Você está na página 1de 8

AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.

br/aurora

A PATRIMONIALIZAÇÃO DA CULTURA COMO


FORMA DE DESENVOLVIMENTO:

Considerações sobre as teorias do desenvolvimento e o patrimônio


cultural

SANDRA SIQUEIRA DA SILVAi

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de definir e analisar o conceito de


desenvolvimento sob a interpretação de alguns autores a respeito do referido tema. Abordar
algumas considerações sobre a cultura, o patrimônio cultural e a trajetória das políticas
públicas de proteção patrimonial, além de analisar a relação entre a patrimonialização da
cultura como contribuição para o desenvolvimento, e o lugar ocupado pelos bens culturais
numa sociedade dominada pelas forças do livre mercado.
Palavras chave: Desenvolvimento, cultura, patrimonialização, patrimônio cultural, bens
culturais.

Abstract: This article aims to define and analyze the concept of development in the
interpretation of some authors about the said topic. Address some considerations about the
culture, heritage and cultural history of public policies to protect company property, in
addition to analyzing the relationship between the patrimonial culture as a contribution to
the development and the cultural place occupied by a society dominated by free market
forces.
Keywords: Development, culture, patrimonial, cultural heritage, cultural property.

INTRODUÇÃO (2000), Esteva (2000), Sbert (2000), Furtado


(1981), Rist (1997) e Lummis (2000). Esses

A concepção de patrimonialização está


ligada a ideia do desenvolvimento. A
proposta deste trabalho é fazer uma
breve exposição do pensamento de alguns
autores sobre a temática do desenvolvimento e
autores serão utilizados para se entender o
surgimento do termo, e a visão e interpretação
dos mesmos sobre o conceito em questão. Para
abordar a influência da patrimonialização, são
trabalhados os conceitos de patrimônio cultural
suas concepções a respeito do tema. Refletindo material e imaterial, de acordo com Pereiro
ainda sobre o significado do patrimônio cultural (2006), Choay (2006), Veloso (2006), e também
material e imaterial, a valorização dos bens a partir da definição constitucional e do
culturais como bens econômicos, a influência e IPHAN- Instituto do Patrimônio Artístico
os objetivos da patrimonialização da cultura e Nacional sobre o assunto em questão,
dos bens culturais. Para uma melhor juntamente com a trajetória das políticas
compreensão a respeito do conceito de públicas de proteção ao patrimônio material e
desenvolvimento, utilizaremos como referencial imaterial. A relação direta entre cultura e
teórico; Berthoud (2000), Rostow (1978), Sen desenvolvimento é analisada conforme Hermet

106
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

(2002), Berenstein Jacques (2008). E por fim, Harry Truman2, o então presidente dos Estados
será discutida a relação entre o mercado, Unidos, é criado o conceito de
consumo e o patrimônio, de acordo com desenvolvimento e de subdesenvolvimento. A
Veloso (2006) e Pereiro (2006). A fim de se partir desta data, este conceito é aplicado a
repensar o lugar dos bens culturais e como todas as sociedades. Diante do resultado do
estes são valorizados numa sociedade discurso, os Estados Unidos demarcaram a sua
comandada pelas forças do mercado. hegemonia diante do mundo.

1) O CONCEITO DE Naquele dia, dois bilhões de pessoas


DESENVOLVIMENTO: SUA passaram a ser subdesenvolvidas. (...)
CRIAÇÃO E ALGUMAS daquele momento em diante, deixaram de
ABORDAGENS E ser o que eram antes, em toda sua
INTERPRETAÇÕES A diversidade, e foram transformados
magicamente em uma imagem inversa da
RESPEITO DE TEMA.
realidade alheia; uma imagem que os
diminui e os envia para o fim da fila; uma
Durante o século XIX, não se havia imagem que simplesmente define sua
formado um conceito sobre o desenvolvimento identidade, uma identidade que é, na
nem sobre o subdesenvolvimento, o conceito realidade, a de uma maioria heterogênea e
usado até o momento era o de progresso. De diferente, nos termos de uma minoria
acordo com Sbert apud Sachs (2000) ciência e homogeneizante e limitada. (ESTEVA
tecnologia estavam ligadas pela fé ao progresso, apud SACHS, 2000, p. 60).
mas em consequência das duas guerras, o termo
progresso perdeu prestígio. O progresso é um Em seu discurso, Truman apenas usou a
destino moderno e o homem moderno é palavra subdesenvolvimento para ilustrar fatos
definido pelo progresso. As sociedades que não presentes na maioria das sociedades, como o
o tem estão submissas àqueles que o tem, e atraso e a pobreza, fruto da exploração
estas usam do progresso para conservar a sua colonialista dos países desenvolvidos sobre os
posição de dominação. Sendo este termo uma subdesenvolvidos, fica evidente que o
questão de sobrevivência.1 O progresso tem desenvolvimento fabricou o
uma conotação individual, evolutiva, natural e subdesenvolvimento.
espontânea. Nasce com o liberalismo, onde o Para Furtado (1981), neste contexto do
indivíduo é o sujeito desse processo, na pós-guerra a reflexão sobre o desenvolvimento
concepção de que cada um fazendo sua parte foi propiciada pela consciência do atraso
consequentemente se chegará ao progresso. Já econômico vivido pela grande maioria da
o desenvolvimento é algo planejado e tem um população mundial. Para o referido autor, o
significado coletivo, nasce com o Estado conceito pode ser entendido por dois sentidos
Keynesiano, o Estado como representante da bem distintos: o primeiro seria por um processo
coletividade que avança levando consigo as
massas; aqui o sujeito do processo é o grupo, o 2
“É preciso que nos dediquemos a um programa
país. Segundo Esteva apud Sachs (2000) em 20 ousado e moderno que tome nossos avanços científicos
de janeiro de 1949, no discurso de posse de e nosso progresso industrial disponíveis para o
crescimento e para o progresso das áreas
subdesenvolvidas. O antigo imperialismo – a
1
“No entanto, a crença no progresso pode de fato exploração para o lucro estrangeiro- não tem lugar em
pertencer ao âmbito da fé num sentido semelhante à nossos planos. O que imaginamos é um programa de
cristã garantia das coisas que esperam do além. desenvolvimento baseado nos conceitos de uma
Certamente, na prática, a fé no progresso acaba se distribuição justa e democrática”. (Harry, S. Truman,
tornando mera “falsa consciência” – uma auto-ilusão Discurso Inaugural, 20 de janeiro de 1949, in
etnocêntrica, classista e egoísta”. (SBERT apud Documents on American Foreign Relations,
SACHS, 2000, p.294). Connecticut, Princeton University Press, 1967.
ESTEVA apud SACHS, 2000, p.60-61).

107
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

de transformação que engloba a adoção de completamente livre.3Assim, a tendência é a de


métodos produtivos mais eficientes, e o se considerar o bem-estar material como valor
segundo com o aumento do fluxo de bens e universal e não como valor cultural.
serviços. O conceito é também sinônimo de Na elaboração de um plano modelo a
eficiência e de riqueza. E também é relacionado ser perseguido para se chegar ao
ao grau de satisfação das necessidades humanas. desenvolvimento, Rostow (1978) advoga que o
Na discussão sobre o desenvolvimento como desenvolvimento de todas as sociedades pode
satisfação das necessidades humanas, Amartya ser catalogado em cinco etapas: a sociedade
Sem (2000) tem uma visão semelhante à de tradicional, as pré-condições para o arranco, o
Furtado (1981). arranco, a marcha para a maturidade e a era do
De acordo com a análise do consumo em massa. Na primeira etapa existe a
desenvolvimento como forma de felicidade sociedade tradicional, voltada para a agricultura,
humana, na visão de Sen (2000), a expansão da em que a família e o clã exercem grande
liberdade humana é o principal meio e fim do influência social. A segunda etapa é o processo
desenvolvimento, e o objetivo deste é a de transição, tem-se início a valorização do
avaliação das liberdades desfrutadas pelas lucro privado e da educação, despontando-se os
pessoas. O desenvolvimento requer o bancos e instituições para a mobilização do
afastamento das fontes de privação de liberdade capital; há o crescimento do comércio e do
e de escolhas, tais como: pobreza, Estado bem-estar geral, visto que os fatores de
repressivo, negligência de serviços públicos decomposição da Idade Média criaram as pré-
como: saúde, educação, transporte, moradia, condições para o arranco. Na terceira etapa, o
desemprego, que para o autor se constituem em desenvolvimento passa a ser normal, o
liberdades substantivas, etc. incentivo para o arranco foi tecnológico. A
economia passa da agricultura para ser
O desenvolvimento consiste na predominantemente industrial. É mantido,
eliminação de privações de liberdade que neste momento um ritmo constante de
limitam as escolhas e as oportunidades desenvolvimento. Na penúltima etapa, a
das pessoas de exercer ponderadamente economia se diversifica em várias áreas
sua condição de agente. (...) A importância produtivas e tem condições de produzir
intrínseca da liberdade humana em geral,
qualquer bem que necessite. Por fim, a última
como o objetivo supremo do
desenvolvimento, é acentuadamente etapa é a do consumo em massa, resultado do
suplementada pela eficácia instrumental aumento da renda por pessoa e do aumento do
de liberdades específicas na promoção de número de trabalhadores especializados que
liberdades de outros tipos. (SEN, 2000, p. movimentam o consumo econômico.
10). Ao contrário desta perspectiva, Rist
(1997) não constrói um conceito para o
Neste caso, o desenvolvimento é desenvolvimento, mas procura compreender
sinônimo de bem-estar social e não de como a narrativa do desenvolvimento
crescimento econômico, o bem-estar é o contaminou todo o mundo, porque todos o
resultado da satisfação das necessidades básicas, perseguem e querem ter e ser o que é tido
que englobam o campo físico, mental e social. como desenvolvido. O autor ainda coloca que o
Segundo Berthoud apud Sachs (2000) está posto
que o desenvolvimento se apresenta como a
3
única forma de vida ocidental capaz de “Se a ordem é que cada indivíduo tem
assegurar a felicidade humana. Ele é o único necessariamente que acumular cada vez mais lucros,
torna-se relativamente fácil definir o que é um país
caminho para se libertar das carências e atrasado. Com isso, embora o desenvolvimento, com
limitações, mesmo trazendo falsas promessas muita frequência, traga a pobreza para a maioria da
como a da riqueza e de uma sociedade população, ele passa a ser considerado como o único
meio de libertar-se daquele estado “desumano” de
“carência.” (BERTHOUD apud SACHS, 2000, p. 150).

108
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

desenvolvimento tornou-se universal, mas não patrimonialização da cultura como forma de


transcultural. O principal defeito das pseudo- desenvolvimento.
definições de desenvolvimento é que elas são
baseadas nas maneiras em que as pessoas 2) A PATRIMONIALIZAÇÃO COMO
imaginam condições ideais de existência. Desta FORMA DE DESENVOLVIMENTO:
forma, se o desenvolvimento é uma palavra CONSIDERAÇÕES SOBRE O
para caracterizar a soma de virtudes humanas, CONCEITO DE PATRIMÔNIO, E A
ele nunca existirá em lugar algum. Assim, RELAÇÃO ENTRE CULTURA E
segundo a visão dos autores trabalhados MERCADO.
anteriormente, observa-se que o
desenvolvimento tem conotações e impactos A patrimonialização é uma ação que
econômicos, sociais, políticos, ambientais e tem como finalidade fomentar o
culturais. Perseguir o desenvolvimento implica desenvolvimento através da valorização,
muito mais do que aumentar índices revitalização de uma determinada cultura e do
econômicos, é estar aberto para transformações seu patrimônio cultural. Partindo desta
em todas essas áreas abrangentes que o premissa, abordaremos o significado do
conceito pode influenciar. patrimônio cultural, a trajetória das políticas
públicas de proteção ao mesmo e a relação
Agora descobrem que “desenvolver” não entre a patrimonialização, os bens culturais e a
significa nada se só se trata de despejar apropriação dos mesmos e sua relação com o
cimento, instalar canos de água ou consumo.
levantar a qualquer custo curvas Conforme Pereiro (2006) é importante
estatísticas, sem pensar, antes, durante e ressaltar algumas diferenças entre o patrimônio
depois de suas intervenções, nas reações
e o patrimônio cultural. Principalmente porque
muito diversas das pessoas atingidas por
essas intervenções e nos benefícios que este tem um sentido voltado para a
esperam ou não das mesmas. (HERMET, coletividade, o público, e aquele tem um
2002, p.18). sentido restrito, familiar, voltado para o lado
privado e particular. O patrimônio cultural é
Para o momento, a questão a ser algo permanente, ao contrário da cultura que
pensada é a escolha de uma proposta de está em constante mutação. Esta é apenas
desenvolvimento que priorize tanto o lado estudada, não pode ser patrimonializada, pois
econômico como o social, ambiental e cultural. estaríamos fadados a viver como nossos
Portanto, acreditamos que a proposta de antepassados. De acordo com Choay (2006) o
desenvolvimento de Sen (2000), é a mais patrimônio está ligado a estruturas familiares,
pertinente neste contexto. O conceito de econômicas e jurídicas de uma sociedade,
desenvolvimento é ideológico, representa a situadas no tempo e no espaço.
perspectiva de determinados grupos sociais,
embora tenha se configurado como verdade, A expressão designa um bem destinado
em que só é possível ser uma sociedade ao usufruto de uma comunidade que se
moderna através da aquisição do mesmo, e ampliou a dimensões planetárias,
aqueles que não se apoderam deste conceito constituído pela acumulação contínua de
uma diversidade de objetos que se
como verdade são excluídos do processo; congregam por seu passado comum:
automaticamente tornam-se pertencentes do obras e obras-primas das belas-artes e das
grupo dos subdesenvolvidos. Assim, partindo artes aplicadas, trabalhos e produtos de
deste pressuposto de que a riqueza e o todos os saberes e savoir-faire dos seres
desenvolvimento não são exclusivamente humanos. (CHOAY, 2006, p. 11).
monetários, este será o objetivo da seção
seguinte, mostrar que através da inserção O patrimônio cultural engloba duas
cultural de um determinado grupo, é abordada a categorias: a de natureza material e a imaterial, a

109
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Constituição federal4 define o patrimônio em e paisagísticos e bens individuais; e móveis


seu artigo 216º como: “Os bens de natureza como coleções arqueológicas, acervos
material e imaterial, portadores de referência à museológicos, documentais, bibliográficos,
identidade, I- as formas de expressão; II-os modos de arquivísticos, videográficos, fotográficos e
criar, fazer e viver (...)”. (p. 39). Durante cinematográficos. (IPHAN: patrimônio
Conferência Geral da UNESCO, em 15 de imaterial).7
novembro de 1989, a Recomendação Paris, Historicamente, as políticas de
sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e valorização e proteção patrimonial tem se
Popular, reconhece a cultura popular e consolidado cada vez mais ao longo dos
tradicional como parte do patrimônio cultural. tempos. Conforme “A trajetória da salvaguarda do
Definiu-se que: patrimônio cultural imaterial no Brasil” 8, a seguir
são citadas algumas das principais políticas
A cultura tradicional e popular é o voltadas para a proteção patrimonial:
conjunto de criações que emanam de uma As primeiras ideias a respeito do tema
comunidade cultural fundadas na tradição, patrimônio imaterial datam de 1922. Surgiram
(...) e (...) respondem às expectativas da durante a realização da Semana da Arte
comunidade enquanto expressão de sua Moderna. Já em 1936, Mario de Andrade
identidade cultural e social (...). Suas
elabora a proposta de implantação da política
formas compreendem, a língua, a
literatura, a música, a dança, os jogos, a de preservação do patrimônio cultural
mitologia, os rituais, os costumes, o brasileiro, a pedido de Gustavo Capanema,
artesanato, a arquitetura e outras artes então Ministro de Educação e Saúde Pública. O
(IPHAN: Cartas Patrimoniais).5 Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) é criado em 1937, sendo a
Para o IPHAN - Instituto do primeira instituição do governo brasileiro
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; voltada para a proteção do patrimônio cultural
representa o patrimônio imaterial: “As práticas, do país. Com a Constituição Federal de 1988, o
representações, expressões, conhecimentos e técnicas - patrimônio cultural é definido nos artigos 215 e
junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares 216, no direito ao reconhecimento das
culturais que lhes são associados - que as comunidades, manifestações das culturas populares, indígenas
os grupos (...) reconhecem como parte integrante de seu e afrobrasileiras, e dos outros grupos que
patrimônio cultural.” (IPHAN: patrimônio participam do processo civilizatório nacional.
imaterial). 6 Em 1991 é instituído o Programa
O patrimônio material é composto por Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC),
um conjunto de bens culturais classificados mediante a Lei n° 8313, com a finalidade de
segundo sua natureza nos quatro Livros do promover a captação e a canalização de
Tombo: arqueológico, paisagístico e recursos e, entre outros objetivos, fomentar a
etnográfico; histórico; belas artes; e das artes preservação dos bens culturais materiais e
aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis imateriais. No ano 2000, é desenvolvido o
como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos instrumento técnico de Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), com sua
4 metodologia voltada para a produção de
www.camara.gov.br/internet/infdoc/publicacoes/html/p
df/constituicao.pdf
5 7
http://portal.iphan.gov.br/ IPHAN – Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional. http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do
?id=12297&retorno=paginaIphan. Acesso em
6
24/07/2010.
(http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.d
8
o?id=10852&retorno=paginaIphan). Acesso em Disponível em : http://portal.iphan.gov.br/ IPHAN –
24/07/2010. Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional.
Acesso em: 25/07/2010.

110
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

conhecimento sobre bens culturais, visando Segundo Berenstein Jacques (2008), nos
subsidiar a formulação de políticas patrimoniais. últimos vinte anos, acentuam-se as iniciativas de
Também é instituído o Registro de Bens patrimonialização e museificação, com a
Culturais de Natureza Imaterial e do Programa finalidade de utilizar a cultura para a
Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), revitalização urbana. “(...) tão em voga hoje, parece
mediante o Decreto n° 3551, de 4 de agosto fazer parte de um processo bem mais vasto de utilização
desse mesmo ano. Institucionalizadas tais da cultura como instrumento de desenvolvimento
medidas, passa a existir uma maior preocupação econômico”. (p. 32).O meio para a realização da
e legitimação com a preservação dos bens revitalização cultural é valer-se da
culturais. patrimonialização. Esta, de acordo com Pereiro
Veloso (2006) coloca que a ampliação (2006), é um mecanismo de afirmação e
da ideia de patrimônio cultural deixou de legitimação da identidade de um grupo, com a
incorporar somente os bens materiais, atribuição de valores, sentidos, usos e
assimilando também as práticas culturais da significados, voltados para um processo de
diversidade cultural brasileira, representada ativação das memórias passíveis de caírem no
pelas manifestações históricas vindas dos esquecimento. Para o autor, o processo de
diferentes grupos sociais. Para esta autora pode- patrimonialização tem ligação com o turismo
se interpretar o patrimônio cultural como fato cultural, com o reforço da diversidade das
social total9, “pois é uma arena em que se descortinam identidades culturais, com a conservação e
diversas dimensões, como a simbólica, a política e a preservação de bens culturais. A
econômica.” (p.447). patrimonialização traz consigo estratégias de
Diante desses conceitos, fica claro que, sobrevivência, voltadas para a mercantilização
a partir do momento em que a comunidade do patrimônio cultural.
local começa a se identificar e a valorizar o seu Neste contexto, percebe-se uma
patrimônio local, ele passa a ser reconhecido, espetacularização, industrialização,
protegido, revitalizado e torna-se uma standardização dos bens culturais, a venda dos
ferramenta para o desenvolvimento local. bens culturais é reduzida a venda de uma
Assim, “A cultura saía de um longo ostracismo, pois mercadoria; dando-se maior importância ao
durante décadas havia sido considerada mais como um objeto a ser comercializado do que as
fator capaz de paralisar a mudança do que como um necessidades da coletividade produtora da
possível ponto de apoio do desenvolvimento.” mercadoria,10atribuindo-se aos bens culturais
(HERMET, 2002, p.85-86). Conforme Hermet um valor econômico. Como advoga Berthoud
(2002), ao se levar em conta a cultura e apud Sachs (2000), o mercado apresenta-se
diversidade cultural aboliu-se a dimensão como o único caminho para o desenvolvimento
hierárquica do desenvolvimento, regida pelo e ordenamento social norteador das ações
padrão ocidental da modernidade, dando-se voz humanas, onde tudo o que pode ser fabricado
à maioria dos habitantes do planeta que se também pode ser vendido. Entretanto, todo
situavam fora deste padrão. Logo, as sociedades cuidado é necessário ao se atribuir valor aos
tidas como “menos desenvolvidas”, no bens culturais, para que não se cometa o erro
desenvolvimento de suas atividades, mantém-se de se valorizar muito mais a mercadoria do que
a sua identidade, o orgulho e a coesão do o bem cultural produzido por uma coletividade.
grupo, o patrimônio coletivo corresponde ao
seu capital social.

10
“Tanto a cultura quanto a cidade passaram a ser
9
“Os fatos que estudamos são todos, (...) fatos sociais consideradas como mercadorias, manipuladas como
totais (...) ou, gerais, (...). Todos esses fenômenos são imagem de marca. (...) O patrimônio cultural urbano
ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos, e passa, assim a ser visto como uma reserva, um
mesmo estéticos, morfológicos etc.” (MAUSS, 2003, p. potencial de espetáculo a ser explorado.”
309). (BERENSTEIN JACQUES, 2008, p. 34).

111
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

Sempre que as manifestações do voltadas para este fim. A cultura é a mola


patrimônio imaterial se transformam em propulsora para que a comunidade local tome
mercadorias, em entretenimento para o posse da sua identidade, se reconheça nela, e
consumo, em espetacularização, a ênfase é através dela se organize socialmente. Com a
posta no fetiche. O que sobressai é a valorização da cultura torna-se possível o
relação entre coisas, entre mercadorias e
funcionamento de toda a engrenagem social
não as relações sociais entre os indivíduos
produtores. É preciso, portanto, não local.
espetacularizar ou coisificar o patrimônio,
seja material ou imaterial, e um dos CONSIDERAÇÕES FINAIS
procedimentos indispensáveis é não
perder de vista o sentido que determinada O conceito de desenvolvimento tem
manifestação cultural tem para o grupo usos e significados distintos. Pode denominar
que a produz. (...) O patrimônio cultural crescimento econômico, satisfação de
tem uma densidade simbólica diferenciada necessidades, como meio das liberdades
que deriva sua singularidade do resultado humanas e também do bem-estar, também é
de atividades coletivas e públicas. visto como a única maneira para se chegar à
(VELOSO, 2006, p.446).
prosperidade. Tal conceito tornou-se um alvo
O valor dos bens culturais não é inatingível, esboçado pelos países de primeiro
somente econômico, esses valores são mundo, a ser perseguido e conquistado pelos
simbólicos e reproduzem os aspectos culturais, países em vias de desenvolvimento, ou seja, o
sociais, políticos de uma determinada desenvolvimento tornou-se uma verdade quase
comunidade. Pois, conforme Lummis apud absoluta colocada às populações. Mas qual é o
Sachs (2000) o poder aquisitivo não é a única tipo de desenvolvimento que queremos? Um
forma de riqueza, existem outras formas a desenvolvimento voltado para a produção e
serem compartilhadas que são mais políticas reprodução de desigualdades, ou uma outra
que econômicas. Muitas coisas, tidas como forma de desenvolvimento baseada na
pobres, são apenas diferentes formas de satisfação das necessidades básicas gerando o
prosperidade. Pereiro (2006) tece algumas bem-estar?
críticas à patrimonialização indiscriminada, Assim, a ação de se patrimonializar
quando esta tem somente o fim da determinado bem tem o objetivo de inserir a
rentabilidade econômica, esquecendo-se da sua comunidade local no caminho do
função educativa, no entendimento da cultura e desenvolvimento social e econômico. Pois, a
dos grupos de acolhimento e da sociabilidade. partir do momento em que se agrega valor,
Para o referido autor, a exploração em massa tanto econômico quanto simbólico, a um
do patrimônio cultural pode até mesmo acabar determinado bem cultural, este produz o
com ele. reconhecimento e identificação da população
Desta forma, a patrimonialização deve local com sua história e sua cultura, além de
ser usada como fator de desenvolvimento social agregar valor econômico na comercialização do
para priorizar acima de tudo o lado cultural em mesmo, que acaba por integrar a comunidade
detrimento do econômico. Uma alternativa para local no conceito de desenvolvimento. Desta
tal questão é pensar em ações capazes de forma, a patrimonialização da cultura deve ser
proporcionar o desenvolvimento, sempre utilizada como meio e fim da valorização dos
apoiadas na ideia da patrimonialização. Visando bens culturais. E estes, ao assumirem sua
tratar os excluídos com alguns privilégios, posição simbólica consequentemente serão
trabalhando sua rede de relações sociais, assim a canais de desenvolvimento social, econômico e
exclusão será minimizada ao se pensar a pessoa cultural.
em rede, e não somente o indivíduo atomizado.
Pois a forma de inserção dos excluídos é via REFERÊNCIAS
cultura e nas alternativas governamentais

112
AURORA ano V número 7 - JANEIRO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora

BERENSTEIN JACQUES, Paola. Patrimônio aSecao.do?id=12297&retorno=paginaIphan.


cultural urbano: espetáculo contemporâneo?. Acesso em 24/07/2010.
Revista de Urbanismo e Arquitetura, América do
Norte, 6, dez. 2008. Disponível em: LUMMIS, C. Douglas. Igualdade. In: Sachs,
http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/ Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento: guia para
article/view/3229/2347. Acesso em: o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000,
24/07/2010. pp. 98-115.

BERTHOUD, Gerald. Mercado. In: Sachs, MAUSS, Marcel. O Ensaio sobre a dádiva:
Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento: guia para Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas.
o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000, In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac &
pp. 132-154. Naify, 2003, pp. 183-314.
BRASIL, Constituição (1998). Constituição da
Republica Federativa do Brasil, 1988. Texto PEREIRO, Xenardo. (2006): Património
consolidado até a Emenda Constitucional nº 42 cultural: o casamento entre património e
de 19 de dezembro de 2003. Brasília: 2003 54 p. cultura, em ADRA n.º 2. Revista dos sócios do
Disponível em: Museu do Povo Galego, pp. 23-41. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/ http://home.utad.pt/~xperez/ficheiros/public
publicacoes/html/pdf/constituicao.pdf>. acoes/patrimonio_cultural/Patrimonio_Cultura
Acesso em: 24/07/2010. l.pdf. Acesso em: 24/07/2010.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 3
ed. São Paulo: Unesp, 2006, 282 p. RIST, Gilbert. The History of Development. From
Western Origen to Global Faith. London and New
ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. In: York, 1997, cap. I a IV.
Sachs, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento:
guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: ROSTOW, W.W. Etapas do Desenvolvimento
Vozes, 2000, pp. 59-83. Econômico. 6ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1978, pp. 13-30.
HERMET, Guy. Cultura e Desenvolvimento.
Petrópolis: Vozes, 2002, 204p. SBERT, J. Maria. Progresso. In: Sachs,
Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento: guia para
IPHAN, A Trajetória da Salvaguarda do Patrimônio o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000,
Cultural Imaterial no Brasil. Disponível em: pp. 284-299.
<http://portal.iphan.gov.br>. Acesso em:
25/07/2010. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade.
São Paulo: Companhia das letras, 2000, 409 p.
IPHAN, Cartas patrimoniais: Recomendação Paris.
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br>. VELOSO, Mariza. O Fetiche do Patrimônio.
Acesso em: 24/07/2010. Revista Habitus. Goiânia, v.4, n.1, p.437-454,
jan./jun. 2006. Disponível em :
__________________, Patrimônio Cultural http://seer.ucg.br/index.php/habitus/article/v
Material. iewFile/363/301. Acesso em 24/07/2010.
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPagin
aSecao.do?id=10852&retorno=paginaIphan.
i
Acesso em 24/07/2010. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Social – PPGDS/Unimontes.
__________________, Patrimônio Cultural
Imaterial.
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPagin

113

Você também pode gostar