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Umbanda e Quimbanda Alternativa Negra A Moral Bran
Umbanda e Quimbanda Alternativa Negra A Moral Bran
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Artigo
Umbanda e quimbanda: alternativa negra à moral branca
Juliana Barros Brant Carvalhoa*
José Francisco Miguel Henriques Bairrãoa
a
Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia. Ribeirão Preto, SP, Brasil
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e180093
Juliana Barros Brant Carvalho& José Francisco Miguel Henriques Bairrão
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negro. Apesar desses autores valorizarem os elementos Camargo (1961) como um contínuo mediúnico, tendo no
próprios às religiões de matriz africana, parecem ter como seu outro extremo a quimbanda, vista como mais próxima
expectativa em relação a elas uma “pureza” associada ao ao candomblé. Marca-se que o polo mais “branco” e o
modo de pensar ocidental. Outro autor, Reginaldo Prandi polo mais “negro” variam em função do posicionamento
(1996, 2001), que também afiança essas ideias, descreve dos seus praticantes (Negrão, 1996a).
a umbanda como apegada à ética católica, à caridade e O sincretismo com outras espiritualidades
ao altruísmo, contrariando a sua matriz africana. Já o é assinalado por Silva (2012) como proteção a esse
candomblé, seu principal campo de pesquisa, é descrito processo discriminatório, em que as entidades espirituais
como uma religião de cunho a-ético, provavelmente teriam desenvolvido uma “dupla face” ora expondo um
com base em uma concepção de ética ainda atrelada lado mais católico, pela via da caridade e identificação
ao modelo cristão. com os santos, ora expondo um lado indígena e africano
Não obstante, o perfil da umbanda seria pelas plantas sagradas, por vezes representado como
menos ligado a regras e formalismos, mais próxima demoníaco. Desse modo, busca-se revisitar com base em
ao campo da oralidade e da espontaneidade poética, uma coleta de dados empíricos as concepções próprias
sendo seus mitos e saberes narrados e construídos do universo da quimbanda, nomeadamente discutindo-se
coletivamente. Essa característica mostra-se potente os argumentos anteriormente apresentados, relativos
na escuta e transmissão de memórias (Zumthor, 1997) ao interjogo entre o referencial ético-moral cristão e
encontradas no imaginário social brasileiro. Pela via elementos mais arraigados a heranças “pagãs” africanas.
dos sentidos ligados ao corpo, enunciados por metáforas
e metonímias na forma de cores, gestos, músicas, Método
danças e rituais, essa religiosidade reconfigura no plano
espiritual enredos de vivências históricas como síntese Mediante um estudo de caso coletivo, a coleta de
de valores simbólicos ameríndio-africanos, muitas vezes dados foi feita em duas comunidades religiosas, com a
maltratados pela cultura dominante (Bairrão, 2005). aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa4, utilizando-se
No panteão espiritual umbandista não se estabelecem técnicas etnográficas, como observação-participante;
fronteiras rígidas ou divisões precisas, mas uma rede registros em caderno de campo; e fotográficos, de áudio
combinatória entre orixás, guias e santos católicos que e de vídeo. Participando de rituais, festas e consultas
compõem um conjunto elaborado, amplamente descrito espirituais, foi possível circular e conversar com os
em outros trabalhos acadêmicos3. Grande parcela de participantes em situações informais, bem como com
seus adeptos seria composta por populações periféricas as entidades incorporadas durante os cultos. Esse
(Brumana & Martinez, 1991), que, todavia, ganharam tipo de procedimento indica uma inserção profunda
força na construção de classes sociais em ascensão nas concepções de mundo e nas formas de interação
afirmando-se social e etnicamente (Brown, 1985), o das comunidades, visto que não faria sentido e nem
que proporcionou seu crescimento nas últimas décadas seria de confiança alguém participar do culto e não se
(Negrão, 2009). A espiritualidade corporifica valores consultar. Aliada ao modelo etnográfico de pesquisa
populares e re-significa características consideradas adotou-se uma “escuta participante” (Bairrão, 2005),
“baixas”, na medida em que aparecem no “alto escalão” útil para dar-se ouvidos a narrativas que se dizem em
umbandista (Bairrão, 2005). Esta capacidade, vale ato, muitas vezes impedidas de serem comunicadas
dizer, deve-se à própria ética da umbanda, uma ética diretamente mediante um recalque social, seguido de
de inclusão (Barros, 2013), que se constrói no presente uma “autocensura” dos colaboradores. E foram
e no cotidiano, afirmando-se psiquicamente como igualmente escutadas como narrativas do sagrado as suas
uma linguagem coletiva. O encontro entre memória e manifestações estéticas e sensoriais. Assim, foi possível
reflexão social parece ser uma habilidade de cifrar dores apreender a comunidade como um todo, observando tudo
insuportáveis em reparações sublimes (Bairrão, 2004). o que fizesse sentido internamente ao seu conjunto, como
A demonização do culto, principalmente em a disposição dos objetos, gestos, pensamentos, sonhos,
relação a entidades como os exus e sua versão feminina, as modos de vida e acontecimentos, atentando-se para a
pombagiras, vistos pela sociedade hegemônica como um complexidade das vivências religiosas e de sua elaboração
desafio à moral e à ética católica, reproduz um histórico coletiva. O método presta-se a desvelar enunciações não
de sistemáticas perseguições de terreiros, atreladas à necessariamente redutíveis a palavras (Bairrão, 2011).
discriminação racial, considerados antagonismos à vida Dessa maneira, puderam ser feitas inferências sobre um
moderna (Negrão, 1996a; Silva, 2012). A aproximação conhecimento sinuoso, que de algum modo “se esconde”
da umbanda como o espiritismo kardecista é descrita por ao público em geral, mas se mostra aos olhos da tradição.
A posição de deixar-se ser interpretado e cuidado
3 Sobre trabalhos recentes que abordam os sentidos etnopsicológicos das pelas comunidades religiosas durante cinco anos permitiu
entidades da umbanda, pode-se consultar Bairrão, 2005; Dias & Bairrão, a construção de laços profundos e de confiança mútua. As
2011, 2014; Graminha & Bairrão, 2009; Macedo & Bairrão, 2011;
Martins & Bairrão, 2009; Barros, 2013; Barros & Bairrão, 2015; Rotta &
Bairrão, 2007; 2012. 4 Número da aprovação: CAAE 30472314.3.0000.5407.
Figura 6. Rosemary Rodrigues de Moraes, atual mãe-de-santo Em seus ensinamentos costumava repetir:
Fonte: Os autores. “Procure se cuidar. Procure não fazer mal pra ninguém”.
“Cuidar” é uma prática cotidiana e o “mal” aparece como
O chefe espiritual do terreiro fundado por uma opção para o seu ouvinte. Nas suas palavras fazer o
“Seu” Agnaldo, hoje dirigido por sua filha Rosemary mal seria muito fácil, o “duro” é ter “firmeza”, “manter
(Meire) (Figura 6), é o preto-velho Pai Joaquim do a cabeça no lugar”.
Congo, entidade da sua esposa e antiga mãe-de-santo,
“Dona” Antônia (Tonica) (1928-2007). Os pretos-velhos Umbandoquim
são concebidos como espíritos de antigos africanos
escravizados, cuja atuação na umbanda se dá pela via da Sublinha-se na trajetória de “Seu” Agnaldo, fiscal
paciência e humildade. Representam a reversão daquele da justiça espiritual, e de “Seu” Emygdio, defensor dos
que sofreu abandono e, depois de morto, transformou-se casos mais reservados, uma história de dois líderes
num cuidador. Quando associados aos quilombolas são (que na sua idade remontam quase um século de vida)
moradores e profundos conhecedores dos segredos da com experiências importantes em um dos primeiros
mata (Dias & Bairrão, 2014). O outro chefe espiritual terreiros da região. As narrativas nesses terreiros
desse terreiro é Ogum Guerreiro, divindade ligada ao tradicionais revelam uma síntese entre os dois polos
ferro, logo, às estradas férreas, nas quais ambos os nossos dessa espiritualidade. Esses saberes impõem-se como
colaboradores trabalharam. Nas vivências espirituais de responsabilidade e coerência nos próprios atos, sendo
quimbanda, “Seu” Guina realizava com um grupo de os passos desses dirigentes o alicerce da transmissão
amigos, entre eles “Seu” Emygdio, após o expediente do dos seus fundamentos. Indica-se haver uma umbanda
trabalho reuniões noturnas em torno dos trilhos do trem, manifestamente voltada para a caridade, em que a
eufemisticamente chamadas de “alta magia”, e pedia quimbanda seria o seu lado demoníaco; assim como há
às entidades espirituais para ter clarividência6, e para outra manifestação possível da mesma religiosidade, uma
conhecer os segredos rituais e das plantas. Comentava versão pelo seu interior, nomeada por meio das palavras
que é preciso “agradar” a “esquerda” da pessoa que de “Seu” Agnaldo como sendo dois lados da mesma
se quer combater ou defender, dizendo assim: “você moeda: “tem a umbanda que é a direita, a quimbanda é
6 “Seu” Agnaldo não tinha a mediunidade de incorporação, mas dizia
a esquerda, umbandoquim é as duas em uma só”.
poder ver e perceber as entidades. Durante o culto ele ficava sentado em Desta forma, encontramos nas suas palavras não
sua cadeira de rodas ao lado do congá (altar), na maior parte do tempo apenas o que é na prática uma concepção unitária do
com os olhos fechados e a cabeça baixa. Tinha uma visão e uma audição culto, mas um termo que a denomina. Uma designação
espetaculares. Havia ocasiões em que ele levantava a cabeça no mesmo
momento em que alguém falava ou agia de maneira inadequada, mesmo longa e cuidadosamente protegida de olhares curiosos,
que a pessoa estivesse na outra extremidade do salão. talvez pelo risco de derivações fantasiosas que o uso de
Abstract: Quimbanda is an African-Brazilian religious modality generally presented as a mere ethical and moral
inversion of Umbanda that has been preserved through rituals made with spiritual entities that supposedly contest
or reverse the prevailing morality. In this study, we followed rituals and collected interviews with priests in African-
Brazilian religious communities, aiming to verify if there really is influence of an ethical standard from the surrounding
society that could have moderated or modified subjacent African conceptions. Contrary to analyses that implicitly
assume African-Brazilian cults as subjected to a single conception of morality, we found that the sacred experience
involving Quimbanda and Umbanda is not attached to the prevailing morality, and that none of its manifestations
can be properly described as amoral.
Résumé: Le Quimbanda, une modalité de secte afro-brésilienne généralement présenté comme une simple inversion éthique et
morale d’Umbanda, conservé dans les rituels avec des entités spirituelles qui sont supposés contester ou inverser l’ordre moral
actuelle. Dans cette étude, ces rituels ont été suivis et les témoignages de prêtres ont été recueillis dans des communautés
religieuses afro-brésiliennes, afin de vérifier si, en effet, il y a une pression exercée par les normes éthiques et religieuses de la
société environnante qui pouvait modérer ou modifier les conceptions africaines sous-jacentes. Contrairement aux analyses qui
supposent implicitement la subordination des sectes afro-brésiliens à une seule conception de la moralité, on a été constaté
que l’expérience du sacré impliquée dans le Quimbanda et l’Umbanda n’est pas liée à cette moralité actuelle, et qu’aucune de
ses manifestations peut être correctement décrit comme immorale.
Resumen: La Quimbanda, modalidad de culto afrobrasileño y que generalmente se presenta como una mera inversión ético-
moral de la Umbanda, conservó sus rituales con entidades espirituales que supuestamente invierten el orden moral vigente
o lo contestan. En este estudio se acompañaron estos rituales y se recogieron declaraciones de sacerdotes en comunidades
religiosas afrobrasileñas, con el objetivo de revisar si y en qué medida las presiones ejercidas por patrones ético-religiosos de
la sociedad circundante podrían haber moderado o modificado las concepciones africanas subyacentes. Al contrario de los
análisis que implícitamente presuponen la subordinación de los cultos afrobrasileños a una única concepción de moralidad,
se encontró que la experiencia de lo sagrado involucrada en la Quimbanda y en la Umbanda no se vincula a esta moralidad
vigente, y que ninguna de sus manifestaciones puede ser correctamente descrita como amoral.
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