis. Diferentemente ridade de funções. Haveria, portanto, socie-
das sociedades em que as tradições eram dades mecânicas ou tradicionais, em que a
reproduzidas, trata-se agora da escolha de solidariedade ocorreria a partir de um com-
ações a partir de um cálculo racional voltado partilhamento daqueles valores associados
para a satisfação dos interesses. ao trabalho, à educação e à vida religiosa,
O sociólogo Reinhard Bendix, estudio- e sociedades mais evoluídas, as modernas
so dos trabalhos de Marx e Weber, em uma ou industriais, em que a coesão social teria
avaliação cuidadosa da proposta teórica we- por base a condição de dependência que os
beriana, apontou, em 1946, as limitações indivíduos tinham uns dos outros. Socieda-
impostas pela teoria da história de Weber à des tradicionais estariam sob o controle de
sociologia, uma vez que não é possível igno- normas rígidas e regimes autoritários, en-
rar que os significados inerentes às condutas quanto as modernas se caracterizariam por
individuais podem também ter origem em uma regulação moral bem mais complexa,
costumes, que são adotados pelos indivíduos capaz de compor as diferenças de forma ne-
sem muita, se alguma, modificação (Bendix, gociada. Associou a ausência de uma vida
1946, p. 520). Bendix também questionou o moral comum a comportamentos desviantes
método histórico weberiano por este se ba- e a sociedades anômicas (Durkheim, 2004).
sear sempre em orientações de valor, ou seja, No que tange à metodologia, a sociolo-
na escolha do investigador sobre o fato histó- gia deveria efetuar uma abordagem científica
rico relevante, e na capacidade da sociologia dos fatos sociais, que teriam uma existência
de derivar regularidades da conduta huma- própria e só poderiam ser explicados por
na a partir de estudos históricos singulares outros fatos sociais (Durkheim, 2007). O
(Bendix, 1946, pp. 521-3)2. sociólogo estava preocupado em estabele-
cer generalizações, tipologias e leis, e, nesse
A REPRODUÇÃO DAS sentido, compreendia a tarefa da história.
TRADIÇÕES: DURKHEIM E Enquanto memória coletiva, a história teria
HALBWACHS a função de manter as sociedades em estado
de recordação do passado3.
Diferentemente de Weber e Marx, em O autor definiu a reprodução de normas e
2 Sobre o tema, ver, que ações estratégicas, individuais ou de estruturas, bem como o caráter funcional da
ainda os questio -
namentos de dois grupo foram valorizadas pelo seu poten- moral e dos bons costumes. Se antes a histó-
estudiosos do pen- cial para ocasionar mudanças, o sociólogo ria era associada a um movimento linear ou
samento weberia-
no, Guenther Roth e
Émile Durkheim se voltou para o estudo das às ações estratégicas capazes de ocasionar
Wolfgang Schluchter relações de solidariedade e de uma ordem mudanças, agora, ela é uma das fontes ex-
(1984, p. 205), à con-
moral para explicar o funcionamento das plicativas de estruturas atuais. Conforme en-
tradição entre forças
de racionalização e sociedades. Para ele, se não houvesse uma fatizado por Bellah (1959, pp. 450-1), em As
forças de persistência base moral que proporcionasse respeito mú- Regras do Método Sociológico, Durkheim
e mudança.
tuo entre os indivíduos, as sociedades não deixou claro que causas históricas seriam
3 Bellah (1959, p. 448)
cita a passagem de
seriam possíveis. Portanto, ele não se preocu- admissíveis em explicações científicas se
Durkheim em que pou em explicar ações estratégicas ou revo- elas estivessem presentes nas variáveis que
este afirma que so-
luções sociais, mas se deteve no estudo de operam no presente; não se trata de acu-
ciologia e história de-
vem ser consideradas como a ordem social era mantida. A partir mular documentação para comprovar fatos
como dois pontos de uma perspectiva histórica evolucionista, históricos empiricamente, mas de criar uma
de vista, contendo,
contudo, as mesmas Durkheim estabeleceu a diferença entre so- tipologia comparativa e explicativa. Mais
abordagens metodo- ciedades mecânicas e orgânicas: enquanto tarde, em As Formas Elementares da Vida
lógicas, publicada em
L’Anée Sociologique 6 nas primeiras os indivíduos compartilhariam Religiosa, quando desenvolveu seus con-
(1903). valores e crenças, e teriam uma consciência ceitos sobre a natureza sagrada da religião,

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rituais e internalização de valores, a percep-

Reprodução
ção de tempo se fez presente nas estruturas
ou sistemas investigados (Durkheim, 2007,
2003). Segundo Durkheim, representações
coletivas, uma vez institucionalizadas, se-
riam capazes de exercer influência ao longo
de um período excepcional, sobrevivendo a
muitas mudanças sociais e culturais. Ainda,
segundo o autor, enquanto representações
coletivas fossem funcionais, elas não desa-
pareceriam, mas, quando fossem questio-
nadas, novos conjuntos de ideias surgiriam
para estabilizar o sistema social. Bellah cita Maurice
o caso do cristianismo, cujas ideias princi- Halbwachs,
o primeiro
pais atravessam séculos, como dever e ideia
sociólogo a tratar
moral, estando na base da cultura ocidental. da memória
A dimensão do tempo estaria associada à du- coletiva ou
ração da representação coletiva, que poderia memória social
ser passageira, como a de um grupo desvian-
te temporário, ou mais duradoura, como a de relacionado à desagregação dos indivíduos
uma nação ou religião (Bellah, 1959, p. 459). seria descartado pela memória dos grupos;
Maurice Halbwachs, o primeiro sociólo- acreditou ser importante apontar os vínculos
go a se dedicar ao tema da memória coletiva de solidariedade responsáveis pela coesão in-
ou memória social, em um trabalho que hoje terna das sociedades4.
se tornou referência obrigatória, Les Cadres Segundo o sociólogo francês Gérard
Sociaux de la Mémoire, abordou, de forma Namer, que dedicou grande parte de suas
bem ampla, construções coletivas de pessoas pesquisas ao trabalho de Halbwachs, este
e grupos relacionadas ao passado; lugares, não pode ser reduzido ao funcionalismo;
datas, palavras e formas de linguagem se- Halbwachs teria sido responsável pela re-
riam representações partilhadas por todos novação da sociologia francesa, entre 1925
aqueles que têm lembranças (Halbwachs, e 1945, ao rever as teses de Durkheim de-
1994, pp. 51-2). Para ele, a memória social fendidas em O Suicídio, associando-as a seu
não seria uma expressão do que aconteceu conhecimento sobre técnicas estatísticas e às
no passado, mas uma construção coletiva contribuições dos grandes sociólogos de seu
do passado realizada pelos indivíduos de tempo, em particular, as de Max Weber. Ain-
determinada coletividade. Tal como em da segundo Namer, em Morphologie Sociale,
Durkheim, a dimensão de tempo seria aque- Halbwachs foi capaz de prolongar sua tese
la presente nos quadros sociais da memória. inicial defendida em Les Cadres Sociaux de
Para o discípulo de Durkheim, essas constru- la Mémoire ao apontar que a memória co-
ções ocorreriam necessariamente a partir de letiva associa-se tanto a correntes quanto a
processos seletivos, em que parte dos even- grupos sociais. O processo interativo tornou-
tos do passado seria esquecida e outra lem- -se mais complexo à medida que passou a ser
brada. Ao enfatizar a natureza social dessas considerado na interação dos indivíduos com
construções por famílias, grupos religiosos e o grupo e na interação do grupo com outros
operários de fábrica, entre outros, Halbwachs grupos através da mediação dos indivíduos
priorizou o estudo dos textos, presentes em (Namer, 1997, pp. 14-5). A memória coletiva, 4 Para uma análise mais
narrativas, objetos materiais, imagens e ins- nesse caso, passa a ser simultaneamente a detalhada do traba-
lho de Halbwachs,
tituições, identificados por ele como quadros memória constituída por grupos e a memória ver: Santos, 2012, pp.
sociais da memória. Tudo o que estivesse que constitui os mesmos grupos. Podemos, 39-59.

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nesse sentido, pensar em uma aproximação logo Franklin Frazier e o antropólogo Mel-
entre macro e microanálises no estudo de re- ville Herskovits, sobre a influência da cultura
presentações coletivas a partir do trabalho de africana na sociedade norte-americana 5. A
Halbwachs. A recuperação de seu trabalho partir da construção da distância entre as
a partir da década de 1980 insere-se nessa duas linguagens, a dos mitos e a dos rituais,
vertente. É interessante, nesse sentido, ob- já estabelecida por Lévi-Strauss6, Bastide ar-
servar duas correntes de pensamento que gumentou que, embora a escravidão tivesse
certamente influenciaram a apropriação da destruído a possibilidade de transmissão dos
obra de Halbwachs nas últimas décadas: o mitos, ou seja, das estruturas mais comple-
estruturalismo e a fenomenologia. xas que organizavam os africanos, estes se
reorganizaram no Brasil a partir de práticas
BASTIDE E A NOÇÃO DE rituais, sempre dependentes das circunstân-
BRICOLAGEM cias pontuais, em que ocorriam a reprodução
e a reinterpretação de alguns costumes arcai-
O sociólogo francês Roger Bastide este- cos, ainda que sem a plena consciência do
ve no Brasil, entre 1938 e 1954, ocupando a significado dos mitos constituídos na África.
cadeira deixada por Lévi-Strauss, que lá per- Ele explicou, dessa forma, que o empobre-
manecera entre 1935 e 1939, e tendo por mis- cimento da mitologia africana no Brasil não
são a organização da Faculdade de Filosofia, teria ocorrido devido ao esquecimento ou
Ciências e Letras da Universidade de São coerção de outros grupos sociais, mas à au-
Paulo. Desempenhou um papel importante sência de estruturas ou “quadros sociais da
na formação de toda uma geração de inte- memória” – reinterpretando aqui o conceito
lectuais brasileiros. Em 1955 publicou, com de Halbwachs – que possibilitassem sua re-
Florestan Fernandes, Relações Raciais entre construção plena. No entanto, à medida que
Negros e Brancos em São Paulo. Apesar da antigas estruturas encontraram indivíduos
pesquisa voltada para a condição do negro capazes de desempenhar as mesmas práti-
como trabalhador na sociedade de classes, cas rituais do passado, tradições puderam
tema caro aos sociólogos, Roger Bastide in- ser reconstituídas. A cerimônia religiosa era
vestigou a presença de traços culturais afri- constituída por rituais, em que cada indiví-
canos em rituais religiosos que aconteciam duo tinha certas falas a dizer e movimentos
no Brasil. Procurou o significado da África a desenvolver. Se os rituais africanos antes
5 Sobre o debate, ver para os brasileiros, dedicando-se a estudos eram associados ao caos, à abolição de re-
o excelente artigo de
Livio Sansone (2012).
sobre o candomblé, com seus rituais e sua gras e a uma maior permissividade e anar-
capacidade de organizar os escravos africa- quia sexual, após Bastide ficou mais difícil
6 Ver a apresentação
de Lévi-Strauss, de nos no novo mundo (Bastide, 1958, 1960). não perceber que a aparente loucura estava
26 de maio de 1956, Em As Religiões Africanas no Brasil, submetida a normas e regras.
sobre a relação entre
a mitologia e o ritual, Bastide (1971) recorreu, entre outros, ao Em “Mémoire Collective et Sociologie
seguida de debate conceito de “quadros sociais da memória,” du Bricolage”, trazendo uma abordagem
com diversos parti-
cipantes, entre ou-
que Maurice Halbwachs (1994) estabelecera mais sofisticada que a de seus antecesso-
tros, Louis Dumont, em 1925, criticando, contudo, o funcionalis- res, Bastide (1970) substituiu as noções de
Alfred Métraux, Ja- mo do discípulo de Durkheim e propondo a aculturação, de miscigenação e mesmo de
cques Lacan, Mauri-
ce Merleau-Ponti e maior autonomia entre a estrutura dos mitos sincretismo pelo conceito de bricolagem.
Lucien Goldmann. e aquela presente nos rituais, e, consequen- A partir do pluralismo teórico de Gurvitch,
Disponível em:
h t t p : // p t . s c r i b d . temente, do indivíduo no processo de trans- Bastide criticou os trabalhos de Halbwachs,
com/doc/27390069/ missão de tradições. A preocupação de Bas- dessa vez citando explicitamente “A Topo-
Levi-Strauss-Sur-les-
-rapports-entre-la-
tide é encontrar uma alternativa ao impasse grafia Legendária dos Evangelhos em Terra
-mythologie-et-le- colocado por sociólogos e antropólogos na Santa”, texto em que a noção de pensamen-
-rituel. Acessado em análise do encontro entre duas culturas, mui- to religioso se confunde com a de memória
15/4/2013.
to na esteira do debate travado entre o soció- coletiva. Bastide subordinou as lembranças,

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tradições e legados do passado à possibilida- de fora do arcabouço teórico da bricolagem
de de adaptação às circunstâncias do presen- a possibilidade de análise dos mecanismos
te por grupos estruturados (Bastide, 1970, p. relacionados à lembrança e ao esquecimento.
79). Fazendo um paralelo entre o processo de Tal como os quadros sociais da memória de
reconstrução simbólica feito pelas cruzadas Halbwachs, a bricolagem lida com o acaso
na Palestina e aquele realizado pelos afri- na acumulação das experiências ao longo do
canos na América, Bastide concluiu que a tempo.
sobrevivência da religião africana na Amé-
rica foi possível porque os africanos repro- ENTRE TRADIÇÃO E
duziam as estruturas simbólicas anteriores MODERNIDADE: MEMÓRIA
em seus rituais, apoiando-se não em pedras COLETIVA
e pontos geográficos, mas nos músculos e
ações motoras realizadas pelo corpo. O que Por um lado, autores que foram influen-
importava, portanto, não era o grupo em si ciados por Marx e Weber facilmente chega-
mesmo, mas sua organização, sua estrutu- ram a formulações lineares da história, em
ra simbólica, garantidora da transmissão que a construção do novo implica a desinte-
das tradições. Tanto para Halbwachs, como gração do passado. Na conhecida citação de
para Bastide (1970, p. 94), toda lembrança Marx, feita pelo filósofo e escritor marxista
era a um só tempo passado e presente, pois Marshall Berman, tudo o que é sólido se
só poderiam ser lembradas as experiências desmancha no ar. A experiência de tempo e
anteriormente vivenciadas que encontras- espaço atribuída à modernidade é aquela em
sem um canal de expressão no presente, ou que todos os indivíduos estão submetidos a
seja, um novo quadro social da memória. Se um turbilhão permanente de desintegração e
o sistema escravocrata impossibilitara que mudança, de luta e contradição, de ambigui-
as mesmas estruturas se formassem, peda- dade e angústia (Berman, 1986, p. 15). Entre
ços, fragmentos, partes dessas experiências teóricos próximos a Weber, esse diagnóstico
anteriores foram reconstituídas. Os legados não é muito diferente. O sociólogo inglês An-
africanos eram aqueles reproduzidos pelos thony Giddens, em seu livro Consequências
africanos, quando estes conseguiam adaptar da Modernidade, criou o termo “desencai-
estruturas simbólicas anteriores, ainda que xe” para situar a autonomia dos indivíduos
fragmentadas, às novas condições de vida. modernos frente às relações tradicionais
Em suma, podemos dizer que nas décadas de (Giddens, 1990), tema aprofundado por ele
40 e 50 um grupo de intelectuais contribuiu poucos anos depois (Giddens, 1994). A ideia,
para a consolidação de um novo discurso da portanto, de que relações sociais reiteradas
nação; os descendentes de escravos, agora e permanentes se desintegram à medida que
denominados afrodescendentes, passavam a sociedades se tornam mais complexas e que
ter como mito de origem a África, e não mais o passado surge apenas no presente a partir
as condições do período escravista, fossem de causas e tensões do presente está bastante
elas harmoniosas ou perversas. arraigada no pensamento sociológico.
Bastide avançou teoricamente ao relativi- Ainda na esteira do corte radical entre
zar a dicotomia anterior entre permanência e tradição e modernidade, podemos citar os
aculturação, e criticar as propostas que tra- trabalhos organizados por Hobsbawm e Ran-
tavam as memórias coletivas como se estas ger (1992), sob o título geral de A Invenção
fossem entidades em si mesmas. A defesa de das Tradições. Para os diversos autores, as
Bastide da reiteração de práticas do passado tradições nem se perpetuam, nem sobrevi-
em rituais pode ser associada a uma série vem, mas são reconstruídas, inventadas, a
de estudos sobre comemorações. Para ele, o partir de uma ação consciente de determi-
passado é acionado por determinadas práti- nada classe ou grupo social para manter ou
cas que se repetem. Ainda assim, continuou criar determinados privilégios e hierarquias.

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Por outro lado, a noção de reprodução de formas tradicionais e comunitárias, por um


representações coletivas em Durkheim tem lado, e outras, modernas, individualizadas e
um sentido muito forte. Não é surpresa, por- criativas, por outro, está presente em alguns
tanto, que seus seguidores tenham se man- autores contemporâneos. Ainda a destacar,
tido presos à dimensão temporal inerente a nesse sentido, o trabalho do antropólogo ar-
essas representações. Contemporaneamente, gentino Néstor García Canclini sobre cultu-
o sociólogo norte-americano Edward Shils ras híbridas, que procura mostrar como prá-
fez um esforço considerável para redefinir ticas tradicionais, baseadas na manutenção
as relações mantidas entre passado e presen- de estruturas normativas locais, coexistem
te a partir da criação de diversas categorias com aquelas consideradas modernas ou re-
para classificar as atividades tradicionais: flexivas. O autor procurou mostrar que, na
tradicionalismo, tradição criativa, tradição América Latina, convivem, por um lado, re-
substantiva, normativa. Na sua definição, construções de novas memórias nacionais,
tradições seriam práticas, hábitos e atitudes identidades étnicas e lutas por reconheci-
criadas no passado de acordo com valores e mento, e, por outro, autoridades locais per-
crenças, e transmitidas para outras gerações petuadas e críticas reiteradas à fragmentação
a partir da confiança, da intuição, da imita- do mundo moderno (Canclini, 1992).
ção e da autoridade, por meios racionais e não A quebra entre tradição e memória, seja
racionais. De forma muito sucinta, podemos ela parcial ou total, foi questionada pelo con-
dizer que dois eixos principais cortam essa ceito hermenêutico de tradição. Para o filóso-
análise: a tentativa de perceber a reprodução fo Hans-Georg Gadamer, por exemplo, não
não racional de estruturas do passado, bem podemos partir da separação entre tradição e
como a sua reconstrução por meio da razão. modernidade. Ao contrário, a atitude correta
Shils enfatiza, por um lado, que tradições po- é a de procurar na cultura herdada, isto é,
deriam ser reproduzidas de forma involuntária, naquilo em que possamos nos reconhecer.
tornando-se práticas distanciadas do sentido O que é transmitido por nossos antepassa-
inicialmente dado a elas. Defende a ideia de dos não é algo estranho a nós que possa ser
que indivíduos raramente têm necessidade de captado pela razão científica. Ao contrário,
pensar sobre o conteúdo transmitido (Shils, o passado tem sempre ressonância em nós,
1981, pp. 34-194)7. O autor, a partir das pre- ele é o espelho através do qual nós nos re-
missas weberianas, também postula que cada conhecemos. Tradição não é um problema
geração recebe da geração anterior um acúmu- do conhecimento, mas um fenômeno, um
lo de conhecimento, e parte desse conhecimen- conteúdo transmitido. Não seriam, então, as
to torna-se objeto de uma avaliação racional tradições ideias preconceituosas que preci-
(Shils, 1981, pp. 291-310). Além disso, faz uma sariam ser superadas? Para Gadamer, não é
separação entre atividades tradicionais e não possível superar a tradição sem o reconhe-
tradicionais; estas últimas associadas a com- cimento dos vínculos tradicionais. O mais
portamentos originais motivados por impulsos correto seria considerar a consciência histó-
ou interesses (Shils, 1981, pp. 311-22). rica moderna não como um fenômeno novo,
Encontramos uma tentativa similar de mas como uma transformação relativa, ainda
síntese teórica em Paul Heelas, especialista que seja revolucionária, pois os homens sem-
inglês em estudos da religião que, ao exami- pre constituem suas atitudes em relação ao
nar o conceito de destradicionalização pre- seu passado. É necessário que a consciência
sente entre os defensores de um corte entre compreenda que traz com ela preconceitos
7 Para uma crítica ao tradição e modernidade, propôs a aceitação seculares. Sem essa percepção, o conheci-
colapso de diferentes
perspectivas históri- da multiplicidade de processos a partir da mento que adquirimos é insuficiente, redu-
cas e temporais sob tese de que as tradições não foram total- zido (Gadamer, 1987).
a denominação de
“tradição”, ver: Jacobs, mente erradicadas (Heelas, Lash & Mor- A maior parte dos estudos sobre memória
2007. ris, 1996). A proposta de coexistência entre coletiva que surge após a década de 1980 faz

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Guglielmo Losio/stock.xchng
parte da grande guinada ocorrida nas ciên- cada memória o que é preservado é o sentido Cristianismo:
cias sociais a partir da emergência dos estu- da simultaneidade de experiências alcança- construção
dos culturais. A influência da fenomenologia do pelos indivíduos em interações sociais. da memória
coletiva por
de Husserl, através da mediação de Alfred Para Schutz, as ações dos antepassados não
meio dos rituais
Schutz, como também da fenomenologia têm qualquer dimensão de liberdade e po- e lembranças de
hermenêutica de Martin Heidegger, através dem ser contrastadas com o comportamento significados
dos trabalhos de Hans-Georg Gadamer, fo- dos indivíduos do presente que se encontram
ram fundamentais aos estudos culturais e em interação, pois os antepassados estão no
também às novas teorias sobre a memória8. passado e não entram em relação com os in-
Historiadores criticaram análises baseadas divíduos do presente. Nenhum indivíduo do
em lógicas causais e evolutivas, rejeitaram presente influencia os antepassados, e vice-
a ênfase no encadeamento e na recorrência -versa (Schutz, 1997, pp. 207-14). Ao afirmar
de elementos estruturais. A definição funcio- que os antepassados só podem influenciar o
nalista de cultura foi substituída pela noção presente de forma fixa, Schutz estabelece um
de cultura que elege a dimensão simbólica, a priori que corrobora as noções anteriores
constitutiva de todos os processos sociais, já estabelecidas pelos clássicos da sociologia.
8 Sobre a influência da
como seu objeto de análise. Há uma resenha crítica do historiador fenomenologia nos
O pensamento de Alfred Schutz, filósofo francês Marc Bloch (1925) sobre Les Cadres estudos culturais, ver:
Rabinow & Sullivan,
austríaco, estabeleceu a ponte entre fenome- Sociaux de la Mémoire que ressalta alguns 1987, pp. 1-33.
nologia e ciências sociais ainda na década de pontos não resolvidos na teoria apresenta-
9 Antes de trabalhar
1930, e teve impacto considerável nas ciên- da por Halbwachs na década de 1920 e que com Durkheim, Halb-
cias sociais, ao trazer o tema da intersubje- podemos considerar, ainda, como questões wachs foi assisten-
te do filósofo Henri
tividade à tona. Por um caminho distinto, o centrais na passagem da discussão entre tra- Bergson, que publi-
do pragmatismo filosófico, o norte-america- dição e memória para a de memória coletiva. cara, em 1896, uma
de suas obras mais
no George Herbert Mead também dá início O historiador reiterou o caráter coletivo da famosas, Matière et
às investigações sobre o sentido inerente às memória, descrita como sendo a conservação Mémoire (Bergson,
1985). Halbwachs cri-
interações sociais, trazendo uma nova pers- ativa das lembranças comuns de um grupo ticou a ideia de cone
pectiva para o campo teórico social (Mead & humano e sua influência sobre a vida das so- para explicar e optou
Morris, 1934). Para esses autores, a dimen- ciedades, mas enfatizou, primeiro, que havia por uma mudança de
paradigma, de uma
são temporal é sempre inerente aos fenôme- uma complementaridade entre tradição ou experiência subjetiva
nos ou interações sociais. As memórias do durée – no sentido dado pelo filósofo Henri de tempo para a co-
letiva. Sobre o tema,
passado, portanto, não trazem de volta expe- Bergson – e sociedade que não foi considera- ver: Santos, 2012, pp.
riências do mundo de antepassados, pois em da por Halbwachs9. Bloch deu o exemplo da 39-59.

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dossiê Memória

sociedade religiosa cristã, em que a piedade redução da cultura à consciência individual


dos fiéis se nutre dos rituais e das lembran- ou à subjetividade, uma vez que compreen-
ças, ou seja, para ele, o tesouro histórico ou deram a teia complexa de significados como
legendário do cristianismo se transmitiria resultado de um projeto interpretativo deri-
de geração em geração pelo intermédio dos vado da intersubjetividade. Os estudos sobre
rituais e pelo esforço da memória de lembrar memórias coletivas se consolidaram a partir
os significados inerentes a eles. Segundo ele: de abordagens interdisciplinares que ques-
“Todo grupo social retira sua unidade espiri- tionaram as fronteiras anteriormente esta-
tual ao mesmo tempo das tradições que cons- belecidas entre o investigador e seu objeto,
tituem a matéria própria da memória coletiva e privilegiaram a análise de representações
e das ‘ideias ou convenções, que resultam compreendidas como sendo fenômenos po-
do conhecimento do presente’” (Bloch, 1925, líticos e culturais11.
p. 76). Ao se perguntar como as lembranças
coletivas são transmitidas de geração em ge- MEMÓRIA TRAUMÁTICA E
ração, Bloch traz à tona sua segunda crítica à MEMÓRIA CULTURAL
abordagem funcionalista: embora Halbwachs9
estivesse correto ao mostrar que uma memó- Variações do conceito de duração defen-
ria individual não poderia ser considerada de dido por Bergson tornam-se predominantes
forma independente da memória social, havia na discussão sobre a simultaneidade de dife-
uma diferença importante entre as formas pe- rentes formas de memória, como memória-
las quais indivíduos e sociedades se reencon- -hábito, memória voluntária e memória invo-
travam com o passado (Bloch, 1925, p. 81). luntária12. Os diversos momentos temporais
No livro póstumo de Maurice Halbwa- formam um todo indivisível e não podem ser
chs, publicado em 1950, La Mémoire Collec- associados à mera inteligência lógica que ele-
tive, um conjunto de reflexões voltadas para ge momentos e os ordena linearmente, em
as críticas que haviam sido feitas às teses e sucessão, pois eles não se excluem, não po-
conceitos defendidos em Les Cadres, não en- dem ser numerados ou hierarquizados. Esse
contramos mais a ênfase na autonomia da es- tempo vivenciado, qualitativo, complexo,
trutura coletiva da memória. Nas abordagens heterogêneo não tem uma expressão única.
que estão presentes desde Halbwachs até a Segundo o filósofo, o tempo é experiência
10 Para uma análise inte-
chamada explosão dos estudos da memória vivida:
ressante da influência coletiva na década de 1980, observamos a
de Halbwachs sobre substituição de análises sobre processos his- “[…] Sensações, sentimentos, volições, re-
os novos caminhos
tomados pela histo- tóricos lineares e de reprodução de sentidos e presentações, são essas as modificações en-
riografia, ver: Hutton, estruturas por noções em que a construção e tre as quais minha existência se divide e que
1988.
a reconstrução do passado ocorrem em meio a colorem alternadamente. Portanto, mudo
11 Embora separando
os textos por catego-
a um tempo que, como disse Walter Benja- sem cessar. Mas isso não é tudo. A mudança
rias temáticas e não min (1968), não pode ser concebido como é bem mais radical do que se poderia pensar
teóricas, a coletânea contas de um rosário. num primeiro momento. […] Com efeito, falo
organizada por Olick,
Vinitzky-Seroussi e Em suma, narrativas, monumentos, hi- de cada um de meus estados como se formas-
Levy (2011) oferece nos, bandeiras, exposições, autobiografias e se um bloco. Embora diga que mudo, parece-
uma boa dimensão
da diversidade de comemorações tornaram-se objetos privile- -me que a mudança reside na passagem de
produções relaciona- giados de investigação de antropólogos, so- um estado ao estado seguinte: no que se refe-
das ao tema memória
coletiva.
ciólogos e historiadores10. Os estudos sobre re a cada estado, tomado em separado, quero
representações, símbolos e instituições pas- crer que continua o mesmo durante todo o
12 Para uma discussão
aprofundada e filosó- saram a envolver a questão da interpretação, tempo em que se produz. Contudo, um leve
fica sobre as diversas da transmissão e da mediação, rejeitando o esforço de atenção revelar-me-ia que não há
categorias de memó-
ria e esquecimento, status anterior de investigação científica. Os afeto, não há representação ou volição que
ver Ricœur, 2000. novos pesquisadores rejeitaram também a não se modifique a todo instante; se um es-

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tado de alma cessasse de variar, sua duração que a violência atinge a alma ou o espírito,
deixaria de fluir” (Bergson, 2011, pp. 1-2). como tem sido diagnosticado em compor-
tamentos abusivos muitas vezes impostos a
O filósofo francês Gilles Deleuze reto- mulheres, crianças, idosos, negros e homos-
mou as teses de Henri Bergson, defendendo sexuais, o passado ressurge não como uma
e expandindo o conceito de multiplicidade narrativa de um evento vivenciado anterior-
e de unificação dos aspectos de diferença e mente, mas através de reações que indicam a
continuidade na dimensão temporal (Deleu- incompletude dessa experiência. Admite-se
ze, 1966). A dimensão temporal é compre- o colapso da compreensão e a incapacida-
endida de forma múltipla e complexa, não de de testemunhas de traduzirem por meio
podendo ser identificada à soma ou à orde- de narrativas a experiência vivenciada, que
nação de eventos. Essa retomada da noção de muitas vezes retorna como se estivesse im-
multiplicidade é interessante porque amplia pressa em uma tela, sem tradução. Por mais
a compreensão de trabalhos em que a relação que explicações sejam procuradas para as
entre passado e presente não tem um único barbáries cometidas, o excesso permanece
caminho e forma. além da compreensão.
A norte-americana Marianne Hirsch, Ao analisar o livro do escritor Art Spie-
especializada em literatura comparada, in- gelman, Maus, Hirsh utiliza o conceito de
vestigou os efeitos do Holocausto nos filhos pós-memória para explicar uma forma de co-
de homens e mulheres que sofreram experi- nexão entre presente e passado que é realizada
ências traumáticas em campos de concen- não pela lembrança, mas por um investimento
tração. Hirsch acredita que as narrativas dos imaginativo e criativo de Spiegelman sobre o
sobreviventes do Holocausto transmitidas vazio narrativo que seus pais deixaram sobre
para seus filhos foram tão fortes que deixa- o passado vivenciado em forma de trauma.
ram de ser histórias e podem ser conside- A autora argumenta que as fotografias que
radas memórias. Nesse sentido, procura dar aparecem em Maus são documentos de me-
conta da transmisssão dessa memória a par- mória tanto para o sobrevivente do campo de
tir da interpretação de poesias, fotografias e concentração como para seu filho, embora
de performances ritualizadas. de formas diferenciadas. Os sobreviventes
A discussão de trauma tem por base o do campo mantiveram uma relação com o
trabalho de Sigmund Freud, principalmen- passado, atravessada pelo trauma e pela di-
te, as teses apresentadas sobre o instinto ou ficuldade da lembrança. Spiegelman mantém
pulsão de morte, em Para Além do Princípio uma relação muito forte com as fotografias
do Prazer (Freud, 1920-22). De forma muito relacionadas ao passado de seus pais, relação
simplificada podemos afirmar que, segundo esta que, embora não possa ser definida pela
Freud, lembranças podem voltar em forma capacidade da fotografia de evocar ou trazer
de pesadelo ou restrições à ação consciente lembranças a ele sobre um passado não vi-
por não terem sido capazes de ser vivencia- venciado, pode ser descrita a partir da sua
das plenamente e, portanto, neutralizadas tentativa de imaginar esse passado através
pelo sujeito no passado13. O trauma aparece das fotografias. A pós-memória, na definição 13 Para uma excelente
como resultado tanto da natureza devasta- da autora, caracteriza a experiência daqueles análise desse texto
de Freud e as implica-
dora dos eventos sobre o indivíduo como da que crescem dominados por narrativas que ções para as ciências
incapacidade da psique deste último de lidar antecedem seu nascimento, moldadas por sociais, ver: Ricœur,
1981.
com determinados eventos14. A questão, nes- acontecimentos traumáticos que não podem
14 Os estudos nesse
ses casos, é a impossibilidade de termos tes- ser nem totalmente compreendidos, nem to-
campo são crescen-
temunhos do passado, uma vez que este não talmente recriados; caracteriza, portanto, a tes. Ver, entre outros:
foi vivenciado como experiência, mas como experiência daqueles que têm suas próprias Caruth, 1995, 1996;
Jacobus, 1998; Se-
trauma. Em casos de violência extrema, histórias afastadas pelas histórias de gera- ligmann-Silva, 2000,
como no Holocausto, ou mesmo em casos em ções anteriores. Uma segunda análise foi 2003; Bresciani, 2002.

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dossiê Memória

feita pela autora sobre a produção criativa nós lidamos com uma memória cultural, a
do escritor alemão W. G. Sebald sobre o Ho- qual, por sua vez, difere da memória que é
locausto (Hirsch, 2008). construída por grupos sociais, tal como des-
Como vimos, conceitos como tradição, crita por Maurice Halbwachs em Memória
memória coletiva e memória social remetem Coletiva. Através da criação de uma tipo-
a fenômenos relacionados à relação entre logia para a memória, eles associam a me-
passado e presente. Cabe, portanto, o ques- mória constituída por grupos sociais como
tionamento sobre o termo “pós-memória” memória comunicativa, e defendem a exis-
para denominar um investimento imagina- tência de outro tipo de memória, a memória
tivo e criador de uma segunda geração de cultural, cujo mecanismo de reprodução é
sobreviventes do Holocausto. Segundo a au- diferente. Para os autores, especialistas, res-
tora, o conceito de pós-memória se refere à pectivamente, em literatura e arqueologia,
experiência que é transmitida entre gerações, a memória cultural transcende situações, é
de forma intersubjetiva, experiência esta que transmitida por meio de formas simbólicas
reativa comportamentos que se caracterizam incorporadas na sociedade; ela pode durar
como uma reação ao trauma. Embora não milênios. A memória cultural, diferentemen-
sejam transmitidas narrativas, são transmi- te da memória comunicativa, é instituciona-
tidas sensações e emoções. Hirsch procura lizada, celebrada, cultivada, formalizada,
mostrar um vínculo entre gerações, uma estabilizada por meio de símbolos materiais;
forma específica de transmissão de experi- ela não faz parte da comunicação do dia a
ências. Os traumas vivenciados impediram a dia, mas é transmitida por rituais, máscaras,
transmissão de histórias entre gerações, mas danças e símbolos; são formas de conheci-
o vazio de narrativas provocou uma empatia mento institucionalizadas15.
na geração subsequente, ou seja, a experiên- Novamente podemos nos perguntar por
cia foi transmitida. A segunda geração, como que denominar essa codificação simbólica
é chamada, ao mesmo tempo em que tem um de memória se por memória compreende-
vínculo muito forte com a geração que sofreu mos a capacidade que um indivíduo tem
o trauma, tem um comportamento diferen- de lembrar? O termo memória, contudo, já
ciado que é capaz, inclusive, de escapar das tem sido utilizado regularmente para indicar
fugas e repetições compulsivas da primeira imaginários coletivos relacionados ao pas-
geração. sado partilhados por determinados grupos
A denominação de “memória” à trans- sociais. Esses imaginários têm suas especi-
missão de experiências entre gerações, ainda ficidades, pois cumprem a função de permi-
que na ausência de tradução, expande-se para tir que indivíduos se lembrem do passado,
fenômenos que são transmitidos por longos constituam suas identidades e reconheçam
períodos a partir da cultura. Nesse caso, não sua forma de pertencimento a algo maior.
são os conceitos psicanalíticos que dão base Aleida Assman faz uma crítica à afirmação
teórica ao termo memória, mas aqueles que se de Pierre Nora de que se falamos tanto de
vinculam à ideia de estrutura. A partir da no- memória é porque ela não existe mais. Para
ção de que a cultura pode transmitir aspectos a autora, há uma diferença entre imaginários
mnemônicos por até milhares de anos, alguns constituídos e mnemotécnica. Tal como Jan
autores passaram a fazer uma distinção entre Assmann, também para ela a memória cultu-
a memória que é transmitida oralmente entre ral tem como especificidade o fazer lembrar a
gerações, denominada memória comunicati- partir de pontos fixos; representa um gatilho
va, e a memória que é transmitida ao longo de para nossas memórias, promove a lembran-
séculos através de símbolos ou pontos fixos, a ça. A memória cultural é mais ampla que as
15 Ver, nesse sentido: memória cultural. diversas memórias construídas, como memó-
Assmann, 2011c, pp.
15-141. Sobre o tema, Os intelectuais alemães Aleida e Jan Ass- ria familiar, memória de um grupo social,
ver ainda: Erll, 2011. mann destacam-se na defesa da ideia de que memória nacional e assim por diante. Ela

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está presente em paisagens, objetos, livros, importante para compreendermos que um
emblemas e monumentos. A memória cultu- passado traumático tem consequências sobre
ral está sempre presente nas diversas socie- gerações subsequentes. No Brasil, sabemos
dades, ela mantém o contato entre passado que muito poucas são as memórias e nar-
e presente, entre os mortos e os vivos, ela rativas da escravidão. As antigas narrativas
dá significado, identidade e orientação aos que mostravam instrumentos de tortura e
indivíduos. Em suma, a memória cultural escravos no tronco têm sido gradativamente
possibilita que os indivíduos se conheçam abandonadas por estarem sempre associadas
como entidade contínua através do tempo; a diagnósticos de subordinação e vitimiza-
ela é mais restrita que a cultura, pois está ção dos escravos. A construção do passado
sempre associada à lembrança do passado dos descendentes de escravos tem ocorrido
(Assmann, 2011a, 2011b). Ambos os autores em torno de questões como a presença de
consideram as imagens como telas em que traços africanos, em contraposição à assimi-
desejos são projetados, apresentando uma lação e à adaptação cultural. A construção
grande proximidade teórica com o conceito de memórias coletivas em torno de feridas
de ritual descrito por Bastide, em que prá- históricas é sempre muito complexa. Con-
ticas se reproduzem veiculando desejos do temporaneamente surgem diversas iniciati-
presente, sem que tragam com elas os mitos vas de recordação de lembranças traumáticas
ou significados anteriores. que têm por foco refletir sobre práticas de
abuso, ressaltando a resistência constituída,
CONCLUSÃO: e exigir para os descendentes dos que sofre-
DAS UTOPIAS PARA ram atrocidades uma política de desculpas e
AS SOBREVIVÊNCIAS reparação. Essas políticas da memória estão
DA HISTÓRIA envolvidas com a recuperação ética das ba-
ses que fundam uma sociedade. No Brasil,
Ao observarmos o rumo desses estudos alguns poucos estudos começam a se preo-
nos últimos cem anos, vemos que há um cupar com a memória dos descendentes de
crescente interesse pelo passado em suas escravos, ainda que tardiamente, dando voz
várias formas. Podemos afirmar que esse não às vítimas, mas aos diversos atores da-
interesse cresce em direção contrária àque- quele período da história16.
le que se volta para utopias e projetos para Diversos estudos sobre memória têm
o futuro. O trabalho de Halbwachs e, mais considerado a contribuição do historiador
do que isso, o conceito de memória coletiva da arte alemão Aby Warburg lado a lado
foram retomados na década de 1980 não só com a de Maurice Halbwachs. Warburg
por antropólogos e sociólogos, mas, também, dedicou sua vida e sua fortuna à criação de
por historiadores, cientistas políticos, filóso- uma biblioteca especializada, inicialmente
fos, críticos literários, psicólogos, arqueólo- instalada em Hamburgo, e transferida para
gos e museólogos, entre outros. Ao propor Londres, em 1944, no período de guerra. Au-
uma distinção entre uma história narrativa tor singular, pouco conhecido em seu tem-
e linear e memória coletiva, Halbwachs po, passou a ter maior visibilidade a partir
acabou sendo apropriado por historiado- dos anos 1970. Nas suas investigações sobre
res da cultura, que, da mesma forma que o símbolos que retornam em obras de arte, há
sociólogo, afastaram-se de uma lógica exter- uma dimensão de temporalidade que escapa
na aos processos constitutivos das formações da ordem linear do progresso, hegemônica
simbólicas. durante grande parte do século XX. Warburg
Contribuições que foram incorporadas trabalhou com a noção de sobrevivência (Nach-
de outras disciplinas ampliaram tanto as leben) de imagens e com a noção de empatia 16 Ver, nesse sentido:
Azevedo, 1987; Cha-
noções de ação social, como as de estrutu- (Pathosformel) para explicar o retorno de lhoub, 1990; Grin-
ra social. O trabalho sobre pós-memória é formas e símbolos do passado. Seus traba- berg, 1994.

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dossiê Memória

lhos apontam a presença de elementos da eles traziam representações, animação e


antiguidade pagã nas pinturas de Botticelli, expressão emocional procuradas no Renas-
representante da cultura burguesa florentina; cimento. Através da empatia artística, essas
A Ninfa de Ghirlandaio irrompendo em O representações foram imitadas. No caso do
Nascimento de João Baptista; o Laocoonte interesse nacionalista alemão pela Renas-
(ritual da serpente dos índios hopis), no de- cença italiana, o que estava em jogo era a
senho de uma criança indígena ocidentali- busca de ideias de individualidade e paixão
zada; a gestualidade do homicídio de Orfeu, em detrimento de qualquer significado histó-
na postura de uma jogadora de golfe, e assim rico originário. Warburg não associou a arte
por diante. Warburg defendeu a ideia de que florentina a um único significado ou forma
determinadas imagens tinham um potencial de comportamento, mas detectou nela con-
de permanência, e, com isso, viabilizou a flitos e fragmentações.
percepção do anacrônico no tempo histórico. Embora possamos ainda encontrar estu-
Warburg não estava interessado no sig- dos sobre memória coletiva que se associam
nificado simbólico de imagens, ou seja, na às correntes teóricas da sociologia, com suas
interpretação de significados que determi- ênfases diversas ao ator e à estrutura social,
nados indivíduos ou grupos fazem de deter- grande parte da produção recente aponta
minada imagem. Enquanto historiadores da para uma noção de temporalidade que indi-
arte estavam preocupados em compreender ca movimento contínuo e multiplicidade. A
as condições nas quais determinada obra oposição radical entre tradição e modernidade
foi produzida, seu contexto e significado, fica fora desse horizonte interpretativo. A per-
Warburg deteve-se no movimento percor- cepção de que há uma relação constante entre
rido por uma obra, ou por traços presentes passado e presente, que não é linear, é antagô-
nela, através do tempo. Esse movimento re- nica à ideia de que formas tradicionais de ser e
queria explicações. Embora tenha adotado pensar foram totalmente substituídas pela re-
uma abordagem intuitiva para apontar as flexividade moderna. A alternativa tem sido a
sobrevivências de elementos do passado em investigação da presença de práticas descritas
obras de arte, o historiador se diferenciou como pertencentes à tradição em meio à mo-
de análises anteriores por não generalizar o dernidade. Dessa forma, podemos perceber,
significado dessas sobrevivências. Para ele, sem contradições, que há sempre aspectos da
o significado de cada obra estava relacionado tradição no que chamamos de modernidade,
a um momento único da história. Os protóti- como há sempre aspectos da modernidade no
pos da Antiguidade foram imitados porque que chamamos de tradicional.

B I B LI O G R AFIA

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