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RESENHA 2/3 :

PENSAMENTO SOBRE PRÁTICAS CURATORIAIS NO GIRO DECOLONIAL,


DE IVAN MUÑIZ-REED

ISABEL MARTIN N°USP 8960969

AUH 310 HISTÓRIA DA ARTE II


PROF. DR. AGNALDO FARIAS
2020.2
DADOS BIBLIOGRÁFICOS:
MUÑIZ-REED, Ivan. Pensamento sobre práticas curatoriais no giro decolonial.
In: MASP Afterall: Arte e Decolonização. São Paulo: MASP, 2019.

Versão original publicada no Broadsheet Journal 45.2 em 2016 e reeditada para a


publicação do MASP com a permissão de sua editora, a ACE open (Contemporary
Art Centre of South Australia, no momento da emissão inicial)

1 MUÑIZ REED (2019) PP.2-3 Pensamento sobre práticas curatoriais no giro decolonial é um artigo escri-
APUD QUIJANO, Aníbal.“Co-
lonialidad del poder,cultura
to pelo pesquisador e curador Mexicano-Australiano Ivan Muñiz Reed, que foi
y conocimiento en América reeditado para a publicação virtual do Arte e Descolonização, projeto desenvolvi-
Latina”. Anuario Mariate- do pela parceria MASP e Afterall (centro de pesquisa e publicação da University
guiano. v.9, n.9, 1997; QUI-
JANO,Aníbal. “Colonialidad of the Arts de Londres dedicado à arte contemporânea e suas histórias), com o
y modernidad-racionalidad”. intuito de questionar narrativas oficiais como história totalizante e a configuração
Perú Indígena. v.13, n.29, eurocêntrica do mundo das artes, repensando legados coloniais na produção,
1992
curadoria e crítica artística.
É importante observar, ainda antes de começar a analisar o texto, que o
projeto em que ele se insere é composto de seminários e publicações com a par-
ticipação de vários convidados ligados ao debate decolonial que também estão em
diálogo entre si, fazendo com que sejam frequentes as referências de um autor
participante do projeto ao outro no âmbito das publicações. Há também uma ho-
mogeneidade no formato dos artigos, todos relativamente curtos e iniciados com
uma obra de arte produzida por um artista dos países do capitalismo periférico.
Embora não fique claro se as obras escolhidas para iniciar cada um dos
artigos são de curadoria do projeto ou dos autores dos textos, cabe citar a obra
que ilustra o artigo a que esta resenha se refere: Um cartaz de 2010 do Icono-
clasistas, duo de design gráfico argentino formado por Julia Risler e Pablo Ares.
A obra, de título “Nuestra Señora de la Rebeldía”, se organiza como um mural
sacro, mas com elementos voltados ao ativismo e à resistência latino-americana.
A figura central é Pachamama, a “mãe terra” dos povos andinos centrais que traz
em uma das mãos “lucha y resistência” e na outra “Unidad e diversidad”. Sob
seus braços, estão representadas diversas personagens da luta por emancipa-
ção latino-americana, entre os quais estão Paulo Freire, Violeta Parra, Zumbi dos
Palmares e Che Guevara. Na base do cartaz, caveiras representam os elemen-
tos antagônicos “iglesia complice”, “politiquería”, “transnacionales” e “ejército
fascista”, que são combatidos por figuras da lucha libre mexicana. No centro dos
lutadores, um globo “invertido” com a América do Sul representada na parte de
cima, símbolo recorrente do movimento decolonial.
A argumentação de Muñiz-Reed se estrutura a partir de um único capítulo,
cujos parágrafos iniciais têm como objetivo transmitir o conceito de colonialidade
e de pensamento decolonial. Segundo o autor, a colonialidade é algo que conti-
nua a se fazer presente mesmo com o término do período formal da colonização,
e não está presente apenas nas manifestações econômico-sociais mais óbvias,
como a desigualdade e o racismo, mas também permeia todas as esferas da
cultura moderna, que se construiu a partir de características imperiais ocidentais.
Isso faz com que seus traços sejam por vezes difíceis de identificar e combater.
Se aprofundando na conceituação da colonialidade, Muñiz Reed recorre à
definição dada pelo teórico peruano Aníbal Quijano, que diz que “a colonialidade é
uma matriz de poder que produz hierarquias raciais e de gênero nos níveis global
e local, operando junto com o capital para manter o regime moderno de explora-
ção e dominação.”1. Reiterando a necessidade apontada pelo autor peruano de se
“descolonizar o conhecimento”, Muñiz-Reed traz o debate para o contexto artísti-
co e curatorial, em que o conhecimento é matéria-prima, e o modo de interpretá-
-lo delineia quais histórias serão contadas e como.

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A partir destas reflexões o autor cria questionamentos que ajudam a
2 MUÑIZ REED (2019) PP.5 balizar as discussões que se desenvolvem mais adiante no texto: Quais seriam as
APUD MIGNOLO, Walter. implicações da colonialidade para museus e curadores contemporâneos? Como
“Aiesthesis Decolonial”. Calle
14: Revista de Investigación curadores e instituições de arte estão posicionados dentro da matriz colonial?
en el Campo del Arte. v.4, n.4, Como reestruturar o conhecimento e o poder?
2011,pp.10-25.
3 O altermodernismo foi O movimento decolonial, meio pelo qual se estabeleceria essa reestru-
criado por Bourriaud para turação é, segundo Muñiz-Reed, projeto político, ético e epistêmico ainda em
a exposição Altermodern
na trienal do Tate Modern andamento que envolve um desvencilhamento das estruturas coloniais eurocên-
de Londres de 2009, que tricas, criando e reestruturando narrativas a partir do ponto de vista dos coloni-
segundo Mignolo “bebe das
fontes do Renascimento eu-
zados e oprimidos. A Teoria e a Crítica decoloniais seria, portanto, protagonizada
ropeu e de seu imperativo por pesquisadores e ativistas do Sul colonial (“o terceiro mundo”) e construída a
‘secular’ do Iluminismo”
partir dos seus próprios métodos.
O autor, cita, então, vários agentes representativos da produção filosófica
e teórica que contribuem para a construção das discussões decoloniais, incluin-
do o próprio Quijano, já mencionado anteriormente. Caminhando no sentido de
tecer a ligação entre giro decolonial e arte, Muñiz-Reed introduz o pensamento
do semiótico argentino Francisco Mignolo, com quem dialoga ao longo de todo
o texto. Mignolo cunha o conceito de estesia decolonial, em oposição à estética
universalista moderna teorizada pelo alemão Imannuel Kant no século XVIII. A
estesia é um termo do grego antigo que significa ““uma consciência elementar
não elaborada do estímulo, uma sensação de toque”2, fazendo um contraponto
à ideia de estética de Kant, que desvalorizaria as experiências sensoriais não
ligadas ao belo e ao sublime segundo os padrões canônicos europeus.
A Hegemonia da Estética moderna atribui aos curadores que atuam a
seu favor um papel autoritário de “guardiões” do belo e do sublime, capazes de
apagar histórias que não estejam em conformidade com esse modelo. Mesmo
em experiências que se posicionam como críticas ao colonialismo, como o pós-
-modernismo e o altermodernismo3 , a ponderação é feita com base em estrutu-
ras teóricas coloniais, numa espécie de “crítica eurocêntrica do eurocentrismo”,
muito diferente das propostas decoloniais que levantam pensamentos autôno-
mos de desobediência epistêmica contra hegemônica.
Para ilustrar um “modo de fazer” no meio artístico que se aproxima à
postura decolonial, Muñiz-Reed elenca, a partir desse momento, algumas expe-
riências, começando pela exposição Les Magiciens de La Terre, de curadoria de
Jean-Hubert-Martin, que se deu no Centro Georges Pompidou de Paris em 1989.
O autor observa uma postura decolonial no destaque que se deu na exposição
a cenas artísticas além ocidente, desafiando padrões artísticos ao criar espaço
para a difusão de histórias e cosmologias indígenas sem, no entanto, fazê-lo de
um ponto de vista primitivista como ocorria até então. Haveria, pois , um inte-
resse em expor a pluriversalidade da arte em oposição a um conceito de beleza
e estética universal que se evidencia no interesse em “Incluir” narrativas antes
silenciadas. Estas, desde então, passaram a ser incorporadas por outros cria-
dores, ainda que encontrando barreiras institucionais que fazem com que elas
sejam interpretadas muitas vezes de maneira superficial.
Há aí um primeiro questionamento a ser feito sobre a argumentação de
Muñiz-Reed nesse momento: Será possível que um homem branco e europeu
realmente possa agir num esforço decolonial? Apenas o fato do espaço para a
curadoria ser concedido a um branco europeu numa exposição que fala sobre
etnias do capitalismo periférico já configura, por si, uma manifestação de colo-
nialidade. Qual seria a diferença deste episódio à critica eurocêntrica ao euro-
centrismo que se constrói através do pós-modernismo e altermodernismo?

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4 Fotografia da instalação Bla- Dando continuidade ao raciocínio sobre as limitações institucionais na
ck Mirror no Nasher Museum
of Art(2008), que mostra as es- implementação de processos de curadoria decoloniais, o autor afirma que os
tátuas se auto vislumbrando.
Extraída do acervo do website artistas têm uma maior liberdade, quando convidados a fazer exposições de
do artista.
suas coleções, de criar caminhos decoloniais, uma vez que estão menos sujei-
tos à obrigação de obedecer aos interesses engessados das instituições que os
curadores que trabalham para elas. Com isso, ele apresenta alguns artistas que
trabalharam usando como matéria-prima objetos pré existentes - num exercício
em que o fazer artístico também é curadoria - e que foram capazes de levantar
no público reflexões de emancipação da colonialidade.
Fred Wilson, artista afroamericano, utilizou objetos da Maryland Histo-
rical Society redispostos para mostrar as inclinações de museus que subrepre-
sentam histórias dos povos oprimidos em sua exposição Mining The Museum,
entre 1992 e 1993. Outro exemplo foi a instalação Black Mirror (2008) , do me-
xicano Pedro Larsch, em que estátuas pré-hispânicas foram posicionadas em
plintos de costas para o público, “se observando” através de espelhos e também
observando o público e as demais obras - representativas do modelo canônico -
que estavam expostas no Nasher Museum of Art, onde se deu a exposição. Já o
autraliano Tony Albert, em Rearranging our History (2002-2011) recontextualiza
objetos kitsch e itens da cultura popular indígena australiana, criando composi-
ções a partir das quais se vislumbra a toxicidade das relações de dominação.

Apesar desses experimentos, Muñiz-Reed não vê tranformação sistê-


mica significativa no processo curatorial. Para ele, as exposições não parecem
fazer justiça às ambições da teoria-crítica decolonial ou falham em ilustrar sua
amplitude e complexidade. Além disso, a maioria dos artistas são homens e eles
fazem referências diretas ao colonialismo. Observando criticamente essa coloca-
ção do autor, acredito que isso seja reflexo da seleção que ele fez para exempli-
ficar os esforços decoloniais. A decolonização não está presente só na arte que
se coloca diretamente em combate com a colonialidade, mas em toda a arte que
é produzida pelo povo oprimido com base nas suas vivências, o que acredito que
amplie bastante o universo que o autor julga ser tão restrito.

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Já encaminhando o texto a uma finalização, o programa curatorial de Cauthemóc
Medina para a Bienal do PAC Múrcia (Espanha, 2010), de título Dominó Caní-
bal é indicado pelo autor como a proposta mais radical e relevante no que diz
respeito à trajetória em direção a uma curadoria artística decolonial. O progra-
ma consistia numa série de exposições em que cada artista convidado deveria
desenvolver seus produtos usando como base os materiais criados pelo artista
anterior, “canibalizando” a sua arte, o que toma como referência a Antropofagia
do poeta brasileiro Oswald de Andrade (1928), um movimento de convergência de
influências estrangeiras e da cultura popular nacional. O dominó, outro elemento
que aparece no título do programa, surge a partir de um jogo de dados chinês,
é levado à europa pelos italianos, e ao novo mundo pelos colonizadores, até que
se torna um jogo popular na América Latina. A simbologia do dominó, portanto,
abarca um extenso processo de dominação, reapropriação e trocas culturais, dia-
logando com a proposta de Medina.
O autor conclui o texto expressando que estes são apenas alguns peque-
nos passos para uma luta para um mundo decolonial, já que o colonialismo não
está presente apenas na academia ou na curadoria, mas também em inúmeros
outros aspectos da história e da cultura - O que requer, assim, ativismos e resis-
tências empenhados em responder de maneira integrada a todos estes desafios.
Cabe acrescentar, refletindo sobre as questões elencadas por Muñiz-Reed, que
faz parte da luta decolonial consumir e celebrar cada vez mais os conteúdos
produzidos por artistas do Sul colonial, e reivindicar espaços para colocá-los em
evidência e embate contra ideias hegemônicas.

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