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O PODER E SUAS REPRESENTAÇÕES AO

LONGO DA HISTÓRIA
* Jaquelini Scalzer

Licenciatura plena em História (FAFIC)


Especialização em História do Brasil (FIJ)
Professora de ensino fundamental pela rede Municipal de Santa Teresa (E.S.)

Resumo:

Ao longo da História, o poder assumiu as mais diversas representações. Desde


o caráter religioso da Antigüidade à burocracia estatal atual, muitos foram os
mecanismos dos quais uma minoria se valeu para controlar o povo. Tendo em vista que,
ter poder é controlar, de alguma forma, a “massa” popular, conclui-se que o povo é o
verdadeiro detentor do poder e, sua consciência quanto a isso vem crescendo
progressivamente ao longo da História. Todavia, erroneamente, poder e representação
de poder vem sendo colocados como sinônimos, no intuito de intimidar as massas e
enraizar a idéia de que sua única relação com o mesmo é de subordinação.
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Palavras-chaves: Poder; representações de poder; Igreja; Estado; Governo;


Subordinação; Consciência popular; detentores do poder.

Abstract

Through History, power has taken over several kinds of representation. Since
the religious character of ancient times to the current state bureaucracy, many have been
the mechanisms used by a minority to control people. By assuming that to have power
is, in some way, to control the popular mass, one concludes that people are the real
detainers of power and the conscience that derives from it has been progressively
developed along History. However, power and representation of power have been
falsely regarded as synonymous in order to intimidate the masses and to establish the
idea that the only possible relation between people and power is through subordination.

Keywords:

Power, representations of power, Church, Government, Subordination, popular


conscience and power detainers.

PODER. Expressão que exerce fascínio e desperta o que há de melhor e pior no


ser humano. Alcançar e manter-se no poder é um desejo ambicioso, que tem povoado
muitas mentes e movimentado os bastidores da história. Mas, afinal, quem é o
verdadeiro detentor do poder, uma vez que quase tudo que julgamos conceito do
mesmo, nada mais é do que representação deste num dado momento histórico.

Embora Letorf ao ser citado por Cardoso (2000, p. 234), afirme “ser impossível
dissociar o poder de sua representação, uma vez que é esta que confere ao poder seu
estatuto simbólico” (1), o que este artigo propõe é buscar, através de uma análise
histórica, responder quem é (ou são) o verdadeiro detentor do poder?
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DEFINIÇÃO DE PODER

A expressão “poder” é de uso tão freqüente em nossa vida, em nosso dia-a-dia,


que poucas vezes paramos para refletir sobre ela. No contexto atual, ela é utilizada
como sinônimo de governo ou de força opressora, como se a única relação das classes
populares com o poder fosse a exclusão dos privilégios que este garante a uma minoria.
Esta forma de pensar foi forjada pela ideologia elitista que permeou os campos
científicos, inclusive a produção historiográfica.

Se esta foi “condicionada”, só pode ter sido por quem temia a verdadeira
história, os quais, segundo Aquino (1980, p. 02), “são aqueles que, agarrando-se a
privilégios econômicos e políticos, pretendem manter o poder de decisão sobre a vida da
maioria das pessoas, as quais, desse modo, permaneceriam desumanizadas, oprimidas.”

Conceituar a expressão poder não é tarefa fácil, pois, citando Falcon (1998, p.
61), “fazê-la sem reconhecer os condicionamentos da produção historiográfica seria
negar o fato de que o conhecimento histórico, em sua íntima relação com o poder,
converte-se freqüentemente de agente instrumentalizador em objeto da oficina da
história”. Ou seja, a história, como “filha de seus tempo”, produziu diversos conceitos
de poder.

Na história política tradicional, o poder era definido como algo inerente a


certos indivíduos e instituições como o Estado – abordando a força política como lugar
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único e definitivo do poder. Na linha marxista, o poder foi relacionado diretamente à


luta de classes. Todavia, ao ressaltar a necessidade de se implantar uma “ditadura do
proletariado”, Marx também relaciona poder e política, mesmo que priorizando o
aspecto econômico. Para os Annales, o poder foi relacionado diretamente ao campo das
idéias, criticando com força plena e convicta a história política, qualificando-a como um
recitativo interminável de eventos políticos, batalhas, nomes e datas, que pouco, muito
pouco, acrescentam ao conhecimento humano. Mas a condenação da história política,
não levou à exclusão do político e, sobretudo, do poder. Mesmo historiadores annalistes
como Bloch, Lefebvre, Duby, continuaram a se preocupar com tais aspectos, embora
partindo de premissas totalmente diferentes.

Atualmente, na nova história política, já não se fala mais em poder, e sim em


‘poderes’, pois Falcon (1998, p. 75) nos lembra que, “este se revela nas mais diversas
esferas e locais históricos como família, escola, asilos, prisões, hospitais etc.; em suma,
no cotidiano de cada indivíduo ou grupo social”. Dessa forma, o poder passa a ser
associado a diversas práticas discursivas fazendo-se representar não só pelo político,
mas pelo imaginário social, pela memória coletiva, pelas mentalidades.

Mas, filosoficamente, o poder pode ser definido como influência que se exerce
sobre outrem de forma individual ou coletiva, dando a este(s) o controle sobre o que
deseja. Os mecanismos utilizados para se obter tal controle, nada mais são do que uma
representação momentânea do poder, estreitamente ligada ao contexto histórico do
momento em questão.
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O PODER – dos primórdios ao homem moderno

No Egito antigo, bem como em outras civilizações orientais da


Antiguidade, a representação máxima do poder era a realeza que, por sua vez, revestia-
se de um caráter sagrado. Segundo Aquino (1980, p. 47) “dessa forma, os reis
controlavam o povo valendo-se do temor religioso – desrespeitar o rei era desrespeitar o
próprio deus” .

Na Grécia e Roma Antiga, o poder era representado pelo escravismo e pela


belicosidade. O exército mais poderoso garantia a conquista e o domínio de outros
povos. E a escravidão dava a uns poucos indivíduos a propriedade de todos os meios de
produção, incluindo entre eles o trabalhador, que foi reduzido à condição de mercadoria
(6). Logo, observamos que também na Grécia e Roma Antiga, detinha o poder quem
controlava o povo, quer por meio da sujeição militar, quer por meio da condição
econômica.

Conforme Franco Júnior (2002, p. 33), “com a desagregação do Império


Romano do Ocidente, iniciou-se um processo de ruralização que culminou com a
formação dos feudos – grandes propriedades que passaram a ser verdadeiros mundos em
miniatura...” descentralizou-se o poder (político). Neste período da história, a
representação do poder era a TERRA. Logo, quem a possuísse detinha o poder, pois lhe
dava a autoridade de subjugar, na condição de servos, os homens que nada possuindo,
deixavam-se dominar pelos senhores feudais por uma questão de sobrevivência.
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Portanto, o poder significava o controle do povo (neste caso o camponês), usufruindo de


seu trabalho ou apropriando-se dos frutos do mesmo.

Ainda na Idade Média não podemos deixar de salientar o papel da Igreja como
representação do poder. Nas palavras de Duby (2001, p. 98) “além de ser a maior
proprietária de terras da época, ela foi a única instituição medieval capaz de sobrepor-
se ao particularismo feudal e dar uma nova unidade ao período – a unidade cultural” .
Sendo assim, a Igreja dispunha de dois grandes instrumentos de controle sobre o homem
medieval: a propriedade de terras e a exclusividade ideológica.

Para manter tal exclusividade, ela teve que combater fervorosamente os


muçulmanos que invadiam a Península Ibérica, levando consigo um novo modo de
produção (o comércio) e uma nova ideologia. Logo, a Igreja “não teve outra alternativa
a não ser condenar os comerciantes ao inferno”. Dessa forma, o pensamento teocêntrico
imperou na Europa Ocidental Medieval.

Por volta do século XIV e XV o feudalismo entra em crise e, em virtude desta,


ocorrem grandes transformações. As Grandes Navegações reafirmam o comércio como
a atividade mais lucrativa em detrimento da agricultura e, conseqüentemente, a terra já
não representa mais o poder. O renascimento das cidades faz nascer um novo grupo
social – a burguesia. Como a grande maioria dos burgueses vivia, direta ou
indiretamente, do comércio, eles passaram a contestar o teocentrismo da Igreja medieval
que desprezava-os como “pecadores”. Assim, a Igreja perde o domínio sobre o homem
burguês. Suas terras já não são a única alternativa de sobrevivência e sua ideologia não
satisfaz os anseios desta nova classe. Esta, consciente de sua força, passa a apoiar a
centralização política e transfere, sem perceber, o poder para a organização estatal.

No início da Idade Moderna, formam-se os Estados Nacionais e estes passam a


ser representação máxima do poder Figueira (2000, p. 97) explica que a partir de então,
“o dinheiro, e não mais a honra, a tradição, a terra ou as relações de parentesco, passou
a ser o valor determinante num mundo cada vez mais regido por relações mercantis” .
Neste período, o poder se fez representar pelo controle que o Estado tinha sobre o povo
como “provedor” de sua sobrevivência e controlador de suas liberdades.
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De acordo com Brion Davis escravo é aquele: cuja pessoa é propriedade de


outrem; cuja vontade está subordinada à vontade de seu dono; cujo trabalho é obtido
mediante coação.

Nos séculos XVII e XVIII, o Renascimento e o Iluminismo estabeleciam um


novo paradigma na percepção de mundo e de sociedade. Sob as luzes da razão, passou-
se a contestar o poder absoluto dos reis e os princípios da liberdade e da igualdade
ecoavam nos gritos revolucionários enquanto os ventos que sopravam anunciavam
mudanças. Já não dava mais para controlar o povo por meio de um Estado forte e
absoluto. O poder adquiria novas representações à medida que o povo ia deixando de
ser objeto da história para perceber-se como cidadão.
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O PODER NO CONTEMPORÂNEO

À medida que as classes populares foram tomando consciência de sua força e


começaram a lutar por seus direitos, o poder adquire a forma de um Estado
Constitucional governado por uma democracia representativa. Desde a Revolução
Francesa (1789), a visão das classes trabalhadoras sobre si mesmas mudou, e estas
começaram a perceberem-se como sujeito histórico. Logo, ter e manter-se no poder a
partir de então foi tornando-se uma tarefa cada vez mais complexa, pois para legitimar o
poder era preciso a aprovação das “massas”. E para manter a estrutura burocrática do
Estado necessitava-se do apoio das elites.

A consolidação do capitalismo e de suas desigualdades, fez triunfar o ideal


liberalista. O econômico parece ser a representação máxima (se não a materialização)
do poder. A ganância tomou conta da humanidade; TER é PODER! Guiados por esta
ideologia, os sedentos de poder já não se comprazem em controlar apenas o seu país. Na
luta pela ampliação do poder, conflitos como a I e a II Guerra Mundial, a guerra do
Vietnã, a guerra do Golfo, a do Afeganistão e a do Iraque parecem inevitáveis. Pois para
controlar um número tão grande de pessoas, o medo parece ser a alternativa mais viável.

Assim, neste mundo globalizado em que vivemos, o que vemos é que a esfera
do poder deixou de ser estatal e tornou-se mundial. Hoje, a representação do poder é,
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mais uma vez, a força econômica aliada ao poder bélico. Mas tudo isso disfarçado com
a máscara da democracia e legitimado pelo Estado Constitucional.
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OS DETENTORES DO PODER

De acordo com Dietrich (2002, p. 87) “a sociedade forma-se de espaços de


poder, sempre ocupados por alguém. Faz parte de sua constituição e não há mal nenhum
nisso. A questão é como organizar o poder e distribui-lo. Sobre quais princípios,
práticas e valores, o poder irá se alicerçar” (10).

Depois desta caminhada histórica proposta por este artigo, o que percebemos é
que para (de)ter o poder, foi e é preciso, de alguma forma, controlar o povo, mantendo
em equilíbrio a ambição da elite e os anseios das classes populares, já que esta última, por
constituir a maior parcela representativa de qualquer nação, é quem dá legitimidade ao
poder, quer por meio da submissão quer por meio do sufrágio.

Sendo assim, podemos concluir que o real detentor do poder é o povo. Este é
quem determina as permanências e/ou transformações à medida que aceita ou resiste aos
mecanismos de representação do poder.

A idéia de que governo e poder são sinônimos é errônea. Para tanto cito
novamente Dietrich (2002, p. 83) que diz que “o poder está disseminado na sociedade e
se ramifica de diversas formas, nos campos econômico, político, social, ideológico,
religioso e cultural” . E todas estas esferas representativas de poder estão intimamente
ligadas a ação do povo.
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Se o povo é o verdadeiro detentor do poder, por que então ele tem se deixado
explorar pelo mesmo ao longo da história?

A visão tradicional e elitista do poder vincula-o ao poder de mando, quase


sempre impessoal e, muitas vezes, autoritário, senão ditatorial.

Esta visão do poder encontrou terreno fértil entre os cristãos que, em virtude da
rígida hierarquia dentro da Igreja Católica, desconfiam do poder bem como de quem o
detém. Ambos são quase sempre vistos como malignos, perigosos, pervertores. Chegar
ao poder ou perto dele, nessa lógica, significa estar prestes a ser corrompido. Sendo
assim, o melhor é afastar-se dele, entregando-o nas mãos da elite e esperar que esta,
num lampejo de consciência, retribua a “generosidade” fazendo algo em benefício das
classes populares.

Ou, sabedor de sua relevância, o povo assume seu papel de detentor do poder
de forma consciente; constrói redes de relações individuais e coletivas que não
permitam ao poder exercer sua sedução e construa uma nova representação do poder.
Um poder popular em que não se anula nem o Estado, nem a sociedade, nem o cidadão.
Redefine-se o papel do Estado, que se torna servidor do povo e por ele é controlado e
fiscalizado.

Esta é a proposta deste artigo, e a história prova que estamos caminhando para
sua realização. A passos lentos, é verdade, mas o ritmo das grandes mudanças,
sobretudo as estruturais, nem sempre têm o dinamismo ansiado pela humanidade.
Provavelmente nossa maior barreira para percebermos o quanto avançamos neste
sentido, é a dificuldade de analisar os fatos históricos de longa duração, como propõem
os annales. Mas, do povo egípcio que submetia-se ao faraó reconhecendo-o como o
próprio deus, ao povo que hoje promove impeachment, o grau de consciência de que o
verdadeiro detentor do poder não é outro senão o povo, elevou-se consideravelmente.
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REFERÊNCIAS

AQUINO, Rubim S. Leão de; FRANCO, Denize de Azevedo; LOPES, Oscar G. Pahl
Campos. História das sociedades – das comunidades primitivas às sociedades
medievais. Rio de Janeiro: Ed. Ao Livro Técnico, 1986.

CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história:


ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, J. Representações: contribuição a um


debate transdisciplinar . São Paulo: Papirus, 2000.

CANOY, Martin. Estado e teoria política .Campinas: Papirus, 1986.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v.


5, n. 11, jan./abr., 1991.

DIETRICH, Luiz José (Org.). Ser é poder . São Paulo: Paulus, 2002.

DUBY, Georges. Senhores e camponeses. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FALCON, Francisco. História e poder. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

FIGUEIRA, Divalte Garcia. História. São Paulo: Ática, 2000.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A idade média: nascimento do Ocidente. São Paulo:


Brasiliense, 2002.

LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro:


Achiamé, 1981.

REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

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